Por Victor Cardozo
Aqui está. Não esquecerei nunca. As mãos de Shelley Fisher. O perfil sombreado e sereno do pianista, sua voz em perfeito acordo com o piano. Ele toca uma canção, mas não é uma canção qualquer. É um transbordar emocional, tão mais desconcertante por vir de uma figura assim contida. Uma canção onde cabem todos os sonhos de amor e bem querer do mundo, sem que nenhuma decepção seja esquecida. Um contraplano nos mostra que ele está tocando seu piano em um restaurante finlandês, regido pelos olhos resolutos de Kati Outinen. Estamos em 1996. A Finlândia se recupera de uma crise econômica severa e das consequências do fim da União Soviética. Os atores de Kaurismaki, tantos rostos estóicos e fluentes no humor que seu cinema nos ensinou a reconhecer e se afeiçoar. Eles envelhecem, bebem, trabalham, sobrevivem. Impreterivelmente, fazem isso mais juntos do que sozinhos, com tácita solidariedade. Nessa Finlândia de cinema, ser contido é elemento estruturante de uma poética, é uma postura existencial, mas é também uma questão de pragmatismo. Por isso mesmo, seus gestos de apreço e a tenacidade do seu vínculo uns com os outros não falham em comover.
Também não devo esquecer tão cedo de Hideko Takamine, entre a adolescência e a maioridade, afinando seu ofício. O ano é 1941. A Segunda Guerra Mundial segue. A ordem do dia no cinema japonês são filmes que exaltam valores patrióticos do Japão sob o culto do imperador Hirohito. Mikio Naruse, nessa altura já um veterano com 11 anos de carreira como diretor, faz comédias e melodramas populares. Trabalharia com Takamine quase até seus últimos anos. O último filme dessa fértil parceria, Midareru (1964), como tantos outros, merecia páginas sem fim para uma tentativa minimamente decente de descrever suas riquezas. Mas aqui, estamos no começo. É preciso dizer também que esse encontro acontece pela primeira vez quando Takamine já tinha também um considerável trabalho (e celebridade) como atriz infantil, já era uma estrela. Não é por acidente que o filme leva seu nome ao invés do nome da sua personagem: Okoma. A tímida cobradora, do alto de seus 17 anos, por lealdade ou senso de autonomia, se inspira a tentar salvar a precária companhia de ônibus onde trabalha. Para isso, quer tornar-se uma “condutora”, isto é, uma guia que descreve os lugares notáveis do trajeto das antigas paisagens de Kofu e sua história para os passageiros entediados. A história do seu aprendizado se entrecruza com a história de sua amizade com o colega motorista e o escritor que escreve o seu roteiro. Entra também no caminho das práticas nada honestas do proprietário da companhia. Okoma precisa aprender a transmitir emoção nas palavras e nos gestos sem perder de vista as contingências materiais e espaciais do seu papel (abrir e fechar portas, acompanhar paradas do itinerário, recolher ingressos e pagamentos). Vemos o seu desabrochar de intérprete, em obstinada contradição aos imperativos materiais e ideológicos do contexto que a cerca.
O que une esses filmes, lugares, artistas e momentos tão aparentemente distantes é em primeiro lugar o seu caráter de exceção. Diante de contextos bastante sufocantes, são filmes que têm a audácia de reclamar para si alguma leveza e autonomia em meio a precariedade e exaustão imposta a corpos, máquinas e lugares. São testemunhos também de cinema como trabalho modesto e paciente, no qual a graça vai sendo construída um pedaço por vez, no qual as condições materiais da produção são encaradas com a liberdade dada justamente pela repetição e pelas restrições. Há uma solidariedade comum entre os trabalhadores da ficção e os trabalhadores do real.
São, sobretudo, filmes construídos em volta de atrizes, Hideko Takamine e Kati Outinen. No encontro entre melodrama e comédia, essas duas condutoras de emoção que vão encontrando beleza, humor e significado no gesto mais discreto e fazem dele uma epifania. Evocam uma utopia possível no âmago da desolação.
Make a world that’s peaceful
And everyone is free
Send it to my baby
Tell her it came from me
Atenção: "Hideko, a motorista de ônibus'" e "Nuvens passageiras" são os filmes do mês no Cineclube da Madonna:
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