The Watermelon Woman (Cheryl Dunye, 1996)
Por Samy Benammar
“Sometimes you have to create your own history. The Watermelon Woman is fiction.” Assim se conclui o filme cult de Cheryl Dunye invertendo a percepção da narrativa e confirmando, como davam a entender os indícios disseminados no filme, que esse personagem, essa Watermelon Woman, figura libertadora da história das mulheres negras no cinema, lésbicas ainda por cima, era apenas uma construção, um arquivo fabricado do zero. Nessa frase, de uma simplicidade desconcertante, se condensa a potência de uma obra em que se misturam imagens de uma ficção onde a cineasta se põe em cena e o falso documentário que ela desenvolve partindo de uma cena deslumbrante. Ao pé da árvore, a Watermelon Woman que vem reconfortar a mulher branca é evidentemente relegada ao lugar de serva quando, contudo, sua candura, sua postura e sua mão serena colocada sobre o ombro invadem a tela. A cineasta que vê esse filme na televisão de tubo da videolocadora onde trabalha se apaixona por essa cena mas se dá conta de que sua ídola não foi identificada nos créditos, exceto por um apelido que nega sua identidade, transformando-a em um objeto intercambiável. No decorrer dos movimentos de Cheryl, a história entretanto se desenrola, a Watermelon Woman se torna Fae Richards e a fantasia prossegue através de um romance que ela teria tido com a realizadora Martha Page. Uma fronteira frágil se constitui entre o filme e sua produção porque essa escolha de inventar uma atriz negra dos anos 1920 e de chegar a criar documentos artificiais é o resultado de uma pesquisa infrutífera nos arquivos do congresso, onde as mulheres negras são apenas arquétipos, personagens funcionalistas e sem intimidade.
Se o letreiro final de Watermelon Woman é tão perturbador é que, diante dele, eu sinto um desejo de resistência: afirmar que uma pesquisa satisfatória permitiria fazer ressurgir verdadeiras imagens, que foi por falta de recursos que Cheryl não conseguiu encontrar uma fonte real à qual se apegar. Eu repenso então nas minhas aulas de cinema, na minha memória se sucedem os irmãos Lumière, Murnau, Méliès, Gance, Keaton, Vidor, Eisenstein, minhas notas sobre o cinematógrafo são cobertas de nomes e a única figura negra que se encontra ali é a tinta, o resto foi apagado. Eu me obstino, tento perceber entre os quadros da universidade um fragmento de Micheaux, uma migalha, mesmo que seja apenas uma cena de Within Our Gates (1920), mas a realidade é bem aquela de Cheryl Dunye: eu vi tão pouco desses raros filmes de uma outra época, na qual isso que se chamará de “race film” já era apenas uma página anedótica, um pedaço esquecido da história do cinema, nunca reconhecido pelos grandes pensadores, os grandes estúdios ou os grandes professores, relegado a algumas salas de periferia para que as pessoas negras tenham seus filmes e deixem Hollywood em paz.
E depois eu penso na textura, nas imagens em vídeo de baixa qualidade que nos levam de volta ao tempo do VHS. Essa jovem cineasta e seu material rudimentar, emprestado por uma amiga, me remetem inevitavelmente a uma nova acessibilidade da imagem até então confinada a certos orçamentos hollywoodianos ou a alguns cineastas experimentais que roubam pedaços de película 16mm. O rosto de Sherley, esse nome dado a todas as mulheres cujo retrato servia de imagem de referência para a colorimetria das películas Kodak, se sobrepõe então àquele da Watermelon, provocando um contraste insuportável entre a bem visível e real Sherley e a invisível ficção de Fae. Foi só nos anos 90, especialmente através da televisão em que novas tecnologias do vídeo são desenvolvidas para calibrar a imagem dependendo da cor da pele que ali aparece, que a Kodak Gold foi comercializada adaptando enfim os padrões químicos do 35mm à diversidade dos rostos que devem ser representados. Até então e até na sua matéria prima, o cinema apagava certos traços em benefício de outros e é ainda mais perturbador imaginar que essa tomada de consciência intervém tão tarde, no momento em que Cheryl Dunye realiza suas primeiras pesquisas.
Eu acredito que é necessário, aliás, dar um pouco de espaço ao sujeito que produz esse comentário, porque Cheryl nos lançou, me lançou, uma mensagem direta nesse letreiro final que traz o filme de volta ao humano que o produziu, àquele que o recebe, que é interpelado, convidado a seguir o combate. Então eu me autorizo um pequeno desvio no comentário para falar um pouco de mim. E se eu não compartilho a cor de Cheryl, nem a da Watermelon Woman, se esse filme marcado tanto pela identidade negra quanto lésbica me escapa por certos aspectos, pois só poderíamos imaginar, pensar uma opressão que nós mesmos não sofremos e a dor dos outros não nos pertence. Contudo eu me reconheço também nesse rosto porque vindo de uma imigração algeriana, eu tenho apenas poucos traços da história do meu cinema (esse “meu” soa tão justo quanto falso). É a mesma coisa para as populações chinesas da América e seus “race films” que também não tiveram direito a um cuidado arquivístico até os anos 1980. Então eu não posso me impedir de compreender esse filme como uma chamada geral, não apenas por todas as Fae Richards que nunca existiram mas também todos os estrangeiros cuja tez se afastava um pouco demais daquela de Sherley.
No vazio desses documentos ausentes, as palavras de Susan Sontag em Regarding the Pain of Others se carregam de sentido. Ela sinaliza ali a ausência do museu da escravidão, em 2003, no território americano e evidencia o problema comparando-o ao grande número de museus da Shoah. Essa constatação surpreendente de uma história recente melhor documentada que uma passagem mais antiga e mais fortemente ancorada na América faz com que ela formule a hipótese de que ainda hoje a constituição americana repousa sobre a exploração desses corpos sub-representados, tanto no cinema quanto em qualquer lugar. Aliás, essa memória é perigosa demais para o equilíbrio social porque ela põe em dúvida o poder vigente (ao contrário do holocausto que permite criticar os bárbaros da Alemanha nazista sem questionar a América de hoje). Isso era verdade em 2003, ainda mais em 1996 e o problema, tendo em vista os acontecimentos do ano 2020, é ainda, talvez mais do que nunca, atual. É por esta razão também, que na falta de um arquivo oficial, The Watermelon Woman construiu seu próprio museu, certamente falso mas que preenche o vazio deixado pelo apagamento, faz sobreviver uma fantasia no pesadelo da história.
A questão aqui é menos de estudar em detalhe todas as pistas que questionam o lugar dos afro-descendentes na história do cinema, mas talvez simplesmente de evocá-los, evidenciar a multiplicidade de questões complexas que dizem respeito tanto à técnica da imagem quanto a seus atores, tanto aos estúdios de produção quanto aos cineastas, sem encontrar o responsável pois, como Cheryl Dunye propõe, parece necessário em algum lugar acompanhar a acusação de um pouco de humor, de esperança sobretudo. E se podemos discutir mais profundamente Watermelon Woman, e toda a sutileza de sua proposição – o personagem da artista branca por exemplo é tanto criticado pela sua aristocracia quanto valorizado pois seu olhar externo estabelece um diálogo com Cheryl -, eu prefiro aqui me deter sobre esse letreiro final cuja potência reside na autenticidade, na transparência e na presença bruta de uma realizadora que rompe, durante alguns segundos, o contrato da ficção estranha de seu filme. Ela vem então nos falar, no silêncio dos créditos, através de algumas letras sobre um fundo negro, de urgência e esperança.
Durante essa época, em 1996, o homem branco persegue sua Missão: Impossível para salvar o mundo da destruição, proteger Oklahoma de um Tornado e São Francisco de ataques terroristas. Quando ressurgem as narrativas catastróficas com Independence Day no topo da fila, Hollywood constrói o horror do futuro, a enésima guerra contra a qual a potência americana nos salvará para restabelecer a ordem precedente. De novo e sempre a invasão, uma luta que por muito tempo foi conduzida contra aqueles que são chamados de aliens, um termo que se traduz tanto por extraterrestre quanto por estrangeiro, alguém que não pertence à população estabelecida – aquela que deseja que nada mude. Um simples escorregão é suficiente para iluminar o silêncio ao qual uma parte da humanidade já está submetida, quando não se trata mais de preservar o mundo, mas de mudá-lo, as narrativas não se voltam mais em direção ao pior que poderia nos acontecer mas àquilo que já foi produzido. Nalgum lugar eu também me construí uma ficção na qual Cheryl Dunye, além de si, se constitui em Will Smith do passado, enviando uma mulher numa viagem no tempo para restabelecer a ordem entre os fotogramas e permitir oferecer alguns arquivos para decantar os germes de uma história voltada para o futuro. O dia da independência está no passado, as guerras foram perdidas mas a Watermelon Woman, como um fantasma, parece murmurar, no desvio de um letreiro final, que a ausência, o apagamento suportado por tanto tempo deve ser um motor e não um freio para as câmeras do futuro, aquelas que ainda têm todo o tempo para escrever sua própria versão do cinema.
L'utopie du passé contre la dystopie du présent foi publicado originalmente no site "Panorama-Cinéma" (Watermelon Woman, The - Critique (panorama-cinema.com)) no dia 31 de dezembro de 2020. Tradução: Miguel Haoni.
Atenção: "The Watermelon Woman" passa amanhã no Cineclube da Madonna:
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