O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

The Post – A Guerra Secreta, vazamentos de luxo


Por Marcos Uzal

Relatando a revelação dos documentos secretos sobre a guerra do Vietnã em 1971, Steven Spielberg torna heroico, em um filme de tirar o fôlego, o contrapoder jornalístico e o surgimento dos primeiros denunciantes.

Em retrospecto, constatamos que a segunda parte de Tubarão – em que, por cinquenta minutos, três homens confinados em um barco conversam enquanto esperam um tubarão – anunciava uma veia do cinema de Spielberg, na qual aquele que foi considerado como o paladino do grande espetáculo adolescente parece ter encontrado uma forma de maturidade nos últimos filmes (Lincoln, Ponte dos Espiões): o “filme de câmara”, principalmente filmado em internas, onde as confrontações são antes de tudo verbais e as aventuras são os caminhos morais que levam a decisões.

The Post – A Guerra Secreta leva essa tendência muito longe, chegando a criar um suspense de tirar o fôlego unicamente com discussões, reuniões e ligações telefônicas. Como em quase todos os filmes de Spielberg, tudo gira em torno de um objeto fascinante, obsessivo, mas aqui a aparição extraordinária, o tesouro, o milagre não é senão um documento fotocopiado de 7000 páginas – um relatório secreto do departamento de Defesa dos Estados Unidos detalhando as tomadas de decisão do governo americano durante a guerra do Vietnã, revelando principalmente que o envio de tropas foi decidido antes do engajamento oficial, e depois prolongado para evitar a humilhação, visto que a derrota era desde muito tempo previsível. O filme segue precisamente a trajetória do documento, de seu furto por Daniel Ellsberg em um cofre da Rand Corporation à sua transcrição pelos jornalistas, passando pela sua paciente fotocopiagem e sua circulação em diversas caixas, sempre abertas com uma fascinação infantil por seus destinatários.

Escolhas, riscos e negociações

Mas essas gavetas que se abrem e essas tampas que se levantam são apenas as premissas da atualização definitiva, onde o segredo de Estado poderá dobrar o curso da história tornando-se público nas colunas de dois jornais concorrentes, o New York Times e depois o Washington Post em 1971. A aposta do filme é, portanto, menos o percurso do famoso dossiê do que as diversas escolhas, riscos e negociações que vão permitir sua difusão nos jornais. O relatório desvela uma série de más decisões, e é por outro encadeamento de decisões que ele poderá ou não ser publicado. O essencial se dá aqui entre Benjamin Bradlee (Tom Hanks), redator-chefe do Washington Post, e Katharine Graham (Meryl Streep), proprietária do jornal. Esta última conseguirá superar todas as pressões externas – emanando do governo, dos financiadores do jornal, de seus conselheiros jurídicos – até dar seu aval para Bradlee?

Acontece justamente que Ellsberg, antes de furtar os “Papéis do Pentágono”, tinha se destacado pelos estudos sobre a "teoria da decisão", notadamente em um contexto econômico. Ele está, assim, na origem de uma descoberta chamada “paradoxo de Ellsberg”, demonstrando que quando duas escolhas se oferecem a nós, nós pendemos geralmente para aquela cuja lei de probabilidade é a mais conhecida. Em outras palavras: preferimos o risco, cujas consequências possíveis são conhecidas, à incerteza, cujo resultado é desconhecido. Mas aqui acrescenta-se um fator essencial: a ética. Para Katharine Graham, o dilema é trair algumas amizades (inclusa uma ligação próxima de longa data com Robert McNamara, secretário de Defesa de 1961 a 1968 e homem que encomendou o relatório secreto) e comprometer seu jornal para que rebente a verdade; ou seja, escolher arriscar ao máximo seus interesses pessoais em nome do interesse comum. Aí reencontramos a ética pragmática tão celebrada pelo cinema clássico americano (Ford, Hawks), onde a bravura política é menos o fruto de um pensamento, e menos ainda uma ideologia, do que um gesto justo ou uma boa decisão realizados no momento certo. E pela coragem de sua decisão, isto é, para além de sua classe social e suas conivências políticas, esta rica herdeira se verá reverenciada como um exemplo pelas hippies e feministas, com as quais ela tinha, a priori, bem pouco a ver.

Na contramão da época

Spielberg consegue, por uma mise en scène tão lúdica quanto precisa, compartilhar com o espectador a aposta de cada troca, a excitação de cada descoberta e decisão. Nesse didatismo eufórico, contracorrente ao pessimismo da época, reside também a dimensão política dessa ode ao contrapoder que representa o jornalismo quando praticado com independência e temeridade. O filme é notavelmente muito belo em sua maneira de descrever o nascimento intelectual e, sobretudo, material de um artigo, de sua primeira versão datilografada até o amanhecer, onde ele é depositado diante de uma banca, após ter passado pelas prensas e impressoras rotativas, - filmadas como fascinantes robôs pelo diretor de A.I -, sem esquecer o detalhe das tesouras que cortam a alça envolvendo o maço de jornais antes de estes serem colocados à venda.




Certamente não é anódino que este filme, que diz o quanto o jornalismo deve estar “a serviço dos governados e não dos governantes”, surja em um momento em que esta profissão e a ideia mesma de verdade são particularmente ameaçadas por um presidente americano que cultiva a arte das fake news para desacreditar toda forma de informação. Além disso, é saboroso que Steven Spielberg tenha escolhido não mostrar Richard Nixon senão de muito longe, através da abertura de uma janela da Casa Branca, como uma pequena silhueta irritada em um escritório obscuro, imagem derrisória do sujo segredo mal guardado, da arrogância do poder que uma simples escolha de ângulo da câmera basta para relativizar.

« Pentagon Papers », leaks de luxe foi publicado no jornal Libération em 23 de janeiro de 2018 («Pentagon Papers», leaks de luxe – Libération (liberation.fr)). Tradução : Luiz Fernando Coutinho.

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