Por Serge Daney
O sucesso dos reality shows marca talvez um duplo fenômeno de apropriação da televisão pela sociedade e de formatação do indivíduo adequado. O preço a pagar é, todavia, considerável: nada menos que o apagamento da ideia de experiência humana.
Como todo barco que acaba de entender que pode afundar, a televisão se tornou interessante e verdadeiras questões perfilam enfim no horizonte de nosso cátodo exaltado. Algumas destas questões são totalmente sólidas. Por exemplo, em que condições os canais, afim de produzir os seus elos de amanhã (vocês, eu, mas em versões mais dóceis, menos reclamonas), trabalham a partir de hoje nas novas formas de vigilância social? Que papel terá desempenhado a televisão no grande negócio que agita os países ultramodernos, a saber, o estabelecimento de um verdadeiro mercado do indivíduo (que não é talvez mais que um simpático mercado de escravos)?
Pois se a televisão começou por conquistar o mercado, seria ingênuo pensar que esta conquista seria suficiente para produzir a mercadoria adaptada ao mercado, ou seja, o indivíduo “profissional” de hoje. Já há muito tempo, nós assistimos à formatação deste novo herói do nosso tempo: cada vez mais personalizado, credenciado, alfinetado, quer dizer, reduzido ao folclore berrante de sua pequena diferença. Ninguém, evidentemente, pensou esse processo, mas foi possível, há alguns anos, acompanhar alguns desses episódios. O autor destas linhas, por exemplo, se sentiu muitas vezes bem sozinho para garantir este acompanhamento.
Não vamos voltar demais aos episódios conhecidos: A reformulação da equipe da comunicação no sentido de uma des-legitimação progressiva de seus membros[1]. As antigas razões que asseguravam um certo direito de intervir no espaço público (paixão, pedagogia, competência, talento, beleza, raridade) tiveram de ceder o lugar ao mau-comportamento de um mercenarismo vazio mas simpático e sem floreados. Tornou-se constrangedor ser o "Sr. Sabe-Tudo" num meio que edifica seu poder sobre a partilha igualitária da ignorância e da indiferença médias.
Esta des-legitimação atingiu duramente os homens políticos, seres ingênuos que não viram que, de tanto se verem tão belos nas suas "horas de verdade", alimentaram nada menos que o nacional-lepenismo, e apenas ele. Daí os amargos debates: democratização ou consenso? Consenso ou demagogia? Demagogia ou fascisação (frouxa)? O fato é que esta des-legitimação não poupou nenhum setor da "representação social", incluindo jornalistas.
Grosso modo, a sociedade burguesa parou de pagar aos griots da boa vontade a fim de representar seus próprios valores, preferindo, ao velho teatro do dissenso sonoro, as imagens em looping do silêncio consensual. Isso só pode fazer sonhar qualquer um que tenha vivido a crise da idéia de representação, teoricamente maltratada nos anos 1960 e totalmente dilacerada em 1968. Teríamos exagerado? Quem vai repensar tudo isso?A televisão foi o lugar recente desta transição. Foi necessária a política caprichosa e nula dos socialistas franceses para que o bom povo compreendesse enfim que a tevê estava escapando dos notáveis, dos tubarões e dos educadores e poderia se tornar enfim sua própria coisa, quer dizer, tão frívola e indefesa quanto ele. Este é todo o sentido do apoio à La Cinq, transformada em alguma coisa entre Justine e a Santa Cinq depois que ela foi vista, de repente tão humana, informando sobre ela mesma e choramingando (com razão) sobre os seus males e os infortúnios de sua virtude.
A tevê enfim entregue ao povo? Por que não? É, ao menos, o que dizem do lado dos lobinhos da Sygma-TV. Contudo, não se deve acreditar, aqui também não, que uma tal operação possa se fazer completamente sozinha. A tevê não será entregue ao povo a não ser que o povo se torne ao mesmo tempo um "tele-povo", e serão necessários, lá como em qualquer outro lugar, técnicos para trabalhar (e aproveitar) esta mutação. Pois se trata de um grande negócio: a re-formatação do referido povo, a quem é exigido interpretar o seu papel, mas não somente sob a forma de massa inerte, de audiômetro justiceiro, de candidatos imbecis ou de gado que aplaude, mas efetivamente de heróis personalizados.
Daí os programas como La nuit des héros (A noite dos heróis) ou Perdu de vue (Perdido de vista) títulos onde se lê bem a ideia de emergência em plena luz do dia ou de retorno à luz. Pois não se trata evidentemente nestas emissões de qualquer tipo de heroísmo (mesmo os tipos bem paradoxais), mas unicamente de pequenos fait divers que vão no sentido único (e familiar) de uma mitologia da redenção e do segundo nascimento. Na época da new age, é preciso aceitar a ideia de que um tal mito possa ser, em última análise, o único horizonte de uma televisão que, por outro lado, renunciou a quase tudo.
Isso é bom? Isso é mal? É certo, em todo caso, que o resultado não é, esteticamente, "olhável". Também é provável que se isso funciona tão bem, é porque não interessa o olhar (pois existe no olhar uma possibilidade de recuo crítico, de impulso ético ou de veredito estético) mas sim outra coisa. Nada menos que o aprendizado coletivo dos gestos pelos quais uma grande massa de excluídos aprenderá a interpretar o seu papel nos roteiros "personalizados" assegurando que são - enfim! - os seus. Por que não?
Se assim for, é certo que esta mutação põe em crise outras mitologias, aquela do artista, certamente, mas aquela do ator também. Pois o que é um ator senão o homem de uma paixão imemorial, esta paixão de ser um outro que pre(dis)põe alguns entre nós a "assumir", para representá-la, a experiência dos outros?
Este é evidentemente o sentido dos ataques de Patrick Sébastien contra La nuit des héros. No momento em que todos nós somos convidados, com antecedência, a sermos um por um os heróis de nossas próprias vidas (as vidas que agora nós "possuímos" e das quais nós acabaremos aprendendo a vender o copyright), como o ator-imitador profissional não se sentiria ameaçado no seu ser? Chega a ele, na verdade, uma terrível suspeita: seu talento particular interessaria muito menos ao seu público que o não-talento (ou mesmo a nulidade desoladora) destes "heróis" saídos da noite e que, warholianamente, retornam a ela!
A "paixão de ser si mesmo" substituirá, ao termo, a "paixão de ser um outro"? Se trataria de um momento - muito medíocre, mas provisório - da grande história da emancipação humana que, mesmo irregular, seculariza as crenças e individualiza os homens há séculos? É suficiente que, cada vez, se redesenhe as fronteiras entre o mercado profano e o humano profanado, quer dizer a parte de sagrado e de inegociável (chamemos isso de outro) que permanece(rá) sempre no coração do animal humano? Podemos pensá-lo, certamente, mas um pensamento em si sem alegria.
Pois nesta história de mercado do indivíduo, na qual os reality shows americanos são o último sintoma datado, vemos bem o que deve ser perdido e o preço que deve ser pago. Perdida de vista, definitivamente, a ideia de experiência humana. É como se a televisão tivesse sentado, de uma só vez, todo um povo sobre o divã de um psicanalista que trabalharia "em cadeia" (sic) e que, em vez de escutar calado as belíssimas elucubrações do "eu" lendário, aplaudiria o seu cliente desde a primeira sessão lhe dizendo: você é sublime, o que você contou é exatamente o que você viveu, lhe reinterprete na nossa casa estilo-tevê (que é, aliás, a sua casa) e você será curado.
Poderíamos jogar fora tão rápido o bebê da experiência humana com as águas (sem dúvida usadas) de alguns séculos recentes? Isso não parece razoável. Até a uma data muito recente, aquele que, por gosto ou por profissão, fazia perguntas a seus semelhantes sabia que nada é menos facilmente comunicável que uma experiência. É mesmo nesta dificuldade que reconhecemos se tratar de uma experiência. "Foi muito rápido, eu não senti nada (não entendi nada, não vi nada...). Foi depois que... É muito difícil de explicar... Ainda hoje..." são as frases que milhões de gravadores e de toneladas de câmeras registraram durante eras.
E é exatamente porque a experiência escapa - desde que ela seja forte - que houve por tanto tempo mediadores (que vão do santo ao charlatão e do amigo ao traidor) para ajudar a encontrar "as palavras para dizer". E atores para lhe emprestar os seus corpos, artistas para quebrar a cara nesse processo e escritores para concluir, tristemente, como Virginia Wolf: "As experiências da vida são incomunicáveis, e é isso que causa toda a solidão."
Toda experiência que se reduz facilmente ao show de sua realidade não é uma experiência. Ou melhor, não é aquela do sujeito que disse que a viveu, mas aquela do grupo sem ideal, que preferirá sempre o espetáculo retificado e imitável do re-representável ao antiespetáculo íntimo do já-representado. Trata-se da própria possibilidade do "laço social", e não é preciso acreditar que, na época do seu esplendor, Hollywood tivesse feito outra coisa (basta rever os filmes de Sirk).
É então possível que o grande mercado do indivíduo à base de heróis descartáveis e de roteiros como deve ser tenha decidido passar, com a anuência dos interessados, à contra-ofensiva. É por isso que a ideia de verdade subjetiva "salta" um pouco por todo lado na televisão ou aparece como luxo elitista e definitivamente insuportável. É possível mesmo que o cátodo encontre enfim uma missão à altura dos interesses político-mitológicos do grupo France: aquela do catecismo.
Por que "catecismo"? Porque se trata de uma coisa séria, não totalmente cínica e que, como a publicidade, tem a ver com o Bem. Bem do qual os futuros atores da guerra econômica, uma vez evaporado o império (comunista) do Mal, terão necessidade para crer no sentido daquilo que eles fazem. Isso dito, o catecismo não é nem a fé do carvoeiro nem a ciência do teólogo, é um conjunto concreto de procedimentos patetas que transformam suas ovelhas em marionetes aceitáveis de uma crença da qual, há muito tempo, elas não têm mais a experiência.
Neste sentido, o catecismo de La nuit des héros ou de Perdu de vue é a aplicação bem-pensante e sufocada da emoção daquilo que o cinema pornográfico dos anos 1970 foi o trailer um pouco vazio. Por um lado, na verdade, os filmes X se amontoavam quase sempre sobre o "resultado" da experiência sexual (acreditando, os estúpidos, que bastaria vigiar os órgãos ao vivo e espiar o passarinho). Mas por outro, é verdade que estes filmes reconstituíram para o seu público o espetáculo idealizado e tranquilizante de uma foda contínua que tinha a nitidez da fantasia e a inalterável e masculina monotonia do mito.
Do mesmo modo, os reality shows da televisão americana (pois não nos esqueçamos jamais que só existe da televisão que a sua versão americana) substitui a experiência lacunar e o indizível daquilo que foi pelo show plano e contínuo daquilo que terá sido. "O que terá sido” é o resumo estético e o catecismo humanitário do qual terá necessidade todo "mercado do indivíduo". Este futuro anterior (que é, acredito, o tempo próprio ao audiovisual) é ao mesmo tempo retificação do real e visualização do real retificado.
É assim que nossos heróis vão, enfim, ver e saber a o que seria preciso que eles tivessem se parecido quando vierem evocar na tevê os fragmentos de sua biografia. E nós também, infelizmente!, nós vimos: é preciso que eles pareçam com a má tevê, com o mau cinema, com o mau teatro. O preço, parece, é pesado: para estar do lado do Bem coletivo (pois o grupo quer comungar na casa dele, à domicílio, com a sua tevê), é preciso que eles sejam muito ruins (mas terrivelmente humildes).
Diríamos que o catecismo não é a grande-missa e que ele não exige nem receio, nem tremores, nem mesmo "retorno do religioso". Ele quer somente que, clones antecipadamente disfarçados e indivíduos únicos, nós renunciemos para sempre a lembrança de ter vivido o que quer que seja que Pascale Breugnot não possa nos fazer reviver, segurando um pouco a nossa mão. Ou seja, mal, ainda que sob nossos olhos embaciados de gratidão (o que não faríamos para sermos amados!).
Finalmente, por trás da poeira nos olhos da tevê entregue ao povo e do indivíduo retirado de sua noite, ainda assim se trata da forma com qual, na França também, a vila exige o que lhe é devido.
[1] Neste sentido, as desventuras de PPDA (Patrick Poivre d'Arvor, NdT) auto-incrustado em Fidel Castro não podem senão alegrar o espírito).
Marché de l'individu et disparition de l'expérience foi publicado originalmente no jornal Libération, em 20 de janeiro de 1992, e republicado na coletânea La maison cinéma et le monde - Le moment Trafic. Tradução Miguel Haoni e Leticia Weber Jarek.
Como todo barco que acaba de entender que pode afundar, a televisão se tornou interessante e verdadeiras questões perfilam enfim no horizonte de nosso cátodo exaltado. Algumas destas questões são totalmente sólidas. Por exemplo, em que condições os canais, afim de produzir os seus elos de amanhã (vocês, eu, mas em versões mais dóceis, menos reclamonas), trabalham a partir de hoje nas novas formas de vigilância social? Que papel terá desempenhado a televisão no grande negócio que agita os países ultramodernos, a saber, o estabelecimento de um verdadeiro mercado do indivíduo (que não é talvez mais que um simpático mercado de escravos)?
Pois se a televisão começou por conquistar o mercado, seria ingênuo pensar que esta conquista seria suficiente para produzir a mercadoria adaptada ao mercado, ou seja, o indivíduo “profissional” de hoje. Já há muito tempo, nós assistimos à formatação deste novo herói do nosso tempo: cada vez mais personalizado, credenciado, alfinetado, quer dizer, reduzido ao folclore berrante de sua pequena diferença. Ninguém, evidentemente, pensou esse processo, mas foi possível, há alguns anos, acompanhar alguns desses episódios. O autor destas linhas, por exemplo, se sentiu muitas vezes bem sozinho para garantir este acompanhamento.
Não vamos voltar demais aos episódios conhecidos: A reformulação da equipe da comunicação no sentido de uma des-legitimação progressiva de seus membros[1]. As antigas razões que asseguravam um certo direito de intervir no espaço público (paixão, pedagogia, competência, talento, beleza, raridade) tiveram de ceder o lugar ao mau-comportamento de um mercenarismo vazio mas simpático e sem floreados. Tornou-se constrangedor ser o "Sr. Sabe-Tudo" num meio que edifica seu poder sobre a partilha igualitária da ignorância e da indiferença médias.
Esta des-legitimação atingiu duramente os homens políticos, seres ingênuos que não viram que, de tanto se verem tão belos nas suas "horas de verdade", alimentaram nada menos que o nacional-lepenismo, e apenas ele. Daí os amargos debates: democratização ou consenso? Consenso ou demagogia? Demagogia ou fascisação (frouxa)? O fato é que esta des-legitimação não poupou nenhum setor da "representação social", incluindo jornalistas.
Grosso modo, a sociedade burguesa parou de pagar aos griots da boa vontade a fim de representar seus próprios valores, preferindo, ao velho teatro do dissenso sonoro, as imagens em looping do silêncio consensual. Isso só pode fazer sonhar qualquer um que tenha vivido a crise da idéia de representação, teoricamente maltratada nos anos 1960 e totalmente dilacerada em 1968. Teríamos exagerado? Quem vai repensar tudo isso?A televisão foi o lugar recente desta transição. Foi necessária a política caprichosa e nula dos socialistas franceses para que o bom povo compreendesse enfim que a tevê estava escapando dos notáveis, dos tubarões e dos educadores e poderia se tornar enfim sua própria coisa, quer dizer, tão frívola e indefesa quanto ele. Este é todo o sentido do apoio à La Cinq, transformada em alguma coisa entre Justine e a Santa Cinq depois que ela foi vista, de repente tão humana, informando sobre ela mesma e choramingando (com razão) sobre os seus males e os infortúnios de sua virtude.
A tevê enfim entregue ao povo? Por que não? É, ao menos, o que dizem do lado dos lobinhos da Sygma-TV. Contudo, não se deve acreditar, aqui também não, que uma tal operação possa se fazer completamente sozinha. A tevê não será entregue ao povo a não ser que o povo se torne ao mesmo tempo um "tele-povo", e serão necessários, lá como em qualquer outro lugar, técnicos para trabalhar (e aproveitar) esta mutação. Pois se trata de um grande negócio: a re-formatação do referido povo, a quem é exigido interpretar o seu papel, mas não somente sob a forma de massa inerte, de audiômetro justiceiro, de candidatos imbecis ou de gado que aplaude, mas efetivamente de heróis personalizados.
Daí os programas como La nuit des héros (A noite dos heróis) ou Perdu de vue (Perdido de vista) títulos onde se lê bem a ideia de emergência em plena luz do dia ou de retorno à luz. Pois não se trata evidentemente nestas emissões de qualquer tipo de heroísmo (mesmo os tipos bem paradoxais), mas unicamente de pequenos fait divers que vão no sentido único (e familiar) de uma mitologia da redenção e do segundo nascimento. Na época da new age, é preciso aceitar a ideia de que um tal mito possa ser, em última análise, o único horizonte de uma televisão que, por outro lado, renunciou a quase tudo.
Isso é bom? Isso é mal? É certo, em todo caso, que o resultado não é, esteticamente, "olhável". Também é provável que se isso funciona tão bem, é porque não interessa o olhar (pois existe no olhar uma possibilidade de recuo crítico, de impulso ético ou de veredito estético) mas sim outra coisa. Nada menos que o aprendizado coletivo dos gestos pelos quais uma grande massa de excluídos aprenderá a interpretar o seu papel nos roteiros "personalizados" assegurando que são - enfim! - os seus. Por que não?
Se assim for, é certo que esta mutação põe em crise outras mitologias, aquela do artista, certamente, mas aquela do ator também. Pois o que é um ator senão o homem de uma paixão imemorial, esta paixão de ser um outro que pre(dis)põe alguns entre nós a "assumir", para representá-la, a experiência dos outros?
Este é evidentemente o sentido dos ataques de Patrick Sébastien contra La nuit des héros. No momento em que todos nós somos convidados, com antecedência, a sermos um por um os heróis de nossas próprias vidas (as vidas que agora nós "possuímos" e das quais nós acabaremos aprendendo a vender o copyright), como o ator-imitador profissional não se sentiria ameaçado no seu ser? Chega a ele, na verdade, uma terrível suspeita: seu talento particular interessaria muito menos ao seu público que o não-talento (ou mesmo a nulidade desoladora) destes "heróis" saídos da noite e que, warholianamente, retornam a ela!
A "paixão de ser si mesmo" substituirá, ao termo, a "paixão de ser um outro"? Se trataria de um momento - muito medíocre, mas provisório - da grande história da emancipação humana que, mesmo irregular, seculariza as crenças e individualiza os homens há séculos? É suficiente que, cada vez, se redesenhe as fronteiras entre o mercado profano e o humano profanado, quer dizer a parte de sagrado e de inegociável (chamemos isso de outro) que permanece(rá) sempre no coração do animal humano? Podemos pensá-lo, certamente, mas um pensamento em si sem alegria.
Pois nesta história de mercado do indivíduo, na qual os reality shows americanos são o último sintoma datado, vemos bem o que deve ser perdido e o preço que deve ser pago. Perdida de vista, definitivamente, a ideia de experiência humana. É como se a televisão tivesse sentado, de uma só vez, todo um povo sobre o divã de um psicanalista que trabalharia "em cadeia" (sic) e que, em vez de escutar calado as belíssimas elucubrações do "eu" lendário, aplaudiria o seu cliente desde a primeira sessão lhe dizendo: você é sublime, o que você contou é exatamente o que você viveu, lhe reinterprete na nossa casa estilo-tevê (que é, aliás, a sua casa) e você será curado.
Poderíamos jogar fora tão rápido o bebê da experiência humana com as águas (sem dúvida usadas) de alguns séculos recentes? Isso não parece razoável. Até a uma data muito recente, aquele que, por gosto ou por profissão, fazia perguntas a seus semelhantes sabia que nada é menos facilmente comunicável que uma experiência. É mesmo nesta dificuldade que reconhecemos se tratar de uma experiência. "Foi muito rápido, eu não senti nada (não entendi nada, não vi nada...). Foi depois que... É muito difícil de explicar... Ainda hoje..." são as frases que milhões de gravadores e de toneladas de câmeras registraram durante eras.
E é exatamente porque a experiência escapa - desde que ela seja forte - que houve por tanto tempo mediadores (que vão do santo ao charlatão e do amigo ao traidor) para ajudar a encontrar "as palavras para dizer". E atores para lhe emprestar os seus corpos, artistas para quebrar a cara nesse processo e escritores para concluir, tristemente, como Virginia Wolf: "As experiências da vida são incomunicáveis, e é isso que causa toda a solidão."
Toda experiência que se reduz facilmente ao show de sua realidade não é uma experiência. Ou melhor, não é aquela do sujeito que disse que a viveu, mas aquela do grupo sem ideal, que preferirá sempre o espetáculo retificado e imitável do re-representável ao antiespetáculo íntimo do já-representado. Trata-se da própria possibilidade do "laço social", e não é preciso acreditar que, na época do seu esplendor, Hollywood tivesse feito outra coisa (basta rever os filmes de Sirk).
É então possível que o grande mercado do indivíduo à base de heróis descartáveis e de roteiros como deve ser tenha decidido passar, com a anuência dos interessados, à contra-ofensiva. É por isso que a ideia de verdade subjetiva "salta" um pouco por todo lado na televisão ou aparece como luxo elitista e definitivamente insuportável. É possível mesmo que o cátodo encontre enfim uma missão à altura dos interesses político-mitológicos do grupo France: aquela do catecismo.
Por que "catecismo"? Porque se trata de uma coisa séria, não totalmente cínica e que, como a publicidade, tem a ver com o Bem. Bem do qual os futuros atores da guerra econômica, uma vez evaporado o império (comunista) do Mal, terão necessidade para crer no sentido daquilo que eles fazem. Isso dito, o catecismo não é nem a fé do carvoeiro nem a ciência do teólogo, é um conjunto concreto de procedimentos patetas que transformam suas ovelhas em marionetes aceitáveis de uma crença da qual, há muito tempo, elas não têm mais a experiência.
Neste sentido, o catecismo de La nuit des héros ou de Perdu de vue é a aplicação bem-pensante e sufocada da emoção daquilo que o cinema pornográfico dos anos 1970 foi o trailer um pouco vazio. Por um lado, na verdade, os filmes X se amontoavam quase sempre sobre o "resultado" da experiência sexual (acreditando, os estúpidos, que bastaria vigiar os órgãos ao vivo e espiar o passarinho). Mas por outro, é verdade que estes filmes reconstituíram para o seu público o espetáculo idealizado e tranquilizante de uma foda contínua que tinha a nitidez da fantasia e a inalterável e masculina monotonia do mito.
Do mesmo modo, os reality shows da televisão americana (pois não nos esqueçamos jamais que só existe da televisão que a sua versão americana) substitui a experiência lacunar e o indizível daquilo que foi pelo show plano e contínuo daquilo que terá sido. "O que terá sido” é o resumo estético e o catecismo humanitário do qual terá necessidade todo "mercado do indivíduo". Este futuro anterior (que é, acredito, o tempo próprio ao audiovisual) é ao mesmo tempo retificação do real e visualização do real retificado.
É assim que nossos heróis vão, enfim, ver e saber a o que seria preciso que eles tivessem se parecido quando vierem evocar na tevê os fragmentos de sua biografia. E nós também, infelizmente!, nós vimos: é preciso que eles pareçam com a má tevê, com o mau cinema, com o mau teatro. O preço, parece, é pesado: para estar do lado do Bem coletivo (pois o grupo quer comungar na casa dele, à domicílio, com a sua tevê), é preciso que eles sejam muito ruins (mas terrivelmente humildes).
Diríamos que o catecismo não é a grande-missa e que ele não exige nem receio, nem tremores, nem mesmo "retorno do religioso". Ele quer somente que, clones antecipadamente disfarçados e indivíduos únicos, nós renunciemos para sempre a lembrança de ter vivido o que quer que seja que Pascale Breugnot não possa nos fazer reviver, segurando um pouco a nossa mão. Ou seja, mal, ainda que sob nossos olhos embaciados de gratidão (o que não faríamos para sermos amados!).
Finalmente, por trás da poeira nos olhos da tevê entregue ao povo e do indivíduo retirado de sua noite, ainda assim se trata da forma com qual, na França também, a vila exige o que lhe é devido.
[1] Neste sentido, as desventuras de PPDA (Patrick Poivre d'Arvor, NdT) auto-incrustado em Fidel Castro não podem senão alegrar o espírito).
Marché de l'individu et disparition de l'expérience foi publicado originalmente no jornal Libération, em 20 de janeiro de 1992, e republicado na coletânea La maison cinéma et le monde - Le moment Trafic. Tradução Miguel Haoni e Leticia Weber Jarek.
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