Dirigido por Júlio Bressane e Eduardo Escorel, Bethânia bem de perto – a propósito de um show (1966) representou na trajetória de Bressane a segunda incursão no curta-metragem. Antes, no mesmo ano, ele havia rodado Lima Barreto - trajetória, mas a partir de Bethânia, Bressane delineará algumas de suas obsessões. Notadamente a busca por um diálogo com a música popular brasileira.
Uma das coisas que mais se destaca no curta é o protagonismo do som. Em primeiro lugar, por que o filme enquadra um momento muito delicado na história da música brasileira: os primeiros passos de ascensão da Tropicália, que culminará na segunda metade dos anos 60 com a consagração midiática nacional. Trata-se aqui de uma música então nascente, e das primeiras experiências de personagens, hoje célebres, que vinham da Bahia para o Rio de Janeiro, com destaque para a figura de Maria Bethânia, que chega ao Sudeste, a convite de Nara Leão, que a havia conhecido em Salvador, para participar do show “Opinião”. A partir deste momento começa a sua primeira temporada na boate Cangaceiro - onde será encontrada pelos realizadores.
Logo no começo do filme somos lançados naquilo que Ismail Xavier qualifica como montagem vertical: o choque expressivo entre a imagem e o som. A câmera deambula na entrada da boate, flagrando os burgueses em fila, aguardando o início do show. Na banda sonora, Bethânia, em outro momento, discursa sobre a saudade que sente da Bahia e começa a descrever sua relação com a distância de casa, como introdução à sua performance. Este é um deslocamento fundamental para compreendermos este capítulo da música popular brasileira. O que se constrói a partir daqui é um diálogo entre o Nordeste e o Rio, capital cultural de então.
Para uma nova música, uma nova voz. E Bethânia representa, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé (o núcleo baiano da Tropicália), esta renovação no quadro da música brasileira. Tudo isto em função também da necessidade de ampliação do modelo representado pela Bossa Nova, movimento preparador da Tropicália, mas fundamentado em outros valores e que em função de seu berço estritamente burguês, travava um diálogo limitado com a tradição cultural do Brasil profundo, objeto privilegiado pela Tropicália.
Nesta apropriação do folclore, destacam-se as expressões religiosas – que no filme é expresso na música de São João e na Ave Maria em Latim, articuladas a certa mítica do universo sertanejo. Tudo impregnado do exercício de inovação, do diálogo com a música de vanguarda, numa aproximação entre o popular e o experimental – tônica desta nova geração.
O dado essencial deste filme, porém, é que se trata aqui de um exercício de Cinema Direto, cuja grande colaboração na construção do cinema moderno foi a implementação do “som direto”, captado no momento da filmagem através de um gravador portátil - como o célebre Nagra - e que facilitava a posterior sincronização. Isto permitiu um ganho de realismo nunca antes experimentado na história do cinema. Em primeiro lugar porque inscreve o aparato cinematográfico dentro da privacidade dos personagens. Em determinado momento, por exemplo, Maria Bethânia estranha e descreve a câmera como uma “máquina calminha”, pois esta, diferente do que ela deve ter visto em outras circunstâncias, era própria para este tipo de captação.
Bethânia Bem de Perto é um documentário observacional. A câmera na mão permite a investigação de nuances expressivas, gestos, detalhes. Por exemplo: a maneira como ela segura o cigarro ou o copo de cachaça, ou as fotos coladas no violão. Imprimindo naqueles bastidores uma função claustrofóbica, além da já referida invasão de privacidade.
Aqui a nova música e a nova voz encontram uma nova forma de filmar, um cinema novo. Neste sentido, o filme interage muito mais com o que estava sendo produzido no Rio de Janeiro no contexto do Cinema Novo, por realizadores como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade entre outros, do que com aquilo que Júlio Bressane, ao lado de Rogério Sganzerla, encampará a partir de 1969, como Cinema Marginal.
Observação e acompanhamento são, nesta lógica, as funções principais do aparato. Entretanto, o nível de intimidade estabelecida no filme é tão grande que em determinado momento Bressane começa um bate-papo despretensioso: um leve jogo de perguntas e respostas. Aqui, interessa o estabelecimento de uma atmosfera confessional, um contato com a essência da personagem através da sua voz. A busca por um desnudamento.
Neste instante nasce uma das passagens mais célebres do filme: a conversa sobre Roberto Carlos, então o mais popular artista brasileiro. O rei. O realizador pergunta à Bethânia se ela conhecia Roberto Carlos e ela responde que não. Depois admite que sendo Roberto Carlos o cara mais famoso do Brasil, seria impossível ela não o conhecer. Diz que ouviu E que tudo mais vá pro inferno (sic, o título da música é Quero que vá tudo pro inferno) e achou uma pobreza. E diz ainda, com uma impetuosidade arrogante, que poderia inovar Roberto Carlos se quisesse.
Maria Bethânia aqui representa e expressa, na voz e no corpo, a juventude. Trata-se de uma garota (apesar da memória projetar a imagem da velha sobre a imagem da nova). Uma garota de vinte anos. Sua atitude, sua arrogância, a juventude de sua postura, capturadas pela câmera, fascinam. Na cena, por exemplo, em que o empresário estrangeiro procura contratá-la para uma turnê na Europa, enquanto a câmera vasculha os gestos e as expressões do grupo, vemos que todos em torno de Bethânia estão mais atentos, principalmente Caetano Veloso - que provavelmente foi um dos responsáveis da ida da irmã para o Sudeste. Enquanto isso ela folheia uma revista, tira um sarro.
Neste sentido, é curioso como, na banda sonora, nas passagens em que o filme nos transporta para o palco, a voz assume o primeiro plano enquanto a banda forma uma espécie de pano de fundo difuso. Isto encontra eco na imagem: a moldura expressionista com foco único de luz sobre a cantora, isolada, rodeada de trevas. Da jovem relativamente frágil dos bastidores Bethânia é transfigurada: por sua performance, por sua voz, pelo chiaroscuro aterrorizante, pelo gestual e liturgia do palco.
No depoimento sobre Roberto Carlos, flagramos a atitude da vanguarda em relação à cultura de massa. Roberto Carlos era o ponta-de-lança do movimento da Jovem Guarda, a tradução do rock americano e inglês no Brasil, que descambará desde seu surgimento, na música brega.
A partir dos anos 1970, aquela agressividade roqueira da Jovem Guarda se transfigurará em lamúria. O movimento era o grande inimigo da Bossa Nova, cujos protagonistas o consideravam absolutamente alienante. Acusavam esta música, e os programas de rádio e TV de seus atores, de ser um veículo oficial da ditadura militar, uma de suas ferramentas de controle. Entretanto, na antropofágica salada cultural da Tropicália (me passa a salada, por favor) interessava abrir um diálogo com a cultura de massa, com o rock, o que está na base, por exemplo, do trabalho do grupo paulista Os Mutantes. À maneira de Oswald de Andrade e da Semana de Arte Moderna de 1922, a Tropicália interagia com absoluta curiosidade com o rock, com a guitarra elétrica e, também, com a Bossa Nova e a Jovem Guarda ao mesmo tempo. Incluído aqui o cinema de Júlio Bressane, no qual a música radiofônica de maneira geral será um signo fundamental. O próprio Roberto Carlos reaparecerá, no fim dos anos 60 no filme Matou a família e foi ao cinema.
O curta porém, flagra no depoimento de Bethânia um momento preliminar: o da recusa. Trata-se aqui de uma transição. Se por um lado se recusa tudo àquilo que Roberto Carlos pode representar, por outro já flagramos também a recusa a um modelo excessivamente morno, o da bossa nova de João Gilberto por exemplo. Em determinado momento, no avançar das noites de apresentação, Bethânia exige dos músicos andamentos mais ligeiros (“Noel ta cortando a minha onda”), expressando o seu “ódio ao meio-termo”: ela prefere músicas violentas ou músicas românticas; odeia “Barquinho” porque esta fica entre “Marina” e “Viramundo”.
Presenciamos o aumento na velocidade e agressividade, que parece propor uma aproximação mais justa com o “modelo Roberto Carlos”. Aproximação esta que, aliás, Maria Bethânia, bem como os outros membros da Tropicália, fará nos anos posteriores.
Outro episódio que marca esta transição é a presença de Billie Holiday na vitrola. Em determinado momento estamos num apartamento e o ambiente é completamente “bossa nova”: Zona Sul do Rio de Janeiro, cigarros, vinhos e a atmosfera pequeno-burguesa de vanguarda. Aqui pela abertura sonora e pela disposição dos personagens em cena, entramos neste universo: o da elite cultural, consumidora de jazz.
Já na última cena reencontramos este grupo de amigos e o registro empreende um exercício de aproximação e afastamento. Eles passeiam e brincam na cidade, raro momento de arejamento no filme, com a câmera registrando à distância, num estilo que contrasta radicalmente com as imagens coladas ao corpo dos bastidores. A despedida é a saída do claustro para o mundo, a fuga da gaiola e o vôo.