O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

“...Funesto” ou quatro divagações em torno de Francisca






Sobre Francisca de Manoel de Oliveira

Por Axelle Ropert

Argumento: Camilo, um jovem escritor pobre (Mário Barroso) e José Augusto, um ocioso aristocrata (Diogo Dória) frequentam as filhas do coronel Owen até o dia em que o segundo rapta Fanny (Teresa Meneses) que era, contudo, a preferida do primeiro. Camilo revela então a José Augusto a existência de uma correspondência secreta entre Fanny e um desconhecido. Mortificado, José esposa Fanny, mas decide nunca se unir fisicamente a ela. Fanny também se chama Francisca.

“Tu, me ofendendo, te tornaste digno de mim” ou Como duvidar de uma moça?

Francisca morre virgem e, contudo, casada. De A Marquesa d’O (Kleist) à Benilde (José Regio) passando por O Cavaleiro Des Touches (Barbey d’Aurevilly), Erhengarde (Blixen) e Tonka (Musil), as moças estão em mau estado, milagrosamente grávidas ou maculadas antes mesmo de terem conhecido um homem. Como ofender uma moça? Duvidando de sua virgindade, literalmente – será que ela ainda está intacta? – ou metaforicamente – será que ela pensa nas coisas do amor? Por que esse tema, cujo programa é definitivamente fixado por um dos personagens de Francisca (“produzir um anjo na plenitude do martírio”) é, na sua própria crueza, tão romanesco? Não na sua maneira de contaminar as aparências por uma dúvida universal, fingimento cuja incerteza generalizada seria a triste vitória, não mais do que acentuando a rigidez dos confrontos entre a inocência e a injustiça, rigidez, oh quão sedutora na sua violência. Não. A suspeita levantada contra o corpo virginal permite o surgimento daquilo que é a marca da heroína moderna – o suplemento da alma, justa consequência da infâmia da acusação e da reserva obrigatória do corpo. Qual é a necessidade desse suplemento da alma? O horror da acusação que toca uma moça é, no fundo, sempre a oportunidade de um contrato amoroso inesperado no qual ligam-se o culpado e a vítima numa reconciliação das mais estranhas. Um fingimento e uma negociação, uma mentira e uma troca deverão ter lugar entre os esposos, unidos para sempre por uma inevitável fabulação. Trata-se de um pacto para salvar a aparência, mesmo correndo o risco de atenuar as linhas da ofensa sob o véu de um contrato, pacto que permitirá a eles de se contarem histórias, de se “escreverem um romance”, mas dessa vez a dois – pois a moça sai vitoriosa dessa provação, ela ganhou uma alma.

“Eu sei o que é um sonho, e o pouco de crença que um homem deve dar à sua extravagância” ou Por que fugir dos presságios?

Existe uma geografia do impulso romântico? Ou melhor, pode-se amar e morrer em Portugal como na Inglaterra, na França ou na Alemanha? A Lord Byron e às irmãs Brontë pertencem as fugas desgrenhadas e a febre das vigílias, à Musset e à Constant o desespero dos filhos do século suavizado pelo exercício de uma lucidez sem falhas, à Novalis e à Schlegel a busca pela flor azul e as iniciações enigmáticas. No universo lusitano a presença do sul é enganosa. Nada é menos solar que este mundo, atormentado pela gravidade das atitudes, por esse gosto pelos interiores holandeses que devem menos à presença imponente do sol do que à proximidade perigosa do grande Oceano. A marca desse romantismo português, de Camilo Castelo Branco à Eça de Queiroz, de Agustina Bessa Luiz à Vittorio Nemesio, é a feição dos espíritos, espíritos nos quais a volubilidade lírica os disputam com a leveza da ironia, nos quais os sarcasmos caem sob o peso das declamações, espíritos decididamente voltados para o oceano e essa presença magnética que suscita todas as divagações, a do arquipélago dos Açores que envia um vento de loucura insular sobre o próprio continente e faz com que esses espíritos, esses nobres perturbados, percam a cabeça. Os tableux vivants de Francisca sussurram reminiscências, pressentimentos, analogias, irrupções terríveis tal qual o rapto de Fanny, com a ajuda da obscuridade, durante uma noite americana que reencontra sua vocação primeira – fazer chuva e sol e empurrar o artifício dessa vontade até às suas ressonâncias mitológicas. Tal qual também essa chegada de um cavalo no quarto de Camilo que se junta, no pavor do pégaso que ela suscita, aos medos do pequeno Hans de Friedrich Nietzsche, e do filho do Rei dos Álamos reunidos. O embalo das paixões, as inquietudes levadas à seus termos, a experimentação dos desafios mais absurdos, a resignação e os sobressaltos desses jovens obedientes ao “funesto”, impiedosa palavra de ordem desse universo que não para de anunciar a má notícia.




“Eu saio de mim quando ouço esse discurso” ou Quando é necessário falar?

José, Camilo e Fanny não se falam. Eles dirigem a palavra uns aos outros de frente para nós, direto nos olhos, e jamais suas perguntas e respostas se entrelaçarão. Francisca é um filme que não para de morrer sob os golpes do esvaziamento dessas palavras, dessa ligadura monocórdica e obstinada das vozes. José, Camilo e Fanny “são falados” através de suas frases pelo fluxo passional, autoritário e devastador, que se apodera de suas personas para se exprimir e morrem, não por terem amado e sofrido, mas por terem tido que suportar o peso dessa Voz passional que não pode fazer nada além de quebrar a frágil armadura humana. A língua portuguesa, hipnótica e insidiosa, age como um veneno que se infiltra nas veias e paralisa, pacientemente, os corpos de suas vítimas dobrando-se sob o encanto dessa voz inumana que os atravessa, corpos sempre a ponto de cair e obrigados, para lutar, a se endurecer e a não se deixar distrair por seus parceiros. Se José Augusto, Camilo e Fanny se aprumam de frente para nós, é por que eles olham o horizonte, atormentados por inverossímeis miragens que obrigam seus olhares a se manterem muito altos.

Algumas cenas se repetem de forma idêntica em Francisca, como se isso não fosse nada, como se a primeira vez não tivesse sido registrada, como se a segunda fosse a primeira, como se as cenas, instantaneamente voláteis, fossem esquecidas assim que vistas. Se Camilo, José Augusto e Fanny se repentem não é porque lhes falte memória, mas, como diria Charles Péguy, “lhes falta a memória”, prisioneiros do presente da paixão que recusa o passado e o futuro, presente deletério que congela as vítimas no que será o seu destino, incapazes de lembrar ou de prever. A crueldade da repetição se aparenta a uma curiosa operação anatômica que quer fixar aos corpos as profecias, cravar nos rostos o anúncio dos dias tristes, dar uma trajetória funesta a essas vidas.

“Eu quero que uma tristeza negra, a passos lentos, me consuma” ou O que pode uma alma?

Fanny Owen, em resposta a uma pergunta de José, pronuncia essa frase: “A alma é um vício.” A cena é repetida duas vezes, a primeira vez como sentença – se a alma é um vício, o que vai acontecer... –, a segunda vez como consequência – porque a alma é um vício, a alma de Fanny é viciada. Francisca faz parte desses filmes que, de Sob o signo de capricórnio (Hitchcock) à Amor à morte (Resnais) passando por La Malibran (Guitry), mostram a “tirania da alma”. O que a alma quer? A desapropriação daquele que a abriga. Como? Se a Alma é um vício, é no sentido próprio do termo, “uma imperfeição que torna uma coisa mais ou menos imprópria ao seu destino”, um defeito que, roendo por dentro os mecanismos do amor, conduz à sua perda as moças afligidas por essa deficiência, por esse acidente, por essa má-sorte. Mas, de novo, o que a alma quer? Digno dos contos mortíferos de Edgar Allan Poe, o plano impressionante do coração de Fanny repousando na capela ardente, opondo à dor interrogativa dos amantes o milagre da sua sobrevivência, é talvez uma resposta: exigir sacrificios para renascer infinitamente.

P.S.: as citações-títulos são de Pierre Corneille.

P.P.S.: Francisca será relançado muito em breve nas telas parisienses.

“...Funesto” ou quatre divagations autour de Francisca foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°5, primavera de 1998. Tradução: Miguel Haoni.

Nenhum comentário:

Postar um comentário