Por Hélène Frappat
É um triunfo na Itália, com mais de 5 milhões de ingressos vendidos desde outubro de 2023. Autora de um ensaio notável sobre a noção de gaslighting, modus operandi da dominação masculina que consiste em culpabilizar as mulheres pela violência que lhes é infligida, Hélène Frappat analisa as ambiguidades desse filme realizado pela atriz Paola Cortellesi.
Em 2018, a Itália do showbiz descobriu o feminismo durante a cerimônia do David di Donatello, César transalpino. Como discurso de abertura, Paola Cortellesi, atriz icônica do cinema popular, transformou um texto do semiólogo Stefano Bartezzaghi numa esquete que teve o efeito de uma bomba.
Com um golpe de gênio midiático, próximo de um golpe de Estado sociológico, ela se apropriou desta análise do efeito de gênero, particularmente violento em italiano: “é impressionante como, na nossa língua, certos termos que, no masculino, possuem uma significação legítima adquirem subitamente um outro sentido no feminino e se metamorfoseiam radicalmente tornando-se um lugar comum vagamente equivocado que, visto mais de perto, é inalterável, resvalando na prostituição. Exemplo: um cortesão: um homem que vive na corte; uma cortesã: uma puta. Um massagista: um fisioterapeuta; uma massagista: uma puta. Um homem da rua: um homem do povo; uma mulher da rua: uma puta. Um homem disponível: um homem gentil e solícito; uma mulher disponível: uma puta.”
Uma pequena bomba linguística
Paola Cortellesi continuou assim longamente, sublinhando com um sorriso ingênuo a declinação sistemática – sistêmica? – de um ofício sério, de uma pessoa respeitável no masculino, em puta. Em suma, a mestra de cerimônia performou um coming out linguístico: fazer a língua de todos os dias, que é também a da televisão e do cinema, confessar a transição impensada que ela opera organicamente entre uma desqualificação e uma discriminação. Contudo, é sobre esse deslocamento, raramente autoproclamado, que repousa há milênios, não somente na língua italiana, a exclusão política das mulheres.
Na sala lotada de homens experientes de smoking e de putas de lantejoulas, o silêncio era impressionante. O estupor se sobrepôs aos poucos risos provocados pelas mímicas de surpresa (“de novo uma puta?!”), depois de cansaço (“de novo uma puta...”) da showgirl. Eu descobri esse one-woman-show brilhante graças a uma conhecida italiana perturbada por Ainda temos o amanhã. Me escutando resumir meu ensaio sobre o gaslighting, ela exclamou de imediato que C’è ancora domani era exatamente isso: um gaslight movie cujo twist final ela recusava me revelar.
É pouco dizer que minha curiosidade foi despertada, minha desconfiança também. Não que eu despreze o cinema italiano. É mesmo o contrário: eu lhe dediquei vários livros, e eu proclamo há muitas décadas que a Itália (e seu cinema) é o laboratório da vanguarda das mutações políticas, não somente europeias. No entanto, salvo quando eu corro para ver e rever os filmes de Marco Bellocchio, eu tenho sempre uma apreensão.
Da conversação
Minha inquietação é referente à influência da cultura católica. Esse novo sucesso que mexeu com o país vai me refazer o efeito de A vida é bela? Em 1997, o filme de Roberto Benigni me apareceu como um manifesto negacionista, consistindo em fazer como se “o pai” pudesse salvar seu filho do horror genocida, negando, de passagem, a existência da Shoah. Como se o paterfamilias, proprietário do poder oficial, incluindo o da narrativa, não o exercesse manipulando a realidade (o campo de extermínio no qual estamos presos não existe), e seu filho, de passagem, cujo olhar menor, minoritário, só existe sob a restrição do olhar dominante.
Seria possível um gaslight movie católico, denunciando a morte lenta da esposa na cela conjugal heteronormativa e cristã? Roberto Rossellini o fez em 1954 com O medo, e em todos os filmes realizados com sua esposa Ingrid Bergman, de Stromboli a Viagem à Itália, passando por Europa 51. Esse diretor comunista e católico, esse gênio que não estava livre de uma contradição, revela ali, do ponto de vista de sua heroína, o que, no casamento tradicional, impede a experiência de igualdade que o filósofo Stanley Cavell nomeia, com justeza, “conversação”.
Lembremos que a condição de possibilidade de uma conversação consiste em associar duas bocas cúmplices, e não, para prolongar a lição do linguista, uma boca masculina que monologa e uma boca feminina que engole (as lições de sabedoria e de dominação). Contudo eu fiquei siderada pela cena final de Ainda temos o amanhã. O twist que prendeu a respiração de milhões de espectadores e espectadoras italianos(as) consiste em mascarar, com a ajuda de um suspense rocambolesco clássico (acreditamos que a esposa infeliz vai fugir com seu amante), um golpe de teatro institucional.
O encontro secreto da mulher agredida não é com o seu salvador mas com a Constituição que, em 2 de junho de 1946, lhe concede o direito ao voto (e simultaneamente a escolha entre a manutenção da monarquia e o advento da República). Depois de ter escapado de seu carrasco doméstico, cuja violência é encenada, literalmente, como um pas de deux – o marido distribuindo os golpes ao ritmo de uma dança de salão – a heroína imaginada (escrita, interpretada, dirigida) por Paola Cortellesi corre até uma seção de votação. Ela limpa seu batom, lambe o envelope e brande o instrumento de sua liberação.
Então o filme termina com um número musical: Paola Cortellesi dubla silenciosamente a letra da canção A bocca chiusa de Daniele Silvestri numa sequência final que lhe é quase um clipe. “E eu não tenho nem escudos para me proteger, nem armas para me defender, eu só tenho essa língua na boca, e se você cortá-la, eu cantarei mesmo assim, de boca fechada...”
Um happy end feminista?
Em 2023, um ano depois da eleição à presidência do Conselho do “senhor Giorgia Meloni” – seu primeiro decreto consistiu em exigir a masculinização de sua função -, um dos maiores sucessos de todos os tempos no box-office italiano faz então do direito ao voto um happy end feminista. Gostaria de esclarecer que não tenho nada contra o direito ao voto, mesmo que ele tenha permitido a eleição de uma dirigente que nunca variou politicamente desde que afirmou aos 19 anos (em francês, na France 3, em 1996) que “Mussolini era um bom político”.
Então, Ainda temos o amanhã é o gaslight movie que a Itália esperava, abalada em 2023 pelo feminicídio da jovem Giulia Cecchettin e pelas declarações de sua irmã Elena, prontamente qualificada de Antígona depois de ter formulado que o assassino de sua irmã era “o filho saudável do patriarcado”? O gênero é também questão de fingimento, de imitação. Senhor Meloni pratica a arte de fazer com que as mulheres falem enquanto lhes fecha as bocas com leis antiaborto e homofóbicas, sem parar de representar “a mulher/a mãe/a esposa traída”. Depois de ter visto Ainda temos o amanhã, e a fim de se ligar a um fenômeno público transformado numa verdadeira questão cívica, Meloni endereçou uma mensagem de felicitações à Paola Cortellesi por “esse filme muito corajoso e estimulante”.
Paola Cortellesi, por sua vez, conclamou a “uma verdadeira revolução: unir as forças” de Meloni e da dirigente da esquerda Elly Schlein para lutar contra as violências cometidas contra as mulheres, que propõe, de passagem, a compatibilidade entre um programa fascista hostil às minorias e um partido liberal. Ainda temos um longo caminho para que o gaslighting, ancorado na cultura católica, pare de manipular os cidadãos(ãs)/espectadores(as) cujo reflexo ampliado nos é oferecido pela Itália.
“Il reste encore demain” : un gaslight movie catholique est-il possible ? foi originalmente publicado na revista Les Inrockuptibles de 9 de março de 2024. (“Il reste encore demain” : un gaslight movie catholique est-il possible ? | Les Inrocks) Tradução : Miguel Haoni.
Atenção: "Ainda temos o amanhã" é o filme do mês no Cineclube da Madonna:
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Um dos filmes q mais me tocaram nos últimos tempos
ResponderExcluirCeci
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