O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Mulher (teogonia).




Por Raymond Bellour

I

A mulher do western, de quem nada foi dito, se oferece ao olhar deslumbrado no estatuto múltiplo de sua ambiguidade.

Porque ambígua ela realmente é, desde o início, e em todos os sentidos. O que ela tem de fazer, de fato, neste universo de homens? É o que todos perguntam, sendo Anthony Mann o primeiro a dizer: "Na verdade, sempre acrescentamos uma mulher à balada, porque sem uma mulher um faroeste não funcionaria".

Será que essas palavras sugerem que é impossível construir qualquer enredo sem uma personagem feminina, como é o costume cinematográfico, ou elas apelam apenas para esse realismo: as mulheres eram uma presença cotidiana no Velho Oeste, que não podia ser evitada. Eu não acho que seja assim. Seria ir contra a arquitetura de muitos roteiros e negar ao herói a possibilidade do mito em sua parte mais secreta.

A literatura vem vagando pela feminilidade há muito tempo, com diferentes graus de intensidade, quase encontrando nessa atração violenta, aliada a uma ansiedade surda, uma razão de ser, um poder singular cuja essência é sugerida pela palavra romanesco, desde então, na França, em incontáveis lampejos de beleza, e na tradição germânica, de forma mais urgente e sutil (se aceitarmos o adjetivo adornado com suas tonalidades alquímicas), o romance se desenvolveu, por meios diretos ou indiretos, em torno da mulher, a qual é ao mesmo tempo a figura da narrativa, espelho do sentido, para o herói masculino o ponto de referência essencial, para o autor a profundidade, o desvio, o equilíbrio derradeiro, – já que a mulher se desdobra assim na obra como uma imensa metáfora, provocando, delimitando o movimento da escritura, seria muito estranho que o western, que foi chamado de cinema americano por excelência, pudesse, qualquer que seja sua singularidade nesse aspecto, escapar da dupla herança do século XIX anglo-saxão e balzaquiano, que define a moral e a estética do cinema americano como um todo.

A mulher, portanto, no universo heroico do Oeste, continua sendo o objeto preeminente, sujeito metafórico, mas mais ou menos despossuída, liberada de todo o seu poder de opacidade, ela não é mais do que uma meia metáfora, por assim dizer. Isso porque, na maioria das vezes, lá onde o herói tradicional do romance refere-se à mulher para descobrir sua própria imagem, o herói do western o convoca no seu semelhante, no herói, irmão bem como no inimigo, já que ambos estão lutando no mesmo campo de batalha onde as mulheres não têm nada a fazer: a morte, no horizonte de cada confronto. Burt Lancaster e Kirk Douglas em Sem Lei e Sem Alma e, inversamente, James Stewart e Robert Ryan em O Preço de um Homem.

Mas o filme de Mann revela um sutil deslocamento: entre o assassino e o caçador de recompensas que o persegue, a mulher se apresenta, amiga do primeiro e já apaixonada pelo segundo. E o que exatamente Janet Leigh representa no duelo, com seus olhos loucamente azuis e seu doce rosto assustado? Creio que se pode dizer que é a vida. Mas como Thomas Mann a entende em uma passagem particularmente admirável de A Montanha Mágica, em que Mynheer Peeperkorn evoca "as exigências sagradas da vida como mulher, no lugar de honra e força". Ao herói, a mulher oferece a possibilidade única de um reconhecimento do lado da vida. Face ao horizonte fatal e magnífico da morte iminente, sem a qual o herói, a rigor, não existiria, a mulher, e ainda mais quando é protegida, torna-se novamente uma mediadora, apagada ou vividamente presente, a depender se ela incorpora o tempo no sentido da segurança burguesa e histórica ou aquele, o único verdadeiramente presente, da exaltação lírica.

Única possibilidade da mulher se tornar, se não a personagem principal, como Anthony Mann sugeriu na mesma entrevista, pelo menos uma personagem verdadeira, não mais a semi-metáfora que pela sua posição ela personifica, mas sim, como em tantos romances e filmes, a metáfora, aquela figura da qual o significado se irradia. Então aparecem Pearl Chavez (em Duelo ao Sol, pelo menos nesse aspecto perfeitamente sternbergiano), Altar Keane (em O Diabo Feito Mulher, uma reversão admirável, pois em poucos de seus outros filmes Lang deu tanto valor à feminilidade), Vienna (em Johnny Guitar, ao mesmo tempo o arquétipo e algo mais), todas altamente romanescas.

Assim, e de todas as formas, à afirmação justamente famosa de Bazin em seu artigo sobre The Outlaw, de Howard Hughes, de que "a melhor mulher não vale um bom cavalo" (que, no que diz respeito à ação, muitas vezes é rigorosamente verdadeira), responde-se com a frase insidiosa de Mann já citada, em que a palavra "funcionaria" é, no mínimo, cheia de significado.

Resta saber quem, sob a aparência que falsamente as equaliza, são as mulheres westernianas, na diversidade que uma pequena tipologia evocativa, arbitrária em sua abstração e referências, pretende sugerir.

II

A mãe é a garantia formal da ordem masculina. Ela é adorada. Ela dá vida. Encostada na cerca, na soleira do rancho, ela testemunha a partida dos homens, assegurando desde já a imaginação do retorno, a permanência do real. É nela que os homens incorporam seus valores. Assim, Katy Jurado, em A Lança Partida, é a personificação da propriedade e, aos olhos de Spencer Tracy, a imagem mais visível de seu sucesso, assim como para Karl Malden, em A Face Oculta, a prova de sua regeneração moral. As crianças se sentem orgulhosas e infelizes ao mesmo tempo por estarem livres de seu domínio: o jovem Billy em Sem Lei e Sem Alma. Esposa de pioneiro, que em breve se tornará avó de uma terra conquistada por lágrimas e sangue, como aparece em A Grande Jornada, de Walsh, e em O Passado não Perdoa, sob os traços de Lilian Gish, é a mãe que inspirou o comovente apelo de Edna Ferber em Cimarron, que Wesley Ruggles, quase trinta anos antes de Mann, adaptou pela primeira vez: "Vocês não podem ler a história dos Estados Unidos, meus amigos, sem conhecer a história dessas milhares de mulheres desconhecidas, atravessando a planície, o deserto, as montanhas, suportando dificuldades e privações". Essas mulheres "com ferro dentro delas", como as descreve Rieupeyrout, são respeitadas como construtoras: elas constituem a própria carne da história.

Entre o passado e o futuro, a mãe tece lentamente a teia. Ela guarda o tempo. Daí a ironia respeitosa de Walsh em Esse Homem é Meu. Em um imenso rancho, Jo Van Fleet, mãe formidável, reina. O pai está morto. Ela guarda, de arma em punho, a virtude de suas filhas e ordena que as quatro esperem, em rigorosa abstinência, pelo único marido de uma delas, o qual teria escapado da morte durante um assalto a banco. Agarrada ao seu chão, varrendo a poeira de sua saia larga, ela é o símbolo vivo da homenagem prestada nos poemas homéricos à terra e, por meio dela, à mãe: "É a terra que cantarei, mãe universal de sólidos alicerces, venerável avó que nutre sobre o seu solo tudo o que existe".

2. Eu tomei esta mulher, ela é minha medida e minha porção da terra (Claudel).

Ela se tornará uma boa esposa. Ela é jovem e inspira nos heróis um sentimento de amor, a noiva exemplar que se tornará uma esposa exemplar antes de ser mãe. Mas o sentimento, por mais apaixonado que seja, resta sempre honesto e respeitoso com a tradição. A jovem mulher obedece ao marido; pudica e reservada, ela pode criticá-lo de vez em quando, mas jamais transgride qualquer código. Para o herói, ela é uma personagem natural, a qual tem de ser, mas que não influencia de forma alguma o significado pessoal de sua vida, Bazin resumiu o amor de Randolph Scott por Gail Russell em Sete Homens Sem Destino em duas palavras: "necessário e objetivo".




Isso não quer dizer que ela não tenha importância. Ela orienta a ação, provoca-a: o que faz Scott senão matar sete vezes o assassino de sua esposa, vítima de um assalto a banco? Sem vê-la por um instante, não podemos imaginá-la como algo diferente de uma esposa modesta e reservada. Ao longo de Duelo na Cidade Fantasma, Taylor protege sua noiva, embora ela não tenha nada a ver com sua relação com Widmark. Ela tem uma função dramática e social e, no filme, conta muito pouco. No fundo, antes, durante e depois, uma boa esposa é uma mulher comportada. E é por isso que não nos importamos muito com ela, porque mesmo sendo charmosa, a palidez de seu papel rapidamente nos faz esquecê-la. O rosto frágil da jovem noiva desaparece rapidamente em Jornadas Heroicas diante da vivacidade rude e feminina de Calamity Jane. Todas essas mulheres são parecidas, têm um mesmo rosto de humildade, de submissão e de moralidade. Marian, em Os Brutos Também Amam, que a despeito de seu afeto por Shane, toma muito cuidado para não transgredir a lei moral; em O Homem dos Olhos Frios, a jovem viúva que sabiamente cria seu filho e para quem Fonda só pode olhar com altivez; a esposa de James Cagney em Honra a um Homem Mau, casada com um homem mais velho que ela não ama, banindo toda tentação; e tantas esposas doces, atenciosas e fiéis que apenas alguma exigência humanitária ou alguns medos maternais as incita a levantar a voz, como em Gatilho Relâmpago, O. K. Corral ou Choque de Ódios. O melhor exemplo disso ocorre em Matar ou Morrer, quando, assim que seu casamento é celebrado, Cooper tem de enfrentar a morte, um assunto que diz respeito somente a ele, e que ele vence sozinho antes de partir acompanhado pela mulher que Doniol-Valcroze chamou tão deliciosamente de "sua pequena loirinha quaker".

3. A mulher é campo e pastagem, mas também é Babilônia (Simone de Beauvoir).

Como não ceder ao charme dessas criaturas deslumbrantes em vestidos multicoloridos que, nos saloons com suas vitrines altamente ornamentadas, batem os quadris nas mesas, procurando incessantemente o homem que lhes pagará uma bebida e talvez uma noite. A anfitriã é a figura mais cativante do faroeste tradicional. Ela pode ser apenas essa aparição admiravelmente fugaz, como uma pintura, um instante, um espetáculo, ou tornar-se verdadeiramente uma personagem, ou sê-la e ainda assim continuar sendo a pintura, o instante, o espetáculo: sendo a mais bela, Marilyn em O Rio das Almas Perdidas, com seus belos sapatos vermelhos e dourados sobre os quais o olhar de Preminger se detém na poeira marrom da rua onde, enfim, pois o filme só pode terminar assim, ela os abandona.

Ela já foi descrita, muitas vezes, de uma forma terrivelmente convencional. É ela, a anfitriã, que leva o herói para o mal, para longe de sua noiva ou de sua jovem esposa, ou (e) se apaixona por ele de uma forma quase espiritual e recebe a bala destinada ao amado, recuperando na morte toda a honra que uma vida dedicada ao mal lhe havia roubado. Inúmeros são os westerns que concordam com o rigor deste esquema, mas mais numerosos ainda são os filmes antigos que o contrariam, transformando a mulher que chamo de anfitriã para usar só uma palavra, visto que ela é infinitamente diversa, em uma personagem rica em reviravoltas e perspectivas imprevistas, uma mulher que escapa a todas as tentativas rápidas de definição, como a jovem prostituta um tanto kafkiana de Duelo de Titãs. Porque ela aparece, assim que escapa às imagens, como um ser claramente definido, que intervém no curso da ação de forma real, cuja palavra tem peso. E ainda mais no faroeste moderno em que, por trás do mito, busca-se encontrar o indivíduo.

Richard Fleischer coloca em cena uma bela personagem em Fama a Qualquer Preço. Callie é uma jovem anfitriã sustentada por um homem vulgar e violento, Jehu. Até que ela se apaixona por Lat Evans, um jovem e belo arrivista cuja única ambição é conquistar status social e o respeito de seus concidadãos. Callie é absolutamente devotada a ele, chegando ao ponto de lhe oferecer todo o seu dinheiro. Lat se aproveita dela ao máximo e ainda se casa com uma jovem respeitável. Mas no dia em que Jehu, louco de ciúme, ameaça ferozmente Lat, Callie o mata. E Lat se voltará, de forma muito comportada, para junto de sua jovem esposa. Fleischer joga com muita habilidade contra uma certa misoginia latente do western tradicional, e não é exagero dizer que Callie é aqui uma verdadeira personagem, determinando a narrativa e dando ao filme sua verdade mais íntima. E a beleza de Lee Remick aporta um vívido contraponto de ternura a essa obra cruel. Ela é inesquecível em seu vestido verde, à medida que se move pelos belos cenários do salão e de seu quarto, todos cobertos por cortinas azuis e brancas.

4. Nas margens do Jo-Yeh, moças colhendo lótus
Conversam e riem por entre as flores.
O sol brilha em seus vestidos novos que reluzem na água
O vento faz suas mangas perfumadas esvoaçarem no ar (Li-Bai).

Não são mulheres adultas, nem noivas exemplares; são moças jovens, que podem ser chamadas de românticas. São cidálias cujo amor de repente se tornará seu único e arrebatador negócio. Assim que encontram o objeto de seu amor, elas avançam, ao lado ou diante dele, a alegria em seus olhos, vestidas com trajes coloridos que poderiam lembrar os usados pelas anfitriãs se a gola, as mangas e as rendas não fossem tão diferentes em sua leveza. Seria uma loucura não vê-las e não fazer um dos buquês mais bonitos de todos os tempos. Elas vêm correndo: Diana Varsi, uma adoravel garota de cabelos castanhos e olhos claros, que se banha em rios e acredita no amor à primeira vista; Petra, a jovem mexicana vestida de branco que Horst Bucholz encontrou um dia fugindo para a floresta; Pina Mellicer, adoravelmente morena e frágil, com seus grandes olhos loucos e seu pescoço tão delicado contra o xale lilás que cobre seus ombros; Gene Tierney, em cores quentes em um filme de admiráveis tons frios, uma falsa ingênua e uma jovem com corpo de mulher com a qual a câmera precisa de Lang se detém graciosamente; finalmente, Audrey Hepburn, indígena, é claro, mas uma falsa indígena, charmosa, descontraída e assustada, tão jovem que tenho de desistir de descrevê-la para remeter todos à imagem encantadora que Huston fez dela. Tudo isso em cinco filmes: Caçada Humana, Sete Homens e Um Destino, A Face Oculta, A Volta de Frank James, O Passado não Perdoa.









E há também as heroínas ternas e singulares de Delmer Daves, todas elas entrelaçadas. Elas são quase mulheres, elas têm, talvez, menos graça e espanto no olhar, mas têm uma ternura e a profundidade silenciosa de seus sentimentos comove. Daves e, sobretudo, Valérie French, trazida por uma caravana mórmon em Ao Despertar da Paixão, Felicia Farr, a grande romântica de A Última Carroça (não esqueceremos a bela sequência, à noite, nas rochas), a jovem que, em Galante e Sanguinário, entrega-se a Glenn Ford, apenas o tempo suficiente para perceber que poderia tê-lo amado, que é por causa dela e de seus olhos grandes e cansados que ele pegará a diligência e o trem de volta a Yuma.

5. Um país onde as moças são belas: bom país. País onde as pessoas souberam viver. A espécie humana foi um sucesso. Isso não é pouca coisa (Michaux).

Daves, ele de novo, pintou o primeiro e mais impressionante retrato da mulher indígena: foi Sonseeahray em Flechas de Fogo, a ternura e a paixão de um amor que nasceu do jogo e do rito, e só conheceu o deslumbramento para terminar em morte.

No faroeste, em geral, pouca atenção é dada à vida conjugal. Quando o herói, por fim, sai em busca da noiva ou encontra a esposa, esta última elipse diz o essencial ao mesmo tempo em que se esquiva: jamais saberemos, – se não for uma referência a outros filmes em que os mesmos amantes poderiam ter envelhecido, como poderíamos nos contentar com isso? – jamais saberemos realmente qual é a aventura deles em uma vida na qual a aventura desaparece. Ou talvez esse também seja o assunto do filme, o que nos leva de volta à mulher. Nos westerns, a jovem dá ao amor a sua cor inefável e o filme mais ou menos ignora-a ou deixa-se comover por ela, às vezes até o ponto da raiva, mas pouco aprendemos ali, na exaltação dos encontros, no encanto das evocações, na conclusão feliz, como é o amor enquanto experiência entre dois seres.

Nesse aspecto, além de sua graça singular, a mulher indígena se destaca de forma absolutamente original. Porque o amor que lhe oferecem é sempre uma oportunidade de conflito. A situação requer isso, em todos os seus aspectos geográficos, culturais e históricos. Quando Thomas Jefford procura Sonseeahray, ele opta deliberadamente pela outra vida, seu amor é ainda mais imprudente do que seu encontro com Cochise, e Daves sentiu isso maravilhosamente, permitindo que as cenas de amor, que são tão ternas e pacíficas, pairem sobre uma leve estranheza na qual a inquietação transparece. Sobre a vida futura da jovem, não sabemos quase nada, mas podemos imaginar tudo; com a indígena, não há nada para imaginar; a história de seu amor começa e termina no tempo da narrativa e é isso que torna esses amores terrivelmente trágicos tão impossíveis. O que Daves, o romântico, termina em morte, Hawks, irônico e compassivo, e Fuller, mais doloroso, repetem cada qual à sua maneira: que Boone em O Rio da Aventura fique, quase forçado, junto à jovem princesa que o seduziu tão admiravelmente ao cortar com uma faca a corda que segurava a porta de sua tenda, com um gesto digno de Lauren Bacall e Katherine Hepburn, ou que Rod Steiger em Renegando o Meu Sangue abandone aquela que ele fez sua esposa, que o ama, e fuja da doçura transparente da aldeia indígena à beira d'água, onde, pela primeira vez em sua vida, conheceu a verdadeira felicidade, – Hawks e Fuller repetem à sua maneira e com muitas outras estas breves palavras de Henri Michaux, com ar de sentença sonhadora: “a vida é tão estranha, tão absurda, quando não se está mais entre os seus...”

A bela exceção é A Última Caçada (O Passado não Perdoa é apenas uma farsa), onde o amor entre Stewart Granger e Debra Paget (Sonseeahray, tornada mulher) é como a conquista de um país do qual se é o explorador e o único ocupante. Desenraizados juntos, ele por sua solidão, ela pelo massacre dos seus, se unem pelo acaso que pouco a pouco precipita um ao outro, transgredindo todas as interdições, todas as alianças anteriores, para tentar o mais difícil de tudo: uma verdadeira vida em casal. A Última Caçada, cujo amor que determina a narrativa é vivido no presente, abre com a promessa de um futuro possível. Mas não podemos nos furtar de pensar – todos os obstáculos removidos entre os seres – na fragilidade social de tal amor, e quando penso em A Última Caçada dessa forma, lembro-me imediatamente das primeiras imagens de Duelo de Titãs em que a jovem esposa do xerife é estuprada e morta apenas por ser indígena.

6. Quando será quebrada a servidão infinita da mulher, quando ela viver para si mesma e por si mesma (Rimbaud).

Em seguida, vem a esposa. A partilha é quase sempre difícil. Jean Simmons, o “rosto de anjo” descrito por Preminger, com seu sorriso igualmente doce, que reúne a emoção dos amores adolescentes e do amor adulto, Jean Simmons, a única que escapa da triste lembrança de Da Terra Nascem os Homens, nos faz sentir isso. Quem é ela ao certo, aquela que só pode ser chamada de a mulher? Nem a mocinha e nem a boa esposa, mas uma liberdade que transmite um alarme esplêndido, um desafio, uma poesia em que a dureza rivaliza com a ternura e introduz as mais belas reviravoltas neste universo de homens.

Ela depende dela mesma ou de quem ela quer depender, organizando sua vida com uma decisão que os rigores do Oeste logo tornam soberana. Como Rhonda Fleming, jogadora profissional em Sem Lei e Sem Alma. Das anfitriãs ela tem um maravilhoso vestido colorido, pontilhado de pontos pretos e com franjas sob os seios, mas ela não se vende a ninguém, até mesmo faz o trabalho de um homem, pelo qual será condenada à prisão, pois a moral masculina não reconhece o seu direito de fazê-lo; e no fim ela partirá como veio, porque o homem que ela ama prefere cumprir seu dever a partir com ela. A mulher escolhe seus homens, assim como os homens a escolhem. Assim, Vienna, uma figura feminina sublime que escapou do mundo ardente de Nicholas Ray, semelhante à Laurel de No Silêncio da Noite, que Gloria Grahame deu vida com tanta loucura, Vienna, rainha em seu próprio universo, pronta para lutar contra qualquer um que ouse questionar sua autoridade e autonomia, que até toma a liberdade de contratar homens para protegê-la sem se impedir de expressar o quão pouco ela os valoriza e que escolhe renovar com Johnny a grande aventura do amor adulto. Por ela Johnny está mais uma vez pronto para desafiar o mundo, e é em uma sequência de um lirismo louco que ele a agarra pela corda e os dois fogem, sob um céu perfurado por chamas vermelhas e amarelas, o último vestígio da casa onde Vienna tocava piano em seu vestido branco. Citarei novamente Dona Reed, que em Punido pelo Proprio Sangue investiga a morte de seu marido da mesma forma que Widmark investiga a morte de seu pai. Eles se confrontam, e o sentimento que nasce entre eles na busca pelo enigma é de uma igualdade desconcertante porque à inclinação dos dois se junta surpreendentemente o diálogo de heroísmo que normalmente se estabelece de homem para homem. É por isso que é tão bela em seu lirismo atravessado pela ironia a sequência na qual, ao cair da noite, a jovem encontra Widmark ferido perto de seu acampamento e, arrancando seu corpete branco tingido de azul pela escuridão, inclina-se para ele, de ombros nus, no meio da planície.

Dixie em Cimarron, Lilly Dollar em Minha Vontade é Lei, Anne Baxter e Dorothy Malone, Eleanor Parker em Esse Homem é Meu, Rhonda Fleming em A Audácia é a Minha Lei, e muitas vezes Virginia Mayo, ou Barbara Stanwyck, não se pode parar de enumerar essas heroínas mais ou menos cativantes, divididas entre a dureza à qual sua posição particular as obriga e a súbita e pesada ternura que as torna tão comoventes, essas mulheres das quais a mais bela é, sem dúvida, Marlene, a Altar Keane de O Diabo Feito Mulher.

III

O que mais sabemos, com o leque aberto e fechado? É o que Kierkegaard nos diz: “Ser mulher é qualquer coisa de tão estranho, de tão misturado, de tão complicado, que nenhum predicado pode expressá-la, e os muitos predicados que gostaríamos de usar se contradizem de tal forma que só uma mulher pode suportar".

Mas sabemos que ela geralmente desempenha um papel singular no faroeste e que considerá-la adequadamente é a única maneira de entender o filme como um todo, já que ela confere a ele uma espessura e uma fragilidade especiais, e o enredo faz um jogo em torno dela, seja principal ou secundário, que está longe de ser sem sentido. Dois filmes demonstrarão isso, ambos de Raoul Walsh, em que aparecem, ligadas e opostas, duas mulheres.

Imediatamente após escapar da prisão para a qual fora levado por sabe-se lá quantos assaltos a bancos e trens, Wes McQueen retorna à sua fazenda natal para perguntar a uma criança sobre o destino de sua antiga noiva, Martha, cujo túmulo está agora a poucos passos de distância. A inclinação que ele sente desde o primeiro momento por Mary-Ann, uma jovem que veio do leste na esteira de um pai aventureiro, é apenas uma repetição, diz ele, de seu antigo amor. Pouco importa que Mary-Ann contrarie o código de honra mais elementar; o essencial é o tipo de jovem que por referência e aparência ela encarna aos olhos de Wes: a poesia cristalina, terna e reservada, a companheira atenta e submissa. À sua frente, Colorado, com sua saia esvoaçante, seu corpete que revela um ombro nu e a curva ainda imprecisa de seu busto, é tão bela quanto a Susana de Buñuel. Desde a primeira imagem, tudo o que vemos dela é um corpo delineado, envolto em seus cabelos que caem pesadamente quando ela se ajeita – a partir desse instante sublime, como se pretende que seja, Colorado incorpora a mulher como mito. Ela é uma metáfora. Quanto mais o filme se aproxima do fim, mais a narrativa tragicamente se precipita, e Wes em Colorado reconhece a mulher, reconhece a si mesmo e faz dela sua companheira. E, entretanto, quando no alto da colina ele avista os sinais de fumaça, foge, abandonando lucidamente a jovem porque essa é a única chance deles. É então que Walsh (ou seu roteirista, não importa), numa admirável reviravolta, submete Colorado a um momento de arrancada, por força das circunstâncias, da possibilidade de heroísmo – tanto quanto dizer que no western o ser é completamente real –, a heroína exemplar que transgride todos os códigos para tentar encontrar seu amante cercado pela polícia em frente à “Cidade da Lua”. Até o último instante, porque depois de cuspir no rosto do xerife que a incita a trair, depois de roubar algumas armas e levar um cavalo para Wes escapar, ela se vira, assim que nada mais é possível, contra os homens que se aproximam e, apesar do gesto de Wes para detê-la, descarrega suas pistolas sobre eles, levando sua própria vida até o fim como bem entende, diante até mesmo do homem que ama e ao lado do qual desaba, com o corpo crivado de balas. As duas mãos entrelaçadas de Wes McQueen e Colorado na areia do deserto, naquele derradeiro close que Walsh queria que fosse irrefutável, nada designa melhor a mulher como parceira absoluta. Certamente ela é também a metáfora, o mito no sentido surrealista, no qual Simone de Beauvoir viu uma última e sutil alienação. Com a única diferença de que o faroeste, desde o início, encena o jogo mais arriscado, de que a exaltação tem valor objetivo e de que a morte, assim provocada e recebida, coloca imediatamente a relação mítica entre o homem e a mulher no terreno aterrador e admirável da igualdade.







Nos confins da fronteira mexicana encontra-se o Fort Delivery. Um jovem tenente, Matthew Hasard, recém-saído de West Point, chega em uma certa manhã. A esposa do capitão Mainwaring, Kitty, a única mulher em Fort Delivery, acolheu-o com uma amabilidade carinhosa. Um dia, saindo do forte em direção ao Leste, sua carruagem é atacada e ela conta com a ajuda de Matt para escapar da fúria dos indígenas. Surpreendidos pela tempestade, eles se refugiam em uma gruta e, após uma noite de amor, retornam ao forte. Daí em diante, a persona de Kitty agirá como um irônico contraponto ao heroico Matt e ao tema do filme: a vida militar. Especialmente porque, pouco antes do massacre do capitão Mainwaring e de sua patrulha pelos indígenas, chega a noiva de Matt, Laura, sobrinha do general Quait. O contraste entre as duas mulheres acentua a primeira impressão de ironia, pois enquanto Kitty adota em relação à realidade militar uma atitude cínica, crítica, cansada e um pouco melancólica, Laura personifica a seriedade ética e social. O tema essencial é, portanto, representado no relacionamento entre as duas mulheres, em algumas longas sequências centrais, bem como no fim com a entrega da medalha. É uma luta desigual, porque Kitty em tudo tem o papel principal, e à elegância árida de Diane McBain contrapõe a graça adorável, a ternura e a melancolia absolutamente arrebatadoras de Suzanne Pleshette. Mas isso não importa; o essencial está no fato de que a crítica interna ao tema repousa, no roteiro, na relação entre duas mulheres, na qual uma das figuras romanescas mais maravilhosas do western é ironicamente posicionada ao longo de todo o filme, nem que seja por meio da graça. É claro que tudo permanece em ordem: Kitty, filha e esposa de um oficial, casa-se com um oficial pela segunda vez na pessoa de Matthew Hasard e retorna ao Fort Delivery. Mas só sua presença, habilmente aproveitada em momentos decisivos, com suas réplicas, finas e nostálgicas, já é o suficiente para lançar uma suspeita sobre a verdadeira realidade desse mundo de homens e conferir ao filme uma sensibilidade moral muito particular.

Eu poderia ter dado milhares de exemplos. Será suficiente mostrar que Walsh, em dois filmes, La Fille du Désert [1] (também conhecido como Colorado Territory, porque aqui a metáfora começa com o título) e Um Clarim ao Longe, uma vez com audácia e violência absolutas, em outra com graça e ironia, contraria aquilo que, por razões de facilidade ou por algum sentimento obscuro, temos tentado frequentemente enxergar na mulher do faroeste: uma imagem.

[1] NdT: A menina do deserto. No Brasil, o filme recebeu o título Golpe de Misericórdia.

Femme (théogonie) foi originalmente publicado em BELLOUR, Raymond (Org.) Le western: Approches - Mythologies - Auteurs – Acteurs – Filmographies. Paris: Gallimard, 1993 (pp.146-159). Tradução: Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.

Sobre cordas e estrelas






Por Victor Cardozo

Tudo começa com um casamento.

Com a fluidez sinuosa de uma maré cheia, Grémillon segue dois cozinheiros trôpegos que atravessam a chuva a caminho de uma cerimônia improvisada (e que talvez também por isso, carrega algo mais de singeleza e de sagrado, algo mais de espírito comunal). São cozinheiros de navios rivais no ofício de salvar embarcações em naufrágio. O lucro é proporcional ao risco: o mau tempo é promessa de prosperidade e a permanência em casa é mais instável que a certeza de longas horas ou dias no mar. Os demais convidados são os membros da tripulação e suas esposas. Palavras eloquentes são ditas em homenagem ao novo casal (descrevendo o mar como a amante a ser aceita por cada esposa), mas o verdadeiro peso vem do discurso simples e contrafeito de André (Jean Gabin), líder tácito da tripulação de rebocadores e verdadeiro líder espiritual da comunidade como um todo. “O que mais se pode querer”? Yvone (Madeleine Renaud) contrapõe toda atmosfera de heroísmo e bonomia com lágrimas ambivalentes. Ela é a esposa que tudo pressente e nada explica ao marido. Este é um de seus vários gestos de amor: não revelar ao homem que ama o segredo de si mesmo, deixar que ele mesmo descubra por conta própria. A hubris de André está justamente em sua força: acredita piamente em estar sempre a postos, sem distrações, sem ambivalência. Mas, como sempre, o destino, na forma do mar e de suas miragens, tem outros planos.

O filme se dá a ver num discreto entrelaçamento entre pequena e grande forma (poderíamos dizer também: entre classicismo trágico voltado para a intimidade e melodrama comunal, entre paixões interiores e senso de destino externo). Suas imagens, ao sabor dessa condução, se equilibram então entre abstração e concretude, e nada confirma mais essa divisão do que as cenas de tempestade e as cenas de amor. O interior de um barco é de uma materialidade pesada, sólida, madeira e metal. André rege os conflitos e contingências do ofício com pragmatismo e rispidez. E no entanto, essa solidez chacoalha, sofre as ameaças do extracampo e das tensões internas que o capitão tenta em vão controlar. Visto de fora, à mercê das águas, o mar é um belo e frágil brinquedo, seu conteúdo é joguete dos deuses (não consigo me lembrar quando o uso a contragosto de um modelo para cenas externas de perigo foi tão adequado). No entanto, a imagem é completa, indivisível. Entre Yvone e Aimée (Michèle Morgan), André vive o paradoxo de ser amado por ambas mediante o contraponto da recusa. Yvone recusa a concretude cega do mundo de André, vê a fragilidade da sua força e ocupa o seu lado oposto no espectro. Aimée (não ouso chamá-la de Catherine), por sua vez, se recusa a ser transformada em imagem, resiste até o último momento de despedida às idealizações de André, idealizações que permitem a ele se manter firme em sua contradição impossível. Vemos ambas sob o olhar de André como miragem e como mulheres de carne e osso. Nessa alternância, repleta de imagens duplas (mar e céu, estrelas do mar e firmamento, barcos de resgate e aqueles que os resgatam) está a revelação do drama.

Mas o mar, como já se disse, tem outros planos. Se começarmos com um casamento, será com um outro tipo igualmente fatídico de cerimônia que terminaremos. Numa prece, o destino está selado, mas também somos expulsos da intimidade dos personagens e devolvidos à condição de testemunhas do ritual comunal. Mas afinal, é em ambos, no ritual e na intimidade, que abstração e concretude se permitem trocar de lugar diante dos nossos olhos.