O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Sobre "Silenzio"




Por Christian Merlhiot

Há muito tempo eu me interesso pelos dispositivos de mise en scène da linguagem. O que é dito não me compete, são citações, empréstimos. O primeiro dispositivo que eu explorei em Les semeurs de peste era muito simples: repetir, lendo, o texto de um processo que marcou época na História italiana. Depois desse filme eu me inspirei em outros dispositivos para fazer falar a língua, fazer surgir um eco ou uma distorção que venha confundir seu sentido. Eu modifiquei a voz, criei entonações, joguei com a articulação, os sotaques estrangeiros, acumulei as traduções, em suma, eu considerei diferentes modos de transporte do discurso me empenhando sempre em extrair dele um sentido menor e subjacente.

Silenzio se situa na continuidade desses filmes porque ele interroga a opacidade e a brancura da língua até no seu mutismo. É preciso entender que esse silêncio não é uma ausência de linguagem mas que, ao contrário, ele multiplica as possibilidades de enunciados e desloca as formas de comunicação. Sem outro ponto de apoio sobre as palavras além de sua entonação e sua musicalidade, os gestos dos personagens liberam subitamente uma sensualidade discreta e às vezes erótica, alhures submergida pelo fluxo do discurso.

A afirmação do sentido me interessa menos que a forma de o pôr em crise, de o fazer vacilar. A linguagem é autoritária, mas ela é também muito vulnerável, um nada provoca a gagueira e engendra novas perspectivas narrativas. Nesse sentido, mesmo um filme sem diálogo articulado como Silenzio é um filme sobre a língua. O questionamento foi apenas deslocado para o seu espaço tátil, para a repetição das palavras, a entonação que as acompanha, para o gesto que as sustenta, as antecipa ou as segue... Enfim, tudo que é necessário para acompanhar uma palavra perdida numa língua estrangeira.

Mas Silenzio é sem dúvida o último a questionar essa alteridade absoluta na qual o outro não tem lugar. Dois personagens ganham corpo longe dos espaços urbanos. Eles abandonam uma cidade para se deixar, pouco a pouco, atingir pela paisagem. Essa troca nos confins da língua só é possível graças à emergência da paisagem. Tudo o que se enuncia numa simples co-presença dos personagens atesta sua experiência comum. Que eles observem um vulcão adormecido, sejam testemunhas da fúria do mar ou atravessem a brancura de uma floresta enevoada, eles registram esses eventos como o bem comum que a partir de agora os aproxima. A paisagem age como ator no filme. Me parece, além disso, que para interrogar a paisagem, um filme só pode renunciar à palavra. Como se uma fosse a reserva da outra e como se elas absorvessem uma à outra. Podemos falar de uma paisagem ausente mas falar diante de uma paisagem é falar diante de um cenário. É preciso que um dos dois esteja ausente para reabsorver a distância entre o espaço e as palavras.

A propos de "Silenzio" compõe o material de imprensa do filme, lançado em 2005. Tradução: Miguel Haoni.

Tony e Theo


Por David Bordwell

Em janeiro de 2012, enquanto filmava O outro mar, Theo Angelopoulos foi atingido por um motociclista e morreu logo depois. Em agosto, Tony Scott cometeu suicídio pulando da ponte Vincent Thomas, em Los Angeles.

Os dois homens foram importantes para o cinema. Mas qual cinema?

De 1970 em diante, Angelopoulos produziu filmes solenes sobre a história Grega, a guerra mundial, a emigração e o colapso das lutas por mudanças políticas. Sua marca registrada era o extenso – alguns diziam excruciante – plano-sequência. Ele apresentou seu trabalho como o de um intelectual atencioso e apaixonado, uma testemunha da história (ou como ele dizia às vezes, História) que estava nos contando verdades duras e melancólicas. Seu trabalho recebeu pouca distribuição no circuito comercial fora da Europa e do Japão, e alguns de seus melhores filmes não circularam fora das salas ou em vídeo. Severo e abrasivo, ele alienou membros poderosos da cultura cinematográfica e foi relatado que ele reagiu amargamente quando não ganhou o prêmio principal de Cannes.

Por contraste, depois de Top Gun: ases indomáveis (1986), Tony Scott veio a se tornar o protótipo do diretor explosivo de Hollywood, um mestre dos blockbusters de ação. Ele dirigiu e organizou alegremente uma técnica visceral para sacudir os olhos e martelar os ouvidos. Seus filmes eram descaradas pilantragens, destacando a beleza feminina num tom de camaradagem masculina em ambientes exclusivamente masculinos (esportes, o exército, os locais de trabalho). Não por falta de inteligência, ele evitou os pronunciamentos arrebatadores que faziam Angelopoulos parecer pretensioso, mas sua parceria inicial com Simpson e Bruckheimer o classificou como ruidosamente vulgar. Ele até mesmo namorou Brigitte Nielsen.

Os extremos se encontram


O escultural contra o cinético, o monumental contra o efêmero, a ponderação contra o flash ordinário: Para todas as aparências, esses dois homens viviam em mundos cinematográficos diferentes. Suas carreiras também foram estranhamente contrapostas. Angelopoulos, um querido dos festivais nos anos 1970 e 1980, tornou-se mais antiquado. Na época de sua última estreia, Trilogia II: A poeira do tempo (2009), alguns críticos foram abertamente desdenhosos. Scott enfrentou zombarias desde o início, mas alcançou algum respeito com a crítica nos anos 2000. Depois de sua morte, os críticos referiam-se a ele como um mestre. Para muitos, a teimosa fidelidade de Angelopoulos ao modernismo dos anos 1970 parecia defasada, enquanto a corporeidade e a bela superficialidade da imagem de Scott pareciam finalmente ter seduzido tanto a audiência quanto os críticos.

Eu confesso que ambos me enchem de escrúpulos. Quando Angelopoulos força a significação, como ele faz em muitos momentos ao longo de sua obra e quase o tempo todo em Trilogia II: A poeira do tempo, ele desperta toda a minha impaciência com o Eurocinema pretensioso. Quando Scott constrói uma cena em cima do diálogo foda-se-seu-filho-da-puta, e persistentes imagens de dançarinas de pole dance, ele me lembra o quão baixo o cinema contemporâneo americano pode afundar. E o estilo de cada um pode se tornar previsível – um plano angulado descendo uma rua que prevê uma panorâmica em Angelopoulos, enquanto uma vez que alguém senta em um filme de Scott, a câmera provavelmente vai começar a girar.

Apesar destas reservas, eu acredito que posso admirar e desfrutar muito dos filmes desses dois homens. Seus trabalhos mais ousados nos oferecem experiencias poderosas, e eles podem nos ensinar sobre o cinema – sobretudo, como cineastas criativos podem retrabalhar o meio e suas tradições históricas.

E os seus mundos se sobrepõem, pelo menos um pouco. Ambos tratam o cinema como uma arte da escala. Para ver Chamas da vingança (2004) ou Alexandre, o Grande (1981) em casa, não importa o quão grande seja o seu monitor, significa reduzir fatalmente os filmes. De maneira correspondente, ambos dependiam do espetáculo, enchendo a tela com efeitos arrebatadores e surpreendentes. É verdade que o espetáculo de Scott é maximalista, enquanto o de Angelopoulos é austero. Contudo, uma vez que você calibrou a sua frequência, o trem que ruge através do campo de migrantes em Trilogia: O Vale dos Lamentos (2004) torna-se tão barulhento quanto a locomotiva rebelde de Incontrolável (2010). “É tudo ou nada” poderia ser o lema de cada um desses homens.

Os dois jogam com a narrativa também. Desde Fome de viver (1983) a incessante montagem paralela de Scott utiliza a trilha sonora como uma linha de ação para comentar na outra. O looping temporal de Domino: A caçadora de recompensas (2005) e Déja vu (2008) criam flashbacks, replays, resultados revisados e pontos de vista que alternam-se. De maneira mais calma, Angelopoulos aperfeiçoou a elipse temporal durante um plano-sequência. Os movimentos de câmera de A viagem dos comediantes (1975) deslizam entre diferentes eras. Cena a cena, Angelopoulos providenciará algumas marcas de tensão. A cena B pode seguir a A, ou precedê-la em muitos anos, e nenhuma sobreposição de título hollywoodiana vai nos ajudar. Pode ser que muitos minutos se passem até nós percebermos que décadas se passaram.

No entanto, o embaralhamento do tempo que ambos os diretores gostam não está completamente a serviço do drama. A narração assume um papel curiosamente subsidiário em seus trabalhos. Nenhum dos cineastas, ao que me parece, está interessados em investigar o que muitos de nós consideram ser o cerne da narrativa - a psicologia dos personagens. Isso não quer dizer que não existam momentos comoventes e vislumbres de vidas interiores. Mas cada um dos diretores também vai além deles.

Eu acho que, de fato, Tony e Theo exploram o que acontece quando a narrativa desliza pra longe, quando é permitido às texturas e padrões cinematográficos sobreporem o drama – para inflá-lo, esvaziá-lo, empurrá-lo para um lado, tomá-lo como pretexto para algo mais tangivelmente cativante. Os dois cineastas procuram esculpir a nossa percepção e as nossas emoções, permitindo que as flutuações de imagens e sons engendrem nelas mesmas uma espécie de mesmerismo.

E eles alcançam isso através de duas tradições diferentes, a de uma Hollywood moderna e a de um “cinema de arte.” No entanto, eles compartilham o compromisso de ir além do provável: cada diretor empurra a sua tradição a um limite.

Pulp Fictions
 
A tradição de Scott é, mais amplamente, a do cinema narrativo hollywoodiano, e até certo ponto ele joga com isso. As tramas são impulsionadas por personagens que perseguem um objetivo e que colidem com outros, e o resultado são disputas (Top Gun: ases indomáveis, Dias de trovão, 1990) investigações (Um tira da pesada 2, 1987; Chamas da vingança, Deja vu) perseguições e conspirações (Vingança, 1990; O último boy scout, 1991; Amor à queima-roupa, 1993; Estranha obsessão, 1996, Inimigo do Estado, 1998; Jogo de espiões, 2001; Domino: A caçadora de recompensas) e situações de suspense que lutam contra o tempo (Maré vermelha, 1995; O sequestro do metrô 123, 2009; Incontrolável).

No centro geralmente está um homem, ou uma dupla, que deve se submeter a um teste de coragem e desenvoltura. Em Estranha obsessão, um exemplo do que Kristin [Thompson] chamou de filme de protagonista paralelo, um cara normal encontra-se perseguido por um admirador obcecado. Uma mulher pode servir como uma parceira corajosa, como em Amor à queima-roupa, ou o objeto de uma missão (Vingança, Jogo de espiões), ou a recompensa pelo sucesso (O último boy scout, Incontrolável). Apenas Domino: A caçadora de recompensas tem uma protagonista feminina que sobrevive sendo tão abrasiva, mente suja e desbocada quanto seus parceiros e adversários masculinos. Entretanto, ela mesma admite ter problemas paternos e um desejo de retornar a uma riqueza confortável.

No fundo, então, Scott trabalhava diretamente com a literatura Pulp, e por cerca de uma década ele as interpretou com o espírito adequado. Mas com Inimigo do Estado (1998) ele começou a usar estratégias narrativas mais escorregadias, que se espalhavam pela Hollywood de sua época. Como Tarantino que forneceu o roteiro de Amor à queima-roupa, Scott se dispôs – inspirado, como ele sugere, pelo rock’n’roll e pelos filmes de Nicholas Roeg – a ser um pouco selvagem.

Seus roteiros começaram a brincar com o que costumamos chamar de ponto de vista. Alguns filmes tornaram-se marcadamente, para não dizer traumaticamente, subjetivos. Jogo de espiões divide a figura do protagonista em dois e nos dá o ponto de vista de cada um sobre a ação. Estranha obsessão, adaptado do ótimo livro de Peter Abraham, segue a obsessão de um homem na medida em que ela se torna mortal. Chamas da vingança, mergulha no mundo mental de John Crease enquanto ele destila dor, culpa, piedade e alcoolismo em um sadismo implacável.

Quando chegamos a Domino: A caçadora de recompensas, a apresentação da história é impiedosamente disjuntiva. A ação principal é delimitada por um enquadramento convencional que mostra a heroína contando a sua história para um policial. Uma coisa boa, também; nós não poderíamos seguir a ação sem os comentários dela. O conto fragmenta-se em rápidos displays de AV, com pausas, recuos e preenchimentos, desfechos alternativos e até mesmo títulos escritos, como se estivéssemos recebendo a conversa de PowerPoint mais agitada da história.

Uma outra multiplicação de perspectivas acontece por meio dos jogos de espionagem. A maior parte dos diretores, situa a técnica de vigilância moderna dentro do mundo da história; Paul Greengrass parece mais feliz filmando as pessoas curvadas sobre as estações de trabalho. Quando o seu diretor mediano te dá um plano arrebatador de helicóptero, você não o interpreta como o ponto de vista de uma sinistra agência governamental, ou como uma câmera de TV sensacionalista ao vivo. Nos filmes mais tardios de Scott você provavelmente interpretará desta forma. Ele percebeu que todas as câmeras de segurança, celulares e olhares hostis que estão no céu podem fazer duas coisas úteis. Elas podem cortar o tempo e o espaço da história em fragmentos provocantes, e podem também refrescar a textura visual do plano.

Por muito tempo, os filmes de Hollywood utilizaram a televisão para exposição. Personagens vislumbram o fluxo dos eventos da história através das transmissões da TV, e algumas vezes, como em Nova York sitiada (1998), o filme simplesmente corta-se em novos clipes apresentados diretamente a nós, sem qualquer personagem mediador. Passagens como essas, são um equivalente contemporâneo das manchetes de jornais e das transmissões de rádio do cinema de estúdio clássico, que geralmente suavizam o enredo, ligando os fatos de forma concisa.

Mas Scott sempre tem prazer em enfatizar as disparidades entre as filmagens, cortando de uma apresentação “direta” do material para imagens e sons mediados. Nos filmes de conspiração, as imagens de vídeo parecem vir de um vasto banco de imagens ou base de dados, que o filme está sampleando em tempo real. Além disso, a constante interrupção de um plano por outro, vistos em um computador, ou na transmissão de um noticiário, ou numa câmera espiã, cria uma nervosa narração visual. Na verdade, Scott importa as colagens bagunçadas do filme de Stone, JFK (1991), para dentro do filme de ação (com mais habilidade do que a que Stone reuniu para Assassinos por natureza de 1994 e Reviravolta de 1997)

No nível de apresentação, entretanto, uma tradição mais demarcada, esculpe o estilo de Scott. Em entrevistas e comentários do diretor, ele nos lembra incansavelmente que começou como pintor e eu penso que ele trouxe uma inteligência fresca e pictórica para os filmes de ação.

Muito não é suficiente

Como Michael Mann, Scott parece ter sentido a necessidade de dar ao filme de ação uma dose autoconsciente de arte. O problema era a competição. O padrão ouro do gênero surgiu em 1988 com o classicismo equilibrado e bem tecido de Duro de matar de John McTiernan. Como um diretor ambicioso ia se igualar a isso? Muitos diretores estavam abraçando variantes de um estilo que apelidei de “continuidade intensificada” – cortes rápidos, encenação simples, variações extremas de distâncias focais, movimento de câmera quase constante. Os eficientes, mas rotineiros, trabalhos de Richard Donner e Renny Harlin seguiam ao longo dessas linhas, enquanto Michael Bay representava o estilo de forma quase imaculada. Mas e se um diretor que havia treinado como pintor na Royal College of Art, pudesse levar a continuidade intensificada para um novo território?

Então sim, siga a tendência do corte rápido; mas corte-o ainda mais rápido. Em uma era em que a média de duração de um plano é de 3 a 5 segundos, porque não os fazer em 2 segundos? Ou menos? Essa foi a escolha de Scott a partir de Estranha obsessão (1996). Ele raramente repete uma configuração, principalmente porque ele tem inúmeras câmeras estacionadas no perímetro da cena. Chamas da vingança contém pelo menos 4100 planos, Domino: A caçadora de recompensas mais de 5000, mas talvez nós nunca saberemos quantos exatamente. Passagens longas foram construídas em múltiplas exposições, sobreposições, stop-and-go motion, e as cores transformam-se dentro de um mesmo “plano.” O corte deixa de ser um limite firme, conforme as camadas flutuam e escapam.


Às vezes Scott, como Vertov em Um homem com uma câmera e Pat O’Neill em Power and water, simplesmente abandona o conceito de um plano discreto, deixando as imagens escorrerem pelo seu quadro.

E sim, mova a câmera, mas mova-a em arabescos, bem diferente dos despreocupados planos consecutivos e travellings tensos de McTiernan. Em particular, considere a câmera giratória como algo dado, mas então gire o sujeito um pouco também. O corte de uma rotação para a outra pode render um pequeno balé de solidez escultural, com barreiras deslizando em primeiro plano e explosões de valores tonais por toda parte. Aqui está um exemplo de Incontrolável.




Nos filmes de 1980 e início dos anos 1990, Scott misturou a névoa com a nitidez. Algumas cenas seriam filmadas em tons metálicos ou terrosos e envoltos nessas camadas esfumaçadas que o irmão Ridley tinha popularizado em Blade Runner: O caçador de androides. Outras cenas exibiriam silhuetas, contornos nítidos e blocos de cores brilhantes. Considere essas imagens de Vingança, O último boy scout (2 fotogramas) e Amor à queima-roupa.


Todos os enquadramentos – plano geral, plano médio, close-up tendem a ser cobertos por inúmeras câmeras com lentes muito longas de grande distância focal, que achatam e abstraem a imagem. Mais tarde, tendo descoberto o poder do processamento cruzado de filme reversível, Scott desistiu, na maior parte das vezes, da névoa pelo que ele chamou de hiper-realismo: alto contraste, junto com a maturação de cores Hockneysianas e regiões de sombras espessas, mas ainda transparentes.


Scott acrescenta aos cânones da continuidade intensificada o soco do corte axial, aquela mudança de plano que puxa as figuras para perto ou para longe de nós (um efeito que seus últimos filmes imitaram através dos zooms instantâneos). Combinados com as lentes de longo alcance, posicionadas em várias distancias, essa opção cria uma sensação constante de perda e reencontro do ponto do plano. Enquanto Connie gira durante um trecho posterior da cena em Incontrolável, o corte axial com diferentes planos de fundo a imobiliza contra vários blocos de cores.


Os críticos reclamaram que o estilo de Scott lembrava-os de vídeos e comerciais da MTV, muitos dos quais os irmãos Scott produziram. Mas não há nada de intrinsecamente errado em cineastas se inspirando na publicidade (pintores como Warhol e Stuart Davis o fizeram) ou em videoclipes (como Wong Kar-wai parece ter feito). O que importa é o que você faz com as suas fontes. Parece claro que Scott submeteu essas técnicas a uma nova pressão, usando-as para impulsionar as normas atuais à novos extremos

A continuidade intensificada, como eu discuti em The way hollywood tells it, oferece uma versão maneirista da continuidade clássica. Se isso está correto, nós poderíamos dizer então que Scott fornece uma variante rococó da continuidade intensificada em si. Michael Mann, outro pictorialista, é mais um purista, buscando uma gravidade sóbria, enquanto Scott rabisca e escrevinha sobre a superfície de suas cenas. Ele não apenas interpõe reflexos, chuva, poeira e outras partículas entre seus temas e nós, mas também reitera linhas de diálogo por meio de títulos sobrepostos.


Mann nos permite absorver suas imagens, mas Scott joga fora uma composição deslumbrante depois da outra em uma profusão desconcertante. Nos filmes tardios mais acelerados, elas quase não têm tempo de se registrar. O filme parece desaparecer sob os nossos olhos. Os planos não têm um arco orgânico; eles são podados. Impressões parciais se acumulam, derrotando a nossa necessidade de habitar em uma composição. Algumas vezes você não pode confiar nos seus olhos. Durante a cena de sequestro de Chamas da vingança, um bandido se prepara para atirar de volta em Creasy enquanto uma explosão de chamas é refletida em seu carro.

O problema é que nada pegou fogo na cena; pela primeira vez, não há explosão. É puramente um choque louco, literatizando a ideia de um “tiroteio” sem qualquer motivação realista. 

Essas técnicas são motivadas, até certo ponto, pelas demandas da história: a necessidade de sugerir um estado mental, de retratar uma postura heroica, ou de potencializar uma briga ou uma perseguição. Mas o manuseio visual e auditivo de Scott excede as demandas de uma narrativa clara. Ele envolve a cena de diálogo mais superficial em um bordado deslumbrante que chama a atenção por si só. Mera decoração? Eu concordo. Ainda assim, a arte decorativa não é uma vocação indigna, e a decoração perseguida com convicção e inventividade exige a nossa atenção.

E esta decoração não é delicada. Domino: A caçadora de recompensas, Incontrolável, e a segunda metade de Chamas da vingança têm uma dimensão grunge, com planos que fazem o nosso mundo parecer ao mesmo tempo duro e deslumbrante. Scott poderia ser o nosso Sam Fuller (completo com o charuto), e Domino ser o seu O beijo amargo. Fuller pode ecoar o supervisor de Scott, que disse sobre Domino: Não é bonito, mas é belo.

Trenodia

De O nascimento de uma nação até Lincoln, os estúdios americanos de cinema, tendem a mostrar grandes eventos históricos que se entrelaçam com dramas privados de grandes líderes ou gente comum. Mas haviam outras opções. Os três primeiros filmes de Eisenstein – A greve, O Encouraçado Potemkin e Outubro – levantaram a possibilidade da “massa protagonista.” Nestes filmes, a história é feita por grupos, e os indivíduos recebem papéis em grande parte mais simbólicos. Durante a politizada década de 1960, esse modelo foi adotado por cineastas de esquerda.

O cineasta que explorou esta opção ao máximo foi o húngaro Miklós Jancsó. Embora seus filmes sejam pouco conhecidos hoje, ele era uma força maior no esforço de reviver a ideia de apresentar a história através de dinâmicas de grupo. Indivíduos interpretaram um papel em Os sem esperança (1965) Silêncio e clamor (1968) e O confronto (aka Os ventos da história, 1969) mas geralmente são desprovidos de psicologia individual. Essas figuras são definidas pelos seus papeis em uma luta – uma guerra civil, uma revolução, um embate com o regime dominante – e eles são frequentemente peões em um jogo de troca de poder.

Vermelhos e Brancos (1967), disponível em DVD, é um bom exemplo. Esta saga da Guerra Civil Russa que sucedeu a revolução de 1917 nos leva através das escaramuças entre exércitos em confronto, as táticas perseguidas por um esquadrão de voluntários húngaros e episódios em um posto da Cruz Vermelha. Os indivíduos vêm à tona por um breve período, mas são suscetíveis de desaparecer das cenas posteriores ou simplesmente morrerão na hora. Um jovem húngaro costura seu caminho através da ação, mas dificilmente ele pode ser visto como um personagem com um ponto de vista, e nós não aprendemos nada sobre o seu passado ou sobre os seus motivos. Uma grande parte do filme é tomada pelos rituais de interrogatórios de prisioneiros, tortura, execução dos cativos e destruição de inocentes pegos no fogo cruzado. No clímax, uma unidade vermelha esfarrapada, marcha desafiadoramente em direção a uma força branca superior, e todo o confronto se desenrola em uma paisagem estupenda.

Vermelhos e Brancos poderia defender a si mesmo contra as acusações de formalismo através da afinidade com os dramas de guerra de estilo soviético, mas conforme Jancsó foi em frente investigando os episódios da história húngara, ele logo desistiu do realismo. Ele encenou eventos históricos em formas simbólicas, em uma planície nua ou como rituais obscuros em festivais repletos de música e dança. Os exemplos são Agnus Dei (1972), e Salmo vermelho (1969, disponível em DVD). Esses filmes dependiam de travellings intermináveis, gruas e zooms; a câmera flutua, e o espaço se estende e se comprime. O resultado é uma extravagância de planos sequencias. Vermelhos e Brancos tem menos de duzentos planos; O confronto (1969) apenas trinco e cinto; Vento de inverno (1969) e Elektra, meu amor (1974, em DVD) menos de uma dúzia.

Parece-me que depois do primeiro filme de Angelopoulos, ele pegou e expandiu a ideia de Jancsó de investigar a história de uma nação através da dinâmica das massas e de um espetáculo despojado. Ele procedeu mais ou menos cronologicamente através da história moderna grega. Dias de 36 (1972) examina as regras ditatoriais do General Metaxas (1937-1941) enquanto A viagem dos comediantes de 1975 cobre a ocupação nazista e os conflitos civis do pós-guerra. Os caçadores (1977) revive os anos da guerra civil (1944-1949) até meados da década de 1960, por meio de um dispositivo narrativo: os caçadores atuais encontram o cadáver de um guerrilheiro civil, tão fresco como se morto ontem. Alexandre, o Grande (1980) retrocede a um período da virada do século até os anos 1930, mostrando um bandido tomando poder sobre um remoto vilarejo.

Essa tetralogia identificou indivíduos, mas os tornou símbolos de forças maiores, muitas vezes por meio de nomes retirados da história ou da mitologia. Os comediantes viajantes são nomeados de Electra, Orestes e similares; Alexandre, o bandido é uma versão bruta do lendário homônimo. Mesmo assim, a apresentação de Angelopoulos pouco fez para nos familiarizar com o interior deles. Ele não utilizou nenhum dos truques subjetivos de Scott para transmitir impressões ou fragmentos instantâneos de memória; até mesmo seus flashbacks, quase subjetivos, provavelmente incluiriam o protagonista como ele é hoje na cena do passado.

O cinema popular depende do nosso acesso aos pensamentos e sentimentos do personagem mas Angelopoulos, em grande parte, desistiu disso. Ele fez suas narrativas dependerem de forças políticas de larga escala. Algumas vezes, como em Dias de 36 e Os caçadores, somos levados aos bastidores e apresentados às maquinações do poder, mas geralmente a história se desenrola por meio de forças impessoais – muitas vezes fora do quadro. Quando os aparatos do poder se tornam visíveis, é através das visões de policiais, soldados, ou outras autoridades. E essas, frequentemente, são apresentadas como rígidas e impessoais.

Abaixo, em Um olhar a cada dia, uma marcha à luz de velas é confrontada por fileiras e mais fileiras de policiais. A maneira calma e mecânica com que os oficiais ocupam o espaço, torna o conflito iminente repleto de suspense. Quando você acha que a composição e o confronto esgotaram a duração e o espaço do plano, uma multidão de cidadãos aparece em primeiro plano para testemunhar. Todos os três grupos transformam-se em blocos homogêneos através do enquadramento distante e da consistência de texturas (velas tremeluzentes, uniformes, guarda-chuvas).


O drama vem quando os nossos personagens são forçados a responder às forças da opressão. Eles fogem, se escondem, ou são capturados e mandados à prisão, à execução ou ao exilio. É uma versão inglória da história, filtrada por uma crença brechtiana de que ao nos distanciar de situações carregadas, e apresentar as emoções de maneira seca em vez de melodramaticamente, pode trazer lucidez e uma compreensão macrodinâmica. Mas Angelopoulos também atribuiu as origens de seu estilo oblíquo, às vezes opaco, às pressões da censura. Sob a junta grega, era impossível falar diretamente sobre história.

Então eu procurei uma linguagem secreta. Uma compreensão tácita da história. O temps morts em tramar uma conspiração. O não dito. O discurso elíptico como princípio estético. Um filme em que tudo o que é importante acontece fora do quadro.

Mesmo depois da censura ter acabado, Angelopoulos continuou nessa veia taciturna, fazendo seus filmes minuciosamente descentrados e desdramatizados.

No entanto, na década de 1980, ele tentou oferecer mais ao público. Ele começou a inserir personagens distintos e individualizados como o centro de seus filmes, e ele realizou a sua inspeção sobre a mudança política enviando-os em odisseias modernas. Em Viagem a Citera (1983) um diretor de cinema está concebendo um novo projeto, e ele visualiza a história de um velho comunista libertado da prisão e que está retornando para o seu vilarejo. Em O apicultor (1985), um professor abandona a sua família e embarca em uma viagem por uma Grécia moderna desolada. Paisagem na neblina (1988) segue duas crianças convencidas de que seu pai imigrante está esperando por eles do outro lado da fronteira. Em O passo suspenso da cegonha (1991) um jornalista televisivo rastreia um politico importante que parece estar escondido em uma vila de refugiados.

Dois filmes dos anos 1990, investigam o passado dos personagens em mais detalhes. Um olhar a cada dia (1995) segue um arquivista (chamado simplesmente de A) que está em busca de um filme perdido, e da história de sua família nos Balcãs. Em A eternidade e um dia (1998), um poeta em seus últimos dias de vida, reflete sobre a sua vida enquanto acompanha um menino que está tentando retornar para a Albânia.

Nos anos 2000, Angelopoulos começou a pensar, novamente, em uma escala épica. Trilogia: O Vale dos Lamentos (2004) anunciou-se como a primeira parte de nada menos do que a história do século XX, contada através da experiência de uma única família. Concentrada em um casal de refugiados – um russo, o outro grego – eles definem seu romance fugitivo contra os eventos da Primeira Guerra Mundial, a ascensão do fascismo e da Guerra Civil Grega, enquanto sugere também paralelos com a tragédia Ática. A segunda parte, Trilogia II: A poeira do tempo (2009) é paralela a Viagem a Citera e Um olhar a cada dia, centrada em um cineasta, mas ele se torna menos central à narrativa do que o seu pai, sua mãe, e o amante de sua mãe – todos vítimas do comunismo soviético dos anos 1950, que sobreviveram para ver a queda do mudo de Berlim.

Durante esses anos, Angelopoulos colaborou com o roteirista italiano Tonino Guerra (que morreu cerca de dois meses depois do diretor). Guerra, que trabalhou com Antonioni, Fellini, os Taviani, e muitos outros diretores, talvez tenha ajudado Angelopoulos a virar em direção a uma narrativa menos proibitiva. Os protagonistas mais vividamente esboçados de seu trabalho mais tardio, eram frequentemente interpretados por atores bem estabelecidos (Mastrioanni, Moreau, Ganz, Keitel, Dafoe, Piccoli), e dois dos filmes giram em torno de crianças, uma forma comum de despertar emoções. As partituras de Eleni Karaindrou, cheias de trenodias crescentes de cordas concentradas, também deram aos filmes depois de Citera um calor plangente, reminiscentes das peças musicais lúgubres de Henryk Górecki e Arvo Pärt.

Ainda assim, esses últimos filmes, são apenas comparativamente mais acessíveis. Suas histórias soam desanimadas, episódicas, relativamente vazias do drama convencional, repletas de “tempos mortos,” elipses temporais não marcadas, e profundamente sombrias. O que quer dizer que elas pertencem à tradição mais abrangente do cinema de arte europeu do pós-guerra, suas normas dadas a uma nova compreensão por meio dos ecos da mitologia grega e de um estilo característico de rigor excepcional.

Estase e Sublimidade

No nível técnico, Angelopoulos emerge novamente como um sintetizador. Um admirador de Mizoguchi e Antonioni, e novamente, influenciado provavelmente por Jancsó, ele se tornou identificado com o plano-sequência. De A viagem dos comediantes em diante, as cenas são apresentadas em pouquíssimos planos, muitas vezes em um só. Três filmes da tetralogia contêm entre 125 e 150 planos, enquanto Os caçadores se contenta com 49. E a maior parte dos filmes são muito longos (dois deles com quase quatro horas), então a média de duração de um plano vai de 72 segundos (Dias de 36) à 206 segundos (Os caçadores). Conforme esses últimos filmes tornaram-se mais acessíveis, o ritmo de edição acelerou apenas um pouco: nenhum dos filmes tem mais de cem planos e em todos a média de duração do plano é de cinquenta segundos à dois minutos. Some todos os planos dos 13 longas metragens de Angelopoulos e você terá menos de um terço dos planos de um, digamos, Inimigo do Estado de Scott.

A maior parte dos cineastas de planos-sequencias, dimensionam o seu enquadramento em função da atividade humana; pense em Ophuls e Renoir, que capturavam gestos e reações conforme o tempo fluía pela imagem. Mas Angelopoulos combinou o plano-sequência, com o plano geral, colocando a paisagem no centro de seu trabalho. O plano incrível que extraí de Vermelhos e Brancos, acima, não é totalmente típico dos filmes de Jancsó, que tendem a ter muitos enquadramentos próximos e a preservar as vistas vastas para os momentos climáticos. Em contraste, Angelopoulos faz dos planos muito distantes seu modo padrão para exteriores, mesmo em momentos de grande drama: uma conversa em Os caçadores, uma morte em Alexandre, o Grande.


Existem poucos close-ups convencionais em seus filmes, e os planos médios, são frequentemente forçados em interiores totalmente construídos, tanto locações como cenários, como no fotograma abaixo de Trilogia: O Vale dos Lamentos. Mesmo então, a câmera frequentemente mantém sua distância, subordinando os personagens à arquitetura impessoal e fazendo seus encontros parecerem frágeis (O passo suspenso da cegonha).


Às vezes, o quadro resultante tem uma profundidade considerável, como com grupos reunidos em interiores (Os caçadores, abaixo). Mais incisivamente, uma cena horrível em Paisagem na neblina força, quase cruelmente, os nossos olhos de volta para a distância. Em cada plano, a ação mais importante é a mais distante da câmera.


Em outros momentos, o plano geral produz o que eu chamei de imagens planimétricas. Ainda existe uma quantidade razoável de profundidade, mas o plano é enquadrado perpendicular a um fundo liso, e as figuras são espalhadas em tiras ou camadas. Algumas imagens mostradas mais cedo na publicação de hoje fornecem exemplos, particularmente o desenvolvimento do confronto de rua em Um olhar a cada dia. Trilogia: O Vale dos Lamentos demonstra que esse princípio pode ser aplicado também a uma jangada e a barcos a remo.

Como Scott, Angelopoulos depende de lentes muito longas, mas ele segura o plano, para que o efeito de achatamento da lente crie um padrão que muda gradualmente.

Ambos os enquadramentos de profundidade e planimétricos foram explorados pelos cineastas europeus no fim dos anos 1960 e inicio dos anos 1970, mas Angelopoulos focou rigorosamente neles e juntou-os com as posições consistentemente distantes das câmeras. À medida em que a dramaturgia minimiza a psicologia individual, a escala dos planos transforma os indivíduos em figuras numa paisagem. O resultado costuma ser uma organização rítmica do quadro, um padrão de simetrias e geometrias abstratas (A viagem dos comediantes, Trilogia II: A poeira do tempo).


Nos filmes mais tardios, momentos de dramas pessoais são interpretados em planos não menos opacos e distantes. Em Viagem a Citera, a esposa do exilado vai em direção à sua velha cabana persuadi-lo a sair. Eles devem estar trocando olhares de compreensão, mas apenas na tela grande isso é visível.


Estes planos tão fixos são fascinantes o suficiente, mas como o cineasta pode dinamizá-los e preparar para eles? A resposta para Angelopoulos foi manter o quadro móvel. Ele recusa a varredura vertiginosa e o ritmo sedutor de Jancsó. Angelopoulos é severo. Como Scott, ele utilizará o zoom, mas as suas ampliações ou diminuições são majestosas, não em staccato. (Novamente, aquele plano de Vermelhos e Brancos pode ter sido um modelo inicial para ele.) No todo, seus enquadramentos móveis são tão austeros quanto as paletas de cores (tons metálicos e terrosos) e a iluminação (suave, muitas vezes claro-escuro, e geralmente com um céu monótono).

Os movimentos panorâmicos de sua câmera com personagens de passagem, algumas vezes permitindo que eles cheguem perto o suficiente para que nós possamos identificá-los ou capturar uma expressão; um travelling prolongado segue a esposa de Spyro na cena acima, conforme ela se aproxima da cerca. Mas a própria simplicidade dessa técnica pode aguçar as nossas expectativas. Como costuma acontecer no cinema europeu do pós-guerra, a caminhada extensa e sem diálogos, cria seu próprio arco de interesse. Raramente sabemos para onde um personagem está indo nesta caminhada, ou o que eles veem que os fazem se aproximar. De certa forma, essa técnica lembra os filmes de suspense ou terror: mostre a reação e faça uma panorâmica em direção à causa dela. Mas com Angelopoulos, essa causa tenderá a ser algo de uma escala estonteante, uma revelação de um lado do mundo que nós não suspeitávamos, talvez um reino mais próximo do surrealismo (O passo suspenso da cegonha; Trilogia: O Vale dos Lamentos).


Imagens alucinatórias como essas, apresentadas com uma gravidade calma, sugerem que as forças da história, como os sonhos da razão de Goya, trazem monstros – não violentos e tumultuosos, mas aqueles que exibem uma quietude mortal e perturbadora. O choque emocional dos personagens se comunica para nós como um choque pictórico, ele próprio alcançado pelos meios mais simples. Em A eternidade e um dia, o protagonista e o menino, encontram um campo de refugiados onde os detentos, agarrados à cerca, parecem suspensos na neblina.




O resultado de todas essas escolhas criativas é um desfile cinematográfico, e não apenas por causa de suas imagens esplêndidas. Como as carroças de cortejos medievais que rolam cena após cena passando por uma multidão, as cenas de Angelopoulos tornam-se uma procissão de quadros. Eles são quebrados pelos movimentos – às vezes lentos, às vezes repentinos, quase sempre pequenos. Somente ele poderia ter imaginado esse plano em Alexandre, o Grande, no qual um turista sai de trás de um pilar do Templo de Poseidon e levanta o dedo, pedindo silêncio. Seu braço prende a nossa atenção sem perder o contexto monumental.

Se as imagens de Tony Scott são lançadas em uma pressa louca, Angelopoulos nos dá tempo para observar as menores mudanças. Às vezes elas emergem em um interior apertado, guiadas por uma preparação do diafragma, ou por uma câmera que desliza. Em outros momentos, devemos vasculhar um espaço vasto para localizar os nossos protagonistas. Aquilo que os pensadores do século XVIII chamaram de Sublime, a temível majestade que apreendemos na enormidade do mundo exterior a nós, como durante uma tempestade no mar, recebeu um peso político. Não desespero, insiste Angelopoulos, ou mesmo pessimismo: antes, uma melancolia coletiva pelo reconhecimento de um triste destino.

Como Scott, Angelopoulos levou a novos extremos certas premissas das tradições que escolheu trabalhar: Desdramatização, despersonalização, o plano-sequência, a dependência de uma encenação que é densa ou espaçosa, profunda ou plana, e a urgência de apresentar a história e a vida contemporânea de uma forma mais abstrata, mais majestosa. Herdeiro de Antonioni e de Jancsó, ele levou suas ideias visuais a novos limites e mostrou o que mais elas podiam fazer. Essa estratégia revelou seu próprio artificio, a tal ponto que as diminutas flutuações de estilo – não menos “cinematográficas” do que as de Scott – nos fascinam por direito próprio.

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Tudo o que eu fiz foi traçar algumas curvas e espirais da assinatura de cada um destes cineastas, seus princípios característicos ao lidar com a história e o estilo em relação às normas de seu tempo. Não tentei lançar análises refinadas de cenas específicas ou filmes inteiros. Ambos são necessários, é claro. Ainda assim, o tipo de análise que delineei parece-me essencial para apreciar o trabalho deles plenamente.

Esse trabalho tem algo mais amplo a nos ensinar sobre o cinema e sobre a crítica cinematográfica. Muitas vezes os críticos pensam que o seu trabalho é o de expor os significados de um filme. Para a maior parte dos críticos, isso geralmente envolve uma interpretação Zeitgeist. O filme é realizado para refletir os eventos, o humor popular ou as necessidades de realização dos desejos de sua época. Para os críticos acadêmicos, a caça por significados também pode envolver o mapeamento de um conjunto de conceitos teóricos no filme, como ocorre com as interpretações psicanalíticas ou pós-modernistas.

Mas cineastas como Scott e Angelopoulos, nos lembram que nós devemos dizer, mais precisamente, que filmes produzem efeitos, cujos significados são apenas de um tipo. O filme nos provoca a ter uma experiencia, parte da qual pode ser a busca por temas ou implicações, mas a outra parte – talvez a maior e mais básica – é a de um processo guiado de percepção, pensamentos e emoção.

É claro que os significados são importantes. Inimigo do Estado nos alerta sobre como a vigilância e a prospecção de dados podem obliterar a identidade pessoal. Paisagem na neblina sugere que na era do trabalho migrante, da disputa de fronteiras e das guerras étnicas, a Europa destruiu a infância. Até agora, tudo certo; e nós devemos ir mais longe. Mas traçar as dinâmicas de tema ainda nos obriga a analisar a perceptível força desses filmes. Isso, eu acho, pode ser melhor reconhecido por meio de um estudo de como os recursos do cinema são empregados para nos dar uma experiência que não é redutível a ideias parafraseáveis.

Esses recursos cinematográficos, ostentados, sem desculpa, a cada momento, são a estrutura do filme. Na verdade, os dois cineastas, implacavelmente, drenam suas cenas de significados temáticos. Em Inimigo do Estado, Scott acumula tantos estratagemas de vigilância e contra vigilância que a mensagem anti-tecnológica parece apenas um pretexto para multiplicar as imagens, mudar os pontos de vista e complicar o nosso próprio processamento das informações. Em Um olhar a cada dia, a imagem de uma estátua desmantelada de Lenin flutuando rio abaixo em uma barca faz a sua “declaração” imediatamente, mas Angelopoulos não a deixa ir. Ele segue seu progresso, mostra pessoas nas margens do rio, ajoelhadas e orando para ela, e acompanha toda a sequência com a música surpreendentemente cadenciada de Karaindrou. O Símbolo do Comunismo Morto foi drenado de seu portento e se tornou uma exibição audiovisual curiosamente lírica. Esses homens vão tão longe que saem do outro lado.

Consequentemente, ambos foram chamados de mão pesada: um é superficial, o outro, vazio. É verdade que muitos espectadores consideram as obras de arte que dependem do impacto cinético ou do acúmulo lento pouco sutis. No entanto, às vezes, a força, explodindo ou liberada em pequenas doses, é bem-vinda. O Rito da primavera e Trenodia para as vítimas de Hiroshima atingem com um impacto físico. Aqui esse estranho casal, Tony e Theo, encontram mais uma afinidade: eles sugerem que a sutileza nas artes pode ser superestimada.


Tony and Theo foi publicado no David Bordwell’s website on cinema em 3 de fevereiro de 2013 (Observations on film art : Tony and Theo (davidbordwell.net)). Tradução : Yasmin Rahmeier.