O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Grande papai?




Sobre A vida é bela de Roberto Benigni

Por Hélène Frappat

Não vale a pena se perder nos caminhos balizados de debates que, inaugurados no fim dos anos cinquenta, parecem ser, contudo, desconhecidos para o realizador. Nenhuma necessidade, então, de submeter o filme à luz de um problema que ele nunca se deu o trabalho de se colocar: onde o cineasta deve posicionar a fronteira tênue entre a estética e a ética numa obra que busca representar uma experiência – essa do genocídio perpetrado pelos nazistas – que sua barbárie torna, senão irrepresentável, ao menos dificilmente figurável por qualquer ficção?

Eu falarei da mesma coisa mas de uma outra forma.

O pai de uma família italiana ordena que seu filho lhe obedeça incondicionalmente e que nunca questione nem essa obediência que ele lhe deve nem o sistema de regras e de representações ao qual o filho é obrigado a aderir. (Isso não vos lembra de algo?) Cada uma dessas regras substitui a realidade por uma das suas possíveis representações. Exemplo: o pai substitui a realidade de uma deportação forçada pela escolha lúdica de um jogo de tabuleiro (ele substitui a realidade de uma perda pela fantasia de um ganho: que vença o melhor). O pai substitui o desaparecimento das crianças deportadas, eliminadas desde a sua chegada no campo, pelo jogo de esconde-esconde de outras crianças, os únicos que restam vivos visto que eles são os filhos e filhas dos dirigentes nazistas do campo. (Por isso o filme – e não somente seu personagem – opera um dos seus numerosos truques de magia, nos fazendo engolir a coexistência, perante os olhos dos guardas, dos deportados com uma das suas crianças que, teria escapado do massacre. A verossimilhança pode ser contradita numa narrativa, desde que ela seja respeitada pela metade.)
   

O credo paternal não procede tanto por desvio que por negação: o pai desvia menos as regras do universo concentracionário (no lugar de regras, seria melhor falar de objetivo: o desaparecimento em mais ou menos curto prazo de todos os deportados) quanto ele as nega pura e simplesmente. Trata-se de despistar. Dessa forma, quando o filho se pergunta, antes da guerra, sobre a presença de um cartaz que cobre a vitrine de uma loja – “Proibido judeus” -, o pai lhe explica que podemos variar essa proibição fantasista infinitamente: “Proibido cães, esquimós, girafas, etc.” Afinal, nenhuma regra provém da lei que a teria decretado – em outras palavras, de uma comunidade política -, mas somente do desejo absolutamente subjetivo de um pai e seus acólitos – em outras palavras, do pseudo-clube de férias com o qual ele obriga que seu filho sonhe, no lugar do campo para o qual eles foram deportados. 



Pois o pai delira e isso não é de ontem, com Mussolini, Hitler e suas leis antissemitas: a mecânica burlesca do personagem e das situações consiste, desde o começo, num jogo sistemático de disfarces e de negações (tudo que, segundo Benigni, pertence evidentemente às transfigurações mágicas que resultam dos contos de fada). Em A vida é bela, os papéis não param de se trocar: o camponês se faz passar por um príncipe, elevando sua noiva professora à categoria de principessa, o garçom judeu se transforma, no tempo da visita a uma escola, em inspetor fascista obrigado a improvisar uma aula sobre a superioridade ariana (essa é, aliás, a única pantomima verdadeiramente engraçada do filme). Esse princípio de commedia dell’arte – o jogo de esconde-esconde e de disfarces como mola cômica-, que funciona de maneira mais lenta na primeira parte do filme (a vida antes da deportação), é transposta tal qual no cenário do campo. Isso quer dizer que no palco desse cenário a fábula continua a se desenrolar?

Contudo A vida é bela não é esse conto, esse apólogo na linha de Capra ou de Chaplin cuja crítica entusiasta teceu o elogio. Nem a mise-en-scène que, particularmente na segunda parte do filme, tropeça em questões realistas de verossimilhança (por medo de radicalizar a forma do conto de fadas, e por vergonha diante do cenário que ele escolheu, Benigni hesita sem cessar entre a pantomima burlesca, na linha das comédias musicais e de seus artifícios, e a intriga dramática realista da qual ele só respeita pela metade os imperativos de narrativa e de mise-en-scène), nem o assunto propriamente dito contribuem para criar um conto. E qual seria aliás a moral? Que é preciso permanecer otimista apesar dos golpes duros do destino? Que os mentirosos são sempre punidos no final? (Pois o pai não é salvo.) Que os contadores de histórias são os verdadeiros heróis do nosso tempo? (Contudo o pai não é salvo.) Que a credulidade é a primeira das virtudes, e não somente em tempos de guerra? Que é preciso sempre obedecer a seu papai?...

Enfim. Tente multiplicar as morais do “conto”: entre esses lugares comuns inesgotáveis e contraditórios, uma gata não encontraria seus filhotes [1]. Então o que anima A vida é bela? Através de qual truque manifesto de mágica Benigni substituiu o seu verdadeiro assunto por uma pseudo-fábula sobre a barbárie nazista? Alguns – e Benigni é o primeiro – compararam o seu filme ao Grande Ditador; mas Chaplin por sua vez tinha decidido que não seria no mesmo filme que Carlitos encontraria uma criança para educar, e de perseguições contra as quais lutar. O grande ditador e O garoto: dois filmes distintos que, do ponto de vista burlesco das situações, não partem do mesmo problema. Pois o assunto de A vida é bela, longe da exterminação dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial (suponhamos: “uma fábula, apesar de tudo, otimista sobre a barbárie”), consiste antes na tentativa de um pai de família italiana de “ser bem sucedido” na educação de seu filho. Desse ponto de vista, o filme se passaria na Lapônia, durante as guerras napoleônicas, numa reserva indígena, ou, simplesmente, numa vila toscana (escutando o filme de Benigni, eu pensei que as variações nos sotaques constituíam uma espécie de equivalente italiano do humor judeu), ele não seria pior. Nenhuma necessidade do campo de concentração (os personagens de A vida é bela escapam miraculosamente do campo de exterminação, o que nos evita a sequência “se você sair vivo da câmera de gás, você ganha mil pontos”): só mesmo assim para que o cenário acessório de uma história cujo ambiente necessário se situe mais provavelmente entre Florença e Roma.        



No coração do conto – ou da mentira -, repousa um outro conto, que o filho repetirá por muito tempo, depois da morte do pai, e que, para o espectador, fecha o apólogo: A vida é bela é a história de um sacrifício, nos diz o filho, o sacrifício de um pai, na sua imensa dedicação, para salvar seu filho da confrontação com o horror. Tal é o derradeiro truque de mágica do Benigni realizador e ator: fazer passar as fábulas que um pai ordena que seu filho acredite pelo sacrifício de um genitor (como diz a língua italiana). É sobre esse sacrifício, elevado no plano final ao estatuto de ato heroico, que o filho e os espectadores devem derramar suas lágrimas. A história é antiga, e bem conhecida pelos italianos (sobretudo pelas mães, mas Benigni se livrou oportunamente do personagem da mãe desde sua chegada no campo): criar suas crianças é, o que quer que façamos, se sacrificar por elas – que devem ao menos aos seus genitori seu tributo de gratidão. Esse é o assunto de A vida é bela: o mito da educação como sacrifício – ele torna seu cenário bem arbitrário.

O filho deve então se curvar sem protestar ao delírio de seu pai, que poderíamos qualificar stricto sensu de negacionista (negacionismo: substituir a realidade pelos seus próprios desejos, aparar as arestas, negar a morte preparada pelos carrascos e lhe substituir por um outro complô, aquele das vítimas). É preciso compreender bem: de tanto não refletir sobre o que, verdadeiramente, o anima, A vida é bela é um filme negacionista a despeito de si mesmo, um filme “contra o fascismo” cuja mensagem reversível não é outra senão a própria injunção mussoliniana. Obedeça o vosso pai, seja qual for a fábula que ele vos conta, respeite sempre suas ordens, não porque elas são justas mas porque elas emanam do próprio Pai. Grande Papai. No seu último filme, Oliveira maneja com uma ironia muito diferente a história de um pai que, enlouquecido, ordena seu filho uma obediência incondicional: entre a injunção de sempre acreditar no seu pai (A vida é bela) e a injunção de obedecê-lo, até se suicidar já que ele o ordena (Inquietude – o pai sabe o que é bom para seu filho; por isso ele exige que ele ponha fim aos seus dias: “Mate-se!”), somente a causticidade de Oliveira, de uma impecável desenvoltura, exibe incontestavelmente a figura monstruosa do Grande Papai (assim lhe apelidaram seu filho e toda a nação portuguesa...). O ogro que, nos contos de fadas os quais Benigni contudo reinvindica, termina invariavelmente por devorar seus pequenos. O ogro que, para nós que crescemos, permanece um assunto de inquietude.

Oliveira não tem vergonha de seus monstros: como num conto, a guerra dos pais contra seus pequenos (crianças ou assuntos, visto que o pai governa tanto seus filhos quanto seu país), a rivalidade dos pais e das crianças, a violência surda ou explícita que dilacera as famílias, constituem o ponto de partida obrigatório, as figuras totêmicas de um filme cuja mise-en-scène retrabalha incansavelmente o tema. O ogro quer que seu filho seja parecido com ele (um pouco pior: o filho deve ser morto e o pai permanecer vivo): ele lhe ordena a obedecer às suas próprias representações que resumem-se em uma frase: “Suicide-se!”. O filho está dividido entre seu dever de obediência – Grande Papai é ainda assim um Grande Homem –, e a intuição de que, por trás dessa representação, se esconde sem dúvida uma ideia fixa. O tipo de ideias um pouco loucas que, apesar do seu caráter obsessivo (o pai planificou integralmente a morte de seu filho, até o mínimo detalhe...), não fazem uma lei. Mas como a Lei poderia ela ser distinta do pai? É o tipo de dilema que, em seu tempo, Pele de Asno teve que resolver.

Verdade do conto: os ogros querem que os inocentes os imitem em tudo (eis mesmo, em matéria de educação, a questão principal de inquietude...): é por isso que Oliveira faz de seu filme (mais precisamente da primeira parte de Inquietude) a representação que os atores dão em um palco de teatro. Assim os corpos – o filho assassinado, o pai que se suicidou – se degringolam ao longo de uma cortina que não é outra que aquela, vermelha, do palco. A imitação é esse jogo sobre a mentira por onde advém a verdade da fábula. O teatro constitui então a verdade de uma narrativa onde o filho deve imitar, em tudo, o pai. Lógica do tema e da mise-en-scène: o filme é belo, na falta da vida.



Só há verdade do conto com a condição de que o ponto de vista do filme nos forneça-a: esse ponto de vista não é aquele da narrativa, menos ainda aquele dos personagens, mas a própria lógica que comanda – organiza – a relação entre o tema e a mise-en-scène. A vida é bela é dominado pelo ponto de vista onipresente do pai (com exceção de uma das últimas sequências na qual o campo, desertado pelos guardas, aparece bruscamente sob o olhar do filho): se confundem aí a autoridade de um cineasta e de um personagem, que impõem sua lei. É porque o realizador se funde integralmente com o seu personagem, sem jamais introduzir a mínima distância ou dissonância, que ele chega – apesar dele mesmo – a produzir um filme negacionista. (Moral do conto: expulse o ogro pela porta da frente...) Em outras palavras, um filme que, centrado em um personagem obstinado a negar o que existe, termina ele mesmo por negar o que existiu. Testemunha disso é a última trucagem ilusionista desejada por Benigni: a liberação do campo... por dois G.I. americanos. Aos soldados russos que efetivamente liberaram os campos na Polônia, Benigni escolhe substituir por dois representantes da rede “Toys ‘R’ Us” que vêm trazer para a criança a sua recompensa: um tanque novinho em folha. Assim o cineasta ainda dá razão ao seu personagem depois que ele deixou o filme.

Prisioneiros desse jogo de pistas – olhando de mais perto, ele se parece menos às fantasias dos contos que às caças ao tesouro ilusórias da tv berlusconiana -, nós deveríamos acreditar, e obedecer.

Joker!

[1] NdT.: No original, « une chatte ne rencontrerait pas ses petits », expressão francesa que designa um lugar muito bagunçado, de grande desordem.

O artigo Grand Papa ? foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n° 9, primavera de 1999. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

A moeda lírica




(ou o cinema de Jean-Paul Civeyrac)

Por Axelle Ropert

Sejam Les solitaires, Fantômes e Le doux amour des hommes, outros tantos títulos cuja candura florestal evoca as peças de Rameau (Les tendres plaintes, Os suspiros, L’indifferent); seja Jean-Paul Civeyrac, cujo nome evoca um escritor do romantismo do outro lado do Reno. Como aliar a simplicidade francesa das melodias ao fervor alemão dos sentimentos? Há mais de um século, Gérard de Nerval tentou esta aliança, inventando aventuras em que a exaltação do devaneio se perdia na dispersão da narrativa. E no cinema?

Seja o cinema francês de hoje, frequentemente obrigado a assinar legivelmente a sua mise en scène, os seus roteiros, de se prestar aos temas incendiários ou escandalosos, obrigado a sublinhar suas questões vitais, forçosamente vitais, enfim, de dar provas de uma forma de necessidade com base documental. A vitalidade do cinema francês se esconde talvez em outro lugar, em cineastas discretos como Christine Laurent, Marie-Claude Treilhou, Pierre Léon, Marie-Christine Questerbert, Eugène Green… E se Jean-Paul Civeyrac fosse um cineasta “livre” fazendo filmes à (sua) vontade e de maneira não ostentatória? 

Seja o ano de 2002, e esta palavra ingrata, “a contemporaneidade” obrigou a prestar contas de um estado do mundo, ou melhor, do que faz a atualidade. Quando nos recusamos a nos curvar a esta injunção (eu penso nos emuladores de Wong Kar-wai ou no último filme de Hou Hsiao-hsien, “o primeiro filme techno”) quando sonhamos com a juventude sem idade dos filmes de Jean-Paul Civeyrac, com esta estilização que proíbe qualquer datação, de que urgência pode ser testemunha este cinema? Uma das forças do cinema de Jean-Paul Civeyrac é a sua candura partilhada pelos Passageiros de um cineasta mais velho, Jean-Claude Guiguet. Ser cândido é assumir os gêneros clássicos, o romance de formação por Le doux amour des hommes ou o conto fantástico por Fantômes, mas se dando os meios de redescobrir, no curso do filme, as possibilidades, inventando assim uma forma de classicismo inédito. A candura é acreditar na transparência dos corações capazes de conversar juntos numa perfeita comunhão. Sejamos ridículos: acredito que Jean-Jacques Rousseau teria adorado Les solitaires (que é aliás, o subtítulo de um de seus romances Émile e Sophie), tanto que esta “língua dos solitários” cara ao romancista é aqui sussurrada com convicção em conversações sempre abertas nas quais as réplicas se prolongam em ecos noturnos, diante do espelho, antes de ir dormir. Este gosto pelas pequenas comunidades onde os personagens se falam de coração aberto, sem reservas nem cálculo, sem medo do ridículo nem vontade de convencer, onde a circulação sem entraves das expressões íntimas garante uma integridade sempre ameaçada pela irrupção de forças exteriores abstratas – proximidade da noite – e mantidas, no tempo do filme, à distância, testemunhando a parte utópica deste cinema. O cinema de Jean-Paul Civeyrac é sem segundas intenções e esta abertura absoluta das intenções é o reverso precioso, para nós espectadores, de um mal que corrói uma outra parte de um certo cinema francês chique, frio e compassado, a consciência advertida de seu esclarecimento e de seu cansaço.

O cinema francês é, finalmente, muito pouco rico em cineastas líricos, sem dúvida muito marcado por um “espírito século dezoito” que contudo não impediu Sacha Guitry, o rei do sarcasmo voltairiano, de se entregar ao lirismo num de seus mais belos filmes, La Malibran. Se o grande cineasta lírico francês permanece Jean Grémillon, Jean Paul Civeyrac ousa hoje tomar esse partido. Por que falar de partido? Sem dúvida porque “a modernidade” godardiana em curso tornou caduca a evidência (e nos lembramos da palavra de ordem de Jean Paulham e de Francis Ponge : “nada de lirismo!”) e que os cineastas que se atrelaram aí perceberam, cada um à sua maneira, esta dificuldade de “ser lírico” fazendo, neste espaço aberto por O Desprezo e fechado por Passion, desta impossibilidade o próprio coração do lirismo. Repetindo, como aliar a simplicidade francesa das melodias ao fervor alemão dos sentimentos?


Como, senão inscrevendo os instantes de puro fervor dentro de uma narrativa de uma caligrafia fina e modesta, senão alimentando a linha clara da ficção, constantemente reduzida a pequenos passos num quarto fechado (Les solitaires), nos apartamentos (Fantômes) ou nos cafés (Le doux amour), de uma matéria espessa, aquela dos sentimentos bruscamente expansivos? Esta linha narrativa modesta assume a cada vez a forma de uma iniciação (ao luto, ao amor) no curso da qual se inscrevem essas expansões sentimentais, pontos de suspensão quase musicais na sua ressonância monocórdica, obstinadamente sustentada. O fervor imediato é uma maneira de ir diretamente ao coração das cenas, ao coração do plano, sem pré-requisito nem conclusão, como se o essencial jazesse nestas frágeis estagnações. Esta busca por um “fervor imediato” não é, evidentemente, sem risco, este de uma ingenuidade que consiste em acreditar que pôr em cena imediatamente a emoção no pico de sua intensidade assegura a sua transmissão ao espectador, e podemos também permanecer indiferentes diante deste espetáculo, ou mesmo perceber aí uma forma de ênfase. Sim, claro, o risco de uma certa asfixia formal existe – Les Solitaires é neste quesito o filme que mais escapa desse risco, de tanto que a sensação de estagnação é suavizada, enfim impura, pela espantosa estranheza dos dois heróis e pela economia obstinada do argumento (dois irmãos aprendem a se reencontrar no espaço fechado de um apartamento assombrado pelo fantasma de uma mulher que acabou de morrer, o grande amor do mais velho). “Qual é a necessidade desse cinema?”, eu perguntava anteriormente. O plano concebido como berço propício ao repouso dos personagens, a luz como peneira da brutalidade do mundo, a decupagem como barreira de proteção, resumindo, o cinema como uma preservação da intimidade sempre ameaçada define, acredito, a preocupação de Jean Paul Civeyrac: frente a esta pequena vitória, o canto pode se elevar. A colocação foi audaciosa, a moeda paga, o lirismo está aqui, e se a urgência de um filme se mede pelo que ele protege – e salva – então o cinema de Jean-Paul Civeyrac é necessário.

La monnaie lyrique foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n° 18, abril/maio/junho de 2002. Tradução: Miguel Haoni.

Stany



Por Christian Viviani

Barbara Stanwyck (1907-1990)

Barbara Stanwyck acaba de morrer, depois de Joan Crawford, depois de Bette Davis. Mais discretamente que elas. Como sempre, os encarregados das moratórias necrológicas não tiveram muito trabalho. Com uma falta de imaginação e de cultura quase geral, eles evocaram a vamp platinada, a assassina loira, cristalizando sua frívola atenção nessa corrente de ouro que contornava seu tornozelo em Double Indemnity de Billy Wilder.

Stanwyck é muito mais e muito melhor do que isso. É antes de tudo, e isso desde o começo, uma atriz prodigiosa de energia, simplesmente incapaz de ser ruim. Por vezes ela foi justa, frequentemente ela foi inesquecível, mas jamais ela foi medíocre. Nela, nenhuma indulgência em relação a si própria, nenhuma tendência ao número exibicionista, nenhuma dessas facilidades às quais suas rivais sucumbiam às vezes com prazer. Nada além de um ofício impecável que a afastava da menor veleidade para a afetação. Frente essa carreira sem passos em falso, frente a confiança que ela generosamente deu a cineastas geniais como Capra, Ford, Lang, Sirk, Sturges, Wilder ou Vidor (poderíamos acreditar que lemos uma história do cinema americano!), começamos a pensar que, se ela era o mais discreto dos monstros sagrados, ela era sem dúvida, no fundo, a maior.

Stany? Uma assassina loira? Somente se lhe pedíamos para ser. Mas ela foi tantas outras personagens, e sempre com a mesma convicção inalienável. Pregadora itinerante (The Miracle Woman de Capra), missionária (The Bitter Tea of General Yen de Capra), amante clandestina (Forbidden, ainda de Capra), mãe sublime (So Big de Wellman e Stella Dallas de Vidor), elegante batedora de carteiras (Remember The Night de Leisen), jornalista cínica (Meet John Doe de Capra), aventureira e “lady inglesa” (The Lady Eve de Preston Sturges), stripper (Lady of Burlesque de Wellman) ou centenária (The Great Man’s Lady de Wellman). Gostaríamos de citar cada uma de suas criações, de tanto que são diversas e infalivelmente justas. Reduzí-la a um só personagem, mesmo que esse seja notável, é passar ao lado do que fazia a sua diferença: a amplitude única do registro.



Stanwyck interpretava as duras, dizem. É verdade, mesmo se sua dureza se derretia quase sempre, cedo ou tarde. Seus papéis integralmente negativos são raros: Phyllis Dietrichson em Double Indemnity, Martha Ivers em The Strange Love of Martha Ivers (Lewis Milestone) e Thelma Jordon em The File on Thelma Jordon (Robert Siodmak), essencialmente. Mulheres moldadas de um único bloco, muradas no seu frio frenesi letal e se consumindo numa duplicidade, em suma, mal vivida. Seus olhos se estreitavam numa mímica cem vezes imitada mas finalmente inimitável, quando ela queimava com o seu acendedor de cigarro avermelhando o olho de Wendell Corey (Thelma Jordan) ou quando ela jogava nas chamas as muletas de Edward G. Robinson (The Violent Men de Rudolph Maté). Isso, é verdade, poucas atrizes souberam fazer. Esses gestos enérgicos ou duros nos quais ela afirmava peremptoriamente a sua vontade dominadora, nós os encontramos até nas suas composições mais soft: mesmo numa agradável obra despretensiosa como The Gay Sisters de Irving Rapper, ela aterrorizava uma criança batendo os seus saltos no assoalho encerado de sua suntuosa residência.

Contudo, para aqueles que a amaram e a compreenderam, Barbara Stanwyck não era dura, mas vulnerável. Desde Ladies of Leisure de Capra (1931), o escultor apaixonado por ela não se engava e, ultrapassando sua aparência de party girl aguerrida, a representava como alegoria da Esperança. Capra, o primeiro que teve a intuição da envergadura excepcional de Stany, a fizera em seguida interpretar, por duas vezes, as cínicas de coração mole: em The Miracle Woman e Meet John Doe, quando sua couraça se racha, ela parece de repente pequena e indefesa, frente ao cego que lhe abre os olhos, no primeiro filme, e sobretudo nos braços do grande Gary Cooper, sobre uma grande varanda coberta de neve aberta para a noite. Desde então, os numerosos grandes cineastas que a integram aos seus universos tiveram em conta essa ambivalência. É assim que Wellman a captou, mesmo em um thriller sem pretensão como Night Nurse (1931). Do mesmo modo, mais tarde, Fritz Lang no desconhecido Clash by Night (1951) ou Fuller que, apesar do chicote e das esporas, a torna patética quando, usada como um escudo pelo seu próprio irmão, ela recebe o disparo do revólver de Barry Sullivan (Forty Guns em 1957).



Essa mistura de dureza e vulnerabilidade só poderia fazer dela uma atriz excepcional no universo do melodrama. Um melodrama com Stanwyck é ainda mais emocionante pois a dama sabe, como ninguém, cerrar os dentes e crispar a mandíbula nos instantes de desespero. Bruscamente, a choradeira de rigor se duplica em admiração: ela é vítima, mas que coragem! Que raiva em Forbidden, quando ela rasga em um gesto o testamento de Adolphe Menjou e se perde no anonimato da multidão! Sua atitude, naquele instante, ampla e decidida, deveria se tornar um traço identificável. Vidor o explorou de maneira notável no final de Stella Dallas, fazendo igualmente com que ela se misture no anonimato da multidão, tornada ágil com a força de seu sacrifício. Nesse mesmo final, vemos operar um outro traço característico de Barbara Stanwyck: o olhar distanciado. Aqui, Stella está com os transeuntes, observando de longe e do exterior um casamento mundano que é, na verdade, o de sua própria filha. Esse olhar será igualmente aquele que ela terá em uma boa parte de No Man of Her Own de Leisen, onde ela entra, sob uma falsa identidade, numa família burguesa que não é a sua. Será enfim o olhar de Naomi, espiando sua família que ela deixou há muitos anos, antes de provocar um choque ao voltar para casa (All I Desire de Sirk). Para o melodrama, Stanwyck trouxe a recusa da autopiedade, uma noção suficientemente rara para que nós a sublinhemos, num gênero em que o linfatismo caracteriza frequentemente as heroínas.



Da mesma maneira, na comédia onde Stanwyck se distinguia, ela guiava a dança e nunca era a vítima. No começo dos anos quarenta, ela fez duas das mais memoráveis criações de toda a história da screwball comedy: Sugarpuss, a gangster moll com a gíria apurada, em Ball of Fire de Hawks, e em Sturges, o personagem que dá o título a obra-prima The Lady Eve. Nessas duas composições, Stanwyck surpreende primeiramente pela sua transformação física. Na verdade, ela tinha sido até então uma dessas atrizes das quais dizemos com prazer que elas não são belas, mas que têm personalidade. Digamos que Stanwyck tinha um charme direto e imediato com o qual Capra tinha, desde Ladies of Leisure, aprendido a dispensar o glamour de uma maquiagem muito vistosa. Stany tinha desempenhado muito jovem os papéis de composição: ela se envelhecia de maneira bem convincente em So Big e utilizava com muita sutileza a maquiagem cada vez mais vistosa de Stella Dallas. Mas Ball of Fire e The Lady Eve (aos quais poderíamos acrescentar duas criações menos devastadoras, aquelas de Remember the Night e de Meet John Doe) criam a visão fulgurante de uma Stanwyck autenticamente sexy cuja roupas ajustadas e por vezes reveladoras valorizavam o corpo miúdo às proporções de Tanagra. A dupla criação que ela faz em The Lady Eve é nesse sentido saborosa: Jean e Eve, ambas igualmente perturbadoras, a primeira à beira da provocação e da vulgaridade, a segunda com sua atitude reservada e impecavelmente elegante. Stanwyck passa de uma à outra com alegria, não variando unicamente os sotaques e as maneiras de ser, mas igualmente a sedução e o erotismo. Ela se lembrou disso quando, apesar da pesada e pouco atraente peruca platinada que lhe fizeram usar, ela soube destilar, do olhar pesado até o fino tornozelo, o charme fatal que a lançou ao Panteão do filme noir (Double Indemnity).

Stanwyck escapara sem problema do ridículo ou da degradação que espreitava até mesmo as suas rivais mais prestigiosas. Nada de transbordamentos nos anos cinquenta, mas papéis vigorosos, dignos dela (Crime of Passion de Gerd Oswald, Forty Guns de Fuller), composições breves mais incisivas (Executive Suite de Robert Wise), e o frescor reencontrado da composição em nuances nesses dois magníficos melodramas outonais de Douglas Sirk: All I Desire e There’s Always Tomorrow. Depois, ao invés de trabalhar a todo preço no filme de horror (apesar da sua incursão discreta e estilosa em The Night Walker de William Castle, em 1964), ela manteve seu estatuto de star na televisão onde, com seus cabelos esbranquiçados e seu charme intacto, ela honrará com sua presença em mais de um western. Sua última criação, foi na televisão que ela a realizou, em Thornbirds (Pássaros Feridos) de Darryl Duke: velha mulher escandalosa que tentava se aproximar de um padre, ela queimava com sua energia costumeira nos primeiros episódios da novela e nos fazia lamentar amargamente a sua ausência nos últimos.  

No western, no filme noir, no melodrama ou na comédia, Barbara Stanwyck se afirmou como a mais completa das grandes atrizes. De um grande metteur en scène a um outro, sem se deixar acorrentar a um estúdio, ela afirmou orgulhosamente os seus critérios de qualidade. De grandes papéis a grandes papéis, passando por algumas silhuetas mais fugidias mas igualmente impressionantes, ela se tornou absolutamente indispensável. Seu falecimento nos deixa menos confundidos na admiração retrospectiva que tocados na nossa afeição que ela soube ganhar sem reservas.

Stany foi publicado na revista Positif, n°349, em março de 1990. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

Guardião de uma paisagem cinematográfica: Entrevista com Noël Herpe



No mês de março, apresentamos um dossiê em homenagem ao centenário do crítico-cineasta Éric Rohmer, através de nove textos dos quais seis vieram da coletânea lançada um mês antes, Le sel du présent. 

Editado pela Capricci, Le sel du présent se insere num esforço recente de redescoberta da Nouvelle Vague a partir dos seus textos: em 2019, a Gallimard organizou a coletânea Chronique d’Arts-Spectacles com textos de François Truffaut no periodo 1954-1958; em 2018, as Éditions Macula lançam as quase três mil páginas da obra completa de André Bazin; no começo do mesmo ano, a Post-Éditions edita todos os textos críticos de Jacques Rivette.

Este esforço veio acompanhado por um renovado interesse pelos filmes. Nos textos e nos filmes, a diferença entre a crítica e a realização é de grau, não de natureza. Descobrimos um cineasta também através da sua escrita. Como bem disse Jean-Luc Godard, já em dezembro de 1962 : “Frequentar os cineclubes e a Cinemateca era já pensar o cinema e pensar no cinema. Escrever, era já fazer cinema, entre escrever e filmar há uma diferença quantitativa mas não qualitativa. Enquanto crítico, considerava-me já um cineasta.”

Se por um lado, seguindo a pista de Camille Nevers,
Le sel du présent se insere na linhagem do Dictionnaire du Cinéma de Jacques Lourcelles, por outro revela um Rohmer mais ou menos secreto: não aquele da eternidade, mas o da atualidade. Que se entusiasmou, como todo mundo, diante de Kalathozov, Bergman, Tashlin e Mizoguchi. Que arriscou e errou. Que não era só elegância mas também veneno. E cujos pequenos textos (para a revista Arts, por exemplo), muitas vezes ditados pelo telefone, no calor da urgência jornalística, revelam a fonte que desaguará nos grandes textos (para a Cahiers du Cinéma, por exemplo) e, sobretudo, nos seus filmes.

Noël Herpe foi o organizador de
Le sel du présent. É, ele também, crítico-cineasta, bem como historiador do cinema, professor-ator e um dos pesquisadores mais importantes no campo dos estudos cinematográficos.

Para fechar a homenagem a Éric Rohmer, Noël Herpe “fura a fila” e abre a nossa série de entrevistas aqui na França. Pretendemos através dela apresentar alguns personagens, mais ou menos conhecidos, que ajudam a pensar o cinema no nosso tempo, através da crítica ou da realização de filmes, e que provam através dos seus trabalhos, do seu percurso e das suas ideias que, diferente do que pensamos muitas vezes, o cinema está vivo.

Nem que seja como fantasma. Conversamos com Noël Herpe sobre a história do cinema francês: sobre a Tradição de Qualidade, a Nouvelle Vague e seus herdeiros, sobre cinema e teatro, autores e atores e sobre como no quadro da pesquisa universitária é possível desenvolver um trabalho que ao mesmo tempo respeita a integridade dos objetos e permite uma observação pessoal, uma escrita íntima.

Boa leitura!

Miguel Haoni

Vestido sem costura: Nós conhecemos seu trabalho, ainda no Brasil, por meio da biografia de Éric Rohmer que você escreveu com Antoine de Baecque. A qualidade da escrita e o rigor da pesquisa nos cativaram imediatamente. Como foi, para você, a imersão na vida e no trabalho do cineasta?

Noël Herpe: Eu havia publicado vários livros sobre Rohmer, como Rohmer et les autres, a partir de um colóquio da época, quando fui professor em Chicago. Eu o havia entrevistado diversas vezes (principalmente para France Culture, na que foi sua última entrevista, em torno do seu texto O celulóide e o mármore). Foi na sequência de tudo isso que Antoine de Baecque me propôs de escrever a biografia com ele. Nós fomos juntos ao IMEC (Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine) onde tinha acabado de chegar o fundo de arquivos do Rohmer – e nós escrutinamos o fundo, nós o descobrimos na verdade, pois na época ele era ainda inédito. Foi muito apaixonante descobrir as cartas de André Bazin, fotos de locação, fitas cassetes, entrevistas com seus atores (que ele tinha o hábito de registrar para preparar suas filmagens). Foi uma imersão.

Eu conhecia um pouco o IMEC, pois eu tinha dado aula em Caen durante alguns anos. E eu tenho esse gosto pelos arquivos que eu compartilho com Baecque. Os pesquisadores de cinema vão mais facilmente para a teoria ou a estética. O arquivo é ingrato, toma tempo, é solitário… De minha parte, eu sempre me dediquei aos trabalhos monográficos a partir dos arquivos. Me interessa tentar descobrir, não a face escondida de um autor, mas uma certa estrutura de seu trabalho artístico, uma certa estrutura em curso, um movimento em curso. No que concerne Rohmer, não se tratava de contar sua vida e sua obra, mas sim tentar compreender o movimento de sua criação, graças também às inúmeras entrevistas, com mais ou menos 80 pessoas que trabalharam com ele. Acredito que é preciso uma certa empatia para que isso funcione: é preciso ser capaz de se identificar ao artista de que falamos. Me parece que eu identifiquei em Rohmer algumas tendências que eu tinha, sem dúvida, em mim. No fundo, nós procuramos sempre no outro, no artista que admiramos, algo que temos vontade de descobrir em nós mesmos; é um jogo de espelhos.

Atualmente, eu preparo para a editora Capricci uma coletânea de textos inéditos de Rohmer (Le sel du présent) São artigos que ele publicou na revista Arts nos anos 50. Escritos muito polêmicos, nos quais ele fala de toda a atualidade cinematográfica desse período. É um Rohmer que conhecemos pouco, frequentemente maldoso e injusto, muito marcado pela ideologia: todo um aspecto que ele tentou, em seguida, fazer ser esquecido. Dito isso, eu falei com ele, pouco antes de sua morte, deste projeto de reedição e ele o aprovou.

Quais são os seus filmes preferidos do Rohmer ?

Eu gosto muito de O raio verde, que é para mim o mais surpreendente. É um filme que, pessoalmente, me tocou muito quando o vi na sua estreia e que, sem dúvida, desencadeou em mim meu grande amor por este cineasta. Foi como um amor à primeira vista, um raio verde que eu tive como cinéfilo. Antes, existiram outros filmes que eu não tinha entendido muito bem quando os vi na televisão (à meia-noite, adolescente, nas brumas do quase-sono): O signo do leão e Minha noite com ela. Eu descobri a sua importância mais tarde.



Eu gosto muito também de A mulher do aviador, um de seus filmes mais livres junto com O raio verde. Por outro lado, Minha noite com ela que é uma obra-prima muito bem trabalhada, muito preparada, e O signo do leão um pouco entre os dois: um filme onde existem elementos de liberdade, mas o único em que Rohmer fez uma decupagem técnica. Na verdade, todos os filmes de Rohmer são muito bem preparados, mesmo O raio verde.

Você descreve dois filmes que a meu ver são os mais acessíveis e dois que são mais difíceis de amar. Minha noite com ela e O signo do leão impõem muitos desafios ao espectador…

Existe, em Rohmer, esse lado exigente e mesmo “hostil”, são filmes em preto e branco… Em O signo do leão, tem quase uma hora sem nenhum diálogo. Mas nós também não podemos dizer que O raio verde seja um filme fácil. A mulher do aviador tem um lado Truffaut, um pouco divertido - mas O raio verde se baseia na irritação que inspira a personagem. Durante anos, eu lutei contra as pessoas que detestavam esse filme, que ficavam muito irritadas com Marie Rivière, por suas frescuras, por todo o lado banal e feio das situações.

Hoje, eu constato que O raio verde adquiriu o status de filme cult: ele finalmente ganhou a batalha da posteridade. Por outro lado, O signo do leão continua um filme mal amado, talvez por ser um personagem masculino, com um lado sentimental menos presente: nós nos identificamos menos. Deste ponto de vista, de fato, é sem dúvida seu filme mais difícil. Talvez não tanto quanto Agente triplo, cuja opacidade chega mesmo a me incomodar.

A significação espiritual de O signo do leão continua misteriosa, ela não se dá assim no primeiro olhar. Essa dimensão existe em todo o cinema de Rohmer, mas é mais evidente em Minha noite com ela. No Signo, existe um caminho secreto que se esconde por trás das aparências, por trás do silêncio.

De que maneira se faz essa reconfiguração da visão sobre certos cineastas como René Clair e Henri-Georges Clouzot, por exemplo, à partir do contato com os arquivos? O que muda?

Em primeiro lugar, nós vemos um cineasta no trabalho, nós vemos como ele trabalha, quais são seus mecanismos de pensamento, de imaginário, as diferentes versões. Não é simplesmente o aspecto genético. A partir da imersão nos arquivos, trata-se de evidenciar um ponto de vista crítico que não será o mesmo de alguém que se contentou em ver os filmes. Por exemplo, se você assiste os filmes de René Clair, você tem a impressão de um universo muito leve, um pouco fácil - mas quando você mergulha em seu trabalho, de cineasta mas também de escritor e crítico, você descobre toda a complexidade de um pensamento. Se queremos compreender profundamente o projeto de um cineasta, me parece quase indispensável passar pelos arquivos.

É o arquivo que, de repente, movimenta as coisas, que vai suscitar meu imaginário, minha criatividade de pesquisador. A partir dos arquivos, eu tenho a impressão de inventar um outro Clouzot, um outro Rohmer, um outro Clair, um outro Guitry, diferentes daqueles que conhecíamos.

Rohmer, Clouzot, Clair e Guitry. Este último é provavelmente o menos conhecido fora da França, mas quem era Guitry?

Ele era, como Rohmer, um cineasta da palavra, que se apoiou na sua experiência de dramaturgo e ator para fazer um cinema muito original. Aliás, muito desprezado na sua época pelos intelectuais e do qual descobrimos posteriormente cada vez mais a importância. É alguém que acreditou na palavra como motor da criação cinematográfica em uma época em que estávamos ainda na nostalgia do cinema mudo. O que faz de seu cinema muito inovador. Se ele é menos conhecido no exterior, é justamente…

…Talvez por causa da lingua?

Eu não sei, pois Rohmer é conhecido no exterior. Eu constatei, em todo caso, quando dei aula nos Estados Unidos, que eles conheciam René Clair que, na França, foi bem esquecido, mas não conheciam Guitry. Tirando talvez O romance de um trapaceiro, o cinema de Guitry foi mal exportado na sua época.



Eu adoro Guitry desde minha infância. Devido sua relação com a História como espetáculo, de seu amor pelos atores, de seu lado lúdico, seu humor, sua leveza, etc. Eu retornei à Guitry muito mais tarde através precisamente dos arquivos pois eu descobri, por volta de 2005, um fundo de arquivos na Biblioteca Nacional Francesa que era inédito na época. Com Noëlle Giret que fazia seu inventário, eu propus à Cinemateca Francesa de fazer uma exposição a partir deste fundo, que permitia mostrar um outro Guitry, diferente daquele que conhecíamos. Não somente seu lado teatro de boulevard um pouco fácil, mas um Guitry que trabalhava enormemente seus roteiros e suas peças. Um Guitry no trabalho.

Sempre com a vontade de identificar um mecanismo criador. Em Guitry, é talvez o complexo de Arca de Noé, este lado conservador que o fez recuperar todos os signos da arte, todos os vestígios do gesto artístico. É a noção de coleção aplicada à prática do artista, através de todas as formas de arte experimentadas por Guitry. No começo, eu não tenho ideia pré-concebida, eu tento identificar algo que organiza a obra, algo que a estrutura. É talvez meu lado psicanalítico, não sei: decifrar um mistério, compreender o que faz um artista avançar em sua criação.

Mais uma vez, não é biografismo (saber com quem ele dormiu, conhecer sua vida privada, etc). Eu não sei se eu pude influenciar na redescoberta de certos autores – mas, de certa maneira, eu gosto bastante de fazer com que a obra seja vista de forma diferente, através da revelação de um motor artístico do autor. Tem sempre este aspecto um pouco detetive.

Qual é a primeira pista para descobrir Sacha Guitry ? Um primeiro filme, um primeiro trabalho para o conhecer. 

Eu coordenei um número especial da revista Double Jeu sobre Guitry e, nesta ocasião, eu entrevistei Dominique Païni que me falou sobre a ideia do desfile. Eu achei isso muito interessante: o desfile de moda, o desfile de máscaras, o desfile de atores, o desfile judicial, o desfile militar. Eu adoro, no trabalho de Païni, essa arte de encontrar as chaves da resolução de um enigma artístico. A partir daí, eu pensei no tema da galeria que me permitiu englobar a coleção - e o desfile. É o lado obsessivo de Guitry: colecionar os signos externos da beleza, os signos da arte, os signos da História. É uma abordagem totalmente fetichista e, ao mesmo tempo, alegre e criativa.

Em contato com seu trabalho, nós temos a impressão de que você estende seu interesse para o cinema francês inteiro, observando com a mesma atenção cinemas historicamente opostos como, por exemplo, o da Tradição de Qualidade e o da Nouvelle Vague. Uma questão que você talvez possa responder: existe um aspecto de continuidade entre essas duas estéticas ? Porque a história diz que a Nouvelle Vague é A ruptura…

Sim, isto é sem dúvida a minha originalidade: eu acredito ser um dos únicos historiadores do cinema a não opor a Nouvelle Vague ao que chamamos de Tradição de Qualidade! Em todo caso, de não os opor de maneira tão sumária como se faz habitualmente. Para mim, essa história de Tradição de Qualidade não quer dizer muita coisa. Esse não é, absolutamente, um termo de François Truffaut, é um termo de Jean-Pierre Barreau que foi retomado por Truffaut. Digamos que o cinema dos anos 50 se inscreve num prolongamento (André Bazin disse isso muito bem) do cinema dos anos 30, com temas vizinhos, atores que são frequentemente os mesmos, cineastas que retornam como Marcel Carné, Julien Duvivier, Jean Grémillon. Que haja aí uma tendência ao academicismo, eu não discordo, que há uma esclerose institucional, eu o admito. Mas que a Nouvelle Vague tenha marcado uma ruptura decisiva, me parece contestável. Sem falar dos últimos Truffaut, dificilmente podemos falar de ruptura quando comparamos o cinema de Claude Chabrol e o de Decoin ou de Duvivier.



Quanto à Rohmer, inscrevendo-se totalmente na política dos autores da Cahiers du Cinéma e em polêmicas muito próximas daquelas de Truffaut, ele reafirma até o fim a sua dívida com o grande cinema francês do pré-guerra, aquele de Carné ou de Clair. Mais do que romper, ele tem o desejo de renovar os laços com certo cinema mudo, o de D.W. Griffith ou F.W. Murnau. Resta evidentemente o caso de Jean-Luc Godard, o único cineasta de verdadeira ruptura.

Além disso, me parece que a Nouvelle Vague foi menos o começo de uma nova era para o cinema francês do que o seu último grande movimento. Tivemos a vanguarda dos anos 20, o realismo poético, tivemos uma certa tendência neorrealista nos anos do pós-guerra, tivemos a Nouvelle Vague – mas eu temo que sofremos hoje do academicismo dos seguidores da Nouvelle Vague. De um natural que se tornou falso e esclerosado. O cinema francês já não consegue arrastar o fantasma da Nouvelle Vague, cultivar uma fantasia de modernidade sem o gênio de seus criadores. Se eu fosse maldoso, falaria de um cinema de qualidade francesa se escondendo sob o verniz Nouvelle Vague.

Serge Bozon, por exemplo, disse que depois da Novelle Vague a última escola importante no cinema francês foi a Diagonale.

O que não deixa de ser verdade. Nos anos 80, quando entrei na cinefilia, eu já me consternava com a mediocridade do cinema francês. Eu, que desde a minha infância tinha sido nutrido por Carné, Guitry, Clouzot, Renoir, não via seus equivalentes em lugar nenhum. Só Maurice Pialat e Rohmer continuavam a encarnar o prestígio do cinema francês; e a fazer filmes ainda extremamente inovadores, livres e que falam do seu tempo. A tradição do cinema francês é a sua tendência idealista e teórica. É um cinema de boas intenções (e, de boas intenções, o inferno está cheio).

Eu não gosto de tudo que a Diagonale fazia mas, na época, eu amei o trabalho de Gérard Frot-Coutaz ou de Paul Vecchiali (que foi ajudado por Rohmer). Houve ali um momento interessante, que Serge Bozon e alguns franco-atiradores tentam perseguir. Mas o cinema francês está cada vez mais fechado para as individualidades, ele se tornou muito normativo.

Em resumo, eu aponto a falsidade de um ponto de vista que diz: antes havia um cinema antiquado e, de repente, teve a Nouvelle Vague que fez milagres. Na minha opinião, os problemas que eram aqueles do cinema francês dos anos 50 continuam presentes ainda hoje: os pesos institucionais, a preocupação pela qualidade, a vontade de fazer um cinema para a exportação, a adaptação literária, o psicologismo, o naturalismo, tudo isso ainda está aí. O que a Nouvelle Vague mudou é que, de repente, começamos a filmar em locações naturais e depois filmamos jovens quando antes filmávamos velhos.

No fundo, os cineastas da Nouvelle Vague só deram testemunho deles mesmos; Godard é absolutamente único, não podemos reinventá-lo. No entanto, na França, continuamos imitando o que já foi feito, acreditando ao mesmo tempo, por falta de cultura, que se é original. Estamos eternamente refazendo Rohmer e Bresson, poderia citar muitos exemplos, mas não quero fazer muitos inimigos.

Seria interessante parar de olhar somente para os anos 60 e para o seu Panteão esmagador, e olhar um pouco mais para o lado do cinema anterior e, em particular, do cinema mudo. Me parece que Louis Feuillade ou Jacques Feyder têm tanto a nos ensinar quanto Truffaut e companhia.

Como é que você tenta demonstrar isso aos seus alunos na universidade, à pessoas que querem fazer filmes?

Eu conduzi um seminário sobre Rohmer durante anos, e convidei os seus colaboradores para esclarecerem a sua maneira de trabalhar. Sua independência, sua singularidade, o fato de fazer filmes com muito pouco dinheiro, de não ter que prestar contas ao Estado, de criar a sua própria estrutura de produção… É um exemplo notável e que merece ser indicado aos estudantes para que eles saiam um pouco desses caminhos batidos, deste cinema francês que vive por aparelhos, que espera tudo do Estado. Admiro esta liberdade feroz do Rohmer, e a sua recusa em exibir o cinema, filmando com equipes pletóricas. Só se é considerado um cineasta, na França como nos Estados Unidos, exibindo os sinais e os rituais do poder e do dinheiro. Tento lembrar que também se pode fazer cinema como Rohmer, ou como Alain Cavalier que faz obras-primas com pouquíssimos meios.

No caso deste, é ainda mais notável o fato de ter começado a fazer filmes com estrelas. Eis alguém que se livrou completamente dos seus próprios clichês e que reinventou o cinema continuamente. Cavalier, como Rohmer, nem sempre encontra o que procura, mas procura até ao fim.

O que é esse naturalismo próprio ao cinema francês?

É uma tradição forte do cinema francês, proveniente do naturalismo literário que teve grande importância. Grandes cineastas que começaram nos anos 20, como Renoir ou Duvivier, foram muito marcados por Émile Zola, Octave Mirbeau, Jules Renard, por um naturalismo voluntariamente cruel, pessimista e fatalista.

Não é o aspecto da literatura francesa que mais me interessa, mas constato a sua longa influência. Até hoje, existe esta vontade de testemunhar o estado da sociedade e de uma forma muitas vezes demonstrativa ou fabricada. O naturalismo inspirou grandes cineastas, como Renoir, obviamente, ou Pialat. Mas esses reencontram a própria essência do naturalismo: a crueza, a crueldade, a violência dos sentimentos. Pialat é Zola melhorado. É Zola reinventado no nosso tempo.

Eu não odeio necessariamente a "ficção de esquerda" - como dizia Serge Daney. Defendo, por exemplo, o cinema de André Cayatte (e a sua crueldade!). Eu sou menos entusiasta desse naturalismo de ilusão de ótica que nos servem hoje, com as suas boas intenções, os seus diálogos significantes, seu discurso social, que pretende abraçar a realidade e só abarca clichês.

Eu penso, por exemplo, na passagem dos anos 90 para os anos 2000. Havia uma espécie de fascínio por aquilo que a Cahiers du Cinéma chamava de estética do fluxo: Claire Denis, irmãos Dardenne…

Os irmãos Dardenne são um exemplo de um naturalismo aceitável para o público em geral, que ganha prêmios em festivais, que não incomoda ninguém. Eu gostei disso no começo, mas se tornou como um uniforme colocado sobre o estilo cinematográfico francófono.



É certo que existem os caminhos de travessia percorridos por Bozon, Yann Gonzalez ou Bertrand Mandico - mas esta tradição sufocante, da qual o cinema francês nunca saiu completamente, é hoje reforçada pelo modo de financiamento do cinema. A partir do momento em que os filmes só se tornam possíveis através do Estado e dos canais de televisão, o testemunho social vai prevalecer. É pouco provável que isso gere um Orson Welles ou um Jean Eustache.

Por outro lado, há Robert Bresson que é ao mesmo tempo um cineasta único e cheio de imitadores.

Na França, somos muitas vezes esmagados por um superego literário, cinematográfico e cultural. É uma riqueza, mas também pode ser um freio à criação. Fica ainda mais complicado quando se é um crítico que faz filmes, o que é frequente na França.

Por outro lado, alguém como Jean-Claude Brisseau tinha um universo totalmente original, ele veio de lugar nenhum. Ele foi praticamente descoberto por Rohmer, a propósito. Eu acredito mais nestes caminhos de travessia do que no cinema estabelecido.

Você dedicou alguns artigos a Bresson e um aspecto parece se destacar : a presença dos animais. Como uma espécie de arte perdida, carregada de ressonâncias religiosas muito fortes. Eu me lembro, por exemplo, do seu artigo sobre A grande testemunha.

É verdade que sou sensível a isso em Bresson. É justamente um cineasta que, ao contrário do que descrevemos há pouco (e mesmo que ele tenha um discurso teórico sobre os seus filmes), faz um cinema contra o discurso. Ele persegue um além da linguagem, uma espécie de fenomenologia.

O meu paradoxo é que eu me apaixono tanto por cineastas do discurso, ou mais exatamente da palavra (o que não é a mesma coisa), como Guitry e Rohmer, quanto por cineastas que transcendem o discurso ou mesmo a palavra (Bresson), ou que a evitam de forma irônica (Clair, Ophüls).


Talvez este seja o tema central de qualquer cineasta: o que fazer com a linguagem? Como expressar um além da linguagem, mesmo quando se faz um cinema muito falante? Quando realizo, eu mesmo, filmes a partir de peças de teatro, não quero dizer que só a palavra conta. A partir do momento em que adapto uma peça escrita por outra pessoa, tento tornar o espectador atento aos efeitos de pura mise en scène; menos ao texto do que ao que se desenvolve nas entrelinhas. Alguém que admiro muito por isso é Alain Resnais, que fez filmes de teatro magníficos.

Em que momento nasceu o seu interesse pelo teatro?

Comecei na minha infância, e faço teatro ainda hoje, pelo menos nos meus filmes. Acho que Jacques Rivette disse que o único tema do cinema era o teatro. Embora não goste muito dos seus filmes, concordo plenamente. Não há nada que eu goste mais do que filmes que falam do teatro, não me refiro apenas às adaptações de peças (claro que adoro O pecado original de Jean Cocteau, Mélo de Resnais ou as adaptações de Manoel de Oliveira), mas também aos filmes que se passam no meio do teatro: este é um tema maravilhoso.

Os filmes de Jean-Claude Biette, por exemplo.

Há filmes de Biette que eu gosto - mas Saltimbank, por exemplo, que se passa no meio do teatro, não me convenceu completamente. Gosto do trabalho de Vincent Dietschy. O que me irrita é quando o teatro é objeto de uma mitologia um tanto falsa, como no Último metrô de Truffaut, que eu acho um filme muito ruim. Por outro lado, adoro Miquette et sa mère de Clouzot, um filme absolutamente fantástico sobre os bastidores, a mise en abyme.

Chegando aqui na França, encontramos as suas crônicas publicadas na revista La Lettre du Cinéma e descobrimos um outro lado da sua escrita, um lado autobiográfico. Nos anos 90 e 2000, você publicou diários cinéfilos na Lettre e na revista Positif. Do quê falam esses textos?

Da minha relação com o cinema, evidentemente, mas sobretudo da relação com a memória, ou seja, com a maneira como os filmes envelhecem na memória: o que a cinefilia revela da passagem do tempo. Era sobretudo isso que me interessava na época. Quando revemos um filme que vimos quando éramos crianças, não vemos o mesmo filme. Como você nunca reviverá de maneira idêntica um momento que viveu quando era criança, a experiência mais concreta da passagem do tempo é realmente essa.

Hoje, talvez eu esteja um pouco menos focado nessa questão do tempo, que me preocupava muito na época. O cinema e a cinefilia eram para mim uma forma de parar o tempo, de reviver as memórias da minha infância, às quais permaneci bastante fiel: os cineastas que defendo hoje são cineastas que eu amo desde os 10 anos de idade! Aliás, é raro que eu mude de opinião sobre os filmes descobertos nessa época, descobertos essencialmente na televisão. Tenho uma certa fidelidade às minhas visões de infância.



O cinema, para mim, é evidentemente uma forma de guardar o passado, é necessariamente um objeto passado, é da ordem do fantasma. Se eu denigro tanto o cinema atual, é também porque ontologicamente eu não posso amá-lo. É preciso que haja algo um pouco morto para o cinema começar a me interessar. Além disso, como cineasta, eu filmo fantasmas, histórias antigas, faço referência a formas ultrapassadas. O que é muito menos o caso no meu trabalho de escritor, no qual procuro cada vez mais me libertar desta dimensão fantasmagórica para ir em direção ao contemporâneo. Sem dúvida não é a mesma timeline.

Desta época, creio que o texto mais belo é “A nostalgia das imagens”, publicado em 2001 na Lettre du Cinema, n.º 16. Há uma articulação muito honesta entre a história do cinema e a sua história pessoal, a história da sua família. Fale um pouco dessa relação.

Eu falava ali sobre o meu amor por Gaby Morlay, essa atriz hoje um pouco esquecida que era quase a sósia da minha mãe, ou sobre o meu amor por Gérard Philipe. Eram figuras paternas um pouco míticas, eu me fiz assim, desde muito cedo, uma comédia humana, cinematográfica, através de atores que amava e que vinham sublimar os meus verdadeiros pais.

Para mim, o cinema francês dos anos 30, 40, 50 tornou-se desde muito cedo uma família. Era paradoxal porque ele contava apenas histórias horríveis, como Manèges (Yves Allegret), histórias de drogas, de famílias dilaceradas, de incesto, de aborto. É verdade que o cinema francês dos anos 50 era muito noir, muito sombrio. Mas eu passeava por ele com muito prazer, talvez porque ele era um pouco desvalorizado e eu encontrei dentro dele uma realeza retorcida. Eu tinha esse poder mágico de reanimar aquelas sombras que só existiam para mim. E ainda sinto isso hoje. Se eu não estivesse aqui para defender René Clair ou André Cayatte, não tenho certeza de que haveria muita gente para fazê-lo.

Eu me tornei uma espécie de guardião de uma paisagem cinematográfica encoberta e que eu gostaria de continuar a tornar presente. Não de maneira fetichista, mas tentando fazer descobrir o que há de interessante neste cinema. É o meu lado Don Quixote, de sentinela absurda. É o desejo de manter a ligação com algo que irá, em parte, desaparecer comigo. Existem muitos atores de cinema ou de teatro que ninguém, depois da minha morte, saberá identificar.

Talvez Paul Vecchiali que também é apaixonado por este cinema.

Espero que ele continue vivendo por muito tempo depois de mim! (Risos) 



Quais são os seus atores preferidos?

No cinema francês atual, gosto muito de Karin Viard. Ela me lembra justamente Gaby Morlay. O que eu gosto nesta, como naquela, como na Bette Davis por exemplo, é a loucura; uma atriz que joga com a sua loucura, acho isso muito interessante. Há aqui uma fragilidade que me toca. Que me toca também na Valeria Bruni Tedeschi: saber pôr em cena seus abismos e suas vertigens, os limites da sua razão. Se não houver essa disponibilidade para correr riscos, essa conduta perigosa… Você vai me dizer Isabelle Huppert - mas nela eu sinto muito o controle, eu sinto que há um domínio; acredito mais na beleza da entrega.

E a última performance de um ator que lhe perturbou?

Por exemplo, admiro o Denis Lavant em Holy Motors, coisas assim. Mais uma vez, um ator que joga com a sua loucura. Mas hoje não é mais a mesma coisa, não vou ao cinema para ver um ator, não tenho nenhum fetiche em relação a isso. Talvez não haja distância suficiente para que eu chegue a me exaltar. Isso concerne sobretudo às atrizes, há uma perda de aura. Seria esse um efeito do amor pelo passado de que falávamos, desta deformação pessoal que me convida a encontrar beleza apenas no passado, ou de algo que falta cruelmente no cinema francês de hoje (uma dimensão mítica, fantástica, fantasmática)? Ainda assim, tenho dificuldade em encontrar o que me inspira em Jules Berry ou Michel Simon - que tinham uma dimensão bigger than life. Tem um pouco disso em Karin Viard, mas o cinema francês, infelizmente, a limita muitas vezes a papéis acanhados, quando ela poderia desempenhar papéis extraordinários.

É óbvio que eu não me consolo com esta perda da aura. Não sei se o cinema está morto, mas tenho certeza de que deixou de ser uma arte mágica. Mágica, proibida, misteriosa, enigmática. Ele se aproxima de nós através da televisão, primeiro, e depois através da Internet, e toda uma banalização da imagem que faz com que qualquer Youtuber possa se tornar tão famoso quanto Isabelle Huppert. Acredito que para poder admirar o trabalho de um cineasta, eu preciso que ele seja ao mesmo tempo raro, precioso, difícil de alcançar e ligado a um ritual.

Este ritual ainda existia na televisão, com os cineclubes, os cinemas à meia-noite. Os filmes eram raros, nós os víamos a certas horas, o que me levou a fantasiar sobre O ano passado em Marienbad, que eu não gostei nada quando descobri mais tarde. Mas quando tinha 10 anos, eu ficava frustrado por não conseguir ver aquele filme que só passava naquela hora. O filme era um objeto um pouco proibido, desvanescia assim que aparecia. Havia ali uma dimensão de revelação, e de sagrado.



Nem por isso eu vou dizer que “era melhor antes”. Eu tento apenas elucidar o que me fascina no cinema, decifrar o que se esconde por detrás da minha má-fé de crítico e do meu espírito de contradição. Eu me esforço, como escrevi, a fim de olhar para o meu olhar - mas também para me pôr em cena, ao mesmo tempo como cinéfilo um pouco órfão e como alguém que tentaria continuar a atuar num filme que já não existe mais. Foi um pouco o que fiz no meu último livro, Souvenirs/ Écran, onde conto a minha turnê pela Provença para apresentar os filmes de Clouzot. Ando por lá como um caixeiro viajante um pouco ridículo, acabo por desaparecer nesta paisagem cinzenta, a me misturar no cenário como um personagem de Carné. É uma cena imaginária que só existe no meu espírito, e na qual eu evoluo sozinho. Se você não quiser ser prisioneiro dos fantasmas que admira, é preciso talvez se tornar um deles.

Entrevista realizada por André Schaefer e Miguel Haoni em 10 de novembro de 2019
Transcrição: André Schaefer e Leticia Weber Jarek
Tradução: André Schaefer e Miguel Haoni