O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Um ser-humano em marcha

Por Paul Vecchiali 


Antes de tudo, viver.

Traçar sua rota — é difícil quando desejamos que ela seja reta —, atravessar as florestas de confusões, escavar.

Aceitar as limitações, os temores, os fracassos. Fazer com tudo isso.

Mergulhar nu na mediocridade, na covardia, os esquemas, as mentiras, os falsos-semblantes, as renúncias, o cinismo, a incompreensão. E ainda, fazer com tudo isso.

E então, filmar.

Colocar cara a cara imagens e sons, exercer sua profissão decentemente, dirigir com calma, comunicar certezas.

E também regurgitar os instantes de vida. Redigeri-los. Aproveitar as emoções, mesmo as mais negativas, para ajudar os atores a fazer um espetáculo delas.

Prolongar sua vida nos outros, ao acaso. Emigrar... Não ser econômico; permanecer modesto. Que a paixão seja sentida, mas que não se exiba.

Voltar, esgotado, ao quotidiano. Pouco a pouco, se sentir desapossado de si mesmo, e do mundo. Passear então seu sofrimento lúcido, receptivo ao sofrimento dos outros, misturar com a alegria do trabalho...

Recomeçar a filmar, a viver...

Quando o desgaste acaba por esburacar a memória, esvaziar os reflexos, minar a vontade, fechar os olhos, cerrar os dentes, sem deixar a rota, esperar a morte.

Ela vem.

Se há algo que não podemos negar a Jean Grémillon, é de ter sido um homem em marcha.

É talvez essa obstinação em permanecer ele mesmo, filme a filme, para além dos seus problemas de homem (“honesto”) e de artista (“realizado”), presente com discrição, carregado de injustiças recebidas, cansado de esforços inúteis, vencido mas de pé, que o fez durante muito tempo passar por “irregular”.

É de propósito que eu uso a palavra “irregular”.

A paixão que, outrora, unia filmes e espectadores, foi substituída pelo julgamento glacial e cartesiano do professor: muito bom, passável, pode fazer melhor,... irregular!

Não há mais obras-primas. Enfim, me parece que, há alguns anos, muitos poucos filmes oferecem essa evidente perfeição que as impõe irresistivelmente.

O classicismo se dilui: ele sobrevive penosamente nos precavidos, ou remexe-se no prisma dos clichês revisitados.

Hoje, todo mundo pode fazer uma boa imagem, um som “trabalhado”, o que quer dizer dublado, bem acabado, sem problemas, consumível.

A técnica e a gramática, que os contemporâneos de Grémillon inventavam com ele, foram hoje completamente assimiladas.

Com o álibi do “respeito ao público”, à procura dessa perfeição, nós acabamos no prêt-à-porter...

E os filmes nos desabam, como uma catarata. Por que se lamentar? Mas como ganhar?

Mais tarde, a História... muito mais tarde!

Mas se nós fazemos mesmo assim, em relação ao passado, eu quero dizer até 1960, por exemplo... nós percebemos rapidamente que eles não reconheceram claramente aqueles que, em cada período, quiseram escrever o cinema...

De qualquer maneira, contestáveis são os seus julgamentos.

Então, hoje...

*

Como ter certeza que a magia do instante que recebemos aqui ou ali é comunicável? Como tentar comunicá-la?

Nos deparamos frequentemente com ceticismo, com a zombaria, com o recuo da argumentação, com a inteligência (enfim, você me entende) que pede para ser iluminada antes de sentir.


Uma luz, uma palavra, um sorriso, uma modulação, um som distante, uma graça, nos projetam para fora da anedota, na vertigem da poesia.

O cinema se afasta de seus componentes, levanta voo.

Dessas duas energias contraditórias, aquela que engendra a paixão de mostrar e aquela do pudor que se reprime, a colisão, centelha fugidia, se harmoniza em colusão.

*

Algo a mais se passa.

Um homem é preso no lugar de um outro cujo remorso o impulsiona à ajudar a família do inocente. Quando esse último pode fugir, é naturalmente em direção ao seu benfeitor que ele se dirige. E o outro o esconde de maneira igualmente natural... O estranho M. Victor (Raimu) tem uma mulher (Madeleine Renaud) pela qual o inocente (Pierre Blanchar) se apaixona.

Na casa, as persianas estão fechadas para permitir que Blanchar vá e venha sem o risco de ser visto pelos vizinhos. Um dia em que ele está muito insistente, e convincente, Madeleine Renaud, ela também apaixonada, temendo sucumbir, se precipita em direção às persianas para parar Blanchar, abre-as amplamente.

Esse gesto o inunda de sol.


A beleza desse instante, sem grandeza, sua eficácia profunda, a leveza do discurso, bastam para dizer do filme que a contém que ele é uma obra-prima.

Podemos dizer o mesmo a propósito de Pattes Blanches a partir do casamento de Suzy Delair — Fernand Ledoux, visto de cima por Michel Bouquet, ou ainda a partir da dança de Arlette Thomas; assim como das lágrimas de Gabin no fim de Gueule d’amour, assim como da prisão de La Petite Lise, da visita à casa vazia em Remorques, da morte de Gaby Morlay em L’amour d’une femme...

Se uma vez referenciamos esses famosos instantes, o resto do filme parece menos forte, menos justo, menos... o que? — o que você quiser, mas não nos esqueçamos que os momentos fortes são sempre preparados por momentos mais difusos, mais melódicos... Não esqueçamos tampouco que os juízos de “conteúdo” estão sujeitos às modas e aos humores.


Acusar o filme, então, é talvez tomar consciência das nossas próprias insuficiências, dos nossos próprios limites.

Diminuir o seu mérito por meio de chicanarias, é trair um homem que correu riscos e os assumiu.

Ah não! Não se trata de uma lição de moral, mas antes de um aviso.

Ao querer demasiadamente não se deixar enganar, nós deixamos morrer o prazer. Por desejar demais a perfeição, nós dessecamos o juízo.

Grémillon não obteve a carreira que a profissão lhe devia e, ainda mais grave, ele nem sempre fez os filmes que ele ansiava fazer.

A História se repete.

Há, por exemplo, em Jacques Demy, em Jean-Daniel Pollet, em Jacques Rivette, esses instantes de graça comparáveis àqueles que fervilham em Grémillon...

*

Para um cineasta, é impossível escapar desta alternativa: ou perder tempo ao enfileirar pérolas para fazer de um colar de filmes um belo adorno, ou então usar a sua vida, filme após filme, para procurar o segredo das imagens.

Quer gostemos ou não, há aí dois mundos, incompatíveis, rigorosamente impermeáveis.

Grémillon devia saber disso.

Ele talvez tentou viver fingindo que não o sabia, as consequências são as mesmas... E se há alguém a se lastimar nesse caso, não é ele, mas aqueles que o confinaram no silêncio.

Ele, ele vai bem, obrigado. Ele estará cada vez melhor. 

O texto Un être humain en marche foi lançado originalmente no dossiê Grémillon pela revista Cinéma 81 (n° 276), em dezembro de 1981. Foi republicado no livro Le cinéma? Plus qu’un art!...– Écrits et propos (1925 – 1959), coletânea de textos de Jean Grémillon. Tradução: Letícia Weber Jarek. 

Três depoimentos sobre Claude Sautet


Jean-Pierre Melville:

Rara é minha amizade. Eu atingi a idade em que não podemos mais dá-la senão numa troca: um cálculo de avarento que só quer seu dinheiro.

Quanto mais cara é a contrapartida, mais a amizade é sólida.

Sautet, ao permitir-me admirá-lo, me fez feliz. Este jovem, cheio de maturidade, deu uma lição de pudor e de eficácia que não parece muito adequada ao momento em que sabemos que só o esnobismo imposto pelos clientes de uma Drug-Store faz e desfaz os talentos e os valores (Uma mulher é uma mulher - Jules e Jim).

Se tenho certeza que em 1965 Claude Sautet será nosso maior cineasta é porque, fora o seu talento, conheço sua coragem tranquila. No caso "Aurel" ele não aceitou nenhuma concessão. E, enquanto que para impressionar película, nós todos conhecemos uma boa centena de pseudo-cineastas que aceitarão todas as infâmias. Sautet, o falso taciturno, tão preocupado quanto seguro de si, espera estar inspirado para filmar.

Mas quando filma, ele põe o coração na obra.

Jamais Lino Ventura pôs tanto o coração num filme como em Como Fera encurralada que, contudo, compartilhou com um Belmondo desconhecido, poderoso e grave, verdadeiro como um homem verdadeiro.

O segredo da criação artística permanece, com a vulgaridade, um dos dois únicos mistérios absolutos. 

Isto não se aprende. Não mais no cinema que em outro lugar. Em 1896, Picasso nunca tinha tomado a menor lição, nem Errol Garner em 1945. 

A estação de Milão, os correios em Nice, a passagem Doisy (cara a Peugeot e a Rolland)  Sautet não os aprendeu nos filmes dos outros.

Imagine um só instante a história se passando nos States e no México ou no Canadá, com Robert Ryan e Sinatra, e me diga se, transposta desta forma, Sautet não seria grande lá!

Me diga se ele não poderia assinar Deus sabe quanto amei, Homens em fúria, Desafio à corrupção ou O segredo das jóias.

Falamos freqüentemente de filmes onde as relações entre homens, a amizade, têm uma enorme importância. Eu acreditei na amizade de Abel Davos e Stark, absolutamente. Ela é interior e não aparece por intermédio dos diálogos. O comportamento dos dois homens explicita seus sentimentos sem que seja necessário que eles falem, um ou outro, de sua amizade. É um pouco por isso que eu não consigo acreditar na amizade de Jules e Jim que, no entanto, falam dela frequentemente.

Evidentemente, eu não oponho a fatura Sautet à fatura Truffaut: o classicismo absoluto e o cinema novo são duas formas da mesma arte. Resta saber se, em 1965, as duas subsistirão ou se uma, só, substirá.


Jacques Doniol-Valcroze:

Eu não posso julgar Claude Sautet em cima de uma visão – já distante – de Como fera encurralada, mas ela basta no entanto para pensar que ele se revelou, de primeira, como um cineasta autêntico.

Acho que o assunto deste filme – e antes de tudo o contexto: série noir se querendo “humana” – penhorava-o muito grosseiramente para que ele fosse verdadeiramente bem-sucedido.

Mas é no detalhe que Sautet salvou o empreendimento e mostrou seus dons: senso do enquadramento, eficácia do estilo de narrativa, excelente direção de atores, precisão do ritmo. E outra coisa mais misteriosa e que surgia, paradoxalmente, em filigrana desta má literatura: uma nobreza do tom, uma delicadeza dos sentimentos, um lirismo.

Michel Mourlet:

O cinema francês parece sair de seu torpor e de suas histerias. Como fera encurralada é o filme de um homem. Não de um adolescente, não de um intelectual, nem de um esteta, nem de um prostituído, nem de um fracassado, nem de um comerciante, mas de um homem. O fato é bastante singular e merece que insistamos: grande admirador de Hawks, declarando: “Eu amo a vida”, Claude Sautet reuniu um certo número de qualidades sólidas, aparentes já no seu primeiro filme, e que sozinhas permitem conduzir bem uma obra lúcida e controlada. Ele é um dos raros, na França, a ter assimilado a lição do cinema americano. Nada de surpreendente, portanto, que ele esteja isolado num meio onde poucas coisas lhe concernem, recusando os contratos mais mirabolantes, exigindo com paciência um assunto que lhe convenha, perpetuamente na busca do natural e do verdadeiro, atento a não se trair. É preciso ter por exemplar, pela sua justeza e sua saúde, um julgamento como este que ele porta com uma espécie de inocência terrível sobre o formalismo falsificado de um Resnais ou de um Antonioni: “É como se eu visse um mágico que faz um número: não resta nada para mim; na vida, não sei o que fazer disso”.

Témoignages publicadas na revista Présence du Cinéma, n°12, março-abril de 1962. Tradução: Miguel Haoni. 

Poética dos Autores: Entrevista com Jean-Claude Biette


por Jean Narboni e Serge Toubiana

Descoberta dos "Cahiers" amarelos

Serge Toubiana. Em que época você descobriu os Cahiers du Cinéma?

Jean-Claude Biette. Em 1958 eu estava no colegial. Um dia, um colega meu me mostrou a revista de capa amarela, na qual havia uma foto do filme de Louis Malle, Amantes (Les Amants, 1958), que acabava de fazer escândalo. Achei a revista muito bonita, a tipografia, as fotos, a diagramação. Dei-me conta de que ali existia um domínio que me era desconhecido, que me atraia. Como todas as crianças eu ia ao cinema, todo mundo ia ao cinema nessa época: isso era evidente, mas o fato de ver filmes não implicava pensar naquilo como possuindo algum interesse cultural. Longe disso.

Lendo os Cahiers, dei-me conta de que ali havia hierarquias, filmes dos quais se falava bem, outros dos quais se falava mal. De repente, aquilo despertou em mim um interesse: na literatura ou na música, existia gente de quem eu não gostava, outros que me tocavam muito. Pois nessa idade é mais uma questão de subjetividade que de escolha racional. Ler os Cahiers era me confrontar com um sistema de valores e, quando se é adolescente, estamos, creio, em busca de um sistema de valores.

S. Toubiana. Os filmes que você via na época coincidiam com os que estavam em pauta nos Cahiers?

J.-C. Biette. Na época só existia um cinema, e por vezes outro, o dos filmes "artísticos". Para mim, o cinema artístico se resumia em Cocteau, num certo cinema francês... Durante três temporadas de verão na Inglaterra, descobri por prazer os filmes de Hitchcock, nomeadamente O Homem que Sabia Demais (The man who knew too much, 1956), e outros como Rastros de Ódio (The Searchers, John Ford, 1956) e Terra dos Faraós (Land of the Pharaohs, Howard Hawks, 1955): isso foi em 1956-57. Esses filmes me impressionaram muito.


Eu via todo tipo de filme e, mais tarde, quando vi que os Cahiers tinham a mesma opinião que eu a respeito de certos maus filmes, vi que aquilo estava indo bem. Comecei a ler os Cahiers no momento do famoso "Referendo de Bruxelas", em 58, que deu o Palmarés dos dez melhores filmes da história do cinema. Os Cahiers propuseram sua contra-lista, e eu tentei compreender, sem sucesso, porque a revista opunha Aurora (Sunrise, F.W. Murnau, 1927) a A Última Gargalhada (Der letzte Mann, F.W. Murnau, 1924), ou preferia Grilhões do Passado (Mr. Arkadin, Orson Welles, 1955) a Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941). O que me fascinava nessas listas é que ali havia autores de westerns, os que chegavam em 24ª posição por exemplo: eu tinha apenas um desejo, era o de ver seus filmes. Comecei a frequentar os cineclubes, a Cinemateca...

S. Toubiana. Você tinha uma preferência demarcada pelo cinema americano, em relação aos filmes europeus?

J-C. Biette. Sim, mas essa demarcação era inconsciente. Via os Begman, que estreavam regularmente, os filmes de Eisenstein, sistematicamente os filmes de Hitchcock. Lembro-me que no ano de meu vestibular estrearam O Tigre de Bengala (Der Tiger von Eschnapur, 1959) e O Sepulcro Indiano (Das Indische Grabmal, 1959), no verão, no Gaumont-Palace, achei os cartazes magníficos; mas para mim, Fritz Lang era o homem que fizera M, um filme sério, e duvidava um pouco de O Tigre de Bengala. Em setembro de 59 saiu o número especial Fritz Lang dos Cahiers; eu passara o verão todo num cursinho, e prestaria de novo o vestibular em setembro, perto de Saint-Germain-des-Prés. Fazia um belo dia. Li no Flore todo o número Fritz Lang, antes de me submeter ao meio-dia a uma prova de latim. Estava de tal modo exaltado pela leitura que fiz a prova de qualquer jeito e, ainda por cima, reprovei no vestibular: por causa de Fritz Lang!

Descobri que não estava só em meu canto a ler os Cahiers, e encontrava em todos os cinemas Dennis Berry, Jacques Bontemps, Barbet Schroeder, Jean-Louis Comolli. Mais tarde conheci Eustache, você, Jean. Era por volta de 59-60.

"L'Avventura" ou "Hiroshima mon Amour"?

S. Toubiana. O filme que, para você, marca fortemente a fissura entre cinema clássico e cinema moderno foi A Aventura (L'avventura) de Antonioni, que foi um acontecimento em ocasião de sua projeção a Cannes em 1960?

Jean Narboni. Para mim o cinema moderno, enquanto instituição, remonta a Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941): é o que Jean-Claude chama de "cinema artístico". Isto era sabido, se quisermos o cinema moderno feito clássico. O que para mim fez vibrar a ideia de "o que é o cinema moderno?", foi Hiroshima Mon Amour (Hiroshima Mon Amour, Alain Resnais), em 59, mais que A Aventura.

J.C. Biette. Exatamente, foi isso mesmo. Para mim, a modernidade era No Limiar da Vida (Nära livet, 1958), o filme de Bergman, que falava de coisas modernas. E depois Hiroshima que foi um choque, mesmo para mim, que amava antes de tudo o cinema americano. Quer seja o filme de Resnais ou, mais tarde, o de Antonioni, não experimentei, absolutamente, qualquer sentimento de rejeição a seu respeito. Amava-os. Menos que os últimos Lang ou os filmes de Hawks, mas amava-os. Pelo contrário, rejeitava instintivamente os filmes que macaqueavam a modernidade, e estes já intimidavam a crítica.

J. Narboni. A irrupção de modernidade com Hiroshima deu lugar a uma grande mesa-redonda nos Cahiers, com Rivette, Rohmer e outros. Aquilo ainda não era evidente, as pessoas se sentiam obrigadas a discutir. Havia uma divisão entre o que se chamava de "ala direita" e "ala esquerda", uma oposição evidentemente política. Resnais, Marker, Varda, esta era a "linha esquerda". E uma revista mais "linha direita" era obrigada a levar em consideração um filme que não podia rejeitar em nome dessa modernidade macaqueada. Se as opiniões eram muito nuançadas a respeito de Hiroshima Mon Amour, sentíamos que qualquer coisa de novo se passava. E o fenômeno ultrapassava o círculo cinéfilo: de repente, as pessoas se diziam que jamais se contara uma história como aquela: o Japão, a bomba atômica, as ideias estéticas entraram nas conversas do dia-a-dia; a narrativa, o ritmo musical, a recusa da cronologia…
Os Amantes

Hiroshima Mon Amour

J-C. Biette. Mesmo as pessoas que não tinham exigências particulares em relação aos filmes falavam com respeito de Hiroshima Mon Amour, pois este tinha de fato sido um acontecimento. Pois descobri a revista com o número cuja capa era ilustrada por uma foto do filme de Malle, Amantes. Ora, o que tinha impressionado muito na época foram as cenas de amor na cama. De minha parte, achava as cenas de amor de Hiroshima Mon Amour muito mais belas, mas não de modo que não guardassem relação com aquelas do filme de Malle, lançado dois anos antes. Como se ali houvesse uma progressão, um aprofundamento de um mesmo material emotivo, como se de um lado tivéssemos a prosa: Amantes, de outro uma escrita poética: Hiroshima. O filme de Resnais está inscrito na memória para sempre. Como Noite e Neblina (Nuit et brouillard, 1956), que me parece hoje como um dos faróis que iluminam a totalidade do cinema.

J. Narboni. Pode-se dizer que o equivalente "linha direita" foi Acossado (À Bout de souffle, Jean-Luc Godard, 1960).

J-C. Biette. Lembro-me que não tive vontade de ir vê-lo. Um dos fatores que sempre foi determinante para mim, desde essa época, foi a luz. Aquela de Hiroshima era bela, eu lhe era muito sensível. Não gostei da luz de Os Amantes, ou mesmo a de Os Incompreendidos (Les quatre cents coups, François Truffaut, 1959); a luz era para mim um fator de aquiescimento ou não aos filmes que descobria. O choque que tive ao ver A Aventura vinha antes de tudo da luz, idem para O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1963), o primeiro filme de Godard que vi - isso foi na Sorbonne, numa projeção durante a qual Godard foi copiosamente massacrado pelos estudantes comunistas.

J. Narboni. Pode-se dizer que o grande inventor da luz moderna é Rossellini. Ora, os filmes que você cita, Acossado, Os Incompreendidos, em menor medida Hiroshima, eram herdeiros de Rossellini. Disto a questão: o que te incomodava em Os Incompreendidos, um pouco menos em Acossado?

J.-C.Biette. Minha descoberta do cinema foi bastante anárquica e não conhecia os filmes de Rossellini na época. Tinha ouvido falar deles lendo os Cahiers...

J. Narboni. O que antes se colocava, à propósito do neorrealismo, era menos sobre a luz que sobre os atores tomados na rua, a dimensão social, a visão da guerra, os escombros, a juventude errante…

J.-C. Biette. Não é porque se admirava Rossellini e se tentava seguir seu exemplo, que o elemento luz seria a herança natural dos filmes que nele se inspiravam. E, isto descobri mais tarde, a luz dos filmes de Rossellini vem também da Itália, dos lugares. A de Paris não tem nada a ver: apenas Rossellini conseguiu, em seu último filme sobre o Beaubourg (Beaubourg, centre d'art et de culture Georges Pompidou, 1977) fazer com que a luz de Paris se parecesse com a de Roma: os primeiros planos sobre os telhados, com o barulho dos sinos, o dia que filmou, havia uma luz "romana".

Quanto a vontade de ver os filmes, o que contava muito nessa época eram as fotos dos filmes publicadas nos Cahiers: o simples fato de vê-las fazia sonhar, e muito. Vendo uma foto, eu imaginava uma multidão de coisas, todo um mundo de emoções, oculto mas fortemente evocado pelas fotos. Reencontrava-se no filme a forte impressão causada por essas fotos.

Les Visiteurs du Soir

Para mim, os Cahiers eram a revista que dizia: tal filme policial, tal filme de aventura, é cinema tão grande quanto... Para mim, o horror era ver no cineclube do colégio Os Visitantes da Noite (Les Visiteurs du Soir, Marcel Carné, 1942), era um ponto de referência da arte oficial, o cinema dos professores. Eu sempre saia da sessão com um profundo mal-estar. Eustache representou muito bem esse sentimento quando fez Léaud dizer em A Mãe e a Puta (La Maman et la Putain, 1973), em referência a Jules Berry: "Esse coração que bate, esse coração que bate!...". Sim, eu detestava esse diabo de pacotilha. Nunca quis rever o filme. Um pequeno western de Fritz Lang me dava um sentimento de liberdade, de emoção, que não era ditado pelos adultos que, é preciso dizer, nos infernizavam. As pessoas bem-pensantes zombavam desses filmes policiais, desses westerns, desses filmes de aventura defendidos pelos Cahiers: eram mal-vistos.

Eu tinha um amigo no colégio, marcadamente de direita, que defendia Clouzot opondo este a Hitchcock, e me elogiava As Diabólicas (Les diaboliques, 1955); citava-me também Bresson, sem dúvida porque Bresson era um cineasta francês e porque sua austeridade cinematográfica nos filmes que acabava de fazer, Um condenado à morte escapou (Un condamné à mort s'est échappé, 1956) e Diário de um pároco de aldeia (Journal d'un curé de campagne, 1951), tinha todo um ar sério e terrivelmente moral.

Balzac-Helder-Scala-Vivienne

Antes de ler os Cahiers, tinha descoberto o cinema com a Cinémonde: ali se encontrava toda semana o quadro contendo a programação de todas as salas de Paris. Víamos em que salas estreavam os filmes: havia os circuitos dos Champs-Elysées e os dos Boulevards, e os próprios nomes das salas eram bastante evocativos: "Rex-Normandie-Moulin Rouge", "Balzac-Helder-Scala-Vivienne", "Barbizon-Saint-Antoine-La Cigale"... Quando os filmes estreavam num grande números de salas, sabíamos que se tratava de filmes de gênero ou de aventuras, o que era quase um sinal convencionado de inferioridade estética.

Os cineclubes eram lugares importantes para descobrir os filmes: o Studio-Parnasse fazia seus encontros na terça. Podia-se escrever num registro que ficava na entrada os títulos dos filmes que tínhamos vontade de ver. E Jean-Louis Chéray conduzia os debates após a projeção: era o mais generoso dos programadores, seu ecletismo era uma forma de curiosidade bastante ativa. Eu não estava sempre de acordo com seus gostos, mas ao menos sabíamos que iríamos ter surpresas e decepções. E isso era bom. Ele podia nos mostrar um Duvivier e um Boetticher numa mesma sessão, e as pessoas eram fiéis às discussões que se seguiam. Quando ele estava convencido de que um efeito estava bem num filme, dirigia-se a nós, apontava a tela e dizia: "Isso passa hein!". O que o metteur en scène quis exprimir através de sua mise en scène, bem, aquilo o exprimia de fato. Quando ele dizia "isso passa", dissera tudo do sucesso de uma sequência. Falei mal dos professores, mas Henri Agel, que era professor, era um dos raros que representavam uma abertura de espírito: ele defendia Ford, Hawks, Minnelli, numa época em que só os amadores de cinema os defendiam. Em seu "cineclube do Louvre", rua do Rivoli, no Museu de Artes Decorativas, ele mantinha uma posição bastante combativa.


S. Toubiana. Você se sentiu participante do momento de emergência da Nouvelle Vague, em torno dos Cahiers?

J.-C. Biette. Absolutamente não. Experimentei imediatamente a impressão de um favoritismo exagerado; estava reticente em ir ver os filmes de Godard, suspeitando do tipo genial. Isso atrapalhava minha paixão pelo cinema americano mas, ao mesmo tempo, sentia que, cedo ou tarde, seria preciso chegar ali.

Terminei por, naturalmente, querer escrever nos Cahiers e, encorajado por esse bom São Pedro que era Jean Douchet, mas muito intimidado por Eric Rohmer, que falava pouco e se parecia já com Goethe, sacrifiquei-me ao rito da visita à antessala do escritório dos Cahiers, situado então em cima do cinema "George V". Passava de tempos em tempos ver Douchet que, sempre, me levava ao corredor onde, numa poltrona funda, eu escutava sua análise do último Renoir ou do último Fritz Lang que acabava de estrear. Rohmer era, entretanto, além de Douchet, o único a quem eu ousava falar, pois seu estilo bastante literário e seus gostos surpreendentes e audaciosos me agradavam enormemente. Ele foi o primeiro cineasta dos Cahiers cujos filmes amei, e seu o projeto cinematográfico que consistia em dizer: faço isto, e me basta. Foi um pouco mais tarde que amei os filmes de Godard: quando descobri os de Rossellini.

S. Toubiana. Houve também o que se chamou de "Mac Mahonismo", uma corrente da qual você fez parte, creio.

J.-C. Biette. Eu era um mau aluno do "Mac Mahonismo", me sentia incomodado nessa corrente, mas os cineastas que eles defendiam me agradavam muito. Ainda que eu sempre tenha achado bizarro sua "Quadra de Ases": Lang, Preminger, Walsh, Losey. Esse último me parecia muito mais próximo dos modernos, eu achava que não havia, senão raramente, aquela fascinação em sua mise en scène. O artigo de Moullet sobre A Sombra da Forca (Time without Pity, 1957), no qual ele dizia que o filme não correspondia às teses do "mac mahonismo", me fez rir, pois era justo.

O artigo de Mourlet, "Sobre uma arte ignorada", saido nos Cahiers, era de certo modo o "Manifesto do Mac Mahonismo". Ele me marcou muito: tratava de filmes que eu não conhecia, e que pude descobrir nas salas de bairro: O Tigre de Bengala, O Sepulcro Indiano, A Morte tem seu Preço (The Naked and The Dead, Raoul Walsh, 1958). Seu texto não somente era bem escrito, mas o que continha de inovador e de essencial na época me parece válido até hoje.

J. Narboni. É um artigo importante pois foi um dos primeiros a definir, não uma "essência" ["en soi"] do cinema, o que muitos tinham feito antes dele, mas uma "essência" da mise en scène: uma tentativa de definir o específico da mise en scène, o que é bem diferente. E Mourlet estava no coração do problema, mesmo não estando de de acordo com tudo.

S. Toubiana. Há alguém que você não cita, que é Truffaut: ora, ele ocupava uma posição crítica essencial nos anos 50, com os artigos publicados na Arts.

J-.C. Biette. Eu quase não sabia. Quando comecei a ler a Arts, era Douchet quem escrevia na sessão cinematográfica. Truffaut não escrevia mais. Vi Os Incompreendidos na ocasião da estreia. Era alguém que para mim não tinha um contorno preciso ou familiar. Alguém como Luc Moullet era bem mais presente. É uma questão de geração. Seu estudo sobre Fuller, cineasta filmando amiúde os pés, tinha feito sensação, e seu grande artigo sobre Godard era genial e premonitório.

S. Toubiana. Como caracteriza essa época do fim dos anos 50 e do começo dos anos 60? Você a vê como bastante estimulante, feliz, tempo de verdadeiros debates, de conflitos?

J.-C. Biette. Eu a vivi de maneira bastante estimulante, a vida era essencialmente descobrir o cinema. Era o que permitia esquecer os penosos anos de colégio e, em seguida, de universidade.

Engajamento Incerto

S. Toubiana. Havia também a guerra da Argélia: como ela te concernia, enquanto jovem colegial de um lado, através do amor pelo cinema de outro?

J.-C. Biette. Concernia-me mais como jovem colegial. Estava na classe de filosofia: havia gente de esquerda e gente de direita na aula. Eu era simpatizante da esquerda, mas com uma reserva, uma reticência diante da ação em grupo. Tive sempre dificuldades com grupos. Sei que estava errado. A vida nos ensina que é preciso ser numeroso para levar adiante certas lutas. Lado cinema, os filmes de que falávamos eram O Pequeno Soldado e, em menor medida, aquele de Claude-Bernard Aubert, Les Tripes au Soleil (1959) que sentimos como anti-colonialista, que em minha lembrança não era muito bom, mas bastante violento. É a propósito da guerra da Argélia que descobri a Positif, que defendia os filmes engajados.
O Pequeno Soldado


J. Narboni. Comolli tinha vindo da Argélia três ou quatro anos antes de mim. A primeira projeção que assisti em Paris foi a de O Pequeno Soldado na Sorbonne organizada pela UNEF, na qual Godard foi tratado como fascista. Eu não compreendia muito bem o que se passava nos Cahiers, mas creio que existiam ali posições diferentes. Truffaut assinara o Manifesto dos 121, sem dúvida mais por razões de oposição ao exército que por anti-colonialismo, mas a posição global da revista era, no melhor dos casos, apolítica e, no pior, antes anarquista de direita. E Rivette era o único a ser poupado dos ataques e dos insultos bastante violentos da Positif, por suas opiniões de esquerda, inclusive no plano cinematográfico. Tanto quanto Acossado, O Signo do Leão (Le Signe du Lion, Eric Rohmer, 1959), os primeiros filmes de Chabrol - Os Primos (Les Cousins, 1959) e Nas Garras do Vício (Le Beau Serge, 1958) - eram bastante criticados na Positif, Paris nos Pertence (Paris nous appartient, Jacques Rivette, 1961) era considerado um filme de esquerda.

Impressionara-me o fato de que, no dicionário da Nouvelle Vague publicado no nº 138 dos Cahiers, o último nome fosse X: Octobre a Paris (1962), o filme sobre a repressão dos argelinos em Paris a 1961, assinado X (creio que era Armand Panigel o autor): havia dez linhas favoráveis que se seguiam a "um documento impressionante". Fiquei muito surpreso em ler aquilo numa revista de todo modo muito marcada por um conservadorismo arrogante. Os filmes de Godard, até O Demônio das Onze Horas (Pierrot Le Fou, 1965), ou seja, Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963), O Pequeno Soldado, eram considerados como filmes niilistas; a personalidade de Paul Gégauff tinha um papel considerável, e um filme como Entre Amigas (Les Bonnes Femmes, 1960) de Chabrol foi tratado, estupidamente, de filme fascista...

Havia, em nome de uma noção de mise en scène, uma grande resistência face o "cinema engajado" que não colocava em questão a forma, que se contentava com a mensagem.

S. Toubiana. Seu primeiro texto publicado foi publicado nos Cahiers em 64, na época em que Rivette era redator-chefe, sucedendo Rohmer.

J.-C. Biette. Antes de ser publicado eu tinha escrito bastante, para mim mesmo, para ver claramente, sobre os filmes de que gostava ou sobre questões que me colocava o cinema. Lembro-me assim de ter escrito um artigo onde eu comparava Hatari! (1962) de Hawks com um filme de atualidades televisivas sobre a guerra do Vietnã, mas mais para a linha sentimental do texto de Rohmer sobre Marcel Ichac ou do de Godard sobre Haroun Tazieff. Eu estava longe de suspeitar toda a importância que teria em seguida a guerra do Vietnã e a pouca importância que teria em seguida, para mim, esse filme de Hawks. Jamais cessei de escrever, esperando um dia ser publicado. Na época os Cahiers eram uma revista quase confidencial, pois o cinema não possuía a aura midiática que tem já faz alguns anos. Mais tarde impressionei-me com os numerosos cadernos que, longe de Paris, Jean-Claude Guiguet preencheu de anotações sobre os filmes de que gostava, sem impaciência pela publicação. Sempre pensei que não há reflexão real senão a partir do momento em que você se obriga a si mesmo à prova da escrita. Rivette aceitou um artigo que eu tinha escrito sobre um filme de Gance, Cyrano et D'Artagnan (1964) e me pediu em seguida outros artigos. Outrora eu fizera um curta-metragem em 61, na Baie de Somme: não falei dele a ninguém, era um assunto estritamente pessoal, como escrever um poema no meu canto. O conteúdo não tinha outro interesse senão o de ser um exorcismo, posto que o tema era autobiográfico. Era um pretexto para filmar pessoas, paisagens: um filme mudo, em 9,5 mm, perdido (a história de um jovem que perseguia um casal). Quando comecei a escrever, pegava os filmes deixados de lado pelos novos redatores, Comolli, Narboni, Jean-André Fieschi, Bontemps, que colocavam sem dúvida mais ardor na escrita, portanto reservando para si os filmes importantes. Eu estava decidido a escrever e a fazer filmes, mas em meu ritmo, levando meu tempo.

Raoul Walsh com Pierre Boulez

S. Toubiana. Essa época dos Cahiers é marcada pela modernidade: é a época em que são publicadas as entrevistas com Barthes, Boulez, Lévi-Strauss. Isto não chocava seu gosto prioritário pelo cinema americano e por cineastas julgados "menores", como Dwan, Tourneur?

J.-C. Biette. Justamente, eu não gostava de Tourneur nessa época, na medida em que ele se afastava das convenções hollywoodianas, era audacioso demais para minha percepção na época. Eu não o compreendia. Não gostava muito de Allan Dwan, somente de seu senso de paisagem. Era de Walsh, sobretudo, que eu gostava. Ford, descobrimo-lo em torno de 63-64, à ocasião de uma grande retrospectiva na Ulm, nomeadamente com a projeção de Asas de Águias (The Wings of Eagles, 1957) que fez oscilar o anti-fordismo dos Cahiers.

Antes disso, gostava sobretudo de Lang, Walsh, Hawks, um pouco menos de Hitchcock, de quem eu gostava dos filmes que estreavam - Intriga Internacional (North by Northwest, 1959), Os Pássaros (The Birds, 1963) foram acontecimentos - mas ele vinha depois de Lang. Gostava igualmente de Nicholas Ray, Preminger, mas não de todos os filmes: lembro-me de ter detestado O Cardeal (The Cardinal, 1963) enquanto gostava muito de Êxodo (Exodus, 1960). Mais uma vez, a luz: aquela de O Cardeal era o primeiro obstáculo, absolutamente intransponível. E a luz de Êxodo tinha muito a ver com minha emoção: ela significava a transparência do olhar.

J. Narboni. No momento em que Rivette chegou colocou-se, em nome da modernidade, um "bémol" sobre um certo número de cineastas, como Minnelli, Preminger. Eles continuaram a ser defendidos por outros redatores, como Douchet. Por outro lado, cineastas como Antonioni e, sobretudo, Buñuel foram colocados em primeiro plano. Os grandes filmes modernos eram O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962) e Os Pássaros, em nome de uma noção teórica que vinha simultaneamente de Barthes e do "Nouveau roman": "o sentido suspenso", ou seja, os filmes que continham um enigma que não se resolvia, sobre o qual todas as interpretações tropeçavam, que pedia, mas arruinava a todas. Era um ponto capital nessa época nos Cahiers.

J.-C. Biette. A arte moderna entrava com força nos Cahiers, com referências frequentes a Lévi-Strauss, Barthes e Boulez. Eu seguia portanto essa moda, mas tinha descoberto Boulez antes de conhecer os Cahiers: já o admirava então enormemente. Alguns de nós frequentavam o Domaine Musical. Eu esperava as últimas obras de Stravinski como os últimos filmes de John Ford. Lembro-me de um dia, 18 de junho de 1963, quando Jean Narboni e eu estávamos indo à Cinemateca da Rue d'Ulm ver os Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari, 1953) de Mizoguchi. De noite teve lugar no Teatro dos Champs-Elysées um concerto Stravinski dirigido por Boulez. A emoção dada pelo Mizoguchi era tal que duvidávamos da emoção do concerto da noite: "A Sagração da Primavera" não era capaz de resistir depois de Mizoguchi. Bem, Stravinski estava lado a lado com Mizoguchi. Tal igualdade era também a grandeza do cinema.

J. Narboni. Pode-se dizer que há um cinema que se acrescenta ao mundo, que está no mundo, que não rivaliza com o mundo, ou melhor, coloca ordem na ideia do mundo: é o grande classicismo segundo Rohmer. De outro lado, há cineastas que rivalizam com o mundo, que têm seu próprio universo, universo este que igualam ao mundo, logo, cineastas que deformam as aparências construindo-lhes novas.

É nisso que eu via a divisão: o esplendor do verdadeiro, do mundo, contra a reconstrução demiúrgica de um autor. E era a isso que as discussões levavam, mesmo se essa divisão fosse bastante grosseira, pois alguém como Rossellini era transversal à tal fissura. Mizoguchi era o exemplo absoluto, em oposição ao cinema de Kurosawa, que estava deslocado. Na literatura, era Goethe contra Kafka.

J.-C. Biette. Havia uma ideia de harmonia universal, mesmo se ela contivesse bastante violência. Acontece também que o mundo mudou muito em alguns anos. Comecei a ler os Cahiers em 58-59, que é para mim o fim de Hollywood. Um cineasta como Lang fez seus filmes na base de uma pretensa universalidade da linguagem cinematográfica, percebida, em todo caso, como tal; ora, essa pretensa universalidade começou a degringolar, vemo-lo nos últimos filmes de John Ford. Um filme com O Homem que Matou o Facínora (The man who killed Liberty Valance, 1962) foi imediatamente percebido por nós como um filme moderno, não como mais um western. Chegou um momento em que houve um sistema de vasos comunicantes, quando o cinema europeu, tipo Antonioni, Bergman e outros, acabaram por fazer peso, quando a nova língua do cinema era aquela dos modernos: não somente Antonioni, Bergman, mas também Fellini, Pasolini que começava. Isso se tornou um cinema tão vivo que era preciso considerá-lo como o novo veio do qual o cinema iria nascer.

Essa época foi absolutamente extraordinária: víamos ao mesmo tempo, nos Champs-Elysées, Gertrud (1964) de Dreyer, O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964) de Antonioni, um Ford, Os Pássaros, Anatahan (1953) de Sternberg...

S. Toubiana. No fundo, você escreveu muito pouco durante esse período de meados dos anos 60.

J.-C. Biette. Estava estudando pois meus pais me obrigavam, tentava seguir um bacharelado em letras, o que me chateava. Mas via muitos filmes, sem que isso resulte necessariamente em muita escrita. Em 65, antes de prestar o serviço militar, preferi partir para a Itália. Era o ano em que acabava-se de descobrir o novo cinema italiano, com Bertolucci, Bellocchio; eu acabara de descobrir Straub em Locarno, e os primeiros filmes de Pasolini: O Evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964), Accattone (1961). Sentia que o cinema se passava na Itália.

Poesia de Roma: 1965-1970

S. Toubiana. É um paradoxo, em plena Nouvelle Vague, com os primeiros filmes de Eustache...

J.-C. Biette. Eu não sentia nenhum ponto em comum com o grupo da Nouvelle Vague. E, quando parti, Eustache tinha feito apenas um filme. Era já um combatente isolado. Eu tinha o sentimento de sufocar em Paris e, no dia em que devia me juntar ao exército francês em Baden-Baden, decidi pegar o trem para Roma.

J. Narboni. Lembro-me de que seu pai veio aos Cahiers para nos perguntar onde você estava, havia um aviso de procurado e vimos seu rosto no "Journal télévisé", apresentado por León Zitrone, como se você fosse um criminoso.

J.-C. Biette. Isso foi por conta de uma fuga, de uma loucura de juventude. Eu era rebelde, em tudo o que há de desorganizado.

Gaviões e Passarinhos

A partir de meu segundo dia em Roma, frequentei a rodagem de Gaviões e Passarinhos (Uccellacci e Uccellini, 1966) o filme de Pasolini. Depois, graças a Gianni Amico, que fazia documentários, conheci Bertolucci; eis-me assim em Roma durante quatro anos. Foi uma experiência muito mais rica que aquela que tive nos Cahiers, onde não escrevi senão apenas alguns artigos bem pouco pessoais, e onde me sentia marginal. Em Roma, descobri que os cineastas se falavam, se viam com frequência, sobretudo que a vida invadia e nutria os filmes sem cessar. Sem falar do fato de conhecer Pasolini.

Comecei a trabalhar num projeto de revista de cinema que tinha Gian Vittorio Baldi e do qual se ocupava Adriano Aprà: uma revista do "novo cinema", que seria consagrada ao cinema canadense, brasileiro, tcheco, francês, e que deveria sair em várias línguas (creio que só teve um número). Louis Marcorelles me havia apresentado a Baldi e, como eu vinha dos Cahiers, Baldi me produziu um curta-metragem: comecei a rodar, levando meu tempo - rodava nos dias que tinha vontade. A montagem foi, igualmente, parcelada. Eustache montou a segunda parte. Para a revista, havia discussões no escritório de Baldi. Rossellini apareceu diversas vezes, eu ficava maravilhado por sua vitalidade: com uma simples frase, desfazia os maiores obstáculos. Bertolucci vinha também, mais amiúde. Conheci-o em seu retorno do Irã e do Egito, onde fora fazer um filme sobre o transporte do petróleo: La Via del Petrolio (1967). Através dele soube que Pasolini procurava alguém para ajudá-lo a aprender francês. Era a época das Communications, com os textos de Christian Metz e de Barthes, e Pasolini queria lê-los em francês. Regularmente, passávamos de tarde com Aprà na casa de Pasolini, líamos juntos os textos. Foi assim que fui levado a corrigir as legendas de Uccellacci, para o festival de Cannes. Fui mais tarde assistente em Édipo Rei (Edipo Re, 1967), mas mau assistente. A Noël Simsolo, que perguntou-lhe um dia como eu era como assistente, Pasolini respondeu: "Ele assiste".

Nessa época, em torno de 1966, Bertolucci tinha muitos projetos para filmes. Voltando do festival de Cannes, de carro, falamos muito durante o trajeto: tínhamos tempo. Devo ter dormido uma hora e, ao despertar, ele me contou uma história, que lhe ocorrera enquanto eu dormia: chamava-se "Natura contra natura", título magnífico. Ele a escreveu mais tarde para Jean-Pierre Léaud, Allan Mitgette que era o soldado americano de Prima della Rivoluzione, e Lou Castel - projeto que jamais realizou. Tinha, sem parar, histórias em progresso, projetos que não chegava a completar. Em 1967, depois de fazer um sketch com Julian Beck e o "Living Theater", sobre a parábola da figueira, conseguiu encontrar financiamento para Partner (1968). Era pleno maio de 68: havia ecos do que se passava em Paris através do que informava Pierre Clementi, que atuava no filme. Durante uma das numerosas manifestações em Roma, que faziam eco àquelas de Paris, queimou-se uma imagem de De Gaulle diante do Palácio Farnese.

No verão do mesmo ano, os que fizeram Maio em Paris vieram, senão a mudar de ideia, ao menos repousar em Roma. Foi nesse contexto que nasceu o filme de Godard, Vento do Leste (Le vent d'est, 1970): lá estavam Ferreri, Marc'o e seus atores de Les Idoles (1968), Cohn-Bendit, Gian Maria Volontè, e me lembro de que víamos as pessoas em Roma, em grupos separados, com medo antes de se encontrar. A atmosfera estava bastante tempestuosa. Uma de minhas melhores lembranças a respeito das relações entre cinema e política foi no cineclube de Aprà, que se chamava "Filmstudio", onde foi projetado o filme de Straub, O noivo, a comediante e o cafetão (Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter, 1968): Cohn-Bendit, rodeado de seus colegas, atacou o filme. Para ele, a guerra e o capitalismo no cinema era ver os tanques no Vietnã, era mostrar isso nos planos, e criticava Straub por não mostrar nada. E Straub lhe respondeu que não fazia filmes para estudantes, mas para os "Cinéac" das estações, para prostitutas e cafetões. O diálogo ficou por aí.

Pasolini também era atacado pelos estudantes e pelos movimentos de extrema-esquerda; eles criticavam os filmes políticos por ficarem no meio-termo, por serem de fato política-ficção, por fazerem romanesca a realidade política; e ninguém, nem os que faziam, nem os que iam ver, queriam reconhecer isso. É a época em que realizou Teorema (1968) e, em seguida, Pocilga (Porcile, 1968), que iam em direção da metáfora, da simbolização dos conflitos, ou seja, no sentido oposto ao dos filmes políticos de Francesco Rosi e de Elio Petri. Era uma época de grandes polêmicas, todo mundo se posicionava sobre o que o cinema devia mostrar: o engajamento era então extremamente claro no plano político. Víamos isso em Veneza, onde os debates eram turbulentos, onde Pasolini se fazia atacar pelos estudantes. Mas ele se plantava diante deles e argumentava com uma firmeza e obstinação em compreender e fazer compreender, que jamais encontrei nesse nível em ninguém. Ele era obstinado, mas de uma infinita paciência.

Voltei a Paris ao final de 69, continuei a trabalhar com ele quando vinha para a legendagem e a versão francesa de seus filmes (pesquisa das vozes exatas, etc...): Decameron (Il Decameron, 1971), Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1972) e As Mil e Uma Noites (Il fiore delle mille e una notte, 1974), mais tarde Salò (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975). A última vez que o vi, acabava de chamar Piccoli para a dublagem de Salò, a caminho de sua última entrevista, com Bouvard. Era a véspera de seu assassinato.

As costas-largas da ideologia

S. Toubiana. Voltando a Paris, que diferença você encontra entre o estado de espírito que reina em Paris e aquele que você conheceu em Roma?

J.-C. Biette. Era bastante diferente, muito mais apreensivo, as pessoas estavam agarradas a posições teóricas, tinham a tendência de obrigar a realidade e os filmes a se enquadrarem em esquemas. Sentenciava-se certos filmes à exclusão partindo de acusações exteriores. Há dois cineastas que não foram jamais rejeitados nos Cahiers, fosse qual fosse o rigor do posicionamento, que são Godard e Straub. Pelo contrário, havia uma rejeição global aos cineastas da nouvelle vague, considerados como "burgueses" ou "antiquados": Rohmer, Chabrol, Truffaut estavam de repente muito longe. Nessa época, os cineastas importantes eram Eustache, Garrel e Rivette. Out 1, em 71, foi muito defendido como o projeto mais audacioso de Rivette; Eustache queria fazer filmes, mas não conseguia - é a época em que fez o filme sobre sua avó, Numéro zéro (1971). O cineasta que me parecia importante nessa época era Adolfo Arrieta, que não parava de rodar, tão simplesmente porque tinha uma pequena câmera à mão; filmar fazia parte de sua vida cotidiana, tinha uma mesa de montagem defronte o seu hotel nos Pirineus, acordava de noite para montar. Era muito estimulante, pois o fato de fazer filmes de maneira tão artesanal e pobre, como Arrieta, era mal visto: percebido como atividade burguesa, desprovida de legitimidade, a não ser se se expressasse de maneira radical, como Godard e Straub. Arrieta não era radical. Quase ninguém levava seus filmes a sério, mas o descendente de Cocteau cineasta era ele, com filmes como El crimen de la pirindola (1965) e Le jouet criminel (1969).
La imitación del ángel


Havia também Duras. Era antes de seu primeiro sucesso, India Song - em 75. Ela era uma cineasta marginal e tomava o partido do "cinema diferente", de todos aqueles que faziam filmes pobres. Tinha-se o sentimento de praticar uma "resistência", fazendo um cinema "livre", do qual ela era a grande protetora.

Todo esse "cinema diferente" era projetado, todo ano, no festival de Toulon, que se tornou em seguida o Festival de Hyères, com um setor experimental, não-narrativo que se inspirava amiúde na vanguarda americana de meados dos anos 60: Kenneth Anger, Mekas e outros. Um cinema visual, extremamente pictórico. Os dois curtas-metragens que fiz nesses anos, Ce que cherche Jacques e La Soeur du cadre, foram exibidos em Toulon, e o segundo, que considero o pior dos dois, ganhou o prêmio da crítica. Ele era bastante teórico, então isso impressionava, mas não era bom. Mostrei-lhe a Pasolini, que se mostrou antes reservado, e me disse um pouco mais tarde na rua esta frase extraordinária: "Quando falhamos num filme, é porque estamos mentindo para nós mesmos".

S. Toubiana. Você perdeu contato com os Cahiers nessa época?

J.-C. Biette. Não, eu vinha sempre à rua Coquillière, mas lembro-me de que era uma época muito triste, quando a indisposição não custava muito.

S. Toubiana. Segundo você, como pôde coexistir a cinefilia antiga, pró-americana, com a corrente do "cinema diferente" de um lado, e a corrente teórica em voga nos Cahiers, que atacava a representação hollywoodiana, do outro?

J.-C. Biette. Houve um momento significativo, foi o estudo dos Cahiers sobre o filme de Ford, A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, 1938), que Eisenstein citou como um dos maiores filmes americanos, filme que se orgulharia de ter feito. É um filme muito bonito, mas não me parecia ter mais importância que outros filmes de Ford. Ademais, o juízo de Eisenstein foi quase contemporâneo ao filme de Ford: tratava-se de um filme recente. Para voltar ao cinema americano, eu estava na defensiva, pois não via como articulá-lo ao cinema moderno. Eu continuava a ver filmes americanos nos Studios Action, mas para mim era o passado, não via como reativá-lo. Revisitei o cinema americano depois de discussões com Daney e Skorecki, que me falaram de Tourneur, pois viam pontos comuns entre seus filmes e meus curtas-metragens. Jacques Tourneur não me havia interessado nos anos 60 pois ele fazia um cinema implícito, fazendo trabalhar a imaginação a partir dos códigos que invertia, um pouco como Hawks, mas de maneira mais ingrata. Para mim, os códigos eram signos por natureza e, assim que desviados de sua função principal, eu experimentava um sentimento de frustração. Assim, nesse período de questionamento político e de rejeição ao cinema americano, qualquer um que tivesse uma relação perversa com o sistema codificado se tornava mais interessante que os cineastas que mantivessem uma relação "gloriosa" com Hollywood. Há cineastas, como Cukor por exemplo, dos quais jamais gostei muito, pois vão no sentido da glorificação do artesanato americano.
Stars in my crown




Escrevi sobre Tourneur. Ele foi durante alguns anos, para mim, o maior dos cineastas. Fui vê-lo em Bergerac e guardo a lembrança do homem mais profundamente original que jamais encontrei, entre os cineastas que conheci e admirei. Ele era indiferente à vaidade. Ele não realizou, decerto, os maiores filmes da história do cinema. Não tinha ambição artística nem vontade pessoal. Mas detinha, mais que todos os outros, o segredo do cinema. Era um vidente calmo, que sabia tudo da vida e considerava talvez que, em seus filmes, bastava sugerir. Ele quase se esforçava em desvalorizar seus filmes ou a dizer que eles não lhe diziam respeito. O que é quase verdade.

S. Toubiana. Esse período dos anos 68-70 é, no fundo, paradoxal: havia a existência de vários discursos sobre o cinema: o discurso cinéfilo, a defesa do novo cinema, a abordagem marxista ou, de modo mais geral, teórica (semiologia, psicanálise). Fazer a genealogia é bastante difícil.

J.-C. Biette. Havia uma ideia muito forte, para os jovens com eu que faziam curtas-metragens, que era a da materialidade do suporte. O que me agradava nos filmes de Rivette era o grão da imagem, e o registro documentário de acontecimentos aleatórios. O que já se encontrava naquele filme que fez sensação no festival de Pesaro em 66, Echoes of Silence (1965) de Peter-Emmanuel Goldman, que foi um choque para Eustache, Straub, Bertolucci...

O cinema era em parte a sucessão de diversos cinemas nacionais: o cinema brasileiro, canadense, tcheco, dos anos 64-65, com a importância do som direto: amávamos escutar os ruídos da rua nos planos, havia prazer em registrar a "fritura" da vida. Renoir, que admirava Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), lamentava que o filme não tivesse sido gravado em som direto. E disse isso a Glauber Rocha.

J. Narboni. O ponto comum entre o experimental de um lado, o discurso teórico do outro, era a matéria: a recusa da transparência, do cinema liso, harmonioso, em nome da defesa de tudo aquilo que fere a harmonia, que interrompe a ligadura. Da matéria ao materialismo, demos o passo rapidamente.

O dogma acabou: Jean Eustache e Paul Vecchiali

S. Toubiana. Faltava falar de A Mãe e a Puta (La Maman et la putain, 1973), uma data muito importante: 1973, um momento em que os Cahiers estão divididos entre o amor pelo cinema e seu discurso político dogmático. É um momento de fratura importante para a revista.

J.-C. Biette. Eu via muito Eustache nessa época, e acompanhei a escrita do roteiro e a filmagem. Enquanto escrevia o roteiro, Eustache tinha como livro de cabeceira Em Busca do Tempo Perdido. Seria interessante rever o filme com essa sombra de Proust. Ninguém diria que este seria o filme histórico que se tornou.

S. Toubiana. Durante esses anos políticos, pode-se dizer que você não escreveu muito sobre cinema.

J.-C. Biette. Eu não via sobre o que poderia ter escrito; partir de pressupostos políticos, ou estruturalistas, não tinha nem vontade, nem força. E nessa época eu não tinha uma ideia de conjunto do cinema. Tentava ver claramente fazendo curtas-metragens.


Em 1974, houve a descoberta do filme de Paul Vecchiali, Femmes Femmes, com essa importância dada ao jogo das atrizes, a uma espécie de teatralidade. Isso era novo, muito vivo. Eu já tinha visto algumas vezes Vecchiali, que era uma figura marginal em relação aos Cahiers e, para mim, era como um primo de Eustache. Eu mal o conhecia. Sabia-se que ele tinha frequentado o politécnico, que atravessou o percurso dos Cahiers em dada época (escrevera, entre outros, um artigo sobre O Processo de Joana d'Arc (Le procès de Jeanne d'Arc, Robert Bresson, 1962). Femmes Femmes foi um filme-farol, que, ao contrário de A Mãe e a Puta, não foi reconhecido; tornou-se um clássico secreto. Pouca gente foi vê-lo, mas senti que ele abria portas, que era um manifesto, entre outros, contra a complacência do autor. Havia em Femmes Femmes, em potencial, a possibilidade de alcançar um cinema que integrasse o prazer da interpretação, dimensão que faltava ao cinema de que gostávamos no começo dos anos 70. Essa dimensão existe no filme, através dos atores, que se tornam o conteúdo e as propostas expressivas e estilísticas do filme. Era uma falta que sentíamos, depois de um período antes marcado pela neutralidade da atuação. Pasolini, que se impressionou muito com o filme no festival de Veneza, contratou as duas atrizes, Hélène Surgère e Sonia Saviange, para seu próximo e último filme, Salò: elas até reinterpretaram no filme dois momentos de Femmes Femmes.


No ano seguinte escrevi Le Théâtre des matières, que realizei em 1977. O que há de mais difícil quando fazemos um filme, é menos a técnica que a abordagem dos atores: a verdadeira dificuldade do cinema começa aí. Como provocar, partilhar essa realidade dos atores, em relação ao que imaginamos para as personagens, como saber o que pertence a um, o que pertence a outro: começa aí o mistério do cinema. Por volta de 1977, as noções de materialismo histórico, os posicionamentos políticos dos filmes, foram de súbito relativizados por essa descoberta que fiz da importância dos atores num filme. Tive a impressão também de que muitas das questões de ordem estilística tinham, de repente, menos importância. Mas tudo isso não concernia, talvez, senão a mim mesmo. Não se tratava, em todo caso, de um movimento geral.

A cada filme sua poética: 1977-1980

S. Toubiana. O paradoxo é que você reatou com a crítica no mesmo momento em que fazia seu primeiro longa-metragem.

J.-C. Biette. Sim, tive de novo vontade de escrever sobre cinema. Senti que isso coincidia com uma demanda, nos Cahiers, de reatar com o cinema que a revista havia defendido nos anos anteriores. A vontade de interrogar de novo o que havia constituído a "Política dos autores": ou seja, Hawks-Hitchcock, Renoir-Rossellini e, sobretudo, os dois cineastas que contaram muito para a nossa geração: Ford e Lang. Ford enquanto cineasta que opúnhamos a Hawks, pois um e outro haviam feito westerns e filmes de ação. Se Rohmer sempre colocava Hawks bastante alto, Ford era, para alguns de nós, um cineasta ainda maior. Para mim, ele permaneceu.

S. Toubiana. Esses anos 70, me parece, são bastante ecumênicos, consensuais, a respeito da História do cinema: no fundo todo mundo encontra seu lugar nela, salvo alguns rebeldes. Como você analisa essa tendência, depois do grande cisma, violento, teórico e ultra-político de 68?

J.-C. Biette. Houve a conjunção de uma vontade de redescoberta por parte de uma nova geração, com um fenômeno de reedição de filmes antigos - que se fez menos através de uma "política dos autores" que através do interesse pelos atores. É o grande período dos ciclos, programados pelos cineclubes de Claude-Jean Philippe e de Patrick Brion na televisão, compostos de filmes bastante raros. E houve a ideia nos Cahiers de fazer a reavaliação de filmes antigos, de se reapropriar da história do cinema: daí uma rubrica "filmes na televisão". Mas essa ideia então era minoritária, quase paradoxal. Impressionei-me entretanto com o fato de que nessa revisita à história do cinema havia, tanto da parte do público como da crítica, uma parcela de nostalgia pelo que havia de mais datado no profissionalismo e no artesanato cinematográficos. Estando eu mesmo envolvido, bem sei que há sempre um certo número de clichês que acompanham o movimento de recepção dos filmes. E esses clichês existem também a respeito dos filmes antigos. É necessário, continuamente, "fazer a faxina": as histórias do cinema estão plenas de filmes que dela fazem parte, seja porque foram bem-sucedidos - e o sucesso lhes vale como selo de qualidade - seja porque foram admitidos por razões de conforto moral e estético, de identificação pelos críticos da época. Tive a vontade, quase "domquixotenesca", de refazer minha própria história do cinema.

J. Narboni. Desse movimento de reencontros de que fala, há alguém que teve um papel capital, Wim Wenders. Nos anos 77-78, houve o equivalente daquilo que foi A Mãe e a Puta para a geração de 68: a deriva, o fim da ideologia, o silêncio. Pense-se como for, Wenders militou por esses reencontros com o cinema, enquanto cinéfilo, fazendo o desvio por Nicholas Ray e por Ozu. Ele teve um papel capital em renovar as duas linhas: o retorno ao cinema de uma geração, passando pela América: Ford, Ray, Fuller. Desse ponto de vista, No decurso do tempo (Im Lauf der Zeit, 1976) tornou-se o filme-farol desse período. Pergunto-me se Wenders não esteve em fase, depois dos anos de rebelião, de crítica, de discurso "contra", com os afetos desolados, uma vontade de errância de modo a sair das ideologias e contradições.

No decurso do tempo


J.-C. Biette.
De modo muito diferente do que se passou com A Mãe e a Puta, ou nos anos 60 com Godard, em Wenders - e é disto, em minha opinião, que vem seu enorme sucesso - não há dimensão crítica. Ele é um sentimental, que assimilou toda uma sensibilidade americana vinda do cinema de Nicholas Ray: daí a possibilidade de identificação bastante grande, da parte do público europeu. Salvo que o cinema de Ray era crítico, senão na forma, pelo menos através de suas personagens. Cito amiúde esta frase de Fritz Lang: "Toda arte deve criticar alguma coisa". Nessa época, Fassbinder foi rejeitado; e é nele que encontramos essa dimensão crítica, violenta, na maior parte de seus filmes: de O Medo Devora a Alma (Angst essen Seele auf, 1974) a Querelle (1982)...

"Cinema-crônicas": 1985-1986

S. Toubiana. Para terminar, é preciso falar de suas "Cinema-crônicas", que são a última série de artigos que você escreveu nos Cahiers...

J.-C. Biette. Eu protestava sozinho no meu canto contra o que se escrevia sobre cinema, e te propus que nos encontrássemos, pois tinha de novo vontade de escrever, para comunicar, com o risco de parecer amargo ou violento, o que eu sentia. Você me propôs a fórmula de uma "crônica" mensal. Eu não sabia, de resto, se seria capaz de produzir um texto todo mês. Certos meses, não pude. O combinado era que eu falasse de filmes antigos revistos, ou de filmes atuais. Isso me agradava: normalmente já navego entre o passado e o presente, e era uma maneira de verificar diretamente minha certeza de que o mau cinema não tem idade, assim como o bom.

Uma obra de arte comporta um certo número de significações que se pode decifrar a todo momento. Pois o presente não vem do nada: e as significações que veicula um filme não estão mortas, estão sempre ali, também elas perfizeram um caminho na realidade. Estamos sempre a falar de uma vez só do passado, do presente e do futuro: nem passado nem presente são, por princípio, superior ou inferior.

S. Toubiana. O que importava para mim, era: 1. Nada de nostalgia. 2. Todo filme antigo deve ser revisto nas condições de sua "possibilidade" artesanal, colocando em segundo plano a noção de autor, que tende a tudo encobrir, mesmo obscurecer. 3. Falar de um Garrel, de um Preminger, de um Rossellini, de um Oshima, etc., é antes de tudo colocá-los sobre a mesma linha de partida.

J.-C. Biette. Sim. Olho para eles com o mesmo interesse, a mesma irreverência, sem ênfase. Digo para mim mesmo: é alguém que fez um filme, que não tem, a princípio, mais valor que qualquer outro e, quando penso num filme, comparo aos outros de seu autor, e também a outros filmes de outros autores. É o que chamo, mais que uma "política dos autores", uma "Poética" expressa pelos filmes, poética que pode concernir um filme, vários, ou toda uma obra. Poética significa tanto a visão pessoal do cineasta, ao mesmo tempo que a prática estética ou artesanal. Ambiguidade permanente a qual não há, de resto, nenhuma razão para dissipar. No cinema, existe uma relação bastante difícil em precisar entre a concepção e a materialização. A crítica deveria tentar elucidar essa relação nos filmes. Não é fácil, mas é o que já encontramos em nosso modelo, André Bazin.

Quis menos, nessas "crônicas", atacar os filmes - com que direito eu o faria - mas antes caracterizar as opiniões ilusórias a respeito de certos filmes, que provocam um entusiasmo ou uma indiferença que me parecia injusta. De fato, se a crítica dissesse: é um pequeno filme interessante, com tal ou tal coisa formidável. Mas não, há uma obra-prima a cada cinco semanas! Seria já muito existirem os "bons pequenos filmes de hoje". O cinema vivo é, antes de tudo, isso: poder falar do que está bem em alguns filmes. Assim a crítica e os cineastas veriam mais claramente e poderiam, talvez, ver ou fazer um pouco mais de coisas que ficam bem, nos próximos filmes. Mas o público cinéfilo também tem sua parte de responsabilidade. A indiferença é um crime bem partilhado.

Entrevista realizada em fevereiro de 1988. Publicada como introdução ao livro "Poétique des Auteurs". Traduzido por Eduardo Savella.