O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Emmanuel Levaufre: “Todos os filmes de Wes Craven oscilam entre naturalismo e romantismo”




Por Johan Faerber

Já que George Romero nos deixou neste verão e John Carpenter acaba de lançar um best of de suas melhores trilhas originais, a ocasião estava desenhada para que Diacritik retornasse a Wes Craven, um dos outros mestres do horror, em companhia de um de seus especialistas mais sensatos: Emmanuel Levaufre.

Em seu ensaio Wes Craven, quelle horreur?, lançado pela Capricci, Emmanuel Levaufre não somente propõe uma potente leitura do cineasta de A Hora do Pesadelo, em que ele foi um pioneiro do horror literal, mas também aproveita para traçar uma história renovada do cinema americano desde os anos 1970. Tantas pistas novas e estimulantes pelas quais Diacritik interrogou o ensaísta para uma longa entrevista.

Seu ensaio se intitula Wes Craven, quelle horreur?. Por que “qual horror?”? Você desejava trazer um contraponto às teorias formuladas por Robin Wood nos anos 1970 sobre o filme de horror?

Eu acredito que os grandes filmes de horror estadunidenses dos anos 1970 não tem muito a ver com os filmes de horror tais como eles eram feitos antes em Hollywood. Estes filmes eram atmosféricos e oníricos, enquanto os filmes de Romero e de Craven são filmes de ação, realistas. Eles são tão diferentes que podemos nos perguntar se eles pertencem ao mesmo gênero, à mesma história.

Eu vejo a relação entre Zumbi Branco (White Zombie, Victor Halperin, 1932), A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, Jacques Tourneur, 1943) e O Fantasma de Mora Tau (Zombies of Mora Tau, Edward L. Cahn, 1957), mas eu não a vejo tão bem entre estes filmes e A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, George Romero, 1968). Os três primeiros pertencem indiscutivelmente ao mesmo gênero, e podemos vê-los como momentos na história do gênero. Isto é muito menos evidente para o quarto.

Os filmes de mortos-vivos realizados por Romero me parecem muito mais próximos do western, ao menos por sua relação com o espaço, o território, e por seu aspecto político. Para dizer as coisas de forma mais geral, não estou certo de que haja um gênero (e um único) que possamos chamar de “filme de horror”. Mesmo assim, aproveitei a encomenda da Capricci (escrever um ensaio sobre Craven, que não seja uma monografia e que tenha cerca de 100.000 caracteres) para tentar esboçar uma história do “filme de horror” estadunidense, mas uma história complexa, não linear, uma história que leve em conta as reservas que acabei de exprimir.

Deste ponto de vista, me distancio um pouco de Robin Wood, que toma o “filme de horror” como um gênero claro (para ele, o horror no cinema, antes colocado à distância nos países longínquos e nas épocas antigas, se aproximou cada vez mais da vida cotidiana do espectador, a ponto de invadir a família estadunidense). Mas Wood foi um dos primeiros críticos e teóricos a defender os filmes de horror dos anos 1970 (em particular os de Craven) e a identificar claramente sua diferença para com os filmes anteriores. Meu livro deve muito a ele.

Você diz ter aproveitado a ocasião da encomenda para esboçar uma história do filme de horror. Você quer dizer que Wes Craven era secundário para você, e que o principal era refletir sobre o cinema de horror?

Não, de jeito nenhum. Eu considero Wes Craven um cineasta importante, mas queria situá-lo: mostrar como seus filmes estão ligados a um estado do cinema de horror que eles contribuíram, por vezes, a transformar, e nem sempre como ele desejava. Seja como for, Craven modificou três vezes a fisionomia do cinema de horror estadunidense: em 1972 com Aniversário Macabro, em 1984 com A Hora do Pesadelo e em 1996 com Pânico.

Tem algum filme em particular de Wes Craven que te fez querer escrever sobre sua obra?

Depois do que eu te disse sobre Romero e Craven, poderia parecer lógico que eu te respondesse: A Maldição dos Mortos-Vivos. Mas esta não será minha resposta.




A Maldição dos Mortos-Vivos é um projeto fascinante. Primeiro porque é uma reação à atualidade no calor do momento: uma ficção se desenrolando no Haiti durante os últimos dias da tirania de Jean-Claude Duvalier (o filme é lançado nas salas em 1988, dois anos depois da queda de Duvalier). Depois porque é a adaptação não de um romance, mas de um ensaio redigido por Wade Davis, um antropólogo e etnobotânico (Davis defende a seguinte tese: os feiticeiros do Haiti são efetivamente capazes de transformar quem eles querem em zumbi, mas seu poder não tem nada de mágico, uma vez que a zumbificação resulta da ação conjugada de uma neurotoxina e de um psicotrópico). Poderíamos, então, acreditar que A Maldição dos Mortos-Vivos é uma releitura crítica dos filmes antigos de mortos-vivos (os filmes que abordavam constantemente os mortos-vivos no contexto do vodu) por um cineasta da escola de Romero, um cineasta que aborda um fenômeno aparentemente sobrenatural de maneira estritamente realista. O problema é que quando vemos o filme, percebemos que esta interpretação não funciona (ela é válida para algumas sequências, mas não para o conjunto do filme). Por quê? Porque o filme é tão eclético que ele se torna quase informe, desprovido de ponto de vista. E eu acredito que não é culpa de Craven, mas dos produtores do filme, numerosos demais e com exigências heteróclitas (um querendo um filme sério sobre vodu, outro um filme de aventuras exóticas à maneira de Indiana Jones, outro ainda um filme de horror à maneira de A Hora do Pesadelo, um quarto querendo acrescentar a tudo isto uma história de amor...). Eu gosto do filme apesar de tudo, mas estou longe de partilhar a opinião de muitos dos críticos franceses que o consideram como o melhor filme de Craven. Sobre isto, queria dizer que o pessoal da Capricci foi muito bom comigo: eles quiseram publicar um ensaio sobre Craven porque eles estavam lançando em sala, em seu título original (The Serpent and the Rainbow), uma versão restaurada do filme, e em nenhum momento eles me reprovaram por considerá-lo secundário.

Finalmente, o filme que ocupa o lugar mais importante no ensaio é Aniversário Macabro, o primeiro Craven. Isto me parece evidente agora porque é o filme de horror realista por excelência. Eu acredito mesmo que podemos ir mais longe e falar de um filme de horror naturalista. Mas eu não tinha previsto de lhe conceder tanto espaço. Eu não tinha nem muita vontade de revê-lo. Eu mantinha a lembrança de um filme sem dúvidas importante, mas francamente incômodo. Revendo todos os Craven, me pareceu evidente que era seu melhor. Isto não deveria ter me surpreendido, já que eu havia lido o elogio ao filme feito pelo Stephen Thrower, um crítico inglês com o qual eu concordo frequentemente nas avaliações. Thrower é o autor de Nightmare USA, um livro extraordinário sobre os filmes de horror estadunidenses dos anos 1970 – filmes que, em sua maioria, foram realizados fora de Hollywood. Ele não é um teórico como Robin Wood; era mais um crítico empírico, que procede de filme a filme: ele não defende nenhuma tese sobre os filmes de horror em geral, mas fala muito bem de cada um, inclusive os mais obscuros, e os descreve de maneira sensível.

Dito isso, eu não concordo totalmente com Thrower. Sua defesa de Aniversário Macabro o faz desconsiderar totalmente os Craven seguintes. De minha parte, eu não queria jogar no lixo A Hora do Pesadelo, Shocker: 100 Mil Volts de Terror, As Criaturas Atrás das Paredes, O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger, os primeiros Pânico, A Sétima Alma – nem mesmo A Maldição dos Mortos-Vivos. Eu havia gostado deles no momento de seu lançamento e eu gosto deles ainda, apesar das reservas mais ou menos fortes, dependendo dos filmes. Eu queria menos ainda me livrar dos pequenos telefilmes que ele realizou nos anos 1980 para a retomada de Além da Imaginação (A Little Peace and Quiet e Chameleon são para mim as obras-primas de seu longo período hollywoodiano). Perguntei-me, então, como o autor de Aniversário Macabro, um filme bricolado, totalmente anti-hollywoodiano, pôde em seguida conduzir, sem se renegar, uma carreira muito mais comercial para a televisão e o cinema hollywoodiano.

Você disse que quis defender o conjunto da obra de Craven. Por outro lado, quando lemos o seu ensaio, temos frequentemente a impressão de que você a considera decepcionante. Em que medida, principalmente tendo em vista John Carpenter, com o qual você frequentemente o compara, Wes Craven teve uma carreira contrariada? Ele é um cineasta maldito ou, pior, fracassado?

Craven se certificou de não ser um cineasta maldito, fazendo tudo para se integrar à indústria hollywoodiana. Ele chegou lá, e esteve longe de ser vencido. É preciso ter consciência de que ele era muito mal visto quando chegou a Hollywood, no final dos anos 1970. Stephen King, por exemplo, escrevia coisas muito duras a seu respeito. O que ele havia feito? Três pequenas produções nova-iorquinas: dois filmes de horror, um dos quais, Aniversário Macabro, foi considerado por muitos (e especialmente por Stephen King) como repugnante, e um pornô. Em Hollywood, ele era um pouco o trabalhador imigrante, acantonado nos trabalhos menos nobres: os filmes de horror. Então talvez ele tenha se considerado um cineasta fracassado, já que ele desejava fazer outras coisas, dramas sociais especialmente. Por outro lado, ele jogou perfeitamente o jogo, e a indústria hollywoodiana deve muito a ele. Ele lançou a carreira de três estrelas (Sharon Stone, Johnny Depp e Bruce Willis), e permitiu à New Line, uma companhia pequenina (a produtora de A Hora do Pesadelo) se desenvolver a ponto de poder produzir blockbusters como O Senhor dos Anéis.

Mas a indústria hollywoodiana não o recompensou, e pode-se dizer que ele sempre foi um cineasta contrariado – mesmo no seio da produção de horror, mesmo depois do enorme sucesso de Pânico, mesmo quando ele era seu próprio produtor. Ele foi obrigado a refilmar quase todas as sequências de Amaldiçoados e obrigou a si mesmo a refilmar algumas sequências de A Sétima Alma, sem falar do belo epílogo deste último filme, que ele cortou na montagem (podemos vê-lo no bônus da edição em DVD). Imediatamente depois de cada um desses dois filmes (dois fracassos comerciais), ele realizou um filme mais eficaz e menos pessoal – um sucesso comercial: Voo Noturno depois de Amaldiçoados, e Pânico 4 depois de A Sétima Alma. Ele não queria ter a imagem de um cineasta acabado. Mesmo com mais de 70 anos, no momento de A Sétima Alma e de Pânico 4, ele sentia que ele devia continuar a provar seu valor de um ponto de vista comercial.




Agora, se eu olho para sua carreira de um ponto de vista não industrial ou comercial, mas artístico, eu a percebo ao mesmo tempo decepcionante e fascinante. Quando digo que a considero decepcionante, eu não o censuro por ter renunciado ao naturalismo de seus primórdios para se adaptar às convenções hollywoodianas. Eu não acredito que ele devesse ter continuado no caminho de Aniversário Macabro. E não consigo conceber como ele o teria feito sem se repetir. O que eu acho uma pena, em compensação, é que ele não voltou ao naturalismo por volta de 2005, quando a moda do filme found footage ganhou Hollywood. Mas é toda sua carreira, e não somente seu final de carreira, que eu acho decepcionante. Decepcionante e fascinante ao mesmo tempo, porque sentimos que ele procura fazer alguma coisa sem nunca conseguir perfeitamente. Seus melhores filmes possuem sempre um lado um pouco tateante, nunca totalmente concluído – mesmo A Sétima Alma, que, eu acredito, se aproxima o máximo do que ele buscava. Esse lado tateante é pouco compatível com a imagem de um profissional hollywoodiano, e ele buscava sem dúvida dissimulá-lo, mas ele é manifesto quando revemos seus filmes uns após os outros.

Eu não diria a mesma coisa da carreira de Carpenter. De um ponto de vista industrial, Carpenter estava perfeitamente adaptado à Hollywood do final dos anos 70 e do início dos anos 80. Ele estava adaptado ali por conta de seus gostos e de sua formação. Contrariamente a Craven, que não é um cinéfilo, Carpenter conhece a admira desde a infância os maiores cineastas hollywoodianos (Hawks, especialmente). Contrariamente a Craven, que, em cinema, é um perfeito autodidata, Carpenter fez estudos brilhantes de cinema (quando ele era estudante, ele co-escreveu, montou e fez a música de um filme que obteve o Oscar de melhor curta-metragem em 1971). Carpenter pôde muito cedo realizar filmes de prestígio (o telefilme Elvis em 1979) e dispor de grandes orçamentos. Quando, em 1982, Craven realiza O Monstro do Pântano, ele dispõe de um orçamento de 2,5 milhões de dólares (seu maior orçamento até então). No mesmo ano, Carpenter realiza O Enigma de Outro Mundo com 16 milhões de dólares. Carpenter tinha então 34 anos, Craven tinha 43. Eles não estão na mesma categoria. Quando, no final dos anos 1980, Carpenter vê sua situação se degradar, ele não luta muito. Durante os anos 1990, ele manifestou mais de uma vez o desejo de se aposentar, e podemos dizer que ele se aposentou no início dos anos 2000 (mesmo que depois ele tenha realizado dois telefilmes e um filme de baixo orçamento).

Na minha cabeça, Carpenter é como um aristocrata: se aqueles que possuem o poder em Hollywood são idiotas demais, é inútil discutir com eles, é melhor se retirar... Craven, eu te disse, lutou até o final. E de um ponto de vista artístico, a diferença entre eles me parece igualmente importante. Carpenter é um esteta que sabe o que quer. Não um esteta no sentido de que ele busca imitar a pintura ou a grande arte em geral, mas no sentido de que ele se interessa antes de tudo pela mise en scène: duração e composição dos planos, trabalho dos atores, ritmo... Ele aspira à perfeição estilística, e foge do tateio.

Uma grande parte da sua reflexão se dedica a reinscrever o horror, tal como Wes Craven o desdobra, no naturalismo. O que você compreende por naturalismo?

O naturalismo é, em primeiro lugar, a recusa do sobrenatural. É o ponto comum entre Craven e Romero, e é a razão pela qual seus filmes são filmes de ação: neles, os personagens podem sempre destruir o que os ameaça lhes destruir, e eles podem fazê-lo por meios físicos, naturais, enquanto os meios simbólicos (cruz, água benta, pentagrama...) não tem nenhuma utilidade. Da mesma forma, o que eles arriscam não é a possibilidade de serem malditos, de se transformarem em vampiros, em condenados, em almas errantes, mas de serem violados, mutilados, devorados, ou então (em Romero) de serem transformados em mortos vivos, isto é, não em almas errantes, mas em corpos sem interioridade. É uma forma de horror realista que eu nomeio horror literal. Eu prefiro resguardar o termo naturalismo para me referir à escola de Zola, uma escola que não se limita à rejeição do sobrenatural e à desconfiança quanto ao simbólico, mas que busca colocar em evidência as pulsões que estariam na origem de nossos atos. Eu acredito que na maior parte dos filmes de Craven sobressai o horror literal (a exceção mais significativa me parece A Sétima Alma, um filme no qual a alma é uma questão, como seu título indica, mas não encontrei espaço para abordar esse ponto), enquanto em Aniversário Macabro sobressai o naturalismo no sentido de Zola.

Por outro lado, o personagem de Freddy, que aparece nos sonhos dos protagonistas para matá-los, é um personagem sobrenatural. Poderíamos então objetar que A Hora do Pesadelo é um filme que rompe totalmente com o realismo para mergulhar no onirismo e no fantástico mais desenfreado.

Realmente foi assim que o filme foi recebido, e é neste sentido que o personagem foi desenvolvido nas sequências de A Hora do Pesadelo. Mas Craven não ficou nada satisfeito com estas sequências (exceto o sétimo filme da série, que ele mesmo dirigiu, O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger). Em A Hora do Pesadelo – Os Guerreiros dos Sonhos, o terceiro filme da série (de início um projeto de Craven que foi, em seguida, totalmente reescrito por Frank Darabont e Chuck Russell), luta-se contra Freddy com água benta. Bizarramente, isto não chocou a maioria dos espectadores e A Hora do Pesadelo – Os Guerreiros dos Sonhos é frequentemente considerado, ainda hoje, como o melhor episódio da série. Eu prefiro, e de muito longe, os dois filmes da série dirigidos por Craven. Craven é mais original e mais profundo que Darabont e Russell: ele toma cuidado em mostrar, em A Hora do Pesadelo, que os meios simbólicos não surtem nenhum efeito sobre Freddy, mas que se conseguirmos trazê-lo para o mundo real, ele se torna tão vulnerável quanto qualquer outra criatura natural. Craven se mantém ancorado no horror realista, mesmo quando ele dá a seus filmes a aparência do fantástico mais desenfreado.




O naturalismo de Aniversário Macabro tem, como em Zola, uma vocação didática? Se sim, qual?

A vocação didática, em Zola, é indissociável de sua ambição científica. Ele concebe seus romances como experimentos, inspirando-se no método experimental de Claude Bernard, e busca explicar o comportamento individual em um contexto social determinado, a partir da influência da hereditariedade e do meio. Craven está longe de ser tão ambicioso. Ele não pretende fazer uma obra científica.

Mesmo assim, eu os relacionei por três razões. Primeiro porque Stephen King reprovou em Aniversário Macabro aquilo que reprovavam em certos romances de Zola (Thérèse Raquin, especialmente): de ser uma obra sem real elaboração artística, que agrada pelo horrível e que atende aos instintos mais baixos do público.

Em seguida, porque o filme se liga a toda uma tradição não fantástica do horror, uma tradição que esquecemos frequentemente, mas que me parece muito importante, aquela do Grand-Guignol. André de Lorde e a maior parte dos autores que escreviam dramas para o teatro do Grand-Guignol reivindicavam a linhagem de Zola (e eles se interessavam seriamente pelas ciências de seu tempo, especialmente a neurologia e a psiquiatria). Você me dirá talvez que isso é a história da literatura francesa, e que ela não tem nenhuma relação com o cinema estadunidense. Não acredito nisso: O Casarão Isolado (Griffith, 1909), um dos primeiros suspenses do cinema estadunidense, é uma adaptação de um drama de André de Lorde, Au téléphone.

Enfim, e principalmente, porque na maior parte das sequências de assassinato em Aniversário Macabro, nas mais incômodas (que são também as mais originais), Craven consegue pôr em dúvida as ideias pré-concebidas sobre o crime, assim como as justificativas que se dá para o recurso à violência: o que ele mostra nessas sequências é uma manifestação desse desejo de vazio que encontramos igualmente nos romances de Zola, uma manifestação dessa “espécie de impaciência amorosa quase irresistível, unânime pela morte”, para retomar uma expressão que Céline emprega em sua “Homenagem a Zola”. Se quisermos, portanto, falar de vocação didática em Aniversário Macabro, eu diria que ela está aí: no fato de colocar em evidência alguma coisa escondida. Mas o termo “didático” talvez seja pouco forte.

Afirmando que Craven é naturalista, você queria reabilitar a noção de naturalismo frequentemente depreciada na crítica cinematográfica, especialmente por Alain Badiou?

A palavra “naturalismo”, como as palavras “natureza” e “natural”, tem diversos sentidos e às vezes tendemos a misturá-los. Quando um teórico como Badiou, um crítico como Daney, ou um cineasta como Vecchiali criticam o “naturalismo”, eles estão criticando uma utilização da técnica cinematográfica supostamente transparente: eles criticam a pretensão de restituir, pelo registro cinematográfico, a realidade tal como ela é, naquilo que ela pode ter de evidente, de “natural”, e de fazer como se a câmera, a montagem, etc., não existissem – ao que Daney ou Badiou podem opor o realismo como resultado de uma elaboração artística.

Isto não tem muita relação com o naturalismo no sentido em que eu emprego o termo, porque não se trata, em Aniversário Macabro, de restituir fielmente um dado (a realidade que preexistiria ao filme e que poderíamos observar independentemente do filme), mas de colocar em evidência alguma coisa que não é nada evidente, nada “natural”. Dito isto, eu entendo que possamos ficar tentados em amalgamar os dois sentidos da palavra quando falamos de Aniversário Macabro. Porque é especialmente o cinema direto que podemos criticar por ser “naturalista” (no sentido em que Daney e Badiou empregaram esse termo). E Craven utilizou as técnicas do cinema direto (filmagem em 16 mm, câmera na mão, iluminação natural) para que o filme se assemelhasse um pouco aos documentários e às reportagens dos anos 1960. Ele fez o que hoje fazem os cineastas de ficção que utilizam imagens gravadas em câmeras de vigilância ou em celulares para fazer acreditar que o que eles mostram é found footage: ele jogou sobre um efeito de real ligado às tecnologias empregadas.

Mas eu acredito que Craven não se contentou com esse efeito do real. Ele joga com ele. É por isto que ele introduz também procedimentos de distanciamento (a montagem paralela com os dois policiais estúpidos, a utilização de canções para comentar a ação), e estiliza muito a última parte. O filme é muito mais rico e muito mais elaborado do que parece ser à primeira vista. É por isto que eu lhe dedico tanto espaço no ensaio. Eu queria ao mesmo tempo responder as críticas de Stephen King, para quem o filme é desprovido de elaboração artística. E minha análise não é exaustiva. Faltaria falar da música e das canções, das quais infelizmente não pude falar no livro, por questão de espaço.




Permaneceram traços de naturalismo nos filmes que Craven realizou depois de Aniversário Macabro?

Sim, nas longas sequências de confronto com os assassinos. No final de A Hora do Pesadelo, em muitas sequências de Pânico, ou mesmo no final de um filme menos pessoal como Voo Noturno: quando o assassino persevera apesar dos golpes que ele recebe, sentimos que ele é movido por um desejo de aniquilação, uma pulsão que deve se satisfazer obrigatoriamente, mesmo ao custo de sua própria morte. O horror literal me parece então impelido ao naturalismo.

Você propõe uma interpretação do horror literal que me parece muito original, inscrevendo-o em uma genealogia cinematográfica precisa: a da história, pouco conhecida, dos grindhouses e do cinema exploitation. Em que medida, para você, Aniversário Macabro é ao mesmo tempo herdeiro lógico desse período e também sua produção mais criativa?

Um filme exploitation é um pouco o equivalente no cinema da imprensa sensacionalista. Eu tento mostrar que o cinema exploitation, que se diferencia do cinema hollywoodiano por privilegiar o valor do choque em detrimento dos valores de produção, era desde os anos 1930 indissociável do efeito de real. Daí sua relação retórica com o documentário. Para dizer de forma simples, o que choca o espectador é a impressão de que o que ele está vendo é real, e obter tal efeito não custa caro (contrariamente aos valores de produção hollywoodianos). Isto não quer dizer que os filmes exploitation são documentários, mas quer dizer que eles integram planos aparentemente documentais (por vezes contrabandeados) ou que eles mimetizam a forma do documentário (com comentários, por exemplo, seja sob a forma de texto, seja sob a forma de voz off). Quando ele filma Aniversário Macabro, Craven é um dos primeiros cineastas exploitation a tomar consciência da revolução que acaba de acontecer no documentário (com a aparição, nos anos 1960, de técnicas do cinema direto, e o desaparecimento do comentário). Ele é mais criativo porque consegue dominar o efeito de real para brincar com ele, sem por isto transformar seu filme em um jogo formal. Ele se concentra em seus personagens, em sua relação com o sofrimento e a morte, de modo que o que ele faz não é o equivalente cinematográfico de uma notícia relatada em tabloide.

Você mostra que o cinema exploitation, no início dos anos 1960, se distancia do documentário para se tornar mais ficcional. É nesta época que o cinema exploitation se confunde com o cinema erótico. Você insiste especialmente sobre o roughie, filme erótico violento, e afirma que na origem de Aniversário Macabro, encomendaram a Craven não um filme de horror, mas um roughie. Você quer dizer que Craven erotizou a violência?

Não, de jeito nenhum! Ele é muito puritano para isso. Os roughies eram frequentemente fantasmáticos, e a violência era concebida para ser excitante. Craven, em compensação, faz tudo para não tornar a violência atraente, fascinante, sexualmente excitante. É por isto que ele escolhe ser realista em vez de fantasmático, e apresenta a violência como algo tristemente horrível.

É bastante paradoxal reatar, como você faz, a inclinação de Craven para o horror literal ao seu puritanismo.

É a relação de Craven com a violência e o horror que é paradoxal. Tarantino adora contar que Craven saiu da sala de cinema no momento da sequência de tortura de Cães de Aluguel: “eu choquei o diretor de Aniversário Macabro!”. À primeira vista, é surpreendente, mas eu não acho que seja uma atitude incoerente. Craven nasceu em uma família batista, e recebeu uma educação puritana muito rígida. Ele não tinha o direito de ver filmes nem de ler quadrinhos, e ele não viu um único filme de ficção antes de ter pelo menos 20 anos. Claro, depois ele tomou suas distâncias em relação à sua educação, mas acredito que ele tenha conservado alguma coisa do puritanismo em sua relação com o cinema.

Por que a imagem é proibida nas correntes mais rigorosas dos monoteísmos? Porque se considera que a imagem pode suscitar idolatria. Contemplar a imagem de uma criatura natural (um homem, um animal ou um monstro) é correr o risco de adorar esta imagem (e o que ela representa), isto é, correr o risco de se submeter a ela; ora, no monoteísmo estrito, não se deve se submeter aos homens, aos animais ou aos monstros, só se deve se submeter a Deus, que não é um ídolo (que não é uma criatura natural e que é irrepresentável).

Eu acredito que permanece alguma coisa dessa ideia, mesmo que sob uma forma muito atenuada, na relação de Craven com o cinema e a violência: representar a violência é correr o risco de suscitar sua adoração. Então se a representamos, é preciso esforçar-se para torná-la o menos sedutora, o menos erótica possível. Craven temia que seus espectadores pudessem tomar como modelos os assassinos de seus filmes. É a razão pela qual ele sempre disse ter vontade de parar de fazer filmes de horror. Mas como a indústria hollywoodiana não lhe oferecia a oportunidade, ele se certificava que suas cenas de horror fossem o mais horríveis possível. É igualmente a razão pela qual ele finalmente aceitou fazer Pânico, já que de início ele havia recusado. Ele via no roteiro, na história de jovens adolescentes que matam se inspirando em filmes de horror, ecos desse temor que o angustiava profundamente. E é ainda por esta razão que ele insistiu, junto aos produtores (que queriam um filme menos duro), para que as cenas de horror de Pânico fossem sangrentas, longas e brutais.

Se Craven tivesse que refilmar a sequência de tortura de Cães de Aluguel, ele não teria feito como Tarantino: ele teria, sem dúvidas, mostrado o torturador cortando a orelha com a navalha (Tarantino se satisfaz com o fora de campo, mas Tarantino não quer mostrar um horror realmente horrível – ele quer, sobretudo, mostrar a mise en scène), e ele faria com que o torturador tivesse o aspecto grotesco ou desprezível, ao menos por instantes. O resultado teria sido menos icônico. E ele provavelmente não teria sido programado no festival de Cannes!




Muitos são aqueles, como Jean-François Rauger na ocasião da retrospectiva de Craven na Cinemateca Francesa, que ligam esta prática do filme de horror a outro elemento biográfico do cineasta, no caso sua descoberta de inúmeros documentários sobre a Segunda Guerra mundial e sobre a intervenção americana no Vietnã. Mas você deixa de lado esse elemento biográfico. Insistindo no puritanismo, você parece ver Craven como um cineasta mais moral que político. Era isto que você queria?

Sim, era exatamente isto que eu queria! É Romero quem me parece ser um cineasta político: ele se interessa por coletivos, por territórios e, portanto, por fronteiras, por apropriação, por legitimidade de autoridade... Craven, por sua vez, me parece um cineasta fundamentalmente moral. Eu não estou dizendo que os filmes de Craven não tenham uma dimensão política. Estou dizendo somente que sua dimensão política é secundária em relação à sua dimensão moral. Por exemplo, A Maldição dos Mortos-Vivos tem uma dimensão política evidente, uma vez que o filme relaciona a zumbificação pela qual procedem os feiticeiros de vodu com a tirania dos Duvalier no Haiti. Mas esta dimensão política é unilateral, pois o herói trabalha para a indústria farmacêutica estadunidense sem que a questão da pilhagem do Terceiro Mundo seja jamais colocada. Eu acredito que Romero nunca teria dirigido um filme assim.

Dito isto, Craven não é ingênuo. Ele certamente percebeu as fragilidades do roteiro. Se ele o seguiu sem corrigir suas insuficiências políticas, por outro lado ele introduziu a distância pela mise en scène e pela direção de atores: ele se certificou que seu herói parecesse tão pouco carismático e icônico quanto possível, muito longe da imagem do aventureiro divertido e seguro de si que era tão frequente no cinema hollywoodiano da época. Craven desconfiava da encarnação heróica e da idolatria que ela poderia suscitar – atitude que me parece mais moral que política.

Por consequência, para você, a prática do filme de horror não decorre, em Craven, de uma tomada de consciência política?

Eu sei que o próprio Craven sugeriu esta ideia relacionando seus filmes, e especialmente Aniversário Macabro, com a intervenção americana no Vietnã. Ele faz isso desde o final dos anos 1970. Mas não se deve esquecer a violência dos ataques dos quais ele era então objeto (os ataques de Stephen King, por exemplo). Craven, que queria trabalhar em Hollywood, tinha necessidade de se justificar, e eu acredito que ele buscou na política uma legitimação. Robin Wood embarcou em seu discurso e se deixou levar pelo demônio da analogia e pela embriaguez da interpretação. Quando, em seu artigo “Neglected Nightmares”, ele conclui sua defesa de Craven, ele escreve: “A dominação da família pelo pai, a dominação da nação pela classe burguesa e pelas suas normas, e a dominação das outras nações e das outras ideologias (mais precisamente as tentativas de dominação que fracassaram inevitavelmente e desembocaram em uma destruição mútua) – estas estruturas se imbricam, ou antes são, fundamentalmente, uma única e mesma estrutura. Mỹ Lai não foi um evento infeliz do acaso; é o produto do que se trama nos lares americanos. No cinema, não há expressão melhor dessa doença social (inter)nacional do que Aniversário Macabro”.

O massacre de Mỹ Lai é um crime que guerra que fez centenas de vítimas civis. Que ele se explique pelos mesmos mecanismos que os crimes mostrados por Craven me parece bastante discutível. Wood é muito mais convincente quando ele mostra como Craven consegue “implicar o espectador, simultaneamente e inelutavelmente, no ponto de vista do agressor e naquele da vítima”, o que assinala mais um problema moral que um problema político.

Por outro lado, você posiciona no centro das interrogações de Craven o lugar e as mutações da família na sociedade contemporânea. Não existe aí uma dimensão política do cinema de Craven?

Ele se interessa também pela família por razões dramatúrgicas, e neste ponto de vista ele não tem nada de original. Muitos autores dramáticos antes dele extraíram sua matéria-prima das relações familiares, e não por isto os qualificamos como autores políticos. Mas você tem razão no caso de Craven. Ele se formou na universidade nos anos 1960, se interessou pelas ciências humanas e foi partidário da contracultura. Ele é, portanto, sensível à micropolítica, especialmente às relações de poder domésticas, assim como as mutações da família.

Pensemos no seu único drama social, Música do Coração. É a história de uma dona de casa, abandonada por seu marido, com duas crianças para cuidar. Um dia, ela decide parar – parar de esperar pelo hipotético retorno de seu marido, parar de se dedicar às crianças que, no final das contas, estão suficientemente grandes para cuidarem de si mesmas. Ele se torna uma professora de violino na escola de um bairro desfavorecido, se dedica ao seu trabalho, sem encontrar um novo marido, sem mesmo procurar por um, sem retornar também às crianças (em torno das quais ele continua, não obstante, a viver, sem que isto seja fonte de drama). É uma pena que o final, uma espécie de grande publicidade beata para o Carnegie Hall e as estrelas estadunidenses do violino, seja tão nula. Mas, mesmo assim, o filme é muito mais interessante do que se diz. É um percurso moral filmado sobriamente por alguém que não ignora a micropolítica, e podemos nos perguntar, assistindo-o, se para Craven a realização de si não passa pela emancipação da família. Isto não é muito frequente no cinema de prestígio hollywoodiano. Estou de acordo com você: certamente há política nos filmes de Craven, mas é frequentemente a micropolítica. E os problemas da micropolítica são às vezes tão próximos dos problemas morais que se torna difícil distingui-los.

Wes Craven surge no momento mesmo em que se forma a Nova Hollywood. Não podemos deixar de se perguntar sobre as relações que ele manteve com esse movimento. Para você, ele está na “contracorrente da Nova Hollywood”. Por que você afirma isto?

Não é somente Craven que me parece na contracorrente da Nova Hollywood. É também Romero e a maior parte dos cineastas que realizaram filmes de horror na esteira de A Noite dos Mortos-Vivos. Se estes filmes não são hollywoodianos, é primeiro por uma razão fatual: eles não foram realizados em Hollywood. Isto pode parecer bobo como resposta, mas é um ponto importante e muito raramente notado. Romero é um cineasta de Pittsburgh, e o enorme sucesso de A Noite dos Mortos-Vivos estimulou o desenvolvimento de produções locais, mais ou menos pobres, mas todas distantes dos padrões industriais hollywoodianos. Craven, nos anos 1970, é um cineasta nova-iorquino, não um cineasta hollywoodiano. Nesta época, o filme de horror estadunidense é comparável ao que se nomeou como garage rock nos anos 1960: multiplicação de produções locais longe dos centros de produção industriais. De resto, há outra razão, mais estética, que certamente vai melhor vos satisfazer. Os filmes da Nova Hollywood se apresentam frequentemente como passeios, errâncias virtualmente infinitas, em um mundo lacunar. Eles suscitam constantemente um sentimento de angústia, de ameaça surda, difusa. É a angústia da paranoia, a impressão de que o mundo no qual erramos é constituído de uma proliferação de signos que raramente convergem, cujo sentido não tem nada de evidente e deve ser, portanto, interpretado. Os filmes de horror literal, em compensação, não são paranoicos. A ameaça neles é clara, explícita. Não se trata de interpretar sem fim, mas de agir. Agir para evitar ser estuprado, mutilado, devorado, etc. Todavia, o que estou dizendo só vale para os filmes de horror de Craven. Os dois outros filmes que ele dirige nos anos 1970 (The Fireworks Woman, um pornô, e Tales That'll Tear Your Heart Out, um curta-metragem inacabado, nunca sonorizado) são muito mais próximos dos filmes da Nova Hollywood: são duas histórias de amor malogrado que dão lugar a errâncias infinitas.

Você afirma que esses dois filmes são filmes românticos...

Sim, depois de Aniversário Macabro, Craven tentou romper com o naturalismo. Eu acredito que ele nunca conseguiu fazê-lo totalmente: o naturalismo permaneceu um polo de seu cinema. Mas essa tentativa de ruptura, mesmo assim, é suficientemente nítida para indicar a direção que ele toma quando se distancia do naturalismo – para indicar o outro polo de seu cinema: o romantismo. Eu acredito que todos seus filmes oscilem entre esses dois polos.

O que você compreende por romantismo?

Entre os 36 filmes que Craven dirigiu (telefilmes e curtas-metragens inclusos), somente sete podem ser considerados como filmes de amor (entre esses sete: Her Pilgrim Soul, uma modernização notável de um dos grandes filmes de amor louco hollywoodianos, O Retrato de Jennie de William Dieterle). E nos outros filmes, ao menos naqueles em que ele teve controle, ele soube resistir às convenções e só introduzir uma intriga amorosa secundária quando ela era realmente necessária (e foi o caso unicamente em Shocker: 100 Mil Volts de Terror). Quando eu digo que todos seus filmes oscilam entre naturalismo e romantismo, não estou reduzindo, portanto, a noção de romantismo a uma exaltação do amor impossível. O que importa no amor impossível, o que o torna realmente uma experiência romântica, é que ele desfaz a realidade da vida cotidiana, dando-lhe a aparência de um sonho ou de um pesadelo do qual seria preciso acordar (a verdadeira vida está em outro lugar, neste mundo outro, “irreal”, onde os amantes poderiam se reencontrar caso conseguissem acordar), ao mesmo tempo em que ele conduz os amantes malogrados a cultivar suas subjetividades contra o mundo “real” ao qual eles estão expostos. Os amantes estão, portanto, presos entre dois infinitos: o infinito da errância no mundo “real”, e o infinito “irreal”, o infinito absoluto ao qual eles aspiram. E este vai-e-vem torna a ironia possível: o que é importante no mundo “real” parece derrisório em relação ao absoluto sonhado, mas aquilo ao que se aspira parece ilusório e vazio em relação à realidade tangível. Sensação de irrealidade do mundo, relação ambivalente ao infinito (ao mesmo tempo objeto de aspiração e objeto de temor), sentido de ironia – essas são três características do romantismo que eu encontro em inúmeros filmes de Craven, nos quais, por outro lado, ele não se importa com questões de amor: A Hora do Pesadelo, Shocker: 100 Mil Volts de Terror, O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger e A Sétima Alma. A isto se juntam duas outras características típicas do romantismo: o interesse pelo conto de fantasia e o gosto pela reflexividade.




Justamente, você afirma que os filmes de Wes Craven assinalam uma estrutura de conto de fantasia e que neles encontraríamos, modernizadas, certas figuras arquetípicas do conto para crianças. Por outro lado, não são filmes para crianças, e podemos nos perguntar como Craven pôde conciliar o conto de fantasia e o horror literal. Poderíamos qualificar seus filmes como contos cruéis, à maneira de Villiers de L'Isle-Adam?

Não é tão difícil conciliar conto de fadas e horror literal. Em um conto de fadas, os piores horrores são permitidos desde que tudo termine bem. No início da entrevista, eu fiz alusão aos combates que Craven realizou em Hollywood. Eu acabei de te dar um exemplo (a recusa da intriga amorosa convencional). E aqui um outro que talvez te surpreenda: Craven conseguiu impor que seus filmes de horror terminassem bem, numa época onde os produtores insistiam para que os assassinos ou os monstros (re)aparecessem no último minuto do filme. Nos anos 1980-1990, poucos cineastas puderam se libertar desta convenção. Não sei nem se haviam muitos que queriam isso. Craven queria porque ele tinha vontade de fazer contos de fantasia, e ele acabou conseguindo. Mas não sem problemas. Pensemos no final, completamente imbecil, imposto pelos produtores de Bênção Mortal, e principalmente no final de A Hora do Pesadelo, inventivo, mas contrário ao filme tal qual Craven o havia concebido. Ele queria que Nancy triunfasse sobre Freddy e saísse da casa da família, sequência que ele filmou de maneira muito original, muito romântica, e que podemos ver no bônus de DVD do filme. Quando faço referência aos contos de fantasia, não estou pensando nos “contos cruéis” do final do século XIX, mas nos contos de fadas redescobertos, estudados e por vezes imitados pelos românticos alemães. Os “contos cruéis” são influenciados pelas novelas de Edgar Poe. E Poe tinha consciência de ser o primeiro escritor de horror americano a ser totalmente liberto da influência europeia. Antes de ser cineasta, Craven era professor de letras. Não sei se ele conhecia os românticos alemães, mas sei que ele gostava de seu epígono americano, Nathaniel Hawthorne. Ele encontrou nas observações de Hawthorne os ecos de suas próprias preocupações, especialmente quanto ao tema da família – por exemplo, neste trecho de The House of the Seven Gables: “A alma precisa de ar, de um ar frequentemente mudado, frequentemente renovado. Mil influências mórbidas se acumulam em torno dos lares e poluem a vida que nós aqui levamos”. E ele certamente extraiu a ideia de Shocker: 100 Mil Volts de Terror de algumas páginas mais adiante nesse mesmo romance: “É um fato (...) que por meio da eletricidade o mundo material se tornou como um grande organismo nervoso, que se faz vibrar em um segundo sobre uma área de milhares de léguas? (...) Ou chegaremos a essa conclusão, que a substância mesma tende a desaparecer e que nós nos enganamos ao tomar o mundo por outra coisa além de um pensamento?” Mas não é difícil conciliar o horror literal e os contos de fadas; é muito mais difícil conciliá-lo com o universo nuançado de Hawthorne.

Um dos pontos mais notáveis de seu ensaio, no prolongamento daquilo que você acaba de dizer, é o lugar novo que você atribui à mise en abyme e à reflexividade. Na série Pânico, os personagens dissertam sobre a retórica dos slashers antes de serem selvagemente assassinados. Frequentemente considerou-se que isto fazia de Pânico um filme de horror pós-moderno. Mas quando você evoca essas questões, você toma cuidado de ligá-las ao romantismo e à sua potência irônica. Por que escolher, neste caso, fugir da noção de pós-modernismo? Por que, para você, Craven não é um pós-moderno?

Pânico e suas sequências foram recebidos (e talvez mesmo “vendidos”, mas disto não tenho certeza, pois seria necessário desenterrar o discurso promocional do filme para verificar) como filmes pós-modernos sob o argumento único da reflexividade: um filme de horror no qual os personagens falam de filmes de horror e de suas supostas regras. Mas os procedimentos de reflexividade não são próprios às obras de arte contemporâneas. Eles existem desde muito tempo (ao menos desde Don Quixote), e foram teorizados pelos românticos alemães. A categoria do romantismo me permitiu, no caso, evitar uma noção que não me parece muito clara. Por exemplo, a noção de pós-modernidade suporia uma história linear, na qual se pode delimitar claramente um período moderno e depois um período pós-moderno, em ruptura com o precedente? Ou será que o prefixo “pós” não quer dizer simplesmente que a história esperou seu desfecho com a modernidade, para que a pós-modernidade fosse um novo período que surge quando não há mais história? Neste caso, o pós-modernismo seria a versão cultural da ideologia do fim da história. Essa segunda maneira de compreender a pós-modernidade é interessante, mas não pode fornecer um parâmetro de análise pertinente para abordar os filmes de Craven. De fato, é evidente que estes pertencem a um período passado. A história do filme de horror não acabou com Pânico, e tanto melhor. Suponhamos então que a pós-modernidade seja um período que sucede a modernidade, e tentemos aplicar isto à história do filme de horror. No ensaio, proponho duas categorias históricas: o horror realista (dentro do qual o horror literal é somente uma das formas) e o horror lúdico, que começa com Halloween e o slasher. Se quisermos, podemos sempre dizer que o horror realista é o horror moderno e que o horror lúdico é o horror pós-moderno. Como não estou muito certo de que sei o que “pós-modernidade” quer dizer, me resguardo de fazê-lo, mas por que não? Neste caso, Pânico não é o primeiro filme de horror pós-moderno. Poderíamos até dizer que é o filme que contribuiu para acabar com o horror pós-moderno. Em todo caso, eu tento mostrar que Craven permaneceu fundamentalmente um realista, e que ele tentou, especialmente pelos contos de fadas, conciliar suas exigências realistas e o horror lúdico. O romantismo permite tal conciliação? Talvez não, mas ele permite, ao menos, uma confrontação irônica.

Entrevista publicada no site Diacritik em 22 de novembro de 2017 ( Emmanuel Levaufre : « Les films de Wes Craven oscillent tous entre naturalisme et romantisme » (diacritik.com) ). Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

Este homem não está morto, capítulo III




Por Cyrille Pernet

Nós sempre caímos no meio de uma caixa de bugigangas sem valor. É preciso pechinchar. Dez por quinze euros. Às vezes, pode-se descer até sete, oito euros a dezena. Isso é o máximo, e além disso os revendedores de segunda mão não são idiotas: eles sabem farejar o bom cliente. Quando voltamos para casa, sentimos vergonha por ter gastado nosso dinheiro de uma maneira tão absurda. Pensamos que ninguém nos compreenderá. E esperamos que as fitas estejam em bom estado.

Em 16 de fevereiro de 1983, se procuramos os dados precisos no La Saison Cinématographique, saiu Sexta-feira 13 - Parte III. O terceiro filme de uma série que contou com oito, nove ou doze, depois de um tempo essa questão perde seu sentido. O primeiro episódio lançou um gênero, uma moda de cinema: um bando de amigos saía de férias numa casa isolada, um maníaco os assassinava, um depois do outro. A última sobrevivente, sempre uma bela garota um pouco desnudada, conseguia prender o assassino no seu próprio jogo, apunhalá-lo ou nocauteá-lo, gritando de alívio. Na verdade, ele não estava verdadeiramente morto, e ele volta no próximo episódio. Quando eu coloquei essa fita no meu videocassete, eu me dei conta que as imagens do filme, ao envelhecer, tinham perdido suas cores e seus contornos. Que barras brancas estriavam a tela, enquanto um barulho de respiração me forçava a recuar para melhor ouvir os diálogos. E finalmente, que essa decomposição da imagem e do som funcionava inteiramente como um elemento narrativo, do mesmo jeito que tal ou tal reviravolta da história. Pois os personagem que se debatiam diante do assassino iriam morrer, eles também. E da mesma maneira, eles iriam apodrecer, se tornar esqueletos. O filme não tinha, na origem, sido concebido para essa tiragem em VHS. Contudo, ele se realizava, encontrava seu sentido, sua concretização, através de um elemento exterior, essa versão degradada dele mesmo.

No verso da caixa, uma ficha técnica enumerava uma lista de nomes sem significado. O realizador, Joseph Zito, o roteirista, Barney Cohen, o produtor, o compositor (personagem importante: nesse gênero de filmes, o efeito de medo se resume, na metade das vezes, a um lento travelling acompanhado de violinos e sintetizadores), etc. Um sentimento de melancolia nascia dessa leitura. O tempo tinha passado, essas pessoas tinham envelhecido, alguns estavam talvez doentes, mortos... Evidentemente, isso é igual para todos os filmes. Há sempre uma equipe técnica, uma equipe artística. Mas os filmes de horror são aqueles que melhor se prestam a esse trabalho mental. Vemos ali rapazes e moças que morrem uns depois dos outros. Não são grandes atores. Não nos lembramos mais deles depois que eles terminaram de dar seus textos. Quando eles retornam na tela, nos perguntamos: "Quem é esse ai já?" Mas talvez eles sejam mal-dirigidos. E depois, esse não é o gênero de papel que permite mostrar a extensão do seu talento. O mais triste é que esses atores tenham sido suficientemente burros, descuidados ou mal-aconselhados para se comprometerem com filmes tão estúpidos. Eles se chamam Dana Kimmel, Richard Brooker, Rachel Howard, Larry Zerner, Tracie Savage, David Katins, Catherine Parks, Paul Kratka, Jeffrey Rogers... Quando o assassino de Sexta-feira 13 - Parte III comete um assassinato, ele mata assim realmente alguém, alguma coisa. Uma carreira, uma esperança de sucesso. Catherine Parks não fez carreira. Paul Kratka muito menos. Nem os outros. Degolando-os, o assassino os privou de tudo. Eles sentiram a força escapar, a energia que eles pensavam em usar para tornarem-se Estrelas. Eles acreditavam que poderiam pegar os estúdios na sua própria armadilha, mesmo que eles soubessem que não havia lugar para todo mundo, eles aceitaram correr o risco. Mas eles ignoraram que, na realidade, não havia lugar para ninguém. E eles se deixaram ludibriar. Às vezes, de tempos em tempos, pois cada regra tem suas exceções, alguém consegue escapar desse status de carne que se utiliza antes que ela estrague. Meg Ryan começou interpretando uma loira apavorada em Amityville 3 - O demônio. Ali o assassino de Sexta-feira 13 era substituído por um exército de espectros que assombrava uma velha casa. A pobre Meg tinha se esforçado muito para permanecer com vida para além da primeira meia-hora. Finalmente, ela conseguiu. Não se sabe porque, mas ela ainda está entre nós. Talvez porque ela tivesse mais força, mais resistência que os outros. Lorie Loughlin, a atriz principal de Amityville 3, não teve essa felicidade. Quando a garota interpretada por Lorie imitava o horror gritando no cenário de papelão, onde ninguém parecia ouvi-la, ela estava assim realmente aterrorizada com a ideia de que a outra Lorie, a atriz, fosse morrer para sempre, sob os golpes de uma real maldição, de um real perigo, aquele que lhe fazia correr a sua ausência de talento, de inteligência, de habilidade ou de sorte, simplesmente.




O filme avança. De repente, nos surpreendemos falando sozinhos. Tu que tens o papel do primeiro cadáver, eu te vi correr gritando, tropeçar, levantar, levar uma machadada nas costas, te imobilizar depois de alguns gemidos e tentar respirar sem fazer ruído enquanto o realizador se perguntava se se via o suficiente das tuas coxas cobertas de sangue. Repassando o começo do filme, eu vi teu namoradinho, ele parecia bem abatido. O que tu fizeste para obter esse papel? O que tu fizeste para servir de carne fresca para um assassino que simboliza tão bem a figura paterna, grande, forte, com facas enormes, que te castigou tão duramente, quando, no décimo quinto minuto, teu personagem aceita, enfim, perder a virgindade (tu representas as virgens?! tu?!). Pois as pessoas que vemos nesses filmes, queríamos saber por que elas foram engajadas. Sim, por que estes e não outros, que teriam igualmente feito o serviço? Procuramos uma resposta, pensamos que eles fizeram tudo, suportaram tudo para figurar na tela. Logo a imagem se enche de corpos perfeitos mas impuros, e de uma beleza má, malsã. Essa não é, certamente, uma imagem fiel à realidade (não consigo imaginar um produtor apostando milhões de dólares em atores encontrados na cama de um diretor de casting), mas isso não tem importância. Nós estamos na fantasia, a fantasia de Hollywwod.

Os créditos de Sexta-feira 13 - Parte III dão o espetáculo do fracasso, da decepção, da derrota, do sofrimento, da morte. Essa é uma das coisas que restam do cinema: um grito, uma manifestação de raiva, de desespero, da parte daqueles que não vimos, não escutamos, não amamos. Pois o cinema lhes dá também a possibilidade de uma revanche: quando tudo está acabado, anos depois, ele lhes concede, sobre uma ficha técnica ou artística, a prova de que apesar de tudo eles continuam existindo, que eles estão lá, que eles ganharam, venceram o silêncio. Que eles trabalharam para nós, para nós hoje. E esses atores de videocassete não param de se oferecer na sua beleza, sua força, sua juventude. Finalmente, eles não podem morrer. Porque sempre haverá um cinéfilo que falará deles.

Agradecimentos a Christian Mariotte

Cet homme n'est pas mort, chapitre III foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 27, julho/agosto/setembro de 2004. Tradução: Miguel Haoni.

Quando o desejo descarrila…




Por Frédéric Majour

Como é possível? Como eu pude esquecer um plano desses, um plano sublime, situado no meio de A General, o mais bonito dos filmes de Buster Keaton, no momento em que o herói, perdido em território inimigo, se encontra escondido embaixo da mesa dos oficiais nortistas e que, através de um furo na toalha de mesa, nascido do contato imprudente de um charuto, ele descobre, estupefato, o rosto de sua amada? Como eu pude esquecer uma vez que ele constitui o próprio coração da obra, o ponto para o qual converge toda a primeira parte? Essa questão me consome desde que eu revi o filme – a primeira vez, já fazia uns quinze anos –, pelo quão inconcebível me parece que a minha memória não tenha podido reter o que justifica ao mesmo tempo o movimento da obra e a simetria de sua construção, essa inacreditável ida e vinda ferroviária onde se inserem mil peripécias (e inúmeras gags). A tal ponto que eu cheguei à única conclusão possível: esse plano, bem, eu nunca tinha visto. Não que ele tivesse me passado despercebido na época, carregado pelo ritmo frenético da mise en scène, mas porque ele havia simplesmente desaparecido da primeira versão que eu vi. As provas? Eu apresentarei duas. A primeira, infalível, é que existe uma cópia na qual a cena não aparece em sua totalidade (e, de resto, foi a partir desta que L'Avant-Scène Cinéma estabeleceu sua montagem do filme): se pode ver unicamente Buster encurralado entre as pernas dos militares, escutando esses últimos refinarem sua estratégia, depois esperando pacientemente que o caminho fique livre para escapar. A segunda, talvez menos convincente mas infinitamente mais sedutora, se encontra em um texto de Louise Brooks: "O rosto mais bonito de um homem que eu conheci", escreveu ela, "eu sempre pensei desde a infância, era o de Buster Keaton, e foi em 1962 apenas que eu tive a ocasião de lhe dizer. Nós estávamos em seu apartamento no hotel Sheraton em Rochester, onde ele filmava na época um filme publicitário para a Kodak. Eu lhe falei do plano em A General em que ele se esconde embaixo de uma mesa. 'Você estava tão terrivelmente bonito, Buster, sob essa iluminação trágica, em uma tal ruptura com sua personagem cômica, que no seu lugar eu teria cortado esse plano, eu o teria retirado do filme'"[1]. Se Louise Brooks se atenta apenas ao físico de Buster Keaton, esse famoso rosto marmóreo – "lincolniano" dizia James Agee – cuja beleza grave tanto fascinou as mulheres como também os homens, aliás, e não menciona a imagem do buraco na toalha, é que, presumivelmente, ela também não a havia jamais visto. Mas sobretudo ela aponta para o que finalmente permanece o estranho paradoxo do filme e, de maneira mais geral, de toda a obra keatoniana: o casamento insólito da beleza e do burlesco. Aquilo que diz em suma Louise Brooks é que beleza demais (a da personagem mas também a da obra) pode prejudicar a eficácia do burlesco. Foi este, aliás, o dilema colocado à maioria dos grandes comediantes uma vez que eles passaram não apenas do mudo ao falado, mas sobretudo do curta ao longa-metragem. Eu continuo persuadido de que as "duas bobinas" representam a duração ideal do cinema burlesco – como prova, eu nunca ri tanto quando nos pequenos filmes de Carlitos ou de O Gordo e o Magro – e que, nos longas-metragens, a diluição frequente de gags, tanto no tempo quanto no espaço, confere à obra uma dimensão tão onírica que o riso se encontra frequentemente suspenso (nós podemos assim conceber perfeitamente A General como um longo sonho de um pobre maquinista, sobre quem recai, erroneamente, a suspeita de ser um covarde, e imaginando-se, por consequência, realizando os atos mais heroicos). Daí a seguinte hipótese: se a imagem do herói, descobrindo num medalhão o rosto daquela que ele ama, não aparece nas cópias antigas de A General, é porque essa imagem deveria, para alguns, romper muito violentamente com a dinâmica do filme, em outras palavras, com sua força cômica, movimento já ameaçado pelos closes "trágicos" de Buster encolhido embaixo da mesa, onde pela primeira (e única) vez nós o vemos descabelado e com o rosto cansado, tal como um palhaço demaquilado, um excesso de realismo que só poderia alterar a comicidade da situação. Resta, no entanto, que é essa discordância entre o trágico do personagem e o cômico da sua posição, no mínimo desconfortável, que constitui toda a força da cena e por isso mesmo sua inigualável beleza. O que caracteriza, assim, o gênio de Keaton é que nele a poética da gag confina sempre à pura poesia. Não a poesia maliciosa de Chaplin, nem aquela, lunar, de um Langdon, mas uma poesia que poderia ser qualificada como "lírica", na qual se misturam, como nas mais belas odes gregas, a celebração do feito (as proezas do herói), nobreza dos sentimentos (o amor como motivação) e rigor da composição (a geometria perfeita do conjunto). E é justamente nos seus longas-metragens que uma tal poesia parece melhor se exprimir – assim, no filme que nós discutimos, esse plano maravilhoso em que Buster, sentado na biela da sua locomotiva, depois de todos, exército e noiva, terem-no rejeitado, se encontra conduzido pelo movimento das rodas, subindo e descendo como em um carrossel para crianças (imagem, dessa vez langdoniana, da imaturidade inicial do personagem que o filme se encarregará de virilizar posteriormente) – sob o risco de algumas vezes ter que renunciar a algumas cenas quando a força poética que emana delas ameaça a homogeneidade do filme (assim, n'O Navegante, Keaton teve que cortar a contragosto sua melhor gag que o mostrava vestindo um escafandro, com uma estrela do mar agarrada ao seu peito, organizando embaixo d'água a circulação dos peixes).




Que dizer, então, que essa imagem do olho é o genuíno "ponto cego" do filme? Sua ausência em algumas cópias seria simplesmente pela sua incongruência? Não haveria outra coisa que explicasse ao mesmo tempo que, numa época, tenham querido se livrar dela e que, tendo reaparecido hoje, ela nos desconcerte a esse ponto? De fato, é claro que é principalmente a carga erótica produzida por uma tal imagem que causa problemas num gênero – o burlesco – em que o sexo é, como se diz, sempre recalcado (como a morte, aliás, o que explicaria o incômodo que sentimos igualmente, na batalha final, diante de todos esses soldados caindo um depois do outro), ao passo que, em Keaton, ele é, ao contrário, bem presente, mas frequentemente dissimulado sob as feições sutis (e sem nenhuma inocência) do amor cavalheiresco. Pois o que se vê nesse plano? Um olho cercado de preto (as bordas queimadas do buraco) fitando clandestinamente seu objeto de desejo. Fitando-o com uma intensidade tão febril (a personagem está encharcada como uma sopa), tão ardente, que ele parece ser a causa, mais que o charuto, do buraco pelo qual o homem pode enfim observar, em completa impunidade, aquela que ele cobiça já há muito tempo. Além da simples pulsão escópica, é, portanto, uma outra pulsão que emerge desse olho de ciclope, colocado no centro da imagem e cujas figuras ao redor (as manchas na toalha de mesa) sugerem o traçado de um misteriosa cartografia, a do desejo, certamente: o desejo do herói, em primeiro lugar, tão forte, que ele deve se morder para controlá-lo; o desejo do espectador, em seguida, mas sobre o qual não nos demoraremos, já que a analogia entre desejo do espectador e voyeurismo se tornou hoje a “tarte à la crème[2]” (se podemos dizê-lo a respeito de um filme burlesco) do discurso crítico; o desejo da narrativa, enfim, aquele que alimenta toda a dinâmica do filme, pelo menos na sua primeira metade, e isso até o ápice que representa, para o herói, a "noite de amor” passada com a sua amada. Pois, no plano narrativo, é certamente o ponto alto do filme. Diferente de outras obras típicas do burlesco, como por exemplo Sete Oportunidades, fundadas na progressão da narrativa até a apoteose final, A General é, literalmente, dobrada em dois. A apoteose se situa no meio: a primeira parte – uma vez lançada a "locomotiva" da narrativa – segue o movimento raivoso de uma pulsão que nada pode parar. Enredado na estrada (de ferro) do desejo, Buster supera todos os obstáculos. Ele vai e vem, corre em todos os sentidos, como que dominado por uma excitação incontrolável. Pela interrupção que ele produz na dinâmica do filme, o plano do olho vem então marcar o fim do primeiro movimento, com a tensão atingindo aqui seu paroxismo, um tipo de clímax que não tem nada a ver com o momento de bravura que é representado, no finale, pela grande batalha no rio Rock. Isso equivale a dizer que o plano prefigura também o relaxamento da pulsão, o que nos é revelado, em seguida, pela sequência da floresta onde o homem pode finalmente abraçar a mulher que ele acabou de libertar. A passagem que mostra os dois amantes lutando contra uma armadilha de caçador evoca quase sem disfarces o ato sexual. Mas ela antecipa também o segundo movimento: o retorno à norma. Se a primeira parte celebrava em Buster seu espírito individualista, seu gosto pela liberdade, à imagem do artista inteiramente dedicado a sua obra, sob o risco de por vezes se retirar do mundo (ele não vê a guerra ao redor dele), a segunda é uma verdadeira invocação da ordem, uma marcha triunfal para a reintegração. Buster é capturado pelas convenções. Por um atalho aterrorizante, a "General" torna-se o teatro das piores servidões; a rotina da vida a dois, quando se é menos atento ao outro (Buster borrifa duas vezes a mulher sem perceber), quando se discute por "ninharias" e, por vezes, o desejo de beijar o outro se confunde com o de estrangulá-lo. O dever do heroísmo, quando alguém deve enfrentar todos os perigos, mesmo os mais absurdos (poucos filmes souberam evocar, como esse, em poucos planos todo o absurdo da guerra), não apenas para merecer o amor do outro, mas também para existir aos olhos dos outros; as amarras do conformismo, quando é preciso ceder às regras da comunidade para não se sentir excluído: miséria da vida bem alinhada. Se Keaton transformou a narrativa nortista (The Great Locomotive Chase) em que o filme se inspira numa obra "sulista", não é tanto para aderir à causa sulista que para fazer "secessão", ou seja, para marcar sua ruptura com um sistema, aquele alienante da normalização, sabendo além disso que tal sistema sempre terá a última palavra. No final do filme, Buster entrou definitivamente na linha: ele veste um uniforme, a cenoura (social) que a mulher brandia na sua sua frente desde o início e à qual ele acabou por se agarrar. Agora é um homem, um verdadeiro, em outras palavras, um homem como os outros, um homem entre os outros, anônimo e portanto perfeitamente alinhado. Mas não é também a imagem do artista triturado pelo sistema? Não podemos deixar de ver esse retorno a uma vida formatada como uma premonição do próprio destino de Keaton (suas decepções artísticas e seus infortúnios conjugais) que, depois de explorar a máquina hollywoodiana, esbanjando o dinheiro dos produtores, não hesitando em precipitar, pela "beleza do gesto", uma verdadeira locomotiva do alto de uma ponte, foi obrigado, ele também, a exemplo de um Stroheim, a entrar na linha. É por isso que não é possível interpretar como a imagem mesma da felicidade esse último plano onde se vê o herói saudando com um gesto repetido e mecânico os soldados que passam na sua frente enquanto ele beija a sua prometida. Isso, um happy end? Eu desconheço gag mais desesperada!

[1] Louise Brooks, "Buster Keaton", In. Double Exposure, Roddy McDowall, 1966.
[2] NdT: ”tarte à la crème” é literalmente uma torta de creme (usada em diversas gags do cinema burlesco) e também uma expressão corrente que significa que algo é um lugar-comum.

Quand le désir déraille... foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 29, janeiro/fevereiro/março de 2005. Tradução: Roberta Pedrosa.

O mármore sangrou




Sobre Uma Visita ao Louvre de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet

Por Jean-Charles Fitoussi

"A vida! A vida! Eu tinha apenas essa palavra na boca. Eu quero queimar o Louvre, pobre coitado! É preciso ir ao Louvre pela natureza e voltar à natureza pelo Louvre… Mas Zola me agarrou muito bem em A Obra[1], talvez você não se lembre disso, quando ele berra : 'Ah! a vida! a vida! senti-la e restituí-la em sua realidade, amá-la por ela, ver nela a única beleza verdadeira, eterna e mutável….'"

Joaquim Gasquet, Cézanne.

Se erroneamente você decide que quer, de acordo com a expressão corrente, "contar" o filme, ele não terá ares de nada: os quadros do Louvre em plano fixo, com uma voz em off que os comenta, enquadrados por duas panorâmicas e pontuados por um vista do Sena desde o museu. Nós não teríamos dito nada do filme. Ao cliente que, irreverente, teria o bom humor de retrucar "vá diretamente ao Louvre, com um guia", nós precisaríamos então que o guia, aqui, é Cézanne, pelo menos do modo que nos quis restituir Joaquim Gasquet. Mas nós estaríamos entrando numa rua sem saída se nos deixássemos levar por esse caminho. Esse filme, como todos os grandes filmes, não (se) conta: ele faz ver, ele nos dá o que ver, ele faz ouvir, ele alimenta os olhos, as orelhas, o espírito, o coração - de uma só vez, e é tudo um. Ou bem, se você não quer desistir, escute, sim, esse filme conta alguma coisa. Ele conta o prazer que existe em ver. E, portanto, o prazer que existe em viver - desde que nós saibamos ver. Sim, nada menos do que a alegria de estar no mundo, essa alegria de viver serve de título a um romance de Zola mas que transborda e transbordará sempre, nessa simplicidade mesma, irredutível, misteriosa, impensável, tudo o que um escritor jamais será capaz de dizer sobre ela - alegria de viver, alegria de estar neste mundo, alegria de simplesmente ser, imerso, submerso de mundo, satisfação pelo simples fato da realidade existir, tal qual ela é, isto é, rica de mil matérias, de mil cores, mil nuances. Tudo isso unicamente com os quadros (e uma escultura) do Louvre filmados em planos fixos, com a voz off que os comenta e em apenas quarenta e sete minutos. Mas ainda é preciso abrir amplamente os ouvidos e os olhos, é a isso que se dedica a arte cinematográfica dos Straub. Como em todos os seus filmes, mas de maneira ainda mais explícita aqui, eles trabalham aumentando, dilatando, afinando a percepção de seus espectadores, apostando no fato de que o bem estar (no mundo, na Cité[2]) passa pelo ver bem, pelo entender bem, em síntese pelo sentir bem (o mundo, a Cité) : se nós o fazemos mal, é porque percebemos mal - assim, parodiando um título de Beckett : mal visto, mal feito. Aqui, estimulados pela voz de Cézanne transmitida por Gasquet e dita por Julie Koltai, nossos olhos discernem a que ponto, não, Ingres "não tem sangue", que "por ter querido tanto pintar a virgem ideal, ele não pintou mais corpo algum", que David, "mau pintor", "matou a pintura", mas que Tintoretto é o pintor, que Delacroix "ainda tem a paleta mais bonita da França, e [que] ninguém, sob o nosso céu (...) teve mais do que ele o charme e o patético ao mesmo tempo, a vibração da cor", que Courbet trouxe "o odor das folhas molhadas, as paredes musgosas da floresta, (...) o murmúrio das chuvas, a sombra dos troncos, o caminho do sol sob as árvores, o mar; e a neve, [que] ele pintou a neve como ninguém." Nossas orelhas entendem, e nossos olhos, então, veem: a escuta aprofundou a vista, a orelha dirigiu o olho. Paradoxalmente, a fixidez absoluta dos planos, que poderiam aparecer como a negação mesma do cinematógrafo – não há o mínimo evento cinético nesses planos, nem movimento nem variação de luz - essa fixidez trazida a seu ponto culminante termina por se animar. Pois, por um lado, nossos olhos percorrem a tela, viajam no quadro no ecrã; por outro, e principalmente, quando o quadro vibra, ventaneia, quando "os volumes torcem e se acomodam", quando "as asas batem, os seios se inflam", quando "o sangue pulsa, circula, canta dentro das pernas", em resumo quando a obra vive, o plano cinematográfico herda essa vida, se anima pelo movimento próprio da obra. Realizando a vontade do pintor, formulada em seu Cézanne de 1989, os Straub conseguem novamente aqui não ser nada mais que uma "placa sensível", um "receptáculo de sensações", o absoluto da transparência, unindo-se ao que filmam, e que eles revelam na sua verdade nua. Os quadros se apresentam na nossa frente como no juízo final, e aqueles que, vitoriosos, "encantam todos os sentidos", esses se desprendem por eles mesmos de todos aqueles em que o artista, preocupado demais com o seu eu, deixou infiltrar apenas a sua pequenez. Nós vemos: a evidência da beleza, concebida como sensação da verdade, plenitude da sensação. Um estado de clarividência, dizia ainda Cézanne: estamos nele.




Entrando na sala de cinema, é no olho do pintor que nós entramos - e, quem sabe, em seu espírito. Nós vemos com ele, nós sentimentos como ele: por qual curioso processo de hibridização um texto escrito por Gasquet se lembrando o mais fielmente que ele pode das palavras de Cézanne ("eu não inventarei nada, – além da ordem em que as apresento" escreveu ele em seu prefácio), pronunciado pela voz de Julie Koltai no timbre envolvente trabalhado pelo ritmo dos Straub, consegue ressuscitar uma visão, um pensamento? É esse o mistério do filme, e um de seus milagres. Para bem ver no museu, é preciso permanecer muito tempo de frente à obra, e, principalmente, pegar um lápis e desenhar (meu professor de artes plásticas no colégio, o artista plástico Jean-Pierre Le Brun, nos dizia "desenhar é gravar na sua cabeça.") No entanto, sem essa mediação as grandes obras aqui filmadas se gravam na nossa cabeça – e nós saímos da sala escura totalmente inebriados por elas: pronto, de agora em diante elas fazem parte de nós. Outro milagre. Quanto aos outros, os quadros que são apenas lugar-comum, idealidades, espírito de sistema, literatura (outra palavra para porcaria, dizia Artaud) ou ainda aqueles que, traídos pelas cores ruins vendidas pelos maus farmacêuticos, se desvanecem ("não sobrará, um dia, mais nada… Se você tiver visto o mar verde, o céu verde."), eis que nos livramos deles. O que falta a esses pífios quadros de "falsos pintores"? Eles são pobres de real. O eu passa neles antes do mundo. Fora, então, aqueles que, como ouvimos no Cézanne de 1989, "não veem essa árvore, o seu rosto, esse cachorro, mas a árvore, o rosto e o cachorro." Fora Ingres, e fora David, que no seu Assassinato de Marat "pensava naquilo que diriam do pintor e não naquilo que pensaríamos de Marat." Esse filme é um apocalipse: cabeças rolam. E se a Vitória de Samothrace, sendo feita toda de mármore, decapitada, sangrara, esses pintores ruins viveram sem sangue: mortos-vivos. Mas glória aos Veronese, aos Giorgione, aos Delacroix, aos Courbet, cujas telas recuperam a suavidade, a felicidade do que existe para sempre, aqueles que fazem chegar "a imensidão, a torrente do mundo em um pequeno polegar de matéria", aqueles que, no fundo – e aqui o Cézanne de Gasquet não está longe do Nietzsche do Caso Wagner – nos fazem melhores: "Essas rosas pálidas, essas almofadas grosseiras, esta babouche, toda esta limpidez, eu não sei, entra nos seus olhos como um copo de vinho na garganta, e ficamos imediatamente todos embriagados. Nós não sabemos como, mas nós nos sentimos mais leves. Essas nuances aliviam e purificam. Se eu tivesse cometido uma má ação, parece-me que eu iria diante deles para me endireitar." Percebemos, enfim, todo o amor do real, toda a alegria de viver com os quais esses planos foram preenchidos? Nós nunca sublinharemos o suficiente o quanto a famosa "resistência" straubiana se fundamenta em uma aprovação. A potência de seu "Não" não é nada mais que a consequência direta da imensidão de seu "Sim". Aos antípodas de todo romantismo, é em vão que se procurará, em suas recusas, qualquer repugnância pela vida, ou outra inclinação ao spleen. É sempre, tanto para eles quanto para Cézanne, como para o casal reconciliado de Von Heute auf Morgen (Do dia ao amanhã[3]), o aqui que é preferível a qualquer outro lugar. Melhor, é esse temperamento embotado levado em direção às regiões nubladas e embaçadas do irreal que se trata sempre de combater: apenas o real conta, apenas as coisas que existem importam. E se é preciso "queimar o Louvre", é porque ele fracassa em glorificar a existência, é porque ele arruína mais do que revela os tesouros de vida que ele contém. O não se endereça aos negadores do real.




Ainda mais uma palavra. Uma hipótese. Esta Visita ao Louvre em torno de 1900 não assina a certidão de nascimento do… cinematógrafo? Cézanne morre; dez anos depois, Griffith filma O Nascimento de uma Nação. Veja, diz Cézanne, como a cabeça perdida da Vitória de Samothrace já está totalmente contida no restante do corpo: nós vemos uma parte, nós podemos imaginar o todo. Nascimento do enquadramento, nascimento do fora-de-campo: "Eu não preciso ver a cabeça para imaginar o olhar". Melhor, esta estátua "é todo um povo, um momento heroico na vida de um povo", seu sangue "está em movimento, ele é o movimento de toda mulher, de toda estátua, de toda a Grécia": desenquadrando a estátua, os Straub, sobre o fundo de uma parede de pedras, nos fazem imaginar esse povo por trás de Vitória, nos fazem vê-lo inclusive na sua ausência – nascimento do cinema dito moderno, de um fora-de-campo nas profundezas do próprio campo. Enfim essa fonte que Ingres não soube pintar, essa fonte que "uma vez que ela é a fonte deveria sair da água, da rocha, das folhas" e que nos é apresentada pela má pintura no começo do filme, essa fonte tal como Cézanne a deseja, onde, dessa vez, os elementos se interpenetram, onde a rocha trocará sua umidade pedregosa com o mármore da carne molhada, essa fonte... não é o plano último que fecha a obra, panorâmica no vale de Buti? – o que faria desta Visita ao Louvre não apenas o último componente de um tríptico inaugurado por Operários, Camponeses (tríptico da transfiguração introduzido e concluído pela cantata de Bach Mit Fried und Freud ich fahr dahin: "Uma luz incompreensível preenche o círculo inteiro das terras." ), mas o manifesto do Cinematógrafo Lumière.

[1] NdT: Romance de Émile Zola publicado em 1886 (em francês L'Oeuvre).
[2] NdT: Maneira que os franceses se referem ao centro antigo de algumas cidades; também as cidades antigas administradas pelas próprias pessoas que moravam ali, os cidadãos
[3] NdT: Ópera de Arnold Schoenberg sem tradução para o português.

Le marbre a saigné foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 26, abril/maio/junho de 2004. Tradução: Roberta Pedrosa.

Hoje, Mods




Sobre Mods de Serge Bozon

Por Michel Delahaye

I

Mods é outra coisa.

II

Mods é um filme que não tem medo. Ele avança nu, sem efeitos, para nos deixar sem defesa.

Nada a esperar desse filme além do inesperado, enquanto se instala, de ato em ato, esta pulsação que não nos abandonará mais.

Mods não tem nada da máquina habitual de expressão. Tudo nele se combina seguindo a lei de um certo código que nos abre uma a uma a sequência das portas, nosso direito de passagem sendo assim regulado.

III

Chegamos no Alojamento. É normal. Estamos aí para isso. Como esses militares, convocados pela carta da Governanta Anna para ajudar seu irmão, subitamente imobilizado em uma dolência aparentemente inalterável.

No Alojamento, nós realizamos errâncias muito precisas, uma espécie de exploração de inter-vidas onde acontecem coisas que procedem certamente de uma regra, mas que não nos é dada de imediato. Não por isso estamos no escuro, pois as figuras do real existem em uma espécie de longo dia onde a noite não tem lugar. Mods, que é claro, opera somente no manifesto.

IV

O alojamento é composto de grupos (estudantes) que se cruzam sem que necessariamente se conheçam bem. Os irmãos militares passam por eles como eles passam por todos, educadamente identificando-se como sendo, quanto ao seu ofício, militares. A atitude deles, além disso, parece lógica, pois cada um, no Alojamento, reivindica aparentemente uma identidade clara.

No centro de tudo, a Governanta Anna, que se encarregou – descobrimos – de duas outras tarefas: de um lado se dedicar ao doentinho, de outro lado dar cursos de administração ao homem que deveria administrar mas que não sabe como fazê-lo. A governanta sabe. Ela tem altivez e doçura. Ela faz com que cada ser siga seu rumo.

Nas margens do Alojamento e de seu longo dia, há o terraço e sua noite. Ali, há uma mulher que cruza com os militares. Ela é professora, é seu ofício. Ela viveu, é seu estatuto, e ela tem sua beleza como se dela possuísse o diploma. Um e depois o outro se apaixonam por ela, mas, não importa o que eles digam, ela acaba sempre por tratá-los como caipiras.

Há também, um pouco em todos os lugares (vindos eles também para o doentinho), a mesma banda de errantes de sempre, que passam sem passar, mas ostentando sempre a mesma aparência (retirada de uma imagem dos anos sessenta), com esse perpétuo desânimo do qual eles fornecem pausadamente a rigorosa medida.




V

O que une realmente os lugares e seus blocos é o doentinho.

Ele está deitado porque está doente ou doente porque está deitado? Diríamos que ele está ali para estar ali, para fazer com que os outros estejam ali (e não estejam necessariamente onde eles deveriam estar), e talvez o alojamento esperasse desde sempre que ele viesse para assegurá-lo de seu ser.

O que ele tem, de fato? De verdade? Anemia? Antes anomia. Esse estado onde, privado de regras, privado ao mesmo tempo de espaço e de limite, privado de lastro, o ser sente como se flutuasse em uma bolha de vazio, inelutavelmente aspirado na direção de um polo ou de outro, da extrema violência ou do extremo hebetismo.

Ali, prostrado, ele fascina. Ele atrai tudo para ele. Sua passividade ativa os outros, sua imobilidade os move. Da desordem imóvel onde ele estagna parece surgir uma nova ordem.

Move-se. Busca-se. Encontram-se as cartas. Uma mulher lhes escreveu. É para rejeitá-lo, e sua última carta se compõe de um único e grande “NÃO”. Então, está tudo muito bem em ajudá-lo, mas a quem e ao quê responsabilizar?

Há o doutor. Seu ofício é saber. Ele tem um jaleco branco. Ele tem muita confiança e tranquiliza todo mundo decretando, finalmente, a medida radical: colocar em quarentena o alojamento. A partir desse momento, quietude e inquietude se fundem. Tudo repousa. Tudo fermenta.

VI

Seria tudo isso facilmente dedutível? Não totalmente, porque acontece de os momentos coreográficos (das canções americanas de meados dos anos sessenta) chegarem sempre no momento certo para nos fazer oscilar sobre outros planos além daquele em que estamos.

Essas pequenas coreografias não estão ali para centralizar (em toda grande obra o centro está em todo lugar), pois esses veículos da urgência se arranjam para surgir no canto de um espaço escolhido, com o único propósito de nos obrigar a uma exploração acelerada de todos os outros espaços do filme, aqueles de fora como aqueles de dentro. Elas parecem sair da história somente para melhor nos fazer reentrar nela, e, além disso, se desdobram para condensar e exorcizar a tensão afetiva e rítmica que, desde o início, faz palpitar o filme.

Mantendo-se à distância dos grandes momentos do gênero, essas danças de sinais se assemelhariam quase a esses gestuais inocentemente perversos pelos quais as crianças maliciosas, nos trazendo para dentro do seu jogo, querem ou nos fazer raiva ou nos revelar um segredo magnífico.

Seja como for, estamos aí no cerne de um charme do qual será preciso atravessar a passagem estreita. Somos tomados pela arte de um outro algoritmo, antigo instrumento de uma mídia esquecida (do qual hoje só sabemos utilizar os signos exteriores): a poesia. É a poesia que move Mods.

VII

A poesia?

É a exploração da realidade pelas vias mais normais que a normalidade e mais evidentes que a evidência.

É o fato de aproximar aquilo que é daquilo que é, por outros meios além da sucessão descritiva, da lógica associativa ou da lei da causalidade.

É o fato de produzir, em vista de um sentido, certas associações harmônicas – a menos que estabeleçamos previamente um sentido cujos harmônicos serão o fundamento de outros sentidos.

A poesia é mais ainda, mas uma coisa é sempre necessária: que a realidade, nela como aliás em todo lugar, seja primeiro percebida em toda sua integralidade, e o patente com o latente. Pois, se por desventura a realidade tivesse sido previamente esvaziada de seu sentido, então, exangue, ele não poderia mais gerar outra coisa além do que ela gera hoje: uma réplica cansada de sombras frouxas.




VIII

Mods enfrenta o perigo de existir e de fazer existir, e tudo nele foi magnificamente medido de acordo com o metro mais justo. Vê-se claramente na maneira como a obra adequa seu passo ao tempo de uma hora. A duração que lhe permite funcionar só lhe permite funcionar na medida exata de sua conclusão. A duração concluída, o filme está completo.

Antes, foi preciso que o doentinho, no impulso da quinta e última coreografia, entabulasse sua saída.

Uma vez que a menina do “NÃO” é reconduzida à narrativa pelo assobio que se ouve de sua canção, a dança de ruptura pode acontecer. Ela vai de certa forma desenfeitiçar o menino de seu encantamento e fazer com que ele aceite sua salvação, com que ele possa enfim dizer um “SIM”. Diríamos, então, que ele se desamarrota e se desdobra, que ele sai de um casulo onde ele teria feito uma longa viagem de aprendizagem. Salvo dos males, ele se desdobra. Ele se levanta e anda.

IX

Saídos do Alojamento, o charme do filme continua a operar sobre nós. Como acontece quando conseguimos rever um desses divertimentos que produzia o cinema outrora.

Esses filmes eram tão cheios de pequenos tudos, feitos de um turbilhão de grandes nadas. Planávamos na gratuidade de um mundo belamente falso, frequentemente colorido de arrogância e de um cinismo de bom tom. Era maravilhoso.

Inútil citar algo. Seria preciso somente dizer que Mods é, ele também, da espécie dos grandes divertimentos, e precisar que, pertencendo a esse mundo e a esse tempo, ele se reservou de toda conivência com esse espírito de ironia que podíamos certamente se permitir outrora, mas que hoje em dia, no banho do niilismo ambiente, não poderíamos exercer sem falseá-lo.

Mods faz outra coisa. Enquanto recomeça sobre novas bases, ele retoma o gênero do zero e se dá ao luxo de recriá-lo. Milagre consumado. É maravilhoso. Mods é um filme inaugural.

X

Contudo, esse filme de hoje não parece vir de um tempo ou de um país preciso. Como é possível, então, que ele nos faça sentir em casa?

É que Mods nos reata a qualquer coisa de enterrado, das raízes, dos sentimentos, dos cheiros das aventuras - daquelas que as crianças pressentem, do mais profundo de sua seriedade. Aqui, a vida se anuncia para eles com essa imensa finalidade que lhes é certamente prometida, e eles são ao mesmo tempo felizes e ansiosos por serem os únicos a penetrar o grande segredo. Eles ignoram que outros o souberam, que muitos o esqueceram e que alguns se gabam por nunca tê-lo conhecido.

Restam aqueles que o sabem: a vida só começa de verdade a partir do momento em que se acredita piamente que o Grande Jogo te é oferecido e que é preciso espreitar o chamado.

Mods exorciza o que é pesado e abre às descobertas. Mods faz reviver.

Aujourd’hui, Mods foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 24, setembro/outubro/novembro de 2003. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.