O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

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“Laços de Ternura”, prazer louvável




Por Camille Nevers

O filme de James L. Brooks retorna ao cinema: ocasião de reler e revisar a crítica de Serge Daney publicada no “Libé” quando do seu lançamento em 1984, e poder finalmente rever sem vergonha esse longa-metragem magnífico.

A reprise desse filme maravilhoso, célebre, multi oscarizado e, contudo, controverso, drama sentimental contrafazendo uma comédia clássica, história de uma relação mãe-filha que uma vida percorrida em uma ficção de duas horas não conseguiria cercar, é a ocasião de resolver um velho problema. Pois o que há de maravilhoso em Laços de Ternura é proporcional à sua perfeita simplicidade. Esse ponto culminante mas invisível da inteligência, portanto de possível confusão entre a fineza de expressão e o banal, o “medíocre”, a dianteira do tempus fugit e a horrível desonra de um “a vida é assim” que só concederia (vida) aos ricos – contudo, o crítico teria esquecido? é a frase condutora de Tarde Demais para Esquecer de Leo McCarey: “A vida é assim, etc”.

Nas páginas do Libération do 7 e 8 de abril de 1984, quando Laços de Ternura era lançado na França, recém coroado com esse “repugnante amontado de Oscars para o qual ele foi programado”, Serge Daney se enganou – o que acontece com todo mundo. Seu engano se intitulava “Botas para um vale de lágrimas”. Ele atacava o filme violentamente. Não há problema em se enganar; o que aconteceu foi que ele nos fez sentir vergonha. Vergonha de ter gostado e ter chorado diante dessa água com açúcar viva e trágica. É preciso resolver isso, quarenta anos depois, opor-se à crítica de Daney, que não é o pai nem essa mãe a quem a ultima frase do artigo bate ainda com seu grito paradoxal: “E contra a mãe, não nos revoltamos”.

Pequeno palhaço

Nos revoltemos contra a autoridade, mas somente quando ela abusa de si mesma. Por que, na época, Serge Daney, que tinha discernimento, se enganou? Primeiro confundindo o inimigo, a televisão, tomando o filme como exemplo do argumento menos interessante da história do cinema – que se trata de um “telefilme” (como pudemos dizer “é teatro filmado”, etc). “Mas (diriam, surpresos por tanto ódio) esse filme não é uma novela! Com certeza, é ainda pior”. O que é que o crítico deixou escapar, cego por um esquema de leitura ideológico que o fez considerar o filme como o contemporâneo odiável de Dallas e de Reagan mais do que o descendente direto, em termos de estratégia narrativa, de Leo McCarey, não obstante citado ao lado de Vincente Minnelli e Douglas Sirk, apenas a contragosto de uma nostalgia que sentimos forçada – “eles nem sempre foram nulos (aliás nós os lamentamos)”?

Uma pista: o pequeno palhaço. Daney não soube ver o pequeno palhaço, a luz persistente da lamparina do primeiro plano do filme. Esse pequeno palhaço que é também a primeira frase do “roteiro” de James L. Brooks: “Uma tela escura, no canto inferior esquerdo, brilha o rosto de um pequeno palhaço. Ele é quase imperceptível, enquanto os créditos começam”. O crítico viu somente a imagem da mãe que ele não podia tolerar. Não a luz persistente do rosto do palhaço, nem a arte da comédia. No filme, a mãe, Aurora, e sua filha, Emma, são magnificamente retratadas, com fisionomias variáveis, por duas épocas do cinema americano: Shirley MacLaine e Debra Winger, tão diferentes quanto possível nessa dinâmica de caracterização contrastada cara a Brooks. Daney viu a pulsão (de morte, de mãe), não o pequeno palhaço que afasta o filme de toda causalidade edipiana e do trilho da fatalidade – nada mais “ilógico” que a arte da psicologia levada aos seus limites esgotados, cristalizada em mise en scène que “se repensa” e se retoma, repete infinitamente sua entrada e sua saída, de Brooks. Essa ausência de determinismo social e de fixação familiar, que ele deixa em plano de fundo, o separa, aliás, de Sirk, de quem Daney aceita os melodramas de filiações trágicas – o que ele recusa a James L. Brooks. Como você sabe.

Combustão lenta

Uma outra maneira mais doce de perguntar, então: o que torna Laços de Ternura tão belo? Uma inteligência do humano conduzida a um ponto de precisão mais que humana e sem pressão. A transparência de suas intenções e sua ausência de efeitos. O emaranhado frouxo das existências, distantes mas ligadas. Essas poucas vidas paralelas que avançam de forma regular, o filme aborda suas intimidades esculpindo os raccords, os ecos e as distâncias implicadas, o que as numerosas cenas de telefone atestam (com esse efeito de “presença in” da voz do interlocutor no fim da linha, efeito que encontramos em Defesa Secreta de Jacques Rivette, outra história “de menina”). James L. Brooks filma tudo com uma benevolência afeiçoada, inclusive a malevolência, o que lhe permite exprimir com tato indizível, sob a comédia sentimental, a emoção sinuosa e a tragédia sem aviso prévio. Como Leo McCarey.

Assim Daney nos fez sentir vergonha de gostar dos filmes de Brooks, por muito tempo. Nisso ele não se enganou, enfim. Pois Laços de Ternura é o estudo bastante exaustivo de um sentimento nunca filmado como tal, de uma combustão lenta (os filmes de combustão lenta são os mais bonitos): a vergonha. A vergonha é o motivo de cada plano entre MacLaine e Winger, Nicholson, Daniels, Lithgow, as crianças, todos pegos de surpresa, para desconforto geral e seu constrangimento. É a vergonha que os pais fazem aos filhos, mais ainda que a vergonha que os filhos fazem aos pais. O filme mostra como essa vergonha, aplicada primeiro a si mesmo, é uma forma lastimosa e desajeitada, mas de um pudor sublime, o do filme, de estar no mundo. É assim que Brooks consegue filmar coisas indizíveis, sentimentais e cruéis, até o último suspiro. Choramos. Eis aí porque nós tínhamos razão.

“Tendres Passions”, plaisir louable foi originalmente publicado no jornal Libération de 1 e 2 de outubro de 2022, p.24. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

The Post – A Guerra Secreta, vazamentos de luxo


Por Marcos Uzal

Relatando a revelação dos documentos secretos sobre a guerra do Vietnã em 1971, Steven Spielberg torna heroico, em um filme de tirar o fôlego, o contrapoder jornalístico e o surgimento dos primeiros denunciantes.

Em retrospecto, constatamos que a segunda parte de Tubarão – em que, por cinquenta minutos, três homens confinados em um barco conversam enquanto esperam um tubarão – anunciava uma veia do cinema de Spielberg, na qual aquele que foi considerado como o paladino do grande espetáculo adolescente parece ter encontrado uma forma de maturidade nos últimos filmes (Lincoln, Ponte dos Espiões): o “filme de câmara”, principalmente filmado em internas, onde as confrontações são antes de tudo verbais e as aventuras são os caminhos morais que levam a decisões.

The Post – A Guerra Secreta leva essa tendência muito longe, chegando a criar um suspense de tirar o fôlego unicamente com discussões, reuniões e ligações telefônicas. Como em quase todos os filmes de Spielberg, tudo gira em torno de um objeto fascinante, obsessivo, mas aqui a aparição extraordinária, o tesouro, o milagre não é senão um documento fotocopiado de 7000 páginas – um relatório secreto do departamento de Defesa dos Estados Unidos detalhando as tomadas de decisão do governo americano durante a guerra do Vietnã, revelando principalmente que o envio de tropas foi decidido antes do engajamento oficial, e depois prolongado para evitar a humilhação, visto que a derrota era desde muito tempo previsível. O filme segue precisamente a trajetória do documento, de seu furto por Daniel Ellsberg em um cofre da Rand Corporation à sua transcrição pelos jornalistas, passando pela sua paciente fotocopiagem e sua circulação em diversas caixas, sempre abertas com uma fascinação infantil por seus destinatários.

Escolhas, riscos e negociações

Mas essas gavetas que se abrem e essas tampas que se levantam são apenas as premissas da atualização definitiva, onde o segredo de Estado poderá dobrar o curso da história tornando-se público nas colunas de dois jornais concorrentes, o New York Times e depois o Washington Post em 1971. A aposta do filme é, portanto, menos o percurso do famoso dossiê do que as diversas escolhas, riscos e negociações que vão permitir sua difusão nos jornais. O relatório desvela uma série de más decisões, e é por outro encadeamento de decisões que ele poderá ou não ser publicado. O essencial se dá aqui entre Benjamin Bradlee (Tom Hanks), redator-chefe do Washington Post, e Katharine Graham (Meryl Streep), proprietária do jornal. Esta última conseguirá superar todas as pressões externas – emanando do governo, dos financiadores do jornal, de seus conselheiros jurídicos – até dar seu aval para Bradlee?

Acontece justamente que Ellsberg, antes de furtar os “Papéis do Pentágono”, tinha se destacado pelos estudos sobre a "teoria da decisão", notadamente em um contexto econômico. Ele está, assim, na origem de uma descoberta chamada “paradoxo de Ellsberg”, demonstrando que quando duas escolhas se oferecem a nós, nós pendemos geralmente para aquela cuja lei de probabilidade é a mais conhecida. Em outras palavras: preferimos o risco, cujas consequências possíveis são conhecidas, à incerteza, cujo resultado é desconhecido. Mas aqui acrescenta-se um fator essencial: a ética. Para Katharine Graham, o dilema é trair algumas amizades (inclusa uma ligação próxima de longa data com Robert McNamara, secretário de Defesa de 1961 a 1968 e homem que encomendou o relatório secreto) e comprometer seu jornal para que rebente a verdade; ou seja, escolher arriscar ao máximo seus interesses pessoais em nome do interesse comum. Aí reencontramos a ética pragmática tão celebrada pelo cinema clássico americano (Ford, Hawks), onde a bravura política é menos o fruto de um pensamento, e menos ainda uma ideologia, do que um gesto justo ou uma boa decisão realizados no momento certo. E pela coragem de sua decisão, isto é, para além de sua classe social e suas conivências políticas, esta rica herdeira se verá reverenciada como um exemplo pelas hippies e feministas, com as quais ela tinha, a priori, bem pouco a ver.

Na contramão da época

Spielberg consegue, por uma mise en scène tão lúdica quanto precisa, compartilhar com o espectador a aposta de cada troca, a excitação de cada descoberta e decisão. Nesse didatismo eufórico, contracorrente ao pessimismo da época, reside também a dimensão política dessa ode ao contrapoder que representa o jornalismo quando praticado com independência e temeridade. O filme é notavelmente muito belo em sua maneira de descrever o nascimento intelectual e, sobretudo, material de um artigo, de sua primeira versão datilografada até o amanhecer, onde ele é depositado diante de uma banca, após ter passado pelas prensas e impressoras rotativas, - filmadas como fascinantes robôs pelo diretor de A.I -, sem esquecer o detalhe das tesouras que cortam a alça envolvendo o maço de jornais antes de estes serem colocados à venda.




Certamente não é anódino que este filme, que diz o quanto o jornalismo deve estar “a serviço dos governados e não dos governantes”, surja em um momento em que esta profissão e a ideia mesma de verdade são particularmente ameaçadas por um presidente americano que cultiva a arte das fake news para desacreditar toda forma de informação. Além disso, é saboroso que Steven Spielberg tenha escolhido não mostrar Richard Nixon senão de muito longe, através da abertura de uma janela da Casa Branca, como uma pequena silhueta irritada em um escritório obscuro, imagem derrisória do sujo segredo mal guardado, da arrogância do poder que uma simples escolha de ângulo da câmera basta para relativizar.

« Pentagon Papers », leaks de luxe foi publicado no jornal Libération em 23 de janeiro de 2018 («Pentagon Papers», leaks de luxe – Libération (liberation.fr)). Tradução : Luiz Fernando Coutinho.

Brisseau perigoso




Por Camille Nevers 

O cineasta, autor de Boda branca e De som e de fúria, faleceu sábado aos 74 anos. Condenado por assédio e agressão sexual, ele deixa uma obra impiedosa e magnífica que ainda não acabamos de reabilitar. 

Um dos maiores cineastas franceses está morto. Ele ingressou neste outro mundo dos grandes cineastas perdidos. "Aqueles por quem choramos não são os ausentes, são os invisíveis." Entre Victor Hugo, de quem a citação foi emprestada, e Simone Weil, o Marquês de Sade e o cinema milagroso de Murnau, procurem o homem, o último dos homens, procurem Brisseau. O grave e a graça, o miserável e a aurora, entre a grama alta e o horizonte, Jean Valjean e o porteiro uniformizado que, sob os traços de Emil Jannings no filme de Murnau, a multidão venerava ou odiava alternadamente, dependendo se a sorte lhe sorria ou se lhe batia com a porta na cara. 

Procurem-no, este homem cuja vida teria sido dedicada exclusivamente ao cinema, que teria consistido em se ver como um espectador supremo e absoluto. Mais então, e é isso o que nunca lhe será perdoado, mesmo enquanto espectador impuro, que nos devolve a gentileza assim como Hitchcock o fazia, a acusação de voyeur, de ser torpe e de alma perdida que também cai sobre nós: se eu sou realmente culpado, olhem para vocês. Assistam os filmes. Como em Weil, a filósofa marxista e convertida ao cristianismo (A gravidade e a graça é expressamente citado em Boda branca), o cinema de Jean-Claude Brisseau vaga pelas trivialidades em íngreme declive e voos místicos, em busca de uma metafísica da liberdade. Infeliz, incondicional. Àqueles que nada viram, ou nada quiseram ver de seu cinema, à exemplo do feminismo mal intencionado quando Brisseau serve de álibi virtuoso aos trissotins[1] e tricoteuses[2], assim gritam novamente, pavlovianos, desde sábado ao anuncio durante a noite da morte do cineasta em Paris. 

Como um desses personagens criminosos perdido em um paradoxo lógico e cinematográfico de Fritz Lang, Brisseau é mais uma vez, mesmo morto, analisado minuciosamente, insultado por aqueles que aos bandos gritam com os lobos e não tem outra coisa a dizer, “culpado!”, mascarando por trás de seus gritos suas próprias vilanias. E omitindo todo o resto, por exemplo que a culpa foi estabelecida, julgada, a pena sentenciada: as vítimas de seus assédios e da agressão sexual, as duas atrizes que em 2005 e depois em 2006 haviam obtido ganho de causa no final de um julgamento seguido de um recurso que condenava o cineasta a um ano de prisão com suspensão de pena, 15.000 euros de indenizações aos quais se somariam mais 5000 euros dos quais 4000 por danos morais a uma delas. Está estabelecido. 

Como foi estabelecido ele pagou pelos outros, mais fortes, mais mundanos e mais desprezíveis. Polanski teve direito à sua retrospectiva no templo sagrado em novembro de 2017. O sacrifício no altar de uma “histeria de lunáticos”, para citar algumas palavras dispersas dos senhores na Cinemateca Francesa, foi a retrospectiva de Brisseau que iria aconter pouco depois. Ele pagou o preço do criminoso mais célebre. Ele pagou caro Brisseau, porque ele era pobre, sem produtor, estimado mas não famoso, genial mas não agradável nem muito apresentável. Ogro desleixado, gigante assustador com um brilho risonho no fundo dos olhos, olhos escuros e claros como uma fausse teinte[3], uma nuvem escondendo o sol como em um filme de John Ford. 

Brisseau, o espectador que sonhava acordado com o mundo ao redor de si. Vejam os filmes: culpada inocência, não somente do voyeur, mas do grande cineasta passivo. E vivendo como tal: perverso e sem tocar, tendo prazer em ver mulheres que se acariciam em todos os seus filmes, consciente que o diabo o carregará, mas talvez a graça também. A companheira de seu alter ego cineasta em Anjos exterminadores (2006), seu filme- expiação depois que a justiça foi feita diz a ele que ele é "simplório". É isso: a inocência do idiota. E Brisseau estava bem sozinho, bem simplório, com a grande, a imensa Lisa Hérédia sua companheira, montadora, sua figurinista, sua faz-tudo e certamente sua melhor amiga, e que era três palmos menor do que ele. A solidão não o torna menos culpado, mas o torna um alvo mais fácil – para abandonar, para adiar por tempo indefinido. Será conveniente, piedoso, de requalificar a homenagem tarde demais: póstuma. 

Autoficção 

O que é evidente é a parte originalmente autobiográfica de seu cinema, não tanto na linha cronológica que ele concebeu, mas na imensa parte de confissão indireta, autoficção de homem (uma vez que se tenha rapidamente atribuído esse gênero às mulheres, para não dizer às “boas mulheres”[4]). No seu caso em particular seria necessário falar obra em autoficção de espectador. Com sua parcela, verdade seja dita, psicanalítica. Sua “Vida como ela é” para retomar o título de seu magnifico primeiro filme produzido dentro das regras (com a ajuda do Films du losange, de Eric Rohmer que logo detectou o jovem talento). “É”: o inconsciente, a parte freudiana da obra de Brisseau. A vida como ela é, como cinema e como inconsciente. A morte do pai em sua obra é fundamental. Coube a Bruno Cremer o incarnar como nenhum outro, espantoso assassino ou bruto estúpido, em Um jogo brutal (1983) e depois em De som e de fúria (1988). Em seguida uma terceira vez sob uma forma diferente de declinação, iniciando o “complexo de Lolita” de Brisseau ao lado de Vanessa Paradis revelada em Boda branca (1989, seu maior sucesso, sua maior estrela). A mãe, ela está decididamente ausente, ela deixa pequenos bilhetes na geladeira para seu filho. Em outras vezes são as geladeiras e todos os outros eletrodomésticos que despencam, jogados das janelas de um bairro social para confundir a polícia – tudo se inflama para que os amantes de Os indigentes do bom Deus (2000) possam escapar, mais para o sul, sob a luz pastoral de um perturbador curso de alfabetização entre a jovem mulher e o jovem homem, o início do mundo e do amor. A mãe, então, é sublimada por figuras de substituição, de professoras (Fabienne Babe em De som e de fúria) ou de guardiãs maternais (Geneviève, a extraordinária personagem interpretada mais uma vez por Lisa Hérédia em Céline), e de apaixonadas, uma chuva de anjos. 




Jean-Claude Brisseau tinha uma fórmula para resumir de onde ele vinha: “o filho de uma empregada que viveu num sonho de cinema”. Nascido em Paris em 1944, sua vida é dedicada à escola e ao cinema, desde muito cedo, numa loucura compulsiva. Ele teria adorado estudar no institut des hautes études cinématographiques como os jovens bem nascidos, mas sem dinheiro – “em casa não tinha grana” - foi a educação pública que o permitiu viver e trabalhar durante muito tempo. Primeiro instrutor e depois professor de francês em Aubervilliers (Seine-Saint-Denis), do qual ele será o primeiro a se apoderar da conflagração, da violência e da graça, da situação das periferias. Para incarnar tudo isso, ele encontrara o magnifico e frenético François Négret, um ator único. 

Assim que foram lançadas as câmeras Super 8, em 1975, eu comprei uma”, ele disse em 2013 ao Télérama. Ele se torna cineasta amador no sentido próprio do termo, e seus filmes tratarão naturalmente de sua profissão, da escola, do fato de professar, de ensinar, como também de falhar em sua missão. Às vezes de sair abalado como sua reputação, tal qual o professor perdidamente apaixonado de Boda branca, filme de terrível previsão daquilo que acabaria atingindo o cineasta indigno. E culpado. 

Brisseau, culto, cinéfilo obsessivo, orientado para o misticismo, as aparições de fantasmas e o esoterismo lembrando novamente Hugo, e filho de proletários que permaneceu pobre por toda a vida, tinha este lado selvagem de autodidata apaixonado, esse lado faz-tudo impressionante que colocava tudo em jogo pelo próximo filme, a próxima atriz ou o próximo ator (não esquecer das presenças masculinas inesquecíveis de sua obra), e por exemplo Sabrina Seyvecou com Coisas secretas (2002) revelada no deslumbramento do novo século, logo marcada com o selo da infâmia por um cineasta que prosseguiu com os meio e apoios que pode. Esses filmes de câmara, fazendo referência à musica, suas melodias azedas com uma mise en scène sempre tão suntuosa, de privação e desnudamento, assim o filme auge nos temas de morte e sexo, de suicídio e de graça estelar, premiado de um leopardo de ouro em Locarno, A garota de lugar nenhum (2012). Fabienne Babe, Sabrina Seyvecou, Lise Bellynck, Virginie Legeay, teriam amado, admirado e apoiado (ou perdoado?) Brisseau sem questionar. Lisa Hérédia, nos dias de forte perseguição e do isolamento ao desespero, esteve ao seu lado até o fim. Não foi fácil. 

Brisseau, o cinema o enganou ou o engoliu. Em sua obra existe a rara impressão de que tudo, verdadeiramente tudo fora sonho de cinema e de existência misturados. E aliás, eis sua perversão sem perversidade, material para renovar um cinema permanente do qual ele personifica o espectador onipresente e aquele que mostra as sombras, mas queimado, queimado de corpo e alma nas chamas da dança, da coreografia e da orgia que ele organiza. O sexo e a morte, o místico, sua mise en scène inteira consiste naquilo que acontece com as visões: em renovar esta voracidade insaciável e passiva, em se afastar, em ser “todo olhos” como outros são todo ouvidos, do espectador. Tudo é propicio à graça alcançada e ao invisível. Às revelações devotas de jovens garotas que fazem perder a razão. “Mas você quer me deixar louco?” diz ele a Lisa Hérédia em Mediumnité (1978). E tudo é a arte do raccord, cujo paroxismo é o sentido absoluto do “falso raccord”, único meio de fazer surgir o fantástico, o fantasma ou a aparição, a levitação e a visão, no interstício. É a imperfeição do cinema desajustado de Brisseau que o torna prodigioso, irregular e perfeito, primitivo e puro. 

Perdição 

A história é sempre aquela do orgulho (disfarçado, como em Boda branca) confrontado à humildade (a enfermeira em Céline, por exemplo). E se o desespero é um orgulho disfarçado, levando com frequência ao suicídio, então sair do desespero é se livrar de todo o peso. Ou pulamos na água ou nos jogamos pela janela. Há sempre um personagem que sabe, que detém o saber, que coloca em baixo de sua asa um anjo, um anjo negro, inocente e às vezes iletrado, doente ou em mal estado, querendo o ajudar. E então sombrio no amor, numa perdição até a morte e na violência (o assassinato, em Coisas secretas). O conhecimento através de abismos. Aquele que sabe (o professor, a stripper, a enfermeira, o cineasta) o que ele aprende que antes ignorava? A paixão. A perda. O crime. Ele se surpreende de não saber mais nada além da separação, da dor de toda separação. 




Os filmes registram portanto fenômenos curiosos, de transfusão, de entrega, de impregnação (termo que Brisseau amava usar) entre os corpos, entre os personagens: o poder erótico é antes de tudo um poder mágico. O sobrenatural dá um passo para fora do naturalismo, miragem panteísta de um amor incompreensível condenado desde o início. O milagre é o poder de dar, como Geneviève, o que não existe em alguém que já tem tudo – e que ainda assim definha. E nos deixará. Transmitir aquilo que se sabe ao eleito que tem o dom, e que o ignora. O amor permanece inteiro nesta troca pálida e injusta. É por isso que Céline contém surpreendentemente toda a obra de Brisseau, o último dos injustos. 

[1] Personagem ridículo, pedante e vaidoso de As eruditas de Molière. (Neste texto, todas as notas são do tradutor). 

[2] Expressão que faz alusão às mulheres do povo que, durante a Revolução Francesa, assistiam às sessões da Convenção Nacional e do Tribunal Revolucionário enquanto tricotavam. 

[3] Trata-se de um termo para definir a variação da luz solar durante a filmagem. Ocorre quando o sol está coberto por uma nuvem no meio de uma tomada, causando um problema de raccord cromático. 

[4] No sentido figurado, que é muito mais utilizado do que no sentido literal, a expressão é carregada de desprezo e qualifica uma mulher que não pensa com sua própria cabeça e que não tem vontade se não a do marido. 

Brisseau périlleux foi publicado no jornal Libération em 12 de maio de 2019 (Brisseau périlleux – Libération (liberation.fr)). Tradução: Evandro Scorsin.

Ana




Por Serge Daney 

Muitos bons cineastas nesse pequeno país (Portugal). Hoje, António Reis e Margarida Cordeiro nos dão, com Ana, uma suntuosa meditação. 

Nada está perdido. Fora dos caminhos rebatidos da mídia e da lembrança batida de filmes canonizáveis e pré-canonizados, ainda se encontram alguns aerólitos. Um por ano, não é nada mal. O ano 82 foi aquele de Sayat Nova de Paradjanov, 1983 bem poderia ser, do lado das surpresas fulgurantes, um ano Ana. Inclassificável, o segundo longa-metragem de António Reis e de Margarida Cordeiro. Magnífica, essa viagem ao mundo calmamente esburacado de nossas percepções, entre a precisão do sonho e a imprecisão do acordar, tudo sob a vertigem do presente. Talvez não seja suficiente a quantidade de filmes que nos fazem sussurrar, encantados, “onde estou?”. Menos por medo de estar perdido, desorientado, que para reencontrar a emoção do adormecido que, ao acordar, não sabe mais de qual plano ele sai, em qual plano “cama” ele acaba de descansar, em que mundo ele desperta. Pela gratidão por esse momento desorientado e o prazer de se dizer, formulação arcaica de uma emoção arcaica, “onde estou?”. Pelo verbo “ser” que vem antes dessa palavrinha superestimada: “eu”. Pelo despertar. 

Onde estamos nós, então, em Ana? Em Portugal, visto que os autores do filme são portugueses. Mas esse pequeno país é ainda muito grande. No norte de Portugal, na região de Miranda do Douro, onde Reis e Cordeiro já filmaram, há alguns anos, este outro filme magnífico e inclassificável que tem por nome Trás-os-Montes. Ali e em nenhum outro lugar. Ali e em todos os lugares. Porque a força de Ana, que desencoraja de antemão todas as classificações preguiçosas, é justamente esta. Faz tempo que um filme não nos recorda com tal evidência que o cinema é ao mesmo tempo uma arte do singular e do universal, que as imagens flutuam melhor quando elas lançam sua âncora em algum lugar. Ana-ficção? Ana-documentário? Esta distinção é realmente muito grosseira. Ficção documentada? Também não. 

A ficção é colocar-se no centro do mundo para contar uma história. O documentário é ir ao fim do mundo para não ter que contar. Mas há ficção no documento como há insetos nos fósseis rochosos e há documento na ficção pela simples razão de que a câmera (é mais forte que ela) registra o que colocamos na frente dela, tudo o que colocamos na frente dela. Ana-fim do mundo? Ana-centro do mundo? Há uma cena estranha neste filme. Na morada familiar onde vive Ana (e onde ela morrerá), um homem (seu filho) fala interminavelmente, como um acadêmico de férias que testa sobre um público familiar o seu curso de volta às aulas. Ele fala daquilo que conhece: intersecções estranhas entre seu país (aquela parte de Portugal) e a antiga Mesopotâmia, entre duas culturas de pescadores, duas maneiras de se mover na água. “O que é a Mesopotâmia?”, pergunta uma criança. O pai poderia dizer: é a porta ao lado. Os cineastas poderiam dizer: é o plano seguinte. Já em Trás-os-Montes, a mesma questão era feita (por outra criança): “Onde é a Alemanha?”, ela perguntava ao pai, trabalhador imigrante. Lá, dizia o homem. E sentíamos que para a criança, “lá” começava ao lado, na próxima curva do rio. Era o fim do mundo e o centro do mundo. Era uma criança. E em Ana, quando Reis lê – off – um poema de Rilke sobre o plano de um menino doente que se agita em seu sono, não se trata de um coquetismo, mas da ideia de poeta (Reis escreveu poesias, elas foram publicadas) de que existem rimas naquele mundo terreno. Reunidas, abraçadas, entrelaçadas. E que o cinema é ainda assaz local (e não provincial) e assaz universal (e não esperanto) para permiti-las surgir. É por isto que Ana pode desorientar: fazendo desaguar o Eufrates no Douro, ele nos faz perder o Oriente[1], de verdade. 

Filme de poeta, mas também de geólogos, de antropólogos, de sociólogos, de todos os “lógos” que quisermos. Reis e Cordeiro são portugueses, mas não de Lisboa (é uma capital muito provincial), e nem mesmo do Porto, eles situam seus filmes nesse Norte de Portugal para onde os turistas nunca vão (imbecis, eles correm em rebanho para o Algarve). Paisagens magníficas e desertas que devem ser vistas como ruínas suntuosas. Campo que é filmado como uma cidade. Em Ana, as árvores, as estradas, as pedras, as casas quase possuem um nome. Tudo se entrecruza, nada é anônimo. O filme é um alvoroço sereno, o ruído do vento enche e esvazia os planos como um mar. Há vazio no coração do todo de sensações como há um vazio naquela parte de Portugal. Os filmes de Reis e Cordeiro tomam nota de uma situação curiosa: o êxodo ocorreu, depois a imigração: os homens se foram, as crianças são entregues às suas brincadeiras e os velhos à guarda dos lugares. Não há supervisão dos pais, mas há supervisão dos avós, todo um jogo de olhares furtivos e ternos, surpresos e sérios. 

E a história? Há uma, se quisermos. Mas não somos obrigados a querer. Ana é o nome de uma idosa que permaneceu em sua morada, ereta como um emblema. O rosto é marcado e altivo, o corpo é pesado e digno. Ana é um pouco mais que um símbolo. Não o símbolo da terra ou de raízes ou de qualquer confusão camponesa. Ana é também uma mulher e adoece. Mas ela não cai. Há um momento admirável em que, vestida com um grande casaco de arminho, ela atravessa a campina com a elegância silenciosa de um personagem de Murnau. O Magnificat de Bach, que escutamos então, está à altura da beleza desta caminhada. A velha senhora, de costas, grita um nome: Miranda! O sangue chega-lhe à boca, ela olha suas mãos avermelhadas, ela sabe que vai morrer. Miranda é o nome da pequena cidade mais próxima e é o nome de uma vaca que se perdeu e é reencontrada no plano seguinte. Sempre há várias coisas a se responder para uma palavra. Há risco de morrer gritando sozinho no campo. 

[1] NdT: Jogo de palavras: Oriente / orientação. 

Ana foi publicado originalmente no jornal Libération, no dia 8 de junho de 1981, e republicado na coletânea Ciné Journal (Volume II, 1983-1986). Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

“O traidor”: condenado à penitência




Por Camille Nevers 

Através do destino do mafioso arrependido Tommaso Buscetta que desencadeou um processo maior denunciando seus antigos aliados da Cosa Nostra nos anos 80, Marco Bellocchio assina um afresco magistral sobre a decomposição de um mundo sem valores. 

Neste grande filme que é O traidor, dois gêneros, um político e outro intimista, fazem um pas chassé: um filme de tribunal e um filme de “família” alternam-se e misturam-se. Em um filme de família, a abertura coral é signo de romanesco e de tragédia emboscados, maneira de atestar que, tão logo terminada a grande reunião (esse falso “teatro” libera o anfitrião dos lugares), a discórdia e a guerra se abaterão. O traidor começa, como não poderia deixar de ser, durante essa festa à guisa de trégua fingida: a festa de Santa Rosália, protetora e padroeira de Palermo, esse 14 de julho à siciliana. Os diferentes clãs da Cosa Nostra, corleoneses e palermitanos, abraçam-se, dançam, bebem, medem-se dos pés à cabeça em uma virilidade requirida, posam para a foto de grupo, uma arma sob a jaqueta depois dos fogos de artifício. Estamos na aurora dos anos 80. 

O traidor abre-se logo a uma sutileza desconcertante que não o abandonará mais, a essa espécie de polissemia no tapete — Marco Bellocchio, grande cineasta jamesiano[1]. Isso por causa da indiscernibilidade do sentido das palavras, de sua periculosidade: o voto de fidelidade ao meio que compromete para sempre, pela vida e pela morte. Esse duplo sentido constante, essa indecisão, recobre pouco a pouco o desenrolar dos fatos até alcançar uma ambivalência moral de envergadura: daí o sentido relativo de termos como “padroeira” e “chefe” (capo dei capi) da cidade, “honra”, “lealdade”, “traição”, “justiça” ou “família”, conferindo valores sucessivos e contraditórios ao bem e ao mal, cuja potência de evocação é função da variável de ajustamento de uma consciência moral: a de Tommaso Buscetta, o traidor leal. 

Vingança fria 

Toto Riina, corleonese, está prestes a decretar o massacre dos chefes de famílias rivais de Palermo para assentar seu poder absoluto sobre a Cosa Nostra. “A segunda guerra da máfia” que ensanguenta a Itália dos anos 80 (em torno de mil mortos) é declarada por ele, assim como é ele quem capitaneia o assassinato de edis do polo antimáfia que trabalham no encarceramento de 475 mafiosos e na sustentação do maxiprocesso em Palermo a partir de 1986, entre os quais, eminentemente, o assassinato deplorável do juiz Falcone, outro personagem central, assombrado, do filme. Bellocchio e seu grande ator Pierfrancesco Favino[2] se dedicam a fazer com que esse Buscetta, aquele por quem o escândalo vem, saia do anonimato de pano de fundo dos ditos “arrependidos”. A chama que permitiu acender o grande fogo é ele e é ele o assunto do filme, seu estranho herói, não Riina, o personagem-título: o Traidor. O homem honrado não cumpre seu voto, trai os traidores — ambivalência da ideia de traição —, devota-se a uma nova “causa” à qual se mostrar fiel, por coerência moral e não por arrependimento, como ele se defende: a luta contra o crime, inclusive de Estado, a justiça pública prestada, que é também o único meio de sua vingança fria, de se fazer justiça em memória de seus filhos que ele tem remorso de ter abandonado e que foram executados durante seu exílio no Brasil. 




A sutileza de Bellocchio consiste, mais uma vez, em filmar seu monstro “de lado”, em autorizar-se um ângulo de viés, entre hagiografia e verdade histórica, contrafábula edificante e literalidade do ponto de vista: por meio da esposa do Duce em Vincere ou de Buscetta aqui. O retrato do traidor oferece um ponto de vista privilegiado sobre Riina e a Cosa Nostra ao mesmo tempo em que sobre a sociedade italiana, sua justiça, seus arcanos, seus caminhos e descaminhos administrativos, penitenciários ou judiciários, cujos detalhes, a vida carcerária, os coquetismos, as caras, o cineasta escruta com grande minúcia, destacando a relação inédita entre Buscetta e Falcone, que só têm em comum o fato de fumarem muito. Esse respeito grave entre inimigos cúmplices, dois homens cuja cabeça foi posta a prêmio, que fumam um cigarro após o outro durante sua protelação. O universo de Bellocchio, profundamente assombrado pela morte desde sempre, encontra, com O traidor, sua meditação mais atordoante, o mais belo dos filmes-tratados do cineasta: um tratado dos tormentos. 

O traidor é entregue ao fardo infinito de uma consciência criminosa. Seu único medo é feito de pura espera, a espera de seu castigo. O que há de impressionante no estilo de Bellocchio é seu falso naturalismo — não fingido: falso. Já que todo naturalismo estético provém do fingimento, da imitação mais “natural” possível de uma realidade relatada, representada e reproduzida. Mas então, o que é esse “falso natural” que torna o filme tão belo e cambiante, modulando sua tonalidade de modo tateante, sequência após sequência? Digamos que é esse algo de jamesiano de Bellocchio. Esse “fantástico naturalista”, esse gosto pelo claustro, pelo altar, pelas alcovas e confissões, pelas casas assombradas, pelas celas e penitências. Pelos buracos de fechadura e pelas imagens no tapete. Retratos opacos, mais cerebrais que psicológicos, ao sabor de diálogos brilhantíssimos, muito agudos, em que cada palavra é familiar, mas sua totalidade, indecifrável, sentido suspenso no enigma como nos lábios das personagens. Veja a figura magnífica de Totuccio Contorno, o ignorante raivoso que só fala siciliano, o único amigo que resta, ele também arrependido por ter se safado de sua execução. É a ocasião de cenas de tribunal babélicas, hilárias, com os olhares e as línguas dispersos como ao longo de todo o filme: italiano, romano, siciliano, português e a canção em espanhol. O traidor, como todo grande filme de família, segue o processo de uma dispersão. 

De jaula em jaula 

Bellocchio tem uma maneira genial de deixar “dias” entre os planos, os rostos, os tempos de sua crônica. Essa maneira de pôr a questão da montagem e da decupagem em termos de junções visíveis e de intervalos deixados, por uma qualidade de solidão, e de saber isolar os corpos, os olhares, as presenças postas. O traidor, sem satisfazer-se com uma virtuosidade sistemática, deixa ver os vazios entre as coisas inajustadas. Os saltos insensatos no vazio (a esposa de Buscetta segurada acima do vazio entre dois aviões) formam os traçados grossos e finos de um filme incessantemente renegociado. É o que há de mais fascinante, o tempo que o filme passa nisso, administrando esses pequenos enclaves, esses momentos curtos que são povoados apenas por esperas e deslocamentos, de um cômodo a outro, de um país a outro, de uma cena à seguinte: como o momento estonteante de repatriação do Rio no avião, todos esses homens esparramados, cochilando, ou mais tarde, após a paranoia no restaurante, a fuga de carro em direção a um novo exílio americano. Idem para os tempos passados entre sala de espera e sala de tribunal e retorno, de jaula em jaula dos mafiosos que fazem o circo. 




Filmar seu concidadão como um estrangeiro é a melhor maneira de captar à distância desejada seu território interior e seu país objetivo, sem folclore do em casa. Bellocchio precede Buscetta, arrasta-o através de países e línguas, ao sabor do cara-a-cara que se deve chamar de “cara-a-costas” (cenografia magistral no tribunal). É o retrato perfeito de um siciliano. E de sua resistência sem glória e sem desonra. É a prova de que, diferentemente do cinema francês, o cinema italiano existe, persiste, documentando sempre, resistindo a si mesmo e a sua pátria. Não uma mise en scène pura, puramente uma mise en scène: a liberdade conquistada de uma velhice relaxada, anárquica, nada a perder, desse cineasta que realiza um filme de gênio, queimando os olhos. 

[1] https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/marco-bellocchio-representer-le-proces-comme-une-symphonie-du-desordre-et-de-la-provocation_1760424
[2] https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/pierfrancesco-favino-calme-d-or_1760428

“Le Traître”, gibier de pénitence foi publicado no jornal Libération em 29 de outubro de 2019 (https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/le-traitre-gibier-de-penitence_1760427). Tradução: Rafael Zambonelli.

Momento crítico para a crítica


Por Serge Daney 

Há alguns anos, em Gabès, um animador de cineclube do sul-tunisiano me comunicou sua angústia. De fato, já não era mais raro que, depois da sessão, um estudante barbudo se levantasse e explicasse gravemente que se a heroína morria no fim do filme, não era um feito dos roteiristas, mas de Deus, que a havia punido pelos seus pecados. Como, nessas condições, animar um debate de cineclube visto que debate já não mais existia? 

No mesmo momento, nos cristãos, um movimento convulsivo e carola agitava mais de um deles. A opinião daqueles que tinham visto Je vous salue Marie pesara repentinamente menos que a dos que o condenaram “por intuição”, sem tê-lo visto. Com uma graça que lhe é própria, o autor do filme, Jean-Luc Godard, fingira respeitar a opinião do papa, menos como chefe da Igreja que como indivíduo cujo “negócio” pessoal consistia em refletir sobre Maria. Godard não reivindicara os direitos sagrados do indivíduo à criação, ele pedira o impossível, ou seja, o direito do indivíduo João Paulo de debater com o indivíduo Jean-Luc sobre uma parte comum de seus trabalhos. 

Godard não era mais aquele que, para defender A Religiosa de Rivette, escrevia uma bela carta de ruptura para Malraux. De fato, as coisas tinham mudado. A crítica de cinema já tinha se dado por vencida e o “direito à criação” tinha se tornado uma lengalenga sindical, ainda mais barulhenta entre os “profissionais da profissão”; já há algum tempo, mais nada “era motivo para debate”. Alguns anos mais tarde, no clima de indolência incomodada que acompanhou a estreia de A última tentação de Cristo (rapidamente rebatizada de “caso Scorsese”), a crítica de cinema não desempenhara nenhum papel.[1] 

O que significa essa anemia da crítica? Que não sabemos mais lutar pela “liberdade de expressão”[2] e que continuamos sem saber lutar pela “liberdade de consumo”. Questão: existe um direito inalienável do consumidor de filmes de consumir o filme que ele quer? Resposta: não é certo. Não é certo, porque não são só os objetos que são consumidos. É cada vez mais o “social” que é consumido pelos indivíduos supostamente livres. Livres de suas escolhas e dispensados de ter que defendê-las, logo, de debater o que quer que seja. Pois o consumo do social, se ele ainda precisa de objetos-pretextos, precisa mais do pretexto que do objeto. 

A obra dependia da crítica e a crítica resultava do que dependia de um trabalho (ou, ao menos, de um projeto). O produto depende, stricto sensu, apenas do que ele, por sua vez, produz. Um bom produto é aquele graças ao qual nós vemos como isso funciona, a sociedade. É isso que queremos ver, o produto do produto e assim por diante, ao infinito. A sociedade se autoconsome via seus “fenômenos” na cena parasitária das mídias.

Compreendemos, por conseguinte, que as salas de cinema e o sentido da crítica se esvaziem ao mesmo tempo. A “ursificação” recente de todo espaço social francês permitiu a toda gente de inserir-se (como lhe convém) em um dos numerosos elos da “linha”-Urso, o elo-filme não tendo mais nenhum privilégio que o de vitrine. É assim que alguns dias antes da estreia de O Urso, eu encontro duas amigas. Uma tem o sentimento penoso que, cheia de trabalho, ela não para de perder o filme e a outra me pergunta ao que se deve o seu enorme sucesso. A curiosidade quanto aos efeitos precede doravante a livre análise da causa. 

São coisas conhecidas, há muito tempo descritas e das quais os paradoxos nem divertem mais. Lá onde o pretexto prevaleceu sobre o objeto, a crítica, num primeiro momento, definha ou desaparece. A televisão, por exemplo, não precisa da crítica já que ao invés de submeter os objetos à sanção do público, ela vende aos patrões da publicidade audiências cativas para quem, por preguiça, ela ainda oferece “filmes de cinema” para que eles fiquem tranquilos e não zapeiem muito. A unidade de base da tv não é o elo mas a cadeia, não é o alvo mas o refém. A cada dia, nós conhecemos um pouco mais essas coisas. 

Seria ingênuo, contudo, pensar que a crítica (como função) ou que o senso crítico (como valor) podem “desaparecer” de um dia para o outro. É mais a sua reciclagem que constitui o problema. Pois se as mídias são o lugar onde as sociedades modernas operam uma diluição em massa das funções outrora atribuídas unicamente aos mediadores profissionais, essa operação não é possível sem luto, sem desencantamento e, sobretudo, sem retornos do recalcado. E esses, ultimamente, não faltam. 


Todo mediador toma de fato para si uma certa parte de abjeção: pegar as coisas como elas vêm, estudá-las e chegar a uma decisão, por vezes um veredito. É isso que é preciso aprender a compartilhar, sem dúvida graças às simulações fornecidas pela televisão. A televisão é cada vez menos essa máquina que deveria “dar a ver”. Inversamente, ela dá cada vez mais “decisões”. Ela mostra como organizar um debate, extorquir verdades, confundir a sondagem com o real, instruir um processo (mesmo falso) ou enviar por Minitel sinais verdes de vida ou de morte, de perdão ou de vae victis. Ela costuma guardar da atividade crítica apenas a sua fase final: o veredito (ou esse veredito portátil que constitui uma soma de opiniões). O mundo da comunicação midiática tem duas faces. Nós acreditamos de boa vontade naqueles que, utopistas alegres, nos prometeram um mundo em que, resumidamente, mais gente teria mais acesso com mais frequência a mais informações. Mas, fazendo isso, nós confundimos precipitadamente comunicação e “transmissões”. Nós sabemos doravante que esse mundo tem também uma face perturbadora. Basta confundir, dessa vez, comunicação e “contaminação” para que o pior mostre suas garras. Voltemos ao nosso humilde ponto de partida. Criticar, na verdade, deveria ser a arte de descrever objetos singulares encontrando boas metáforas (o que Godard chama obstinadamente de montagem). Mas quando a possibilidade da metáfora nos falta, quando a metonímia prevalece sobre essa primeira, as coisas se deterioram. Retorna então (é o integrismo) a nostalgia de um núcleo duro, de um verdadeiro objeto, de uma verdade incarnada, de uma saída catastrófica do consumo do societal em direção ao consumo do social. Retorna então o fanatismo pelo terror. 

Nós estamos aí, claro, visto que Khomeini acaba de jogar a seu favor o jogo da metonímia generalizada (a parte tomada como o todo, o contágio gradual, ou seja, o terrorismo). Nós estamos aí visto que todos os padres do mundo – de O’Connor a Decourtray – aproveitam o sinal verde dado pela velha carniça do Teerã para recuperar suas ovelhas. Nesse caso, não se trata mais de cinema, nem mesmo, tratando-se de Salman Rushdie, de crítica literária[3]. Nem sequer trata-se de debate teológico, como houveram alguns – diferentemente sérios – na idade de ouro do islã. Trata-se de aproveitar da patrulha desvairada de objetos-pretextos para passar ao terrorismo do objeto-puro. 

Visto que nós continuamos incapazes de fazer a crítica das cadeias, não seria muito grave renunciar àquela dos elos. Um a um se for preciso. E não somente os filmes. 

24 de fevereiro de 1989 

[1] Nós podemos datar o canto do cisne oficial da crítica de cinema. Em 1982, quando ela acreditou que seria bom opor um filme de sucesso L’As de as (com Belmondo) a um belo filme bambo e pouco amado (Um quarto na cidade, de Demy). Uma petição desajeitada circulou. Fora a última. 

[2] O autor não acreditava estar tão certo. Dois anos mais tarde, em resposta à sua crítica do filme Urano, Claude Berri, responsável pela coisa criticada, não imaginara nada mais digno que obter, através de um recurso provisório da justiça, que o seu direito de resposta (mais para o gênero consternador) fosse publicado, em 28 de fevereiro de 1991, nas colunas do Libération. Por menor que seja, esse acontecimento marca em quais limites (o que ainda existe da) a crítica de cinema pode se exercer. O acontecimento, aliás, não esteve no centro de nenhuma discussão e todo mundo baixou a bola.

[3] O mais surpreendente fora a quase-extinção dos antigos debates (nobres) sobre a essência da Literatura. Não mais “o que pode a literatura?” que “a literatura e o direito à morte”.

Moment critique pour la critique foi publicado originalmente na rubrica Les fantasmes de l’info do jornal Libération, e republicado no livro Devant la recrudescence des vols de sacs à main, p. 150-153. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

John Ford For Ever



Por Serge Daney


Uma ideia tão preconcebida quanto discutível diz que, na televisão, o close é rei. Se fosse assim, o homem que proferiu um dia: “Eu não quero ver os pelos do nariz numa tela de quinze metros!” não teria nenhuma chance na pequena tela. John Ford, de fato, não amava muito os closes. Ou, o que dá na mesma, as cenas de exposição. Ele filmava bem rápido e lhe foi preciso apenas vinte oito dias para realizar She Wore A Yellow Ribbon (e não La charge héroïque, título estúpido e grande contrassenso). Foi em 1949, ele era então seu próprio produtor e só fazia o que lhe dava na telha. Quarenta e um anos mais tarde, o filme “passa” perfeitamente da grande à pequena tela (TF1). Elementar, você diz? Não muito.

Gilles Deleuze lembrava um dia aos novatos da Fémis que seu trabalho como cineastas consistiria em produzir “blocos de duração-movimento”. Ora, se os blocos de Ford permanecem tão perfeitos, é porque eles respeitam a mais elementar das proporções áureas: eles duram somente o tempo que é preciso a um olho treinado para ver tudo que eles encerram [1]. O tempo de ver tudo o que há para ver; é a duração ideal e o movimento ideal de um olho tão disciplinado na arte de olhar quanto um cavaleiro fordiano na de montar a cavalo.

Esse princípio é tão simples que ele permitiu que Ford complicasse, refinasse, e mesmo ornamentasse as coisas dando sempre um sentimento de classicismo imemorial. Não é a ação que dá as durações, é a percepção de um espectador ideal, de um batedor que veria de longe tudo o que há para ver (e nada além disso).



Um contemplador rápido, eis o paradoxo Ford. Impossível ver seus filmes com olhos turvos, porque então já não vemos mais nada (somente histórias de soldados sentimentais). O olho deve estar vivo porque, em qualquer imagem de um filme de Ford, corre-se o risco de haver alguns décimos de segundo de contemplação pura antes que a ação chegue. Saímos de uma cabana ou de um plano, e há ali nuvens vermelhas sobre um cemitério, um cavalo abandonado no canto direito da imagem, o tumulto azul da cavalaria, o rosto perturbado de duas mulheres: são coisas que é preciso ver logo no começo do plano, pois não haverá uma “segunda vez” (uma pena para os olhos preguiçosos).

Ford é um dos grandes artistas do cinema. Não só por causa da composição de seus planos e de suas luzes mas, mais profundamente, porque ele filma tão rápido que ele faz dois filmes de uma só vez: um filme para conjurar o tempo (estendendo as narrativas, por medo de acabar) e um outro para salvar o momento (o da paisagem, dois segundos antes da ação). Ele é aquele que goza do espetáculo antes [2]. Também não se deve procurar nele personagens que, diante de uma bela paisagem, dizem “Ah! Como é belo!” Não cabe ao personagem assoprar ao espectador o que ele deve ver. É isso que seria imoral.

Ainda mais que os personagens têm muito a fazer para atrasar a idade da aposentadoria e o fim das peripécias da história. É um tema que começa em She Wore A Yellow Ribbon e que não deixará de reaparecer. Os personagens de Ford (incluindo os militares) nunca são mais que os saltimbancos de suas crenças, e essas tendem cada vez menos a levá-los para terras prometidas, mesmo se elas desenham a silhueta de cavaleiros sobre um fundo cromo de céu abrasado ou da luz do luar. Essa imagem se encontra, evidentemente, em She Wore. Esse desfile-ronda, que vai da esquerda à direita, é coletivo e interminável.



Mas há um outro movimento, mais misterioso, que vem, por sua vez, do fundo do plano. E que surge, no meio da imagem, sempre [3]. Como se esse cineasta que tinha construído tudo sobre a recusa do close e da cena de exposição deixasse por vezes vir alguma coisa em direção aos seus personagens. É assim que encontramos um close em She Wore A Yellow Ribbon. Vemos Nathan Brittles-John Wayne-Raymond Loyer falando com sua mulher, morta há muito tempo e enterrada a poucos passos dele, explicando-lhe que restam seis dias antes da sua aposentadoria e que ele nada decidiu. Então, sobre seu túmulo, desenha-se a sombra de uma mulher. Trata-se, certamente, de uma jovem inofensiva, mas para quem aprendeu a ver Ford como se deve, esse breve instante dá medo. É o passado que volta pelo meio da imagem, sem avisar, “à la Ford”. Inútil dizer que quando uma imagem tem não somente bordas, mas um coração, a pequena tela lhe acolhe com todas considerações que lhe são devidas.

18 de novembro de 1988

[1] Essa observação foi soprada para o autor pelo cineasta português A-P. Vasconcelos.
[2] Poderíamos arriscar que, ao contrário, é “imoral” a maneira com que o cineasta se afasta para nos mostrar a beleza do espetáculo, depois.
[3] O autor reiterou seu fordismo, na página 62 do excelente número hors-série dos Cahiers du Cinéma sobre John Ford.

John Ford For Ever foi publicado originalmente no jornal Libération, na coluna Les fantômes du permanent; republicado no livro Devant la recrudescence de vols de sacs à main. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

"Vidro", inclassificável



Por Camille Nevers

Depois de Fragmentado, M. Night Shyamalan conclui uma trilogia com ares de série B iniciada há vinte anos com Corpo Fechado. Entre anti-filme de super-herói e fábula bruta, uma visão desencantada em que os protagonistas vegetam no dédalo de um hospital psiquiátrico.

O twist, é sempre a lei que mente. Uma vez que é preciso desmentir: denunciar, desobedecer, lutar, transgredir. O que é twisted, torcido, resta a retorcer, pegando a mentira na sua própria peça. O twist é esta história de revolta que incuba, a revolução que ruge, sobre o pano de fundo da revelação, o abrir dos olhos do herói, logo a contemplação ou não de sua crença. Vidro conta isso, de novo, nesta paciente e reconduzida partida de construção-desconstrução-reconstrução que é o cinema de M. Night Shyamalan.

É uma verdadeira série B. Como o era A Visita (2015), mas com duas estrelas no lugar de duas crianças, Bruce Willis e Samuel L. Jackson, astros envelhecidos, agradecidos, mas não de graça – 20 milhões de dólares de orçamento, isso não é nada: uma série B com casting. Não estas falsas ou neo-séries B como aquelas criadas pela Nova Hollywood dos anos 70-80 que desconstruiu o gênero, fabricou superproduções A com histórias B ou bis, enfim menos nobres, e moldou um novo tipo de cinema clássico: grande espetáculo para geeks, cinema fantasy com um novo horizonte a explorar e fronteira para novos pioneiros, os efeitos especiais, gráficos, e logo digitais. Filmes de aventura e fantásticos cada vez mais caros onde os filmes B eram concebidos desde a origem por um custo mínimo e um rendimento máximo. Foram, de maneira exemplar, as sagas de Spielberg e de Lucas, de McTiernan também, toda uma época, os Jurassic Park, Indiana Jones, Star Wars ou Duro de matar, gênero que sobrevive hoje na sua hipertrofia, na sua sobrevalorização simbólica (estilo Transformers ou Vingadores). Este gênero tem um nome: “o filme de franquia”, denominação mais indicada que filme de super-heróis, mais justa na verdade.

Câmeras de vigilância

Shyamalan estivera no centro estratégico e no meio cronológico deste fenômeno, mas ele lhe deixou paradoxalmente órfão (não houve saga Corpo Fechado), reflexivo e intimista. Reveja Corpo Fechado (Unbreakable em inglês, 2000): fora a última meia-hora, não acontece quase nada, o contrário do filme de ação. Daí a importância, novamente essencial, do twist, que não tem nada de dispositivo, o nervo de um universo que deixa ofegante, entre enigma progressivo e luz retrospectiva, uma narração senão curiosamente lânguida. Do filme, só permaneceu a tristeza de ser, ou de não ser, um super-herói. A tristeza de David Dunn (Bruce Willis) e a amargura de Mister Glass (Samuel L. Jackson). Do Bom e do Mau.

Vidro é então um filme de franquia abortado, crossover marqueteiro (cruzamento de Corpo Fechado e Fragmentado, o filme anterior de Shyamalan), sequel, spin-off, última peça de uma trilogia improvisada, ou tudo isso de só uma vez. Ele é, sobretudo, o limite atingido de tudo isso: da série A ricaça que se empanturra das histórias da série B, cultura pop, quadrinhos, ficção científica, formas underground. Enquanto tal, esta é a melhor crítica desse gênero. É um filme “indus” como se diz da música industrial, bruto, tagarela, áspero, metálico, minimalista, intencional, digressivo e texturizado: linóleo, tijolos e concreto (rosa às vezes, pink e punk).

Não se trata, dessa maneira, de um filme “meta”, como escutamos já por todo lado, mas de um grande filme crítico. Obra reflexiva, intelectual mais que teórica. Sua desconstrução é uma reconstrução – da série B original e contestatória, portanto. O que dá nesta curiosa crítica reacionária (estes anos incríveis) e revolucionária ao mesmo tempo (a viralidade tecnológica). Então esta crítica não é resplandecente, de nenhuma maneira, mas anti-espetacular, um pouco grotesca (este humor de Shyamalan ao qual James McAvoy deu, desde Fragmentado, a sua livre expressão, freestyle horrível-burlesco) e dolorosa. 

Não há nenhuma presunção em Vidro, a crítica é modesta nesse filme, mas direta. Endereçada a nós frontalmente. Direta como estes planos dos rostos dos personagens, olhando para a câmera num leve contra-plongée, fria como a adição de pontos de vista alternados, cada herói tendo o mesmo olho apagado, cego ou maquinal, que as câmeras de vigilância. Multiplicar os pontos de vista, para fazer um balanço da situação. Punctum: esta cena do restaurante povoado de falsos anônimos é genial pela súbita estranheza. É então, porque o cenário é um dos personagens principais como em toda boa série B, um filme menos desencantado que abandonado.

Vidro nos informa sobre o que se passa – economicamente, espetacularmente – com a crença, em 2019, no cinema, na potência da ficção. Quer gostemos ou não do seu estado. Ele nos diz, com este belo lado didático do conto, o que se passa com este desuso: à imagem deste cenário austero de hospital psiquiátrico onde vegetam os heróis cansados. É preciso ver a cara dos três super-heróis diante da Dra. Staple (Sarah Paulson), a psiquiatra de voz doce – todos os filmes de Shyamalan tem vozes doces, reconfortantes e tristes, como vozes de fantasmas amigos, bem como categorias de silêncio inesgotáveis.

Estes rostos de expressão perdida. Entre o reencantamento do mundo de Corpo Fechado e seu desencantamento atual, há o envelhecimento, o vosso, o nosso, vinte anos depois, os três mosqueteiros (Willis, McAvoy e Jackson), heróis cansados, ou quase-vegetais, ou aberrações perdidas. De Unbreakable ao “broken” Glass, de um filme ao outro, “Shy” examina o que se rachou.

Estilhaços minerais

O público muda mais rapidamente que o cinema. E se ele se entedia diante de um filme de Shyamalan, seu torpor, este estofo estava desde sempre no seu cinema. Mas o espectador era mais otário, mais disposto a experimentar e a deixar o cinema de gênero criar atmosferas, arritmias, histórias da carochinha muito novas e muito antigas. Os filmes de Shyamalan ainda não entediavam os futuros espectadores blasés, “sabichões”, mais espertos que ele. Moleques chatos que exigem que um tal autor de (antigos) sucessos faça sempre melhor. Pode fazer melhor. Mas o autor – pois ele é um – resiste apesar dele mesmo, não cede à pressão, ele é orgulhoso demais. Sem dúvida, ele também entendeu que isso não duraria, os exageros das belas histórias mitológicas, fantásticas, ainda humanas. Shyamalan se pôs desde seus primeiros fracassos, e incluindo Vidro, a “não fazer melhor”, a não procurar mais fazer melhor. Cada vez mais B: nu, cru e exibindo seus twists e suas inverossimilhanças para espectadores cada vez mais intolerantes a elas, “nossos amigos os verossímeis” como os chamava Hitchcock, sinal de que em cada coisa encontramos uma ascendência.



Nesta maneira de abandonar, de “neutralizar” (nem bons nem maus, mas vegetais e vigiados) estes três personagens, eles mesmos multiplicados na Horda ou pela dissimulação astuciosa, reina no asilo psiquiátrico uma monotonia geral e amorfa, falso descanso, falso sono da mente, enquanto um entre eles, secretamente, trama. Staple, a psiquiatra, encarregada de convencê-los de que sair do neutro, deste cinza, será na direção de uma racionalidade boa, uma renúncia à loucura, à mitomania. Mas a mulher não vê os estilhaços minerais no olho dos prisioneiros: pouco a pouco a pedra, a água, a dureza das paredes e do asfalto no exterior – tudo isto que faz corpo e matéria recupera seus direitos. Já tínhamos visto um cenário de estacionamento ao ar livre explorado desta forma no cinema? Não, nunca tínhamos visto. E este hospital psiquiátrico filmado como um dédalo medicado, despovoado e vazio? Muito menos (ou sim, com John Carpenter). Vidro é então um grande filme sobre o neutro, um conto sobre a normalidade frustrada. Neutro, como este twist derradeiro sustentado numa poça d’água, pequena e terrível da tragédia anódina.

NdT : O nome do artigo “Glass”, Inclassable é uma referência ao título francês de Corpo Fechado: Incassable (inquebrável).

“Glass”, Inclassable foi publicado no jornal Libération em 15 de janeiro de 2019 (https://next.liberation.fr/cinema/2019/01/15/glass-inclassable_1703203). Tradução: Miguel Haoni.

Mercado do indivíduo e desaparecimento da experiência



Por Serge Daney

O sucesso dos reality shows marca talvez um duplo fenômeno de apropriação da televisão pela sociedade e de formatação do indivíduo adequado. O preço a pagar é, todavia, considerável: nada menos que o apagamento da ideia de experiência humana.

Como todo barco que acaba de entender que pode afundar, a televisão se tornou interessante e verdadeiras questões perfilam enfim no horizonte de nosso cátodo exaltado. Algumas destas questões são totalmente sólidas. Por exemplo, em que condições os canais, afim de produzir os seus elos de amanhã (vocês, eu, mas em versões mais dóceis, menos reclamonas), trabalham a partir de hoje nas novas formas de vigilância social? Que papel terá desempenhado a televisão no grande negócio que agita os países ultramodernos, a saber, o estabelecimento de um verdadeiro mercado do indivíduo (que não é talvez mais que um simpático mercado de escravos)?

Pois se a televisão começou por conquistar o mercado, seria ingênuo pensar que esta conquista seria suficiente para produzir a mercadoria adaptada ao mercado, ou seja, o indivíduo “profissional” de hoje. Já há muito tempo, nós assistimos à formatação deste novo herói do nosso tempo: cada vez mais personalizado, credenciado, alfinetado, quer dizer, reduzido ao folclore berrante de sua pequena diferença. Ninguém, evidentemente, pensou esse processo, mas foi possível, há alguns anos, acompanhar alguns desses episódios. O autor destas linhas, por exemplo, se sentiu muitas vezes bem sozinho para garantir este acompanhamento.

Não vamos voltar demais aos episódios conhecidos: A reformulação da equipe da comunicação no sentido de uma des-legitimação progressiva de seus membros[1]. As antigas razões que asseguravam um certo direito de intervir no espaço público (paixão, pedagogia, competência, talento, beleza, raridade) tiveram de ceder o lugar ao mau-comportamento de um mercenarismo vazio mas simpático e sem floreados. Tornou-se constrangedor ser o "Sr. Sabe-Tudo" num meio que edifica seu poder sobre a partilha igualitária da ignorância e da indiferença médias.

Esta des-legitimação atingiu duramente os homens políticos, seres ingênuos que não viram que, de tanto se verem tão belos nas suas "horas de verdade", alimentaram nada menos que o nacional-lepenismo, e apenas ele. Daí os amargos debates: democratização ou consenso? Consenso ou demagogia? Demagogia ou fascisação (frouxa)? O fato é que esta des-legitimação não poupou nenhum setor da "representação social", incluindo jornalistas.

Grosso modo, a sociedade burguesa parou de pagar aos griots da boa vontade a fim de representar seus próprios valores, preferindo, ao velho teatro do dissenso sonoro, as imagens em looping do silêncio consensual. Isso só pode fazer sonhar qualquer um que tenha vivido a crise da idéia de representação, teoricamente maltratada nos anos 1960 e totalmente dilacerada em 1968. Teríamos exagerado? Quem vai repensar tudo isso?A televisão foi o lugar recente desta transição. Foi necessária a política caprichosa e nula dos socialistas franceses para que o bom povo compreendesse enfim que a tevê estava escapando dos notáveis, dos tubarões e dos educadores e poderia se tornar enfim sua própria coisa, quer dizer, tão frívola e indefesa quanto ele. Este é todo o sentido do apoio à La Cinq, transformada em alguma coisa entre Justine e a Santa Cinq depois que ela foi vista, de repente tão humana, informando sobre ela mesma e choramingando (com razão) sobre os seus males e os infortúnios de sua virtude.


A tevê enfim entregue ao povo? Por que não? É, ao menos, o que dizem do lado dos lobinhos da Sygma-TV. Contudo, não se deve acreditar, aqui também não, que uma tal operação possa se fazer completamente sozinha. A tevê não será entregue ao povo a não ser que o povo se torne ao mesmo tempo um "tele-povo", e serão necessários, lá como em qualquer outro lugar, técnicos para trabalhar (e aproveitar) esta mutação. Pois se trata de um grande negócio: a re-formatação do referido povo, a quem é exigido interpretar o seu papel, mas não somente sob a forma de massa inerte, de audiômetro justiceiro, de candidatos imbecis ou de gado que aplaude, mas efetivamente de heróis personalizados.

Daí os programas como La nuit des héros (A noite dos heróis) ou Perdu de vue (Perdido de vista) títulos onde se lê bem a ideia de emergência em plena luz do dia ou de retorno à luz. Pois não se trata evidentemente nestas emissões de qualquer tipo de heroísmo (mesmo os tipos bem paradoxais), mas unicamente de pequenos fait divers que vão no sentido único (e familiar) de uma mitologia da redenção e do segundo nascimento. Na época da new age, é preciso aceitar a ideia de que um tal mito possa ser, em última análise, o único horizonte de uma televisão que, por outro lado, renunciou a quase tudo.

Isso é bom? Isso é mal? É certo, em todo caso, que o resultado não é, esteticamente, "olhável". Também é provável que se isso funciona tão bem, é porque não interessa o olhar (pois existe no olhar uma possibilidade de recuo crítico, de impulso ético ou de veredito estético) mas sim outra coisa. Nada menos que o aprendizado coletivo dos gestos pelos quais uma grande massa de excluídos aprenderá a interpretar o seu papel nos roteiros "personalizados" assegurando que são - enfim! - os seus. Por que não?



Se assim for, é certo que esta mutação põe em crise outras mitologias, aquela do artista, certamente, mas aquela do ator também. Pois o que é um ator senão o homem de uma paixão imemorial, esta paixão de ser um outro que pre(dis)põe alguns entre nós a "assumir", para representá-la, a experiência dos outros?

Este é evidentemente o sentido dos ataques de Patrick Sébastien contra La nuit des héros. No momento em que todos nós somos convidados, com antecedência, a sermos um por um os heróis de nossas próprias vidas (as vidas que agora nós "possuímos" e das quais nós acabaremos aprendendo a vender o copyright), como o ator-imitador profissional não se sentiria ameaçado no seu ser? Chega a ele, na verdade, uma terrível suspeita: seu talento particular interessaria muito menos ao seu público que o não-talento (ou mesmo a nulidade desoladora) destes "heróis" saídos da noite e que, warholianamente, retornam a ela!

A "paixão de ser si mesmo" substituirá, ao termo, a "paixão de ser um outro"? Se trataria de um momento - muito medíocre, mas provisório - da grande história da emancipação humana que, mesmo irregular, seculariza as crenças e individualiza os homens há séculos? É suficiente que, cada vez, se redesenhe as fronteiras entre o mercado profano e o humano profanado, quer dizer a parte de sagrado e de inegociável (chamemos isso de outro) que permanece(rá) sempre no coração do animal humano? Podemos pensá-lo, certamente, mas um pensamento em si sem alegria.





Pois nesta história de mercado do indivíduo, na qual os reality shows americanos são o último sintoma datado, vemos bem o que deve ser perdido e o preço que deve ser pago. Perdida de vista, definitivamente, a ideia de experiência humana. É como se a televisão tivesse sentado, de uma só vez, todo um povo sobre o divã de um psicanalista que trabalharia "em cadeia" (sic) e que, em vez de escutar calado as belíssimas elucubrações do "eu" lendário, aplaudiria o seu cliente desde a primeira sessão lhe dizendo: você é sublime, o que você contou é exatamente o que você viveu, lhe reinterprete na nossa casa estilo-tevê (que é, aliás, a sua casa) e você será curado.

Poderíamos jogar fora tão rápido o bebê da experiência humana com as águas (sem dúvida usadas) de alguns séculos recentes? Isso não parece razoável. Até a uma data muito recente, aquele que, por gosto ou por profissão, fazia perguntas a seus semelhantes sabia que nada é menos facilmente comunicável que uma experiência. É mesmo nesta dificuldade que reconhecemos se tratar de uma experiência. "Foi muito rápido, eu não senti nada (não entendi nada, não vi nada...). Foi depois que... É muito difícil de explicar... Ainda hoje..." são as frases que milhões de gravadores e de toneladas de câmeras registraram durante eras.

E é exatamente porque a experiência escapa - desde que ela seja forte - que houve por tanto tempo mediadores (que vão do santo ao charlatão e do amigo ao traidor) para ajudar a encontrar "as palavras para dizer". E atores para lhe emprestar os seus corpos, artistas para quebrar a cara nesse processo e escritores para concluir, tristemente, como Virginia Wolf: "As experiências da vida são incomunicáveis, e é isso que causa toda a solidão."

Toda experiência que se reduz facilmente ao show de sua realidade não é uma experiência. Ou melhor, não é aquela do sujeito que disse que a viveu, mas aquela do grupo sem ideal, que preferirá sempre o espetáculo retificado e imitável do re-representável ao antiespetáculo íntimo do já-representado. Trata-se da própria possibilidade do "laço social", e não é preciso acreditar que, na época do seu esplendor, Hollywood tivesse feito outra coisa (basta rever os filmes de Sirk).

É então possível que o grande mercado do indivíduo à base de heróis descartáveis e de roteiros como deve ser tenha decidido passar, com a anuência dos interessados, à contra-ofensiva. É por isso que a ideia de verdade subjetiva "salta" um pouco por todo lado na televisão ou aparece como luxo elitista e definitivamente insuportável. É possível mesmo que o cátodo encontre enfim uma missão à altura dos interesses político-mitológicos do grupo France: aquela do catecismo.

Por que "catecismo"? Porque se trata de uma coisa séria, não totalmente cínica e que, como a publicidade, tem a ver com o Bem. Bem do qual os futuros atores da guerra econômica, uma vez evaporado o império (comunista) do Mal, terão necessidade para crer no sentido daquilo que eles fazem. Isso dito, o catecismo não é nem a fé do carvoeiro nem a ciência do teólogo, é um conjunto concreto de procedimentos patetas que transformam suas ovelhas em marionetes aceitáveis de uma crença da qual, há muito tempo, elas não têm mais a experiência.



Neste sentido, o catecismo de La nuit des héros ou de Perdu de vue é a aplicação bem-pensante e sufocada da emoção daquilo que o cinema pornográfico dos anos 1970 foi o trailer um pouco vazio. Por um lado, na verdade, os filmes X se amontoavam quase sempre sobre o "resultado" da experiência sexual (acreditando, os estúpidos, que bastaria vigiar os órgãos ao vivo e espiar o passarinho). Mas por outro, é verdade que estes filmes reconstituíram para o seu público o espetáculo idealizado e tranquilizante de uma foda contínua que tinha a nitidez da fantasia e a inalterável e masculina monotonia do mito.

Do mesmo modo, os reality shows da televisão americana (pois não nos esqueçamos jamais que só existe da televisão que a sua versão americana) substitui a experiência lacunar e o indizível daquilo que foi pelo show plano e contínuo daquilo que terá sido. "O que terá sido” é o resumo estético e o catecismo humanitário do qual terá necessidade todo "mercado do indivíduo". Este futuro anterior (que é, acredito, o tempo próprio ao audiovisual) é ao mesmo tempo retificação do real e visualização do real retificado.

É assim que nossos heróis vão, enfim, ver e saber a o que seria preciso que eles tivessem se parecido quando vierem evocar na tevê os fragmentos de sua biografia. E nós também, infelizmente!, nós vimos: é preciso que eles pareçam com a má tevê, com o mau cinema, com o mau teatro. O preço, parece, é pesado: para estar do lado do Bem coletivo (pois o grupo quer comungar na casa dele, à domicílio, com a sua tevê), é preciso que eles sejam muito ruins (mas terrivelmente humildes).

Diríamos que o catecismo não é a grande-missa e que ele não exige nem receio, nem tremores, nem mesmo "retorno do religioso". Ele quer somente que, clones antecipadamente disfarçados e indivíduos únicos, nós renunciemos para sempre a lembrança de ter vivido o que quer que seja que Pascale Breugnot não possa nos fazer reviver, segurando um pouco a nossa mão. Ou seja, mal, ainda que sob nossos olhos embaciados de gratidão (o que não faríamos para sermos amados!).

Finalmente, por trás da poeira nos olhos da tevê entregue ao povo e do indivíduo retirado de sua noite, ainda assim se trata da forma com qual, na França também, a vila exige o que lhe é devido.

[1] Neste sentido, as desventuras de PPDA (Patrick Poivre d'Arvor, NdT) auto-incrustado em Fidel Castro não podem senão alegrar o espírito).

Marché de l'individu et disparition de l'expérience foi publicado originalmente no jornal Libération, em 20 de janeiro de 1992, e republicado na coletânea La maison cinéma et le monde - Le moment Trafic. Tradução Miguel Haoni e Leticia Weber Jarek.