O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A LOVE STORY, o caso Humoresque


Por Mary Ann Doane

A love story é, paradoxalmente, não somente o centro mas também um discurso à margem do cinema clássico hollywoodiano
[1]. É o centro na medida em que o casal é uma figura constante na retórica hollywoodiana e um certo tipo de pacto heterossexual constitui seu modo privilegiado de conclusão. Já sua marginalidade é associada ao seu status de discurso feminino – a love story supostamente “interessa” às espectadoras. O filme de terror, como Linda Williams aponta, impele a menina (ou a mulher) a tapar seus olhos[2]; o sinal de masculinidade do garoto está no fato de que, quando confrontado com a love story, ele desvia o olhar. O cinema perde seu efeito cativante, sua função de sedução. Essa exclusão do olhar masculino pareceria ser fatal no contexto de um discurso institucionalizado que prioriza o registro da subjetividade masculina. E de fato o é, pelo menos no que tange à recepção crítica. É frequentemente relegada ao limbo da história do cinema a narrativa fílmica cuja construção é levada ao extremo da definição de um tema amoroso. 

É evidente que há exceções: os filmes considerados “grandes histórias de amor” – narrativas que geralmente são amparadas pelo peso da História e pela soberania da mise-en-scène, filmes como Gone With the Wind, Reds, Dr. Zhivago. O estímulo da História confere um efeito de propósito, de finalidade – área na qual a love story, devido a sua fetichização ou seu afeto, não consegue se inscrever. A love story comum, em vez de acionar a História como mise-en-scène ou espaço, acaba por registrá-la como subjetividade individual fechada em si. A História é um acúmulo de memórias da pessoa amada, e o eixo evolutivo da representação gera uma relação governada por apenas um par de regras: separação e reconciliação. Situada fora do espaço onde a História concede significado ao espaço, a love story comum é enxergada como oportunista por conta de sua manipulação do afeto a fim de envolver o espectador, puxando ele/ela para dentro do discurso. 

O papel exagerado da música na love story é sintomático dessa aparente insistência num afeto irrestrito. A música é o registro que carrega a maior carga nesse tipo de narrativa; sua função crucial é a de representar o irrepresentável: o inefável. Desejo e emoção – o próprio conteúdo da love story – não são acessíveis a um discurso visual, demandando assim investimentos adicionais da trilha musical. A música expande o que a imagem mostra – o que é excessivo em relação à imagem é equivalente ao que é racionalmente excessivo. A música tem uma função anafórica, sistematicamente mostrando que há mais que significados: há desejo. À música é sempre delegada a tarefa de destacar, isolar os momentos de maior significância, mostrar-nos aonde olhar apesar da falta inevitável do olhar. 

Há, entretanto, algo de assustador num afeto que aparentemente não seja amparado pela significação. O efeito grandiloquente da música (seu esforço em direcionar a leitura da imagem) é extremamente visível – e chega a arriscar a fruição do espectador. É como se a música constantemente anunciasse sua própria deficiência quanto à significação. Cúmplice do excesso de emoção associado à love story, não há dúvida de que a música possa contribuir para a sua depreciação. Isso explica, pelo menos parcialmente, uma tendência muito forte no gênero da love story de criar motivos para uma aparente superênfase da música na definição do protagonista masculino – o objeto do desejo feminino – como um músico. Em filmes como Letter from an Unknown Woman, Deception, Interlude, Intermezzo, Humoresque, e When Tomorrow Comes, o protagonista é um pianista, um violoncelista, um compositor ou um violinista. Transformando a música num componente fundamental de seu conteúdo, deslocando-a do nível extradiegético para o diegético, essas narrativas fornecem uma racionalização da própria forma. Além disso, a localização do personagem masculino como músico traz um benefício adicional. Na love story, o homem passa por um tipo de feminização por contaminação – em outras palavras, ele é emasculado por sua própria presença em um gênero feminilizado. Como Roland Barthes afirma, há sempre algo de “feminilizado” naquele que ama: “no homem que expressa a ausência de outrem algo feminino é declarado”[3]. O escândalo dessa feminilidade masculina é parcialmente amenizado pela construção de um forte laço entre o personagem e a única atividade culturalmente “feminilizada” que lhe é autorizada: a arte. É transformando o homem em um artista respeitado – um músico – que esse subgênero acaba por recuperar algumas de suas inevitáveis perdas masculinas na love story

Dos filmes citados, Humoresque (1946, Jean Negulesco) talvez seja o mais excessivo nessa ênfase dada à música como criadora fundamental de significados afetivos. O filme possui três longas cenas de concertos; em duas dessas cenas, o único outro registro evidenciado, além da música, são reveladoras trocas de olhares entre os personagens. Na extensa terceira e última cena de concerto, a alternância entre as imagens do violinista executando Tristão e Isolda num teatro e as do suicídio por afogamento da protagonista resulta na construção dessa morte como um tipo de espetáculo. A música da performance se torna a trilha musical da cena de sua morte; seus últimos momentos coincidem com as últimas notas do concerto e são sucedidos pelos aplausos da plateia. O tempo narrativo investido e gasto pela música é incomum, mesmo dentro desse subgênero. 

Há, portanto, longos momentos de Humoresque que delimitam um espaço de significação quase que completamente fora da linguagem – linguagem em qualquer forma: diálogo, narração ou imagem. Os pilares significantes das sequências – música e imagem – como sistemas semióticos análogos, geralmente são tidos como discursos de pura afirmação. (....) É notório que a negação é o princípio fundador da linguagem verbal, o que a difere da linguagem de sinais animal e também de outros tipos de discursos humanos, como as imagens. A imagem é um indicador de presença e afirmação – na lógica de Metz, uma imagem de um revólver sempre significa, no mínimo, “Aqui está um revólver”. A love story, duplamente dependente da imagem e da música, aparentaria assim ser um discurso duplamente afirmativo. 

Apesar disso, Humoresque, como um todo, é caracterizado por um trabalho de negação sistemática do olhar feminino e, consequentemente, de recusa e de punição às espectadoras. E como há longas sequências em que os únicos recursos de significado são música e imagem, o filme oferece exemplos esclarecedores da tentativa laboriosa de criação da negação num sistema icônico. Ainda mais precisamente: há por todo o filme traços de desejo de negação. 

A narrativa diz respeito a uma mecenas, Helen Wright (Joan Crawford) e seu romance com o jovem violinista que patrocina, Paul Boray (John Garfield). O desejo entre eles é impossível desde o início – não apenas porque Helen já é casada mas talvez mais particularmente porque ela é a representação hiperbólica de uma sexualidade feminina acentuada, que deve finalmente ser eliminada. Sua presença revela a impotência masculina. Esse excesso, a ameaça criada por sua sexualidade, é estabelecido pela narrativa de várias maneiras. Primeiro vem a noção de que a mecenas é Helen, o que indica uma alteração da tradicional relação de poder homem/mulher no domínio da economia já que o homem aqui é, de fato, “mantido” pela mulher. Em segundo lugar, como já mencionado, Helen personifica uma sexualidade feminina que ignora ou nega limites conjugais e que, por isso, não pode ser confinada numa família. O filme destaca a sua resistência à família ao trazer duas figuras femininas antagônicas: a mãe de Paul, que lhe concede o “presente” inicial do violino e constantemente fiscaliza, com desaprovação, seus comportamentos e atividades sexuais com Helen; e Gina, a convencional e saudável boa-moça, a quem a mãe de Paul já escolheu como sua futura esposa. Em certo momento do filme, a mera presença de Helen, fortemente estabelecida por uma série de planos subjetivos atribuídos a Gina, é suficiente para expulsar Gina, que é incapaz de sustentar o olhar direcionadoa Helen, da sala de concertos. Na saída da sala, é obrigada a passar por uma sequência de grandes pôsteres que mostram Paul segurando um violino. Mas na cena final do filme, closes de Gina, mais uma vez confortavelmente sentada na sala de concertos, e um plano da mãe, chegando atrasada ao seu camarote (espaço anteriormente ocupado por Helen), têm uma direta conexão sintática com o suicídio de Helen. A mãe e a boa-moça, aceitáveis representações da feminilidade, juntam suas forças a fim de afundar a representação da sexualidade feminina acentuada.


Poderia parecer uma punição muito drástica, mas sua transgressão é enorme e é representada não somente por seu alcoolismo – Helen bebe excessivamente e é raramente mostrada sem um copo nas mãos (ela bebe como um peixe, poderiam dizer). Sobretudo, o perigo que ela representa tem a ver com o fato de que ela abala e inverte a oposição entre espectador e espetáculo em termos de um alinhamento com a diferença sexual. Helen é o agente da escopofilia – ela prende Paul Boray em seu olhar. Ele toca, ela assiste. Mas sua apropriação quase violenta do olhar não permanece inalterada. Ela é representada como míope (os momentos de sua transformação de espetáculo em espectadora assim capturados e restritos por sua visualização no ato de colocar os óculos) e é eventualmente retirada da narrativa, sua morte associada à de um ponto de vista. Sua miopia simboliza a malícia de sua ligação escopofílica ao homem. Há uma dificuldade no olhar, principalmente em relação ao da mãe, cujos olhares constantes ao filho – geralmente expressando reprimendas morais – também são evidenciados pela narrativa. A mãe de Paul é, par excellence, a mãe fálica – seu olhar é o olhar da sabedoria. Quando ela vê Helen pela primeira vez no recital de Paul, ela percebe imediatamente o perigo que essa mulher representa para o seu filho, e seu olhar a Paul exprime essa constatação. A mãe é representada como uma coleção de aforismos que só podem ser tidos como clichês – quase bordões, sabedoria em sua forma mais primária, incapaz de transformação: “Eu tenho olhos, eu vejo o que está acontecendo”; “Eu não nasci ontem; você não me engana.” Esses aforismos clichês se relacionam ao ver e ao saber, e dão à mãe certo fundamento epistemológico. Ela vê, ela sabe. A visão de Helen, por outro lado, é turva, distorcida, alterada.
Fotogramas 1 - 3

Os óculos emolduram os olhos de Helen de várias maneiras. Eles estabelecem seu olhar como anormal ao visualizá-lo como um gesto único – garantindo assim que ela sempre possa ser pega no ato de olhar. Entretanto, esse emolduramento específico e bastante literal do olhar é apenas uma de uma série de incessantes e elaborados processos de emolduramento que são concebidos para conter uma anormal e excessiva sexualidade feminina. Posto que emoldurar é a estratégia prioritária do filme quando deseja simultaneamente afirmar e negar. No momento em que Helen vê Paul pela primeira vez, ela está em frente a um espelho de moldura bastante ornamentada (fotograma 1) – um espelho que reflete o objeto de seu olhar, Paul. Há um corte para um plano de Paul tocando o violino (fotograma 2), e o contraplano de Helen colocando seus óculos (fotograma 3). O espelho posicionado atrás de Helen assegura que enquanto ela mantém Paul sob seu olhar, podemos mantê-la sob o nosso – sua condição de sujeito coincide com sua condição de objeto. O espelho tem a função de reduzir a necessidade de um longo contraplano que não apenas tiraria de Helen o olhar do espectador mas também feminilizaria o homem como espetáculo. Na moldura geral do filme, Helen é emoldurada ainda mais precisamente pelo olhar masculino. Quase toda vez que Helen é posicionada como espectadora e olha intensamente, um homem a observa no ato de olhar – uma estratégia que é uma negação do olhar de Helen, de sua subjetividade em relação à visão. O olhar masculino apaga o da mulher. Isso é, às vezes, atribuição da mise-en-scène (fotogramas 4 e 5) e outras vezes é função da montagem (fotogramas 6, 7 e 8).

Fotogramas 4 - 8








Nesses casos, o controle vem da periferia da imagem (ou ainda: da periferia da narrativa). O poder do olhar é exercido nas margens da moldura, e é por esse processo que o olhar feminino é posto entre parênteses – daí a agressividade da mise-en-scène. Esse procedimento reproduz, na diegese do filme, a relação entre filme e espectador como resumida na conhecida declaração de Bazin: “o objetivo do plano não é ver o que ela olha, nem mesmo o seu olhar – é olhar o seu olhar”. Heath se refere a esse “olhar o olhar” como uma “segurança totalizadora”, como o “elo de uma coerência da visão”[4]. Essa força totalizadora e a organização da visão trabalham a fim de suprimir, ou pelo menos conter, o olhar feminino.

Fotogramas 9 e 10








Aqui a dinâmica das molduras estende-se até a escrita, daí a possibilidade de negação num sistema icônico. A força dessa contenção e a busca pela negação indicam um momento preciso de perigo ideológico – quando a mulher se apropria do olhar. A tendência então é de reproduzir, rearticular molduras e processos de emolduramento em todos os lugares. Essa dinâmica das molduras se torna particularmente obsessiva na cena-clímax do filme – especialmente após o momento final de diálogo que introduz a longa sequência de Tristão e Isolda (que, como mencionado anteriormente, é constituída somente pelos materiais significantes da música e da imagem). Sem ninguém por perto, Helen se vira em direção à câmera (embora seu olhar se fixe um pouco mais ao lado) e propõe um brinde (fotograma 9) – um brinde que só pode ser direcionado à plateia ou, mais precisamente, às espectadoras: “Um brinde à época em que éramos meninas e ninguém nos pedia em casamento!” A essência de primeira pessoa do plural desse discurso é logo golpeada por processos de emolduramento quase histéricos. Helen vai até o outro lado da sala e abre um álbum com uma foto de Paul (fotograma 10). A representação de Helen (a pintura na parede) domina o quadro; assume e repete, em sua própria configuração, a posição de sua cabeça olhando para a foto de Paul. Seu olhar ativo se torna recatado, como quando uma mulher se sabe observada – assegurado pela repetição de um gesto naturalizado na mise-en-scène por uma moldura diegética. Mas esse colapso narcisista entre o sujeito e o objeto da visão se torna ainda mais pronunciado quando logo depois Helen volta a ser assombrada por sua própria imagem. O plano (fotograma 11) é do reflexo de Helen numa porta de vidro, o oceano ligeiramente perceptível ao fundo do plano. Sua imagem é emoldurada pelo gradil barroco da porta. Helen ergue seu copo (fotograma 12) e o lança pela porta, libertando seu reflexo do aprisionamento (fotograma 13) – ainda que apenas momentaneamente, já que há imediatamente um corte para o outro lado da porta e Helen é duplamente emoldurada pelo gradil e pelo buraco que ela mesma criou (fotograma 14). Helen consegue quebrar sua própria imagem refletida (o objeto do seu olhar), apenas para que produza outra moldura (o buraco no vidro) através da qual se torna visível, emoldurada para o espectador. O insistente e obsessivo emolduramento indica o quão inevitável é a contínua transformação da mulher de sujeito do olhar em objeto do olhar. E aqui, nessa cena que precede seu suicídio, a sintaxe do filme declara que a transformação do feminino em objeto – emoldurado e fetichizado – equivale à morte.

Fotogramas 11 - 14







O plano inicial dessa sequência que mostra o reflexo e a reação de Helen a seu próprio reflexo e o plano discutido anteriormente, em que a necessidade de um contraplano é eliminada pelo espelho atrás de Helen, têm propósitos similares. Ambos planos buscam fundir as divisões que a montagem cria entre aquele que vê e o que é visto – em suma: fundir o plano e o contraplano numa única imagem. Eles produzem uma certa confusão de sintaxe ou dissolução da diferença que só pode ser corrigida, reparada pela morte de Helen. Esse tumulto de códigos é replicado também na trilha sonora; ali o diegético tende a se misturar ao extradiegético. Na primeira parte da cena, Helen escuta a versão de Paul para Tristão e Isolda que é transmitida pelo rádio. A fonte da música é claramente diegética – justificada e localizada. No entanto, durante sua caminhada até a praia, a música, em vez de tornar-se mais baixa devido à distância do rádio, parece intensificar-se e assim torna-se a música extradiegética que acompanha sua morte. Mas essa transição de diegético para extradiegético é revertida mais uma vez. Com o gesto de Helen colocando suas mãos sobre os ouvidos a fim de abafar o som, a música se torna subjetivizada, psicologicamente motivada, e mais uma vez diegética. A música como um objeto cruel, como o lugar da autocomiseração de um afeto excessivo, é limitada por seu confinamento à subjetividade feminina. 

O esquema de fusão de plano e contraplano e confusão entre diegético e extradiegético estão diretamente ligados à subjetividade feminina. Pois a feminilidade excessiva é precisamente aquilo que não respeita limites ou barreiras – ou molduras. Há um subtexto constante no filme que parece resistir às implicações epistemológicas da moldura: uma ênfase em líquidos e na fluidez. Helen bebe excessivamente e está sempre servindo drinks a si mesma ou aos outros. Mas a temática dos líquidos não está contida ou restrita em sua caracterização como alcoólatra. Além da grandiosidade de temas como água/sexualidade/morte invocada no final do filme, há traços dessa obsessão com fluidos atravessando toda a narrativa. Mais ou menos na metade do filme, há uma fixação atípica e nada contida nos anéis de água deixados na mesa por um copo de martini. Muitas transições de uma cena a outra são criadas como transições de um fluido a outro – por exemplo, o corte de Helen colocando água com gás num copo para a rebentação das ondas na praia ou do chuveiro com vazamento no apartamento, que Helen dá a Paul, para o jorrar de uma fonte. Essa ênfase nos fluidos parece se relacionar à sexualidade acentuada de Helen. Na medida em que indica aquilo que excede formas estabelecidas, limites ou barreiras, evoca a construção da feminilidade descrita por Luce Irigaray em seu ensaio The Mechanics of Fluids. Nesse ensaio, Irigaray aponta na ciência um atraso histórico na elaboração de uma teoria dos fluidos e uma “cumplicidade de longa duração entre a racionalidade e uma limitada mecânica dos sólidos”. Sua associação da feminilidade ao que ela chama de “reais propriedades dos fluidos” – fricções internas, pressões, movimento, uma dinâmica específica que torna um fluido não-idêntico a si mesmo – é, com certeza, meramente uma extensão e uma reprodução de uma construção patriarcal da feminilidade. Mas é certamente uma construção presente em Humoresque, que constantemente formula e reformula a sexualidade feminina como uma relação que excede limites ou barreiras. No plano em que o reflexo de Helen é sobreposto ao oceano visto pela porta de vidro, o oceano se torna a imagem espelhada de Helen. E ter a sexualidade feminina, essa excessiva, neutralizada por sua própria imagem revela o propósito do filme – e da love story em geral – como uma demonstração tautológica da necessidade de falha do desejo feminino. 

E ainda assim há certos vazamentos. A lógica de constante diminuição do desejo e da subjetividade feminina parece ceder à força sob o insistente endereçamento às mulheres próprio da love story. O fato de que Helen recebe um limitado mas direto discurso às espectadoras – um discurso que evoca uma época anterior à dupla amarra do pedido de casamento, uma época em que a “menina” ainda não precisa carregar o fardo da “feminilidade” – indica que há algo estranho. Helen não está sujeita a um processo de reforma. Ela deve morrer porque seu excesso é irremediável. 

A morte da protagonista não é exatamente incomum no subgênero da love story. Entretanto há outras formas de se chegar a um desfecho que parecem ser, pelo menos na superfície, mais piedosas, mas que são muito mais problemáticas. A mais marcante dessas estratégias é a de “permitir” que a mulher escolha entre dois homens (ela invariavelmente escolhe o homem “certo”, fazendo com que essa categoria de filmes seja caracterizada pelo “final feliz”). O ato de fazer uma escolha é estruturalmente determinante em filmes como Daisy Kenyon (1947), Kitty Foyle (1940), e Lydia (1941) (embora em Lydia a mulher prefira não fazer uma escolha já que o homem que ela realmente ama não se lembra dela). 

[1] Os filmes discutidos nesse capítulo incluem: Intermezzo (Gregory Ratoff, 1939); When Tomorrow Comes (John Stahl, 1939), The Letter (William Wyler, 1940); Kitty Foyle (Sam Wood, 1940),Waterloo Bridige (Mervyn LeRoy, 1940); Back Street (Robert Stevenson, 1941); Lydia (Julien Duvivier, 1941); Now, Voyager (Irving Rapper, 1942); Leave Her to Heaven (John Stahl, 1945); The Enchanted Cottage (John Cromwell, 1945); Love Letters (William Dieterle, 1945); Humoresque (Jean Negulesco, 1946); Deception (Irving Rapper, l946),The Strange Love of Martha Ivers (Lewis Milestone, 1946), Daisy Kenyon (Otto Preminger, 1947); Letter from an Unknown Woman (Max Ophuls, 1948); The Heiress (William Wyler, 1949); My Foolish Heart (Mark Robson, 1949), Madame Bovary (Vincente Minnelli, 1949). 
[2] Linda Williams, "When the Woman Looks," in Re-vision: Essays in Feminist Film Criticism, ed. Mary Ann Doane, Patricia Mellencamp, and Linda Williams (Frederick, Md.: University Publications of America and The American Film Institute, 1984), p. 83. 
[3] Roland Barthes, A Lover's Discourse, trans. Richard Howard (New York: Hill and Wang, 1978), p. 14. 
[4] Peter Wollen, "Godard and Counter Cinema: Vent d’Est" in Readings and Writings: Semiotic Counter-Strategies (London: Verso Editions and New Left Books, 1982), p. 83.

O excerto A LOVE STORY, o caso Humoresque foi publicado originalmente no livro The desire to desire – The woman’s film of the 1940s de Mary Ann Doane. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

Mostra Mulheres, Mulheres


O woman’s film é um gênero polêmico: para Molly Haskell, “ele, ao mesmo tempo, reconhece a importância das mulheres e as marginaliza”. Abarcando o melodrama, mas também o filme noir, o filme gótico, o faroeste, as fronteiras que o delimitam como gênero se confundem com os limites do próprio cinema. Pensemos em Stella Dallas, Mildred Pierce, Rebecca e Johnny Guitar. Ele encontra a sua forma canônica na Hollywood do pós-guerra e narra os dramas e os dias de uma mulher dividida entre a casa e o mundo, o matrimônio e a independência. Se o século de Madame Bovary legou às mulheres o casamento por amor (e uma longa tradição literária), o século de Hitchcock lhes deu o mercado de trabalho. E uma não menos expressiva tradição cinematográfica. Desde o fim da era dos estúdios, o “filme de mulher” não parou de evoluir no tempo e no espaço, e esta evolução será o objeto de investigação da Mostra Mulheres, Mulheres, primeira ação do Vestido sem costura - Blog de cinema fora da internet.

Os cinco filmes aqui selecionados são conduzidos pelas suas protagonistas, que, em maior ou menor escala, encarnam os dramas da mulher moderna. Estando o “feminino” historicamente condicionado a todo tipo de mistificação, o que estes filmes propõem é o raro equilíbrio entre o mistério e a clareza.

Acordes do coração é uma peça musical. Réquiem para uma mulher, um estudo. Simone Barbès ou a virtude, um disco voador. Em Acordes do coração e Nos bastidores da notícia, encontramos dois exemplares perfeitos do que podemos chamar – parafraseando Luc Moullet – a “Política das Atrizes”, um dos pilares da noção clássica de woman’s film. Joan Crawford e Holly Hunter dão uma amostra vigorosa do seu repertório, em duas épocas distintas e com duas atitudes opostas diante dos sacrifícios do amor.

Simone Barbès e Réquiem para uma mulher são dois exemplares perfeitos da marginalidade flamejante da produtora francesa Diagonale: no primeiro, a personagem título atravessa a cidade das mulheres com uma opacidade fulgurante. No segundo, a nudez, o coração que sangra, o amor louco que nasce na frugalidade. Nos dois, a missa à grandeza das atrizes.

Uma mulher descasada é o filme que justifica essa mostra, o seu grande segredo. Nos cinco, uma história sem-fim é contada: a proclamação da independência.


Programação:

12/12, quinta às 19h: Acordes do coração, de Jean Negulesco


(Humoresque, EUA, 1946 - 125 min. Com: Joan Crawford, John Garfield, Oscar Levant, J. Carrol Naish J., Joan Chandler, Tom D'Andrea, Peggy Knudsen. Classificação indicativa: 12 anos.)

Paul Boray (John Garfield) é um jovem violinista que se envolve com Helen Wright (Joan Crawford), uma mulher rica, mecenas e alcoólatra. Enquanto se aproveita da situação Paul acaba se tornando caprichoso, já Helen se debate em sentimentos de culpa. No entanto Paul precisa descobrir o que é mais importante para ele: a boa vida ou a música.

13/12, sexta às 19h: Simone Barbès ou a virtude, de Marie-Claude Treilhou


(Simone Barbès ou la vertu, FRA, 1980 - 77 min. Com: Ingrid Bourgoin, Martine Simonet, Raymond Lefebvre, Sonia Saviange, Michel Delahaye, Noël Simsolo, Max Amyl, Pascal Bonitzer, Pierre Belot, Denise Farchy, Véronique Fremont, Paulette Bouvet. Classificação indicativa: 16 anos.)

Simone e Martine são atendentes em um cinema pornô em Montparnasse. Instaladas no salão, elas saúdam os frequentadores, encaminham os homens aos seus lugares, conversam e passam o tempo. À meia noite Simone parte para uma boate lésbica.

14/12, sábado às 19h: Uma mulher descasada, de Paul Mazursky



(An unmarried woman, EUA, 1978 - 124 min. Com: Jill Clayburgh, Alan Bates, Michael Murphy, Cliff Gorman, Patricia Quinn, Kelly Bishop, Lisa Lucas, Linda Miller, Andrew Duncan, Daniel Seltzer, Matthew Arkin, Penelope Russianoff, Novella Nelson, Raymond J. Barry. Classificação indicativa: 12 anos.)

Trajetória de uma mulher que busca reconciliação com sua identidade e com a sexualidade após ser trocada por outra mulher e ver acabar um casamento de 16 anos.

15/12, domingo às 16h: Réquiem para uma mulher, de Paul Vecchiali


(Corps à coeur, FRA, 1979 - 122 min. Com: Nicolas Silberg, Hélène Surgère, Béatrice Bruno, Louis Lyonnet, Emmanuel Lemoine, Christine Murillo, Liza Braconnier, Denise Farchy, Paulette Bouvet, Madeleine Robinson, Sonia Saviange. Classificação indicativa: 16 anos.)

Pierre, 35 anos, trabalha como mecânico e vive próximo à sua oficina há duas décadas. Sua paixão por música clássica o diferencia do ambiente ao redor, ao mesmo tempo em que evidencia sua marginalidade. Um dia, ele conhece uma mulher de 45 anos em um concerto na igreja. Ela é farmacêutica e moderna: faz o que quer, quando quer. No início, Pierre não consegue conquistá-la, até que recebe um telegrama no qual ela diz querer encontrá-lo.

15/12, domingo às 19h: Nos bastidores da notícia, de James L. Brooks


(Broadcast News, EUA, 1987 - 133 min. Com: Holly Hunter, Albert Brooks, William Hurt, Robert Prosky, Lois Chiles, Joan Cusack, Jack Nicholson. Classificação indicativa: 12 anos.)

Em Washington D.C., a produtora (Holly Hunter) do telejornal de uma grande rede tenta manter um alto padrão de qualidade, apesar de ter que se virar de alguma maneira para aceitar o mais elegante âncora da rede, que representa tudo que ela odeia em notícia. Porém, mesmo assim ela se apaixona por ele. Quem vê tudo isto de perto é um colega de trabalho que é um ótimo profissional e melhor amigo dela, além de ser por ela apaixonado, apesar de não revelar este amor.

Serviço:
De 12 a 15 de dezembro (de quinta a domingo)
às 19h (*no domingo sessões às 16h e 19h)
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
ENTRADA FRANCA

Realização: Vestido sem costura - Blog de cinema

A imagem

Rei Lear, Jean-Luc Godard, 1987.


Por Pierre Reverdy

"Imagem" é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes.

Quanto mais a relação entre duas realidades aproximadas é distante e justa, mais forte é a imagem – mais força emotiva e realidade poética.

Duas realidades que não possuem nenhuma relação entre si não podem se aproximar de modo útil. Não há aí criação de imagem.

Duas realidades contrárias não se aproximam. Opõem-se. Raramente obtêm-se força desta oposição.

Uma imagem não é forte por ser brutal ou fantástica - mas porque a associação de ideias é distante e justa.

O resultado obtido determina imediatamente a justeza da associação.

A analogia é um método de criação - é uma semelhança de relações; ora, é da natureza dessas relações que depende a força ou a fraqueza da imagem criada.

O que é grande não é a imagem - mas a emoção que esta provoca; se esta última é grande estimaremos a imagem à sua medida.

A emoção assim provocada é pura, poeticamente, porque nasceu além de qualquer imitação, de qualquer evocação, de qualquer comparação.

É a surpresa e a alegria de se encontrar diante de uma coisa nova.

Não se cria imagens comparando (sempre frouxamente) duas realidades desproporcionadas.

Cria-se, ao contrário, uma imagem forte, nova para o espírito, aproximando-se, sem comparação, duas realidades distantes cujo espírito, somente, apreendeu a relação.

O espírito deve apreender e experimentar sem mistura uma imagem criada.

* * *

A criação da imagem é, portanto, um método poético poderoso e não nos devemos surpreender com o grande papel que representa numa poética de criação.

Para permanecer pura essa poesia exige que todos os meios concorram na criação de uma realidade poética.

Não se pode nisto fazer intervir os métodos de observação direta que não servem senão para destruir o conjunto, destoando. Tais métodos têm outra fonte e outro fim.

Métodos estéticos diferentes não podem concorrer numa mesma obra.

Não há senão a pureza dos métodos que ordena a pureza das obras.

A pureza da estética disto deriva.

L’image foi publicado originalmente na Revue Littéraire Nord-Sud, n° 13, em maio de 1918. Tradução: Eduardo Savella. 

Admirações e poeiras


Por Serge Bozon


I: O COTIDIANO DA CRÍTICA LIBERADA


« O que eu espero de um crítico literário, é que ele me fale a propósito de um livro, melhor do que eu poderia fazer sozinho, de onde vem que a leitura me dá um prazer que não se presta a nenhuma substituição. » Julien Gracq

E é aqui, para o cinema, que Skorecki é maravilhoso, quando ele responde, tão intuitivo, engraçado e rápido à questões clássicas como: o que faz com que tal cineasta seja aquele que filma melhor tal coisa; como reavaliar hoje a importância de X; que charme é esse « que não se presta a nenhuma substituição » liberado pela obra daquele outro; por que a ideia do casting em Kazan ou Huston constitui hoje um sedutor abismo para as quimeras; como compreender ainda o tipo de ambição que animava Y; por que cada filme faz inevitavelmente ressoar a história inteira do cinema… ? Nada muito novo, vocês me dirão: avaliar e descrever. Devemos esperar mais de um crítico hoje?

Skorecki acredita nisso, erroneamente. Pelas razões já em curso no Contra a nova cinefilia, o crítico deve segundo ele ser contemporâneo de um devir-merchandising unindo o que resta do cinema ao que nasce (entre outros) dos videogames. E por que não uma tal assistência destes novos objetos indignos e populares em uma « arte do comentário que adere aos novos imperativos das novas imagens universais » (Skorecki)? O problema é que uma vez que o slogan é batido repetidamente, o que resta à (d)escrever? Nada, e a invocação religiosa, senão desencantada, dos Power Rangers não esconde o fato de que ele, como qualquer outro, não pode dizer nada disso. O dispositivo teórico se desliga sozinho.

Outra decepção relativa: Skorecki considera com frequência os filmes sob o ângulo único da obscenidade impossível que ali se revela, empenhando-se em descrever o excesso emocional que quebra os corpos dos atores e as memórias dos espectadores, excesso solidário desta impureza estilística caracterizando, para sua grande sorte, as obras que nunca serão acadêmicas. Todos os bons filmes são para ele grandes filmes doentes. Mas o que vale idealmente para Marnie, Rio violento, Réquiem para uma mulher, Sublime obsessão, Meu pecado foi nascer, Num ano de 13 luas, Le cri du hibou, Jornada tétrica, O inocente ou Mulher cobiçada não é para Seu último comando, Vivamos hoje, Êxtase de amor, O homem errado, Rio Grande, O rio da aventura, A nova saga do Clã Taira… O que une estes últimos filmes (entre os meus favoritos), senão o grande ausente destas crônicas, a saber o que Rohmer chamou de « classicismo »? (Rohmer justamente, que só é considerado aqui sob um ângulo libido-sitcomesco bem distante da maturidade de Minha noite com ela, de Conto de outono…). E quando Skorecki fala de filmes que não são doentes, sua escolha geralmente lhe direciona à obras como Os 39 degraus, a descrição se limitará ao registro jazzy (muito justo) do flerte swingado e da leveza febril. Portanto, todo um continente ético, corneliano, de um certo cinema clássico, permanece na sombra. E se todos os cineastas severos não fossem sádicos, e se os filmes que nós não podemos louvar apontando a ruptura que os ultrapassa fossem os mais misteriosos…

II: MITOLOGIAS E BRIOCHES



Para ir rápido (demais), o que eu amo menos em Skorecki é a herança, reivindicada ou não, de Barthes, quer dizer, uma tripla certeza muito contemporânea:

1. A certeza de que é preciso valorizar sistematicamente o que excede a obra, punctum da obscenidade dando enfim a palavra a estes corpos, significantes ingratos e perdidos, cowboys veados e grandes frígidas hollywoodianas, de uma história do cinema revista sob o ângulo insolente de um pós-cinema que a Nouvelle Vague não soube (ou não podia) adivinhar no fim da carreira dos grandes clássicos (Hitchcock, Hawks…).

2. A certeza de que o crítico deve ter um discurso sobre as mutações da sociedade e da indústria do entretenimento. Bem longe de lançar paradoxos singulares, os versos de Skorecki sobre a aldeia global, os guetos new age, o virtual generalizado, o reino do pensamento pixelizado… me parecem como simples tiques virilio-baudrillardianos.

3. A certeza de que a sexualidade é o coração deste excesso, desta violência, que, por (I), dá o que escrever. Depois de ter amadurecido um pouco graças aos aforismos da voz off do último Breillat, aprendemos também, felizes de sermos advertidos, que « os cineastas amantes das crianças como Kiarostami deveriam sempre ser submetidos a uma única e mesma pergunta: por quê estas crianças lhe interessam? Por quê? ». Dickens só tem que ficar atento, sem falar do Ozu de Bom dia. É verdade que a obra consensual deste último anunciaria o videoclipe (do qual Sternberg seria o inventor) como A carruagem de ouro as novelas mexicanas, O rio sagrado o cinema filmado, e Eustache, Beineix, que lhe é evidentemente superior! Esta insistência sobre os corpos me evoca frequentemente a forçação de Barthes escrevendo, com menos gírias, sobre a Kleisleriana de Schumann. E consagrar uma nota ao sublime Rio das almas perdidas para falar apenas da homossexualidade warholiana de Mitchum e do estupro consentido como chave do desejo feminino tem a ver com este dogmatismo psicologizante que, tendo invadido o espaço cultural, tornou impossível levar em consideração este classicismo tão misterioso (e não quebrado!) que Rohmer ou Biette, por exemplo, tentaram descrever: equivalência realizada entre natureza e teatro, para o segundo, num filme póstumo, colorizado, de Murnau; serenidade sem pressa do olhar caracterizando, para o primeiro, a plenitude goetheana do cinema de Preminger. E não podemos imaginar Bazin ou Rivette julgando-se obrigados a atuar como gurus psicólogos da sociedade!

Não é coincidência, como nota Rohmer no seu livro sobre a música, que seja o cientista[1] inventor de uma teoria geral da comunicação, antigamente chamada de semiologia, aquele que só pode conceber a beleza como desvio do código. E Skorecki me parece às vezes próximo (cf. seus textos sobre Bresson) desta crítica concebida como arte de apontar o ponto (sexual) cego, o verme na fruta, a mais-valia perversa… que caracteriza por excelência o gesto ainda barthesiano de um crítico que ele não parece gostar muito, a saber Lenitzer vulgo Bonitzer. Este último nunca cultivou, é verdade, esta má-fé lúdica, esta desenvoltura despreocupada, a qual Skorecki sabe muito bem que diminui o alcance de suas colagens teóricas.

Meu sentimento sendo comumente identificado, na melhor das hipóteses, a uma valorização reacionária do artesanato lourcelleano, na pior das hipóteses, a um passadismo reativo, eu só gostaria de lembrar que eu sou tudo menos contrário a uma utilização da filosofia (e não das ciências humanas) neste domínio ingrato, adolescente e hoje um pouco ridículo que é a crítica de cinema, em que o mais difícil continua a ser, muitas vezes, não radicalizar o que nós estamos falando pelo prazer do sintoma espetacular ou do paradoxo. Evidentemente, minha reprovação radicaliza, ela mesma, os supostos defeitos de Skorecki que sucumbe apenas periodicamente às tentações descritas. Sem dúvida, ele é o melhor e, além disso, ele faz cinema. O que mais querem os fãs?

III: RETRATO DO ARTISTA ENQUANTO CRÍTICO OU RESUMO DOS EPISÓDIOS ANTERIORES



A ex-mulher de um escultor lhe rouba a sua última obra, obrigando-o a expor o modelo, enquanto um complô parisiense agita os travestis enamorados.

Uma voz off conta o destino de uma ex-manequim consumida pelo seu amor por uma estátua de arte africana, enquanto o espectador assiste aos primeiros passos, às vezes cantados, de um flerte entre uma pop star lânguida e uma estudante rabugenta.

O pai espiritual de um pequeno grupo de jovens cinéfilos desaparece e reaparece enquanto seus ex-discípulos se perdem nos amores abortados entre eles, o cinema e eles.

Uma caixa de cinema pornô, depois de ter consolado sua colega, depois de esperar dançar numa boate lésbica, é trazida para casa por um Michel Delahaye elegante e perdido e acabou.

IV: UMA QUADRA DE PROVOCADORES[2]



Reconhecem-se respectivamente a sinopse de Les intrigues de Sylvia Couski (Arrieta), Fluctuat nec mergitur (Bodet), Les cinéphiles (Skorecki), Simone Barbès ou a virtude (Treilhou). Na recusa da narrativa, estes quatro filmes tem quatro coisas em comum: a sexualidade arriscada de seus personagens, a ausência de qualquer naturalismo, o gosto pelas cenas-blocos e por atores tão desamparados quanto seus papéis, enfim uma estilização secreta e frontal , tão salvadora hoje quando cada plano de A prisioneira ou de A comédia de Deus é um altar ao seu esplendor cultural autoproclamado. Os quatro provam que o risco ficcional não se mede à carga narrativa: não precisa de história para levar o espectador bem longe (de Manhattan). Foi Britt Nini, feliz desertora do Sex Stars System e co-roteirista de Cinéphiles (1° parte), que transmitiu a Skorecki esta lei do exotismo interior, este convite à viagem no mesmo lugar, o lugar dos atores no plano? Sem dúvida.

O fime de Treilhou é mais celiniano e anos 30, o de Arietta é mais onírico e maquiado, o de Skorecki é mais engraçado e minimalista, o de Bodet é mais discrepante e acidulado (sem falar da enorme presença das vozes off). Moulet filmava sobretudo o interior dos cinemas em As poltronas do Cine Alcazar. Skorecki só filma o exterior, as pequenas filas onde teimam estes cinéfilos falsamente altivos, e o interior, os grandes apartamentos onde teimam seus corpos nus falsamente oferecidos.

V: POS-CRÍTICA OU O RETORNO DE LOUIS

Entendemos que os melhores cineastas, como os melhores críticos, são maus gurus. Ufa, e vice-versa.

[1] Aproveito para generalizar a oposição em jogo: ao contrário das ideias preconcebidas, não são Gödel, Carnap, Quine, Goodman, Montague etc, que são cientistas, mas Kristeva, Lyotard, Lacan, Derrida, Badiou etc, os primeiros nunca tentaram, ao contrário dos segundos, mobilizar enfaticamente noções e resultados matemático-lógicos em domínios completamente estrangeiros (a política, o sexo, a religião, a arte…). É verdade que estes resultados se devem a eles.

[2] No original, « Un carré d'asticoteurs » contém a menção ao « Carré d'As », a « quadra de ases » da escola crítica macmahonista. (NdT)

Admirations et des poussières foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n° 16, inverno de 2001, pp. 12-15. Tradução: Miguel Haoni.

A femme fatale hollywoodiana dos anos 90: Instinto selvagem, um caso hipotético


Por Julianne Pidduck

Esse texto é constituído de trechos de um vasto estudo sobre Le meurtre en Amérique (O assassinato na América, Julianne Pidduck, The 1990’s Hollywood Fatal Femme : (Dis) Figuring Feminism, Family, Irony, Violence, p. 65) publicado em CinémAction, n° 38, revista canadense de teoria do cinema que congrega contribuições diversas que emanam dos círculos críticos universitários americanos mais radicais.

Aproveitando o orgasmo de seu parceiro para lhe plantar um picador de gelo no torso com uma confiança inigualável, a Catherine Trammel (Sharon Stone) do muito controverso thriller de Paul Verhoeven, Instinto Selvagem deu ao “complexo de castração” um novo elã na América pós-feminista dos anos 90. Doravante, três anos depois de sua estreia, Instinto Selvagem se ancorou para sempre na memória popular pelo seu uso muito pouco moderado de assassinas lésbicas e bissexuais. Nesta direção, esse filme se reata sem complexo à tradição homofóbica de Hollywood, o que os grupos gays e lésbicos não deixaram de assinalar à América manifestando violentamente a sua desaprovação na época da estreia do filme. Mas essa proliferação de assassinas coincide igualmente com a ressurgência recente de personagens de femmes fatales do filme noir clássico. Catalisado pelo sucesso de Atração fatal, notório lança-chamas anti-feminista, esse ciclo dos anos 90 floresceu imensamente: A mão que balança o berço, Desejos, Relação indecente, Corpo em evidência, Os imorais, Mamãe é de morte, Uma noiva e tanto, Mulher solteira procura, Nikita, O sangue de Romeu fazem parte dessa mesma e única família.

Em cinquenta anos, passamos das manipulações maquiavélicas de uma Barbara Stanwick em Pacto de sangue (1944) que, em uma bocada, domina o infeliz Fred Mc Murray, ao abandono sexual assassino das primeiras imagens de Instinto selvagem.

Ora, a ligação entre as questões do masculino e do feminino no filme noir clássico e contemporâneo não é acidental. No filme noir tradicional, a femme fatale é frequentemente associada a um mal-estar profundo suscitado pelos deslocamentos dos papéis do homem e da mulher numa sociedade em período de guerra ou no pós-guerra. Nessa mesma ordem de ideias, é fácil para os teóricos especularem sobre a ameaça que pesou sobre os homens os ganhos do feminismo nos anos 90.




Observemos então o fenômeno da femme fatale do ponto de vista de várias perspectivas feministas. Uma das interpretações possíveis, aliás muito sedutora, associa essa ressurgência a uma reação anti-feminista: transformamos em estereótipos negativos, mulheres que têm uma personalidade muito forte e uma sexualidade sem complexo. Susan Faludi autora do best-seller Backlash (Backlash: The undeclared war against american women, Anchor books, 1991, p. 113), cita Atração fatal de Adrian Lyne (1989) como representativo do cinema reacionário dos anos 80: 
Essa reação quase moldou o discurso de Hollywood sobre as mulheres nos anos 80. As histórias se sucederam em que dispomos as mulheres umas contra as outras; sua cólera em relação à sua situação social se encontrou despolitizada e apresentada como uma depressão pessoal; vidas de mulheres foram utilizadas como contos morais nos quais a boa mãe ganha sempre ao passo que a mulher independente é invariavelmente punida. E Hollywood de reafirmar e de reforçar a tese da reação: se as mulheres americanas são infelizes é porque elas são livres demais; a liberação as privou do casamento e da maternidade. 
 Ora, muitos desses filmes dos anos 90 tem uma função ideológica claramente definida: dominar esse tipo de mulheres através de cercas narrativas: a morte, o casamento ou a quarentena. No interior de uma paisagem política que a decadência de valores familiares tradicionais (sejam eles quais forem) obceca, a defesa dessa família nuclear infinitamente frágil permanece o objetivo n°1 da Hollywood dos anos 90. Nessa batalha, a mãe de família é uma aliada que a ajudará a erradicar a mulher independente e forçosamente fatal. Julguemos pelos gritos de alegria do público quando a esposa gentil Anne Archer acerta sua conta com a amante malvada Glenn Close em Atração fatal.

No filme noir clássico como Pacto de sangue ou Crepúsculo dos deuses, o thriller problematiza a posição ao mesmo tempo autoritária e justa do herói masculino detetive tanto fascinado quanto desestabilizado pela femme fatale. Essa dramatização recorrente das humilhações públicas e privadas do personagem masculino corresponde ao que Richard Dyer chama (Women in film noir, ed. Ann Kaplan, British Film Institute, 1980, p. 91) “uma certa ansiedade em torno do estatuto e da definição da masculinidade e da normalidade”.



Basta, aliás, se debruçar sobre a carreira de um ator como Michael Douglas para ilustrar esse aspecto. O crítico do Village Voice, Jim Hoberman (Victim Victorius, Village Voice, 7 de maio de 1995) liga a recente carreira de Michael Douglas à popularidade crescente do que ele chama “o homem branco em fúria”, vítima complacente da virulência dos arautos do movimento politicamente correto, feminista, pessoas de cor, enfim, de todas essas pessoas que não são como ele. É assim que Michael Douglas se tornou nos últimos anos o objeto dos desejos femininos mais agressivos.

De Atração fatal a Instinto Selvagem, esse ator, mais que qualquer outro, personificou a demonização por Hollywood da mulher independente, sem fé nem lei. Mas ao mesmo tempo ele não encarna com muita desenvoltura o papel principal masculino típico. Homem que está a envelhecer com a barriga um pouco mole, ele não chega verdadeiramente aos pés das femmes fatales que levam vantagem sobre ele. Do infalível policial de São Francisco urgente (1972-1977) ao inepto detetive Curran de Instinto Selvagem em 1992, Douglas perdeu completamente seu verniz. E mesmo se ele é com seu nome, seu cachê e seu estatuto de estrela, o protagonista central do filme é certamente Sharon Stone, então ilustre desconhecida, a quem todos os olhares convergem. Por fim, ela acumula todas as vantagens táticas acordadas à femme fatale: mais jovem, mais bem educada, mais rica, mais inteligente, mais sexy, mais cruel, ela tem vantagem por todos os lados sobre Curran. Além disso, seu diploma de psicologia, muitas vezes citado, e seu estatuto de autora de best-sellers, lhe conferem explicitamente um poder de representação no interior mesmo do filme. Ainda que narrado do ponto de vista de Nick, o próprio tema do livro de Catherine, onde ele é mal um personagem cuja existência está por um fio, sublinha a batalha que se desenvolve em torno do poder de nomear, contar e de concluir.

Mas recusando a conter sua anti-heroína, o filme deixa aberto o capítulo da femme fatale. E é de uma maneira muito irônica que o fim nos mostra um Douglas na cama de uma assassina suscetível de trucidá-lo a qualquer momento. Num desfecho clássico, o filme se conclui com Curran/Douglas no lugar de Johnny Boz (a vítima da cena de abertura) no papel do cordeiro sacrificial de Sharon Stone. Até as suas últimas imagens, Instinto Selvagem sublinha a vulnerabilidade física e sexual e a autoridade moral em declínio do protagonista masculino.
É um filme sobre a ansiedade e a paranoia masculina. As mulheres que afirmam o seu poder suscitam a ansiedade dos homens, tanto quanto mulheres afetivamente ligadas a outras mulheres. Logo, Catherine os inquieta duplamente. É verdade que ela e as outras são talvez assassinas. Mas observe o que elas matam. A família, por um lado. Seus irmãos. Homens que poderiam se tornar maridos. É verdadeiramente constitutivo de toda a ansiedade masculina. Na verdade, é quase uma paródia do pior pesadelo do homem comum. (C. Carr no Village Voice). 


A angústia masculina é geralmente bem veiculada por essa recrudescência de roteiros de uma crescente violência, abertamente paranoicos, beirando às vezes o ridículo, que colocam em cena personagens de mulheres sexualmente pervertidas e onipotentes. Com a sua superpopulação de loiras, assassinas em série e sexualmente ambíguas, Instinto Selvagem leva a palma do gênero.        
Instinto selvagem é quase uma comédia sobre o pressuposto perigo mortal ligado às mulheres. Mas é a relação complexa que une todas essas mulheres entre elas que produz o horror do filme. Em outras palavras, não é o que elas fazem individualmente que constrói o formidável suspense do filme, mas o mistério do que as liga umas às outras. (Lynda Hart) 
Assim olhando de mais perto a matéria desse filme, finalmente mais complexa do que se parece, podemos identificar momentos de ruptura e de conquista, e proceder uma leitura feminista que se revelará divertida, mesmo que se trate também de uma obra infinitamente misógina. Pois as questões de gênero e poder são postas de uma maneira bem produtiva como frequentemente ao longo desse ciclo de filmes que o discurso feminista ataca, oferecendo em alguns momentos uma crítica muito irônica e mesmo involuntária dos valores familiares, das relações entre sexos e da autoridade masculina.  

No entanto e apesar de tudo, a extraordinária proliferação da figura da femme fatale na cultura popular, verdadeira caixa de Pandora nos anos 90, exprime um mal-estar muito profundo que nunca poderemos elucidar inteiramente. A própria femme fatale, figura controversa mas central desses filmes, tal como ela é representada, é uma monstruosidade maior do que o natural, uma espécie de caricatura paranoica do estado no qual se encontra o inconsciente masculino do homem norte-americano. Mesmo que ela não revele nada de real sobre a experiência de base da mulher norte-americana, a impossível figura da mulher violenta veicula uma carga afetiva e fantástica, um excesso discursivo que pode ser no fim das contas muito estimulante para o discurso feminista.

Tudo isso é ainda mais impressionante que a violência contra as mulheres foi ainda assim a ponta de lança de todas as batalhas feministas. E eis que a transição entre o discurso sobre a violência engendrada pela vida real e a representação hollywoodiana das femmes fatales produz um efeito de inversão de uma bizarrice um pouco sinistra. Certamente representamos frequentemente a violência contra as mulheres nas telas. Mas o sucesso de filmes como Atração fatal e Instinto Selvagem não tem equivalentes. Essa ascensão nas telas da violência perpetrada pelas mulheres é verdadeiramente um sintoma curioso e perturbador. Há nessas mulheres assassinas alguma coisa de terrivelmente forte, uma espécie de excesso emocional e fantástico que escapa de toda explicação tradicional e racional. Contra uma persistente convenção cultural (ao mesmo tempo, generalizada e mais especificamente feminista) que faz das mulheres sempre vítimas da violência, corpos sem vida ou em perigo virtual, a femme fatale propõe uma figura paratética (“façamos como se”) excepcional e onipotente. Incluindo no aspecto politicamente ambíguo da femme fatale, a inversão de papéis permite à espectadora de explorar uma metamorfose no nível da fantasia e da representação em que do objeto da violência (passivo) ela se torna sujeito (ativo). É aí, no nível imaginário, que a figura da femme fatale nos oferece momentos preciosos de evasão, mas não sem distância crítica e uma ironia benéfica. Catherine Trammel/Sharon Stone, com sua verve impossível, sua sexualidade desenfreada, sua capacidade de paralisar de emoção uma sala cheia de policiais resistentes e mesmo a força excepcional com que ela se apodera do legendário picador de gelo castrador, acarreta momentos de um culpável, intenso e supremo prazer a espectadora feminista – uma fantasia efêmera, certamente, mas eminentemente estimulante.

La femme fatale hollywoodienne des années 90 – Basic Instinct, un cas de figure
foi publicado na revista Vertigo, nº 14 (dossiê “Féminin/masculin”), em janeiro de 1996, traduzido do inglês por Caroline Benjo. Tradução do francês: Leticia Weber Jarek. 

Os cineastas franceses e a desobediência civil

Cinema e política: beleza da mise en scène




Por Judith Cahen

20 de março de 1997


Cara Hélène,

Nós nos encontramos no momento da Guerra do Golfo, quando estudantes, nós procurávamos “fazer política de outra maneira”. O projeto era ambicioso mas lhe faltava precisão. Eu aprofundei minha questão no lado do cinema: “como fazer filmes de outra maneira, como mostrar o mundo, como fazer belos filmes que mostram o mundo em que vivemos, inventando ao mesmo tempo um mundo mais habitável… etc.” Nós nos encontramos, alguns anos mais tarde, em torno de uma revista de cinema, animadas pelo desejo comum de voltar – do ponto em que estamos, o cinema – a essa ligação com a política, reforçada nesses últimos tempos pelo apelo à desobediência. Eu te/nos colocarei uma primeira questão:

Qual é a relação entre a mise en scène no cinema e a mise en scène de uma ação política?

Essa questão é um grande canteiro aberto. Nós não temos até esse momento uma resposta, mas intuições. Me parece que o ponto de aproximação que nós podemos tentar abordar, a partir de hoje, deve ser procurado no lado do gozo. Há um momento em que tudo isso é claramente excitante!

Eu digo isso com muito respeito, pela política, pelo cinema e pelo gozo!

Lado cinema e lado política, uma mise en scène bem-sucedida convoca o real e o simbólico, a sedução e muita gente. O metteur en scène como o militante ambicioso é animado por uma vontade de maestria, de uma capacidade carismática de colocar em cena os outros, de levá-los a algum lugar. Essas disposições só têm valor certamente na medida da sua concepção de mundo.

Voltemos ao gozo… Cinema e ação política, permanecendo fiéis a um ponto de vista sobre o mundo, a valores, eles devem ser ao mesmo tempo suficientemente excitantes e sedutores! E quando isso já não é mais o caso, isso assusta… Não há nada que se pareça mais a um filme laborioso e fracassado (encenado sem gozo), que um militantismo rançoso, que fala difícil de tanto ser bem-pensante. Quantas vezes, frente a militantes, nos dizemos que por mais que eles tenham razão, nada se mexerá se eles não inventarem um erotismo particular à situação? Nos dois casos, nós nos sentimos mal pelos metteurs en scène e pelos atores… nós temos também compaixão, pois não é assim tão fácil seduzir. Pois é também do lado da sedução que, às vezes, perdemos nossa alma! Contudo, permanecer íntegro, ter a verdade consigo não basta! Ainda é preciso inventar a mise en scène que dará a essa verdade a sua existência pública…

Chego assim ao apelo à desobediência lançado por Pascale Ferran e Arnaud Desplechin: o que ele tinha de tão astucioso, de tão esperto, na sua dimensão ao mesmo tempo subversiva (logo, violenta) e estranhamente unanimista? Me parece que ele tocou no laço desfeito, o laço entre a responsabilidade individual e o engajamento político em geral… Com o texto de fechamento proposto por Pascale Ferran (publicado no Le Monde, para explicar a dissolução do coletivo dos cineastas), há a vontade de permanecer nesse apelo à consciência individual, à prática política de cada um na sua vida (mesmo que seja nos partidos políticos), e de não delirar em novos grupos de cidadãos engajados pelas profissões. Isso remete, então, cada cineasta a sua prática e ao seu engajamento político (ou a sua ausência de engajamento) preliminar… aqui, aqueles que não tem geralmente esse hábito devem começar (enfim) a pensar: “O que fazer neste momento? Como se adaptar a esse renascer? Já é o suficiente e é preciso esperar pela próxima boa ideia, retornar ao trabalho em nossos filmes – então, se aprofundar cinematograficamente na expressão do imaginário da relação, trabalho fundamental nessa época ‘gangrenada’ por medos reacionários do outro… Ou então é preciso aproveitar inteligentemente da situação para ir mais longe politicamente?”

Questões de relações de poder ou de eficácia da mise en scène?


Desejo de coletivo/estar cheio do coletivo 

Mas onde eu estou aí dentro, você se pergunta sem dúvida?! Eu partirei da minha própria ambivalência tal como eu a trabalho no cinema através do personagem de Anne Buridan – ambivalência entre uma necessidade feroz de isolamento e uma aspiração ao coletivo. Eu não acredito que eu avanço muito ao supor que como eu, outros cineastas devem ter sido atravessados por essa ambivalência “buridanesca” em relação ao movimento que mobilizou os cineastas. E eu resumirei, deste modo, os “dois polos” entre os quais nós navegamos, no ritmo das semanas, dos dias, das horas… ou dos minutos (para os mais afetados entre nós!).

1) “Meu trabalho essencial de cineasta consiste em fazer filmes, eu não devo me dissolver num ativismo militante sem relação com a minha prática, nem me tornar o joguete das mídias.”

2) “Já que isso se movimenta enfim! Estejamos à altura dos acontecimentos que nos desapossaram: intervenhamos! (E, ainda por cima, é prazeroso!). De qualquer maneira, eu não farei bons filmes se eu enterro a minha cabeça na areia: meu trabalho de cineasta se nutrirá do meu engajamento político/cidadão.”

Como conciliar a ideia de que o verdadeiro engajamento para um cineasta é talvez o de fazer os seus filmes com o máximo de atenção e de exigência, e então aquela ideia – mais política, que quer que nós nos agrupemos por vezes para tentar ver juntos como avançar na sociedade que nos envolve?

Mas eu paro por aqui, pois eu gostaria muito que você me falasse do seu engajamento político contra a extrema-direita e dos limites, das ambiguidades que você mesma experimentou, para além do prazer extremo de identificar tão bem o seu inimigo.

Cara Hélène, está com você.
Judith Cahen

Carta a Judith


Por Hélène Frappat

22 de março de 1997


Cara Judith,

Antes de todas as agitações suscitadas pelo projeto da lei Debré [1], eu me lembro de ter te dito, no momento da eleição de Catherine Mégret em Vitrolles e do caso Chateauvallon: devíamos fazer alguma coisa na Lettre du Cinéma. Eu não tinha nenhuma ideia precisa, mas esse projeto me parecia necessário. E então, logo depois, houve o Apelo dos cineastas, a manifestação contra a lei Debré, teu próprio engajamento ao lado deles, e me pareceu que a ligação que eu procurava estava se estabelecendo gradualmente. Eu mesma assinei a petição à iniciativa de Emmanuel Terray, mas as ações dos cineastas, e algumas de suas reuniões que eu assisti, só confirmaram esse primeiro desejo: com esse movimento, uma parte de meu próprio passado militante se encontrou reanimado, até mesmo iluminado. Pois essa questão do militantismo no fundo não é muito clara e, contudo, ela enreda um determinado número de implicações do movimento dos cineastas e, no segundo plano, da luta contra a extrema-direita à qual, em parte, esse movimento contribui.

Nós nos encontramos, há alguns anos, quando eu militava no Comitê de luta contra La Vieille Taupe, uma livraria negacionista que tinha se reinstalado na rua Ulm. Eu tinha me engajado profundamente numa luta contra: contra uma livraria (ela acabou fechando), contra os negacionistas (isso deu origem a uma Associação de luta contra o negacionismo), contra todos os nossos inimigos e mesmo aqueles nossos amigos acusados de serem por demais frouxos (Deus vomita os frouxos… era a minha máxima na época). Esse frenesi não era sem perigo, e eu mesma recebi ameaças de morte, assim como um buquê mortuário. É preciso dizer que eu me engajava com violência, até por que a violência manifestada era por vezes muito excitante. Uma imagem extremamente forte permaneceu comigo: dezenas de vans da CRS[2] estacionavam cada terça-feira, às 18h, em frente à La Vieille Taupe e, uma tarde, eu me lembro de duas fileiras ameaçadoras com, de um lado, um grupo do Betar[3] e os simpatizantes do Comitê (um pouco envergonhados de manifestar com o Betar) e, em frente, os negacionistas. A tensão era palpável, a fumaça dos gases lacrimogêneos invadia a rua e nós estávamos unidos pelo mesmo medo de sermos espancados pelos militantes de extrema-direita, com, por vezes também, o desejo de chegar às vias de fato.

Dessa “luta contra”, eu retenho que ela não me parecia habitavel por muito tempo. Primeiramente, a essa excitação sobre a qual eu te falo, esse gozo muito forte experimentado ao combater o mal que nos confrontava (e é preciso dizer que nossos inimigos eram particularmente abjetos), sempre se misturou um certo mal-estar. Mal-estar de ter, para lutar com eficácia contra eles, que suportar de perto ou de longe a presença ou os textos de indivíduos cuja toda vida foi consagrada a arruinar a vida de seus adversários. Esses tipos de extrema-direita estão mergulhados até o pescoço no gozo do negativo, particularmente os negacionistas que consagram suas vidas a negar a morte e a memória, a mentir. Eu não tive vontade, como certos militantes do SCALP[4] ou do Ras l’front[5], de contracenar com a extrema-direita, só agindo em reação contra eles, num corpo-a-corpo que não é suportável sem um certo equívoco, ou um desgosto.

Em outros termos, eu acho que aquele que milita unicamente contra alguma coisa é forçado a entrar numa relação de força que seu adversário lhe impõe. É bem conhecido: à agressividade incontrolada de certos indivíduos, vale mais responder se colocando em um outro terreno, modificando as regras do jogo. É por isso que os cineastas tiveram razão, a meu ver, de agir a favor dos sans-papiers[6], ao invés de continuar a lutar contra uma lei, permanecendo numa relação de forças distorcida de antemão (o governo não dá a mínima para os cineastas que, nessa estrita relação de forças, não pesam muita coisa). Ao invés de ser contra, os cineastas escolheram, na minha opinião, estar ao mesmo tempo a favor e ao lado. Isso implica em se tornar o mestre do jogo, logo, da mise en scène: de ser o autor de uma ação verdadeira, na situação de inventar, de decidir e não só entoar slogans encantatórios de vigilância. Isso permite também abandonar a lógica da suspeita, que nunca fez as coisas avançarem muito, e de trazer uma ajuda real àqueles que são as suas primeiras vítimas (neste caso, os sans-papiers).

Essa questão da mise en scène está para mim intimamente ligada àquela da ficção. Quando eu militava, eu frequentemente senti o prazer muito forte que acompanha a organização de uma pequena ficção. Excitação de conluios noturnos, de ações mais ou menos secretas, do medo de ser vigiado, atacado: tudo isso, ainda que eu tenha vivido diretamente as mais reais consequências disso, participava de uma ficção conspiratória no fundo assaz infantil, digamos, como uma mistura entre Rivette e o 5 famosos
! Eu só tomei consciência dessas implicações fictícias muito mais tarde, pois então eu me obstinava a dramatizar tudo: a pior das ficções era talvez aquela que me fazia endossar, sem eu saber sem dúvida e por motivos distantes, a postura da vítima. É uma posição bem difundida nos nossos dias entre aqueles que denunciam o perigo da extrema-direita, e por ter sentido eu mesma a vertigem dessa identificação com as vítimas, me colocando assim (mesmo que inconscientemente) num lugar que não era o meu, eu sei que essa atitude não é válida, sobretudo taticamente (de nada serve culpabilizar um adversário, perfeitamente consciente de admirar voluntariamente as exações dos torturadores). E o que é mais doloroso que combater pela verdade de uma posição que não é, ela mesma, completamente verdadeira?

Retrospectivamente, eu me vejo à mercê dessa vertigem, como que aspirada por uma ficção, situação evidentemente problemática logo que o aspecto documentário do combate conduzido (a Segunda guerra mundial e o genocídio judeu e cigano) é atroz. Situação ainda mais difícil por que os negacionistas estão totalmente mergulhados na mais completa das ficções, numa mentira que recusa a dizer seu nome. Então na época, ao fim de muitos anos, eu acabei por me convencer de algumas coisas. Eu não podia continuar indefinidamente a militar contra, mas como a questão da atividade política continuava a ser muito importante para mim, era preciso que eu conseguisse encontrar uma via de acesso mais positiva, a partir da prática e da vida de onde eu poderia me engajar. Eu tinha alguns contatos com o PS, mas esse partido não tinha me parecido na época (nem agora) suficientemente excitante para que eu ali investisse tempo ou que eu fizesse da política o meu trabalho. Ora uma das questões essenciais atua, na minha opinião, em torno desse problema do trabalho: as motivações pelas quais militamos são sempre obscuras, certamente, e talvez o meio mais verdadeiro de se engajar consiste em fazê-lo do lugar onde nós trabalhamos. É isso que me pareceu justo no Apelo dos cineastas: que ele abra a possibilidade de um militantismo positivo, de um engajamento ao mesmo tempo comum e expressado na primeira pessoa, ao lado das relações de força institucionais e a favor dos Sans Papiers, história de fazê-los viver uma outra história que não aquela da sua espoliação administrativa, de colocá-los em cena enquanto atores de uma ficção cujo autor, enfim, os respeita. É assim que eu compreendo o pequeno filme coletivo que lhes dá a palavra, e a iniciativa tomada por Jeanne Labrune de convidar em breve os Sans Papiers para falar deles mesmos, no Trianon.       

Com você Judith,
Hélène Frappat


Desejo de coletivo, estar cheio do coletivo, a sequência


Por Judith Cahen

Onde, para concluir com os cineastas, nós voltaríamos aos filmes!


Sobre Marius et Jeannette de Robert Guédiguian e Jeunesse sans Dieu de Catherine Corsini


6 de abril de 1997


Cara Hélène,

Você escreve na sua carta: “o que é mais doloroso que combater pela verdade de uma posição que não é, ela mesma, completamente verdadeira?”. Eu escolhi essa frase para retomar as questões.

Por exigência e para se aprofundar ainda mais, eu corro o risco de ser um pouco cruel com os cineastas signatários (logo, também comigo mesma). O texto de Julien Husson me parece suficientemente claro e engajado com a ligação entre uma prática de cineasta e a denúncia das leis xenofóbicas Pasqua/Debré para que eu me apoie nesse momento num papel mais 
“pó de mico” em relação a um coletivo de cineastas que por mais coletivo que ele seja, me parece um pouco vago (frágil, volátil, fantasma?)... Isso para deslocar o debate no lado dos filmes, do cinema, pois no fundo, é talvez , sobretudo, que nós, pessoas do cinema, temos que pensar.

Eu não digo que os cineastas “fariam melhor ao fazer melhores filmes” invés de tentar “fazer política de outra maneira”. Mas é talvez interrogando o “verdadeiro lugar” (ou não) que eles ocupam, e de onde eles falam, que os cineastas seriam diretamente confrontados com o político, logo obrigados a pensar e trabalhar nas suas obras a distorção entre uma visão do mundo tal como ele os cerca e tal como ele seria enfim habitável.

O politicamente correto, vai bem por um tempo… Tão astucioso e pensado que seja o apelo de partida dos cineastas, cada um o sabe bem, não vemos porquê o fato de ter iniciado e/ou assinado esse apelo faria dos cineastas outra coisa que aquilo que eles são há anos, bem antes das leis Pasqua de 93: para a maioria, pessoas distantes da prática política clássica, porque eles têm coisas melhores a fazer que se engajar no militantismo. Os filmes já são lugares suficientemente violentos de engajamento… Essa violência situa de antemão o cineasta na sociedade, mesmo quando ele teria que reinventar o mundo a cada filme.

Mas se permanecemos nessa constatação, esquecemos de uma coisa mais turva que se entrepõe entre os diferentes cineastas e às vezes, infelizmente, entre os cineastas e seus próprios filmes… é o meio do cinema.

Se ele não é assim tão podre quanto podemos dizer, o meio do cinema não é uma grande família. É um pequeno meio onde, como em todos os lugares, cada um defende o seu lugar.

Os cineastas desejosos de pensar “democraticamente” uma melhor convivência (estrangeiros/franceses), será que eles começaram questionar a não-democracia violenta do meio do cinema? Ou ainda, ocultando essa questão delicada em proveito de ideias políticas mais vastas, mais nobres, mas sobretudo mais gerais, estariam eles contaminados por sua vez pela fantasia da falta de lugar? 

A “partilha do bolo” 

Eu acredito que a pequenez do cinema independente (de onde provém a maior parte de cineastas reagrupados em torno do Apelo inicial) é atravessado, sem ousar muito ao confessá-lo, pela ideia de que não há lugares suficientes para todo mundo… O volume de dinheiro disponível para filmes ditos independentes, os filmes cujos objetivos não são somente comerciais (basicamente, aqueles que dependem dos orçamentos do CNC, da Arte ou do Canal +), é limitado. Qual cineasta que nunca teve o sentimento de uma injustiça flagrante no seio do meio do cinema, que nunca deplorou que os lugares fossem tão caros e sobretudo tão mal repartidos? Inversamente, para além do seu próprio sucesso, e da satisfação narcisista de ter merecido o seu estatuto, qual cineasta nunca teve o sentimento que não há nesse meio, em termos de meios de produção, lugar para todo mundo?

Depois da minha prisão domiciliar pelo senhor Raoult, ministro sombrio das piadas estudantis, no bairro Courtillères em Pantin, eu tive o prazer de ser convidada no Ciné 104 com Albert Jacquart, para falar do racismo com trabalhadores sociais da cidade. Como habitualmente, ele falou desse medo xenófobo da falta de lugar e terminou por atacar frontalmente o liberalismo. Em filigrana, ele recordava que somente uma sociedade fundada sobre outros valores que aqueles do liberalismo econômico (uma sociedade comunista…?) poderia quebrar esse medo de perder o seu lugar que falseia a relação com o outro, o estrangeiro, e daria a capacidade de considerar o outro como uma fonte, uma força – criar a partir das qualidades do outro, como dizia Brecht – e não um potencial rival. Eu achei isso muito belo. Eu então tomei consciência como nunca até que ponto o meio do cinema, apesar alguns sobressaltos, é atravessado pelos efeitos mais deletérios do liberalismo.

Um “modelo social”?


No melhor dos casos, o meio do cinema evoca algo da ordem da máfia. Uma pequena selva pouco democrática feita de relações de poder, de medos, de adulações, de rivalidades, de reputações, de fofocas e maledicências… mas, claro, também de alegres festas, de sedução, de desejo e de prazer. Em suma, uma pequena sociedade pela qual muitos são apaixonados, que muitos desprezam (são as vezes os mesmos!), da qual muitos ainda se sentem excluídos. Todas essas coisas um pouco mafiosas são talvez mais simpáticas que a burocracia administrativa atrás da qual se protege por vezes a democracia, mas isso não é suficiente para considerar uma outra maneira de pensar e viver juntos… E aliás, bem rápido, esse conjunto que apareceu aqui e ali nas intervenções “coletivas” dos cineastas soou falso: pois além da utilização mediática de patronímicos, sem uma comunidade de filmes, um coletivo não corresponde mais a nada. No melhor dos casos, ele se constitui como um encontro mundano para cineastas reconhecidos que precisam de formação política. É bem difícil formar uma comunidade com cineastas que estão, depois de muito tempo, sentados sobre sua esperteza (e/ou sua ingenuidade cultivada), e que utilizam as engrenagens de um sistema sem mesmo inscrever nos seus filmes uma visão de mundo que seja um pouco… admirável.

A arte não quer saber da democracia


Eu não defendo uma democracia mole e 
estúpida que nivelaria por baixo. Graças a Deus, a arte não quer saber da democracia! Meu objetivo também não é pregar uma revolução política no coração do meio do cinema. (Eu não quero mais do que ninguém passar mais tempo me batendo por esse meio que fazendo filmes! Meu engajamento no ACID, no Prix Sadoul e na Lettre du Cinéma são amplamente suficientes para ocupar o tempo que eu lhes consagro.) Não se trata, enfim, de dizer que os cineastas não são sempre muito brilhantes em matéria de engajamento político, pois eles não têm mais (ou menos) vocação para isso que qualquer um… Eu me pergunto apenas, e eu lhes pergunto por que, sofrendo ao mesmo tempo a violência do meio do cinema e aquela da sociedade por completo, e quaisquer que sejam ademais as suas qualidades, eles produzem tantos filmes higienizados!

Como se, bizarramente, quanto mais os tempos fossem
difíceis, maior era o medo de perder o seu lugar (de não fazer mais filmes), e mais tímidos eram os filmes… terrivelmente limitados pela ideia de “agradar” em detrimento do resto (“já está bom” garantir as entradas…). Como se o derradeiro objetivo, o maior dos prazeres não fosse justamente de fazer da própria complexidade do mundo o gozo do espetáculo.

Diríamos que os autores, os autores franceses neste caso, tem terrivelmente medo, desde que eles começam a pensar um pouco, de se transformar numa “dor de cabeça”, de ter que afrontar processos pujadistas, ainda em curso, contra os filmes de autor “intelectuais” e “umbiguistas” …

Francamente Hélène você conhece muitos, você, filmes que te deram uma verdadeira “dor de cabeça” esses tempos? Filmes que estimulam, pela sua inteligência, sua própria inteligência? Que decepção em relação aqueles que tinham mostrado alguma ambição e que, de medo de afastar o seu público, se deixaram cair num academicismo retumbante, em simplificações deprimentes!

Eu me interrogo, então, sobre o nivelamento de fato de muitos filmes ditos de autor. Existiria aí o sintoma de uma certa tendência atual do cinema francês? Nesse caso, ela não seria somente imputável aos autores de filmes, mas também às condições “históricas” nas quais os filmes são produzidos. Pois, nós o sabemos desde Rivette, o filme só conta no fundo a história de sua filmagem. E essa história, no clima atual, é frequentemente triste. É o percurso do combatente, onde dominam a frustração e a autocensura. Uma forma de infantilização do autor, ela mesma proveniente da sua incapacidade de pensar a produção com o (ou os) produtor(es). No final, cada vez menos filmes são produzidos, cada vez mais caros, e todo mundo tem medo. Trata-se também, por vezes, da hesitação dos produtores. Alguns apostam nos autores, mas todos receiam que eles o sejam demais: “Autores” demais, autobiográficos demais, demais tristes e entediantes. A moda são as comédias. Porquê não, se não nos impedimos de ser eventualmente cruéis... Nada mais irreverente que o riso, no cinema como na política!

Longe de opor os filmes “políticos” ou as comédias sociais às histórias de amor, longe de pedir para cada filme convocar A política por inteiro, na verdade, eu peço aos filmes de estarem ao menos à altura das contradições que contariam as histórias das suas filmagens. Eu gostaria, por exemplo, que nenhum cineasta se autorizasse a filmar a história de amor que ele escreveu, quando ele descobrisse que ela é menos interessante, menos verdadeira, que a menor historieta que nunca deixa de acontecer numa filmagem!

Retomemos. Tudo se passa como se, para preservar o lugar de cineastas reconhecidos que eles adquiriram a alto preço, os cineastas estivessem cegos (um cúmulo!) às contradições de seu meio. Se tornaria muito doloroso olhá-las de frente, ou se trata simplesmente de consciência pesada?

Duro se bater pela verdade quando não falamos verdadeiramente de um lugar verdadeiro. Não é preciso buscar mais longe a origem de um mal-estar confuso, essa mistura de não-ditos e da má fé, essas falsas hesitações entre a ação e o pensamento (e os conceitos que florescem, como “o humanitário do pensamento”)!, que foram expressos durante as reuniões de cineastas signatários, e que terminam por deixar um gosto amargo. Se somente os peticionários trabalhassem mais para criar para e com os seus próprios filmes um lugar verdadeiro no coração do meio do cinema, um lugar livre e coerente, ao invés de ocupar os lugares que nós os outorgamos... O ato seria de uma tal violência, de tal coerência com a exigência de verdade, que não seria mais necessário se entrincheirar friorentamente atrás da ideia muito geral e no fundo muito convencional que é preciso refletir em como “fazer política de outra maneira”! Me retorquirão que eu não tenho que dar lições a ninguém, que eu não fiz ainda meu primeiro filme nas condições ditas “profissionais” ... Certamente. Eu não creio que seja necessário, contanto, reprimir a minha experiência sobre a minha juventude e a minha inexperiência. Você sabe bem, Hélène, que essa cólera é sobretudo uma maneira de me obrigar eu mesma a assegurar, quando o dia chegar, a filmagem! 


Viva o cinema!


Eu gostaria agora de falar de dois filmes que contradizem totalmente minhas afirmações! Mais exatamente: eu gostaria de articular meu ponto de vista com dois exemplos possíveis daquilo que eu chamo de uma exigência e coerência políticas, de cineasta. Esses dois filmes são Marius et Jeannette de Robert Guédiguian e Jeunesse sans Dieu de Catherine Corsini.

O delicioso filme de Robert Guédiguian é o trabalho de um cineasta que, armado de um ponto de vista político sobre o mundo, claramente consciente dos efeitos do capitalismo, sabe olhar desse ponto de vista as relações mais íntimas entre as pessoas, e chega na obra-prima. Eu noto, além disso, que Robert Guédiguian é também produtor dos seus filmes, o que não pode ser estranho ao sucesso do empreendimento. Sentimos que as pessoas que fizeram esse filme viveram tão intensamente quanto aqueles que o filme conta a história. Marius et Jeannette consegue mesmo, de maneira sublime, nos fazer rir e amar um personagem que se deixou uma vez votar no Front National – “Uma vez, só uma vez, você não vai ainda assim me odiar durante toda a vida?!”, ele diz à sua mulher... Nós amamos esse personagem, e nós rimos dele, mas com ele, porque o filme testemunha um amor, uma alegria de viver, uma inteligência e uma confiança que permitem descobrir, com uma acuidade absoluta, a relação entre uma deriva passageira e uma estupidez geral. Não há aqui nenhuma prática política “nova”. Apenas a construção risonha mas rigorosa da história, que mostra que nenhuma alienação é tão ameaçante que ela não resista à nossa exigência. 

Eu não tenho reservas em relação do filme de Robert Guédiguian, ele é genial! Simplesmente, eu me digo que é mais simples mostrar a inteligência, o amor e a dignidade de personagens que não tem nem privilégio nem poder que personagens que, tendo um pouco disso tudo, são condenados a não ser nunca mais tão puros. Se eu pudesse passar uma encomenda para Robert Guédiguian para o seu próximo filme, eu lhe pediria que me mostrasse o que se tornou a filha de Jeannette (a caixa demitida, heroína de Marius et Jeannette), que foi para Paris para fazer jornalismo. Como ela se sairá, a quais compromissos ela se submeterá? 

Ao contrário do tom profundamente alegre do filme de Robert Guédiguian, o muito perturbador Jeunesse sans Dieu de Catherine Corsini carrega a figura do intelectual em período de crise. A primeira vez que eu vi o filme, eu me perguntei se não seria uma facilidade situar o filme na Alemanha, na época em que o nazismo se arrastava, invés de nós falar de hoje. Mas Catherine Corsini não finge. Um pouco perdida, ela procura se aproximar do local onde isso bloqueia (com risco de perder o “contrato-sedução” de seu filme): a ambiguidade da sua relação com o mal. Um jovem professor humanista que ensina a igualdade entre os homens se encontra rejeitado pelo fascismo de seus alunos. Sobre essa trama, Corsini não se contenta com a inevitável parte de “fascinação” pelo mal... Ela vai além, até a ingratidão implícita do tema, que muitos teriam evitado. “Nos falando de ontem, da época do nazismo em ascensão, o filme nos fala de hoje” dizia ela em Cannes no ano passado. É verdade, mas não exatamente lá onde nós esperávamos. Se o filme nos dá medo por hoje, não é um medo do inimigo neofascista, claramente designado sob a etiqueta “Front National”, mas sobretudo o medo de nós mesmos, da nossa própria renúncia, o medo de não ter mais vontade de transmitir a inteligência, por amargura, por indiferença...

Há dias em que, como o personagem principal, toda pessoa em posição de transmitir (professor, cineasta, artista, intelectual...) está bem cansada de convencer e de esperar ser ouvida. Figura do desencorajamento face à estupidez, esse professor é um personagem de ficção complexo, à altura do desengajamento dos intelectuais, bem antes das leis Pasqua. Oprimido pela inércia, tão triste quanto covarde, ele está sempre à beira de abandonar os outros às suas situações. In extremis, ele escolherá a violência da verdade.

Jeunesse sans Dieu coloca que a covardia, o desprezo e o ódio surdo podem atingir àqueles que pretendiam aí resistir, mas que, vendo a inteligência tão puramente e simplesmente ridicularizada, não podem mais (se) confiar. Onde estamos hoje? Devemos pensar nessa questão.

Catherine Corsini nos mostra sinceramente uma figura da impotência e questiona o reino da vertigem do ódio e da desconfiança. Contudo, Robert Guédiguian nos transmite deliciosamente a confiança...

Cara Helène, por minha vez, eu confio em você – a seguir...
Judith Cahen


[1] A lei n° 97-396, de 24 de abril de 1997, permite o confisco do passaporte de estrangeiros em situação irregular e autoriza também o registro das impressões digitais daqueles que solicitam um titulo de permanência. Ainda, a lei obriga aos cidadãos franceses de notificar a prefeitura da presença de estrangeiros hospedados em suas casas. Nesse contexto, nasce então o apelo de desobediênca civil promovido pelos cineastas. (Esta nota e as seguintes são da tradução, com informações obtidas de fontes diversas).
[2] Companhia Republicana de Segurança.
[3] Movimento radical da juventude judaica representativo da extrema direita sionista.
[4] Section Carrément Anti-Le Pen: rede francesa antifascista, radical e libertaria de extrema-esquerda.
[5] Rede associativa francesa de extrema-esquerda criada em 1990 com o objetivo de lutar contra o Front National e suas idéias.
[6] Estrangeiros em situação irregular.

Essa correspondência entre Judith Cahen e Hélène Frappat foi publicada na revista La Lettre du cinéma, n° 2, em maio de 1997. Tradução: Leticia Weber Jarek.