O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A morte certa ou elogio da geografia


Por Serge Daney 


1. O amor à geografia

Aqui, é preciso considerar o caso — frequentemente citado como objeto de escândalo — dos que empreendem uma viagem ao fim da noite com um livro debaixo do braço (guia turístico ou diário). Aqueles para quem o real é uma terra prometida, o concreto, o que é preciso conquistar, e todo filme, uma maneira de viagem, eterno vai e vem entre as ideias e os sentimentos, o mapa e o território. Cineastas da viagem, eles mesmos viajantes, que estão sempre em seus últimos preparativos, nos itinerários e na febre da partida. (Citemos, de partida, toda uma fração importante do jovem cinema francês: Rohmer, Resnais, Demy, Rouch e, justamente, Jean-Daniel Pollet).

Seu cinema é como o espetáculo — em câmera lenta — de quem vai lançar-se à água. (O que mais se espera de um cineasta? Isso vai desde o admirável prólogo de La Pyramide humaine até o último Robbe-Grillet, que é sua caricatura anódina.) Um homem que vai lançar-se à água, sabendo tudo o que é possível saber sobre a temperatura da água, a altura do trampolim e a arte da natação. Observar-se-á, no entanto, que ele frequentemente se afoga, que o mais leve movimento da vida basta para inverter as bequilhas, para tornar inútil toda precaução e tornar as realidades a abarcar mais rugosas que nunca. Mas sabemos que os grandes viajantes só preparam tudo pelo prazer de ver seus planos contrariados. Abertos a todas as surpresas, prontos a fazer com que todo acaso entre no quadro de uma experiência.

“Homens do risco e da navegação ousada”: para eles, não há partida sem bagagens, travessias sem diário de bordo, experiência sem diário, filme sem ideia — ou preconceito — de partida. Cineastas que redescobrirão incessantemente a América partindo para as Índias, mas que não teriam descoberto absolutamente nada sem esse contratempo, e que, aliás, sabendo disso, preparam sempre seu “próximo erro”, encarregando a vida dos cuidados de reordenar ou desordenar tudo e de fazer, assim, o cinema.

2. A espera, o esquecimento

Jean-Daniel Pollet também é aquele que não poderia intervir. Ele parece sempre nos advertir: o que ele filma não é sua obra, na verdade, ele seria o primeiro a ser surpreendido, o cantor da beleza e não seu fabricante. Esse tempo — infinitamente suspenso —, que é o de seus filmes, não é um efeito da arte, mas como que uma lei da natureza, lei um pouco oculta que exige uma parte de espera antes que as coisas falem. A câmera de Pollet é um microscópio que não termina de analisar isso. Trata-se de deixar as coisas falarem, mesmo que recolhidas em seu silêncio, trata-se de deixá-las viver mesmo que toda duração as gaste, as corrompa… Pois o trágico está justamente nisto: que a verdade e a morte sejam igualmente uma questão de tempo. Dirigir-se a uma é deixar-se vencer pela outra. É pelo tempo que o olhar se faz mais justo, é pelo tempo que o objeto do olhar se deteriora. O cineasta torna-se aquele que restitui o peso da vida pela certeza da morte. Portanto, Pollet seria o cineasta do inexorável: que tudo se encaminha a um grande vazio que é a morte e que a vida só começa realmente em vista desse abismo. A arte, o cinema, consiste, pois, em precipitar-se nele em câmera lenta. O real é um alimento perecível…



O que se gasta, o que não cessa de terminar… Pollet é o cineasta dos últimos momentos “antes que…”. Ele filma entre a condenação e a morte. Tudo é suspensão, agonia próxima, última palavra antes do silêncio. Desde então, fazer um filme consiste em ganhar um pouco de tempo, em retardar o desfecho: mas é sem grandes ilusões, pois só acontece o que deve acontecer. Falávamos de viagens e trata-se precisamente da mais grave de todas: estamos sempre na gravidade da partida, nas últimas poses (mesmo no quadro de um filme claramente paródico como Rue Saint-Denis). O essencial é morrer de sua morte, daquela que secretamos como um veneno ao longo de toda a vida. Nada em comum com a morte segundo Godard, esse acidente banal e insípido, assustador porque não podemos acreditar nele. Antes, seria preciso citar Rilke: “Outrora, sabíamos — ou talvez apenas pressentíssemos — que contínhamos nossa morte como o fruto seu caroço”. Assim, cada impulso se quebra por si mesmo e, na areia das praias, cada onda morre segundo seu desenho. Importa somente adivinhar o cadáver futuro sob um corpo tão pouco presente (é assim que Pollet utiliza Françoise Hardy em Une balle au cœur), o ricto sob o sorriso. Disso decorre uma arte mórbida e pura, que se pode recusar em bloco, mas cujos ecos podemos encontrar em Astruc (Evariste Galois), Zurlini (Journal intime) ou mesmo Ludwig (Gun Hawk): cinema da decomposição dos movimentos e dos corpos quando a câmera faz amor com cadáveres.

3. Os últimos homens

Um pouco depois, Rilke escreve: “Tinha-se sua morte, e essa consciência lhes dava uma dignidade singular, um orgulho silencioso”. Os personagens de Pollet são homens (jovens) sozinhos. Eles sabem que vão perecer e isso só os torna mais atraentes. A respeito deles, é preciso sempre admitir que têm uma vida íntima, oculta, que não a revelarão por timidez ou que silenciarão por orgulho. Mas eles se beneficiam do crédito de que todo homem frente a frente com a morte usufrui (cf. Genet). A câmera não poderia ir além de seu rosto e eles não poderiam ir além de seu silêncio, ou, se eles falam (Le Horla), é para contradizer-se tanto que as pistas se embaralham. O que os faz agir (Pourvu qu’on ait l’ivresse), correr (Une balle au cœur) ou agitar-se desesperadamente (Le Horla) só diz respeito a eles. O cineasta (portanto, o público) não saberá mais que isso.

Eles fazem pensar um pouco neste personagem de Johnny Guitar que, mortalmente ferido, nota tristemente que é a primeira vez que prestam atenção nele. Tanto e de tal forma que ele pode duvidar deles e de seus segredos. Talvez eles cabotinem de modo ultrajante, talvez eles sejam vazios e ocos (mas o que é oco é profundo), preocupados somente em “fechar com chave de ouro”, ao termo de um belo declínio, de uma decadência fotogênica? Então, eles teriam a coragem dos covardes: preparar infatigavelmente seu perecimento, sempre falar de viagens sem jamais partir…



Em um conto (intitulado justamente O segredo), um personagem de Tanizaki Junichiro confessa: “E eu concebia a ideia de que, simplesmente eclipsando-me do mundo e compondo para mim um segredo artificial, eu poderia dar a minha vida certa nota romântica de mistério”. A impostura não está longe: os atores aceitam posar, o cineasta aceita não questioná-los. Eles estão lá para serem filmados, não compreendidos. Compreende-se que, nessas condições, a câmera não tenha nada a acrescentar, pois ela é a primeira testemunha, portanto, o primeiro cúmplice. Quanto aos personagens de Pollet, eles amam considerar-se como os “últimos homens”: a morte de Francisco é a morte de Montelepre, portanto, o fim de um mundo. A loucura de Terzieff é a vinda do Horla, portanto, a desaparição do Homem. Como se vê, a morte é seu mais belo álibi.

4. As pedras

Mas e quanto às civilizações? Sabemos que elas são mortais. Pollet nos confirma que estão mortas: se ele passeia em torno do Mediterrâneo, ele só vê ruínas e vestígios. Signos cujo sentido foi perdido e isso é ainda melhor, pois o segredo que importa é o que levamos para o túmulo e a testemunha séria é a que está sempre lá e que se cala. Pollet filma as pedras como filma os homens, talvez com mais fervor. É difícil impor silêncio aos homens, é difícil fazer uma pedra falar. No entanto, é onde Pollet aparece em sua melhor forma, Bassae. É que os homens amam a tagarelice: entregar-se, emocionar-se, comentar-se a perder de vista… O Homem talvez seja apenas — cf. Le Horla — um acidente da paisagem, muito imperfeito, vulnerável e provisório, belo se se cala, tedioso se se justifica…



Levaremos o cinismo até a pretensão de que as pedras são superiores aos homens? Isso seria propriamente escandaloso. Pois elas também são apenas, como vemos, acidentes da paisagem na estrada do viajante. Graças a elas, ele pode impunemente pensar em outra coisa.

La mort sûre et l’éloge de la géographie foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 188, março de 1967. Tradução: Rafael Zambonelli. 

A caixa de Eurídice




Sobre A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

Por Letícia Weber Jarek

Num melodrama ideal, ao lado dos amantes e vilões arquetípicos, dos silêncios e olhares eloquentes, entre breves encontros e separações inevitáveis, o mar se insurge como um personagem principal. Como um espelho sentimental de suas protagonistas, é nesse horizonte ondulante que suas inquietações se projetam e na beira do qual elas escolhem vagar eternamente ou enfim se entregar. Nada mais justo, então, que situar a costa fluminense como fundo e ponto de fuga dos olhares das heroínas de A Vida Invisível, melodrama tropical segundo Karim Aïnouz. Irmãs inseparáveis e em tudo distintas, Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) sofrerão ao longo do filme diversas cisões, mortes, desvios que afastarão cada vez mais uma da outra – restando apenas um mesmo horizonte: o mar como ponto de encontro sonhado, superfície onde convergem esses destinos irrealizados (o romance de Guida na Grécia, o sucesso de Eurídice em Viena).

Nesse sentido, os primeiros minutos do filme evidenciam a matriz que subjaz toda a narrativa: os laços que unem essas duas mulheres. Do pesadelo à beira mar, em que Eurídice se perde de sua irmã, se sucedem as cenas da família reunida em torno do piano e das confissões de Guida no quarto das meninas. Essa conversa, imersa numa atmosfera íntima e impregnada de perfume e mormaço, é o primeiro e último momento em que as vemos juntas, felizes; vestidas em combinações desajustadas, inclinadas sobre si mesmas, a irmã mais velha instrui a mais nova das suas desventuras sexuais enquanto chupa despreocupadamente uma laranja. Dando sequência ao prenúncio do sonho, essa cena desvela não só os laços que as ligam, mas igualmente o que sustenta o próprio movimento da narrativa: a possibilidade de um reencontro futuro, da volta a esse momento primordial em que elas são só duas meninas, duas irmãs – nem esposas, nem mães. Muito além das desilusões amorosas e sacrifícios femininos, A Vida Invisível expõe esse laço feminino que, paradoxalmente, encontra apenas um signo visível nas cenas seguintes: o par de brincos compartilhado entre as duas mulheres. Contra tudo e contra todos, o filme narra a história de amor de Guida e Eurídice.

Como é de praxe nos melodramas, os desastres não são poucos e a violência não tem limites. Karin parece desnudar os entremeios do gênero, aquilo que se esconde por trás das elipses: a trivialidade do sexo, a urgência impensada e gosmenta dos homens que vivem em pura imanência, num esquema convulsivo de repressão que ceifa as protagonistas na eminência do voo – característica perfeitamente incarnada por Gregório Duvivier que se debruça, infantilmente, sobre a pianista que busca, ao tocar, uma espécie de transcendência. Poderiam dizer que A Vida Invisível peca ao carregar nas tintas dessa violência suportada pelas mulheres como, por exemplo, na cena do estupro na noite de núpcias ou da prostituição de Guida pelo remédio de sua companheira (na boca do cliente, ela é “uma galinha de campina”). Poderíamos pensar que assumimos uma posição masoquista face à acumulação angustiante desses eventos desastrosos, enquanto o realizador se diverte no comando desse aparelho sádico que tortura as mulheres. Porém, se nos determos nas cicatrizes e feridas, corremos o risco de não compreender esse melodrama, de não chegarmos nem perto do seu coração. É curioso, aliás, que a recepção do filme foi marcada por um certo complexo puritano: para alguns, esses retratos femininos não se adequam perfeitamente aos moldes do sacrifício maternal, para outros, não respondem a um discurso unívoco da força e, sobretudo, da vitória das mulheres. Ambos espectadores saem então insatisfeitos e revoltados da projeção, cada qual com um ideal nas mãos. 



Em A Vida Invisível, há o choro insistente das crianças e a fadiga declarada das mães, cansaço físico e existencial dessas mulheres que terminam perdedoras, esvaziadas como Eurídice. Do outro lado da tela, irrompem as lágrimas. E é assim, nessa mistura aquosa de revolta, tristeza e cansaço, que o coração do melodrama se revela timidamente para seus espectadores. Ainda nos anos 80, esses “filmes de mulher”, dentre eles os melodramas, foram estudados pelas feministas que interrogaram, justamente, a natureza dessas lágrimas: nós, espectadoras, nos identificamos tão profundamente com esse choro triunfante do sacrifício, como o de Stella Dallas, que não temos a habilidade de criticar ou de resistir a esse discurso? Nas palavras de Linda Williams, não seria uma “terrível subestimação da espectadora presumir que ela é totalmente seduzida por uma crença ingênua nessas imagens masoquistas”[1]? Ora, objetariam que traímos o melodrama ao defender uma leitura de segundo grau, mas e se esses filmes não fossem apenas “imagens masoquistas” se, neles próprios, houvesse um trânsito duplo de sofrimento, resistência e reconhecimento de histórias não contadas? Em outras palavras, se eles fossem essencialmente ambíguos?

Pois, além da crueza do retrato da violência masculina, da nudez ridicularizada do marido na noite de núpcias, temos um filme de mulheres. Filme de Guida e Filomena, personagem secundária que, no melodrama clássico, permaneceria num lugar essencial mas profundamente marginal. Obra carregada também por duas atrizes, que estendem suas performances, outrora de novelas da Globo, a um caráter subversivo de um melodrama desvairado. Ainda, a loucura de Eurídice, resposta à banalização do seu corpo, não é só um signo de enfraquecimento, de passividade: essas risadas e esse olhar vertiginoso da personagem são uma resposta lúcida a um contexto, esse sim, enlouquecido, desumano.

Se voltamos, então, à cena fundadora do quarto das meninas, compreendemos que Eurídice e Guida são mais que irmãs: cada uma à sua maneira, seja em Viena ou na Grécia, materializa reciprocamente um horizonte sonhado, um porvir possível que torna o presente mais suportável. Guida, a mãe solteira, mulher sem nome; Eurídice, a esposa e mãe burguesa esvaziada, alienada. Duas mulheres que se complementam, que se comunicam subterraneamente a despeito desses eventos que fazem avançar seus destinos: Guida através das cartas, Eurídice nas notas insistentes do piano. Ao mesmo tempo dentro e fora desse curso irrefreável do destino, os olhares das protagonistas denunciam o caráter duplo dessa trama. Olhares que fogem para esse além-mar, que observam a evolução da história como aquele de Guida na saída da fábrica ou o olhar de Eurídice que ao tocar, no teste do conservatório, encontra sua irmã num extracampo transcendente. Subtraídas da História oficial, a posição das protagonistas espelha por sua vez a da própria mise-en-scène: simultaneamente mergulhadas no turbilhão das emoções e na superfície das cenas, as composições de A Vida Invisível são engavetadas, constantemente emolduradas como suas heroínas, prisioneiras entre os morros do Rio de Janeiro – ou então separadas por um simples aquário. 



Para além dessa atmosfera úmida e embolorada que tinge as paredes e as teclas do piano de Eurídice, permanecem ainda alguns resquícios desse paraíso original das duas irmãs. Como o perfume que embriaga Filomena e a prepara para a morte, ou ainda aquele que transporta Eurídice para perto da irmã enquanto monta o quarto do bebê. Ou mesmo, o emaranhado dos cabelos castanhos das atrizes e uma constante ambiência de cigarro, laquê, perfume e suor. Com esse caminhar cansado, essas posturas prostradas que substituem a luxúria e o ânimo inicial das irmãs, as atrizes acabam por revelar uma faceta secreta das vidas das protagonistas – e do próprio melodrama. Numa versão subversiva do cofre de seu Antenor, a mise-en-scène de A Vida Invisível se assemelha a uma caixinha de música, cheia de lembranças íntimas que, em outro lugar, seriam demasiado supérfluas mas que, postas assim em primeiro plano, acabam por denunciar a ambiguidade constitutiva do gênero. Nele, nós testemunhamos como as coisas são e como elas deveriam ser: uma espécie de duplo reconhecimento da ordem social e das suas contradições[2]. O melodrama secreta assim, interiormente, o seu próprio antagonismo: ao reconhecer essas violências, ele baseia-se igualmente numa esperança de mudança que nossa emoção abarca inteiramente. Pois, a cena inicial lança justamente esse pressuposto essencial do gênero, que sustenta o olhar do espectador: e se... elas se reencontrassem e se tudo fosse reversível? Entre desejo de mudança e inércia social, essa dinâmica melodramática é exemplarmente sintetizada por Manuel Bandeira, como que por acaso: a vida inteira que podia ter sido e não foi. Afinal, as lágrimas não são assim tão acríticas...

Dessa maneira, o diálogo final entre as irmãs condensa, secretamente, essa intimidade compartilhada de um mesmo olhar revoltado e esperançoso: uma conversa cifrada que não encontra nenhuma referência visível, mas na qual confluem a voz de Guida e as notas de Eurídice. Nós temos uma vida inteira pela frente, nesse horizonte habitado pelo mar, num futuro ainda por vir.... futuro que depende justamente do reconhecimento das injustiças, do sofrimento e da violência contra as mulheres. Eu poderia dizer que é certo que elas se encontram mas, à maneira de Lisa em Carta de uma desconhecida, seguimos nos trilhos de um trem de brinquedo, na ausência de mudança, visitamos países sonhados sem nem ao menos sair do lugar. É esse amargor que permanece, no final de A Vida Invisível, junto à esperança de que algum dia esse trem saia dos trilhos para que possamos ver com os próprios olhos a Viena de Eurídice.

[1] WILLIAMS Linda, "Melodrama Revised", in BROWNE Nick (dir.), Refiguring American Film Genres : History and Theory, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 1998, p. 47 ; WILLIAMS Linda, "Something Else Besides a Mother : 'Stella Dallas' and the Maternal Melodrama", Cinema Journal, Vol. 24, No. 1 (Autumn, 1984), p. 22.

[2] Consultar GLEDHILL Christine ; KAPLAN E. Ann, "Christine Gledhill on Stella Dallas and Feminist Film Theory", Cinema Journal 25, n° 4, Summer 1986.

“Criar colisões”: Entrevista com Patricia Mazuy



Entrevista realizada por Marcos Uzal para a revista Cahiers du Cinéma.


Não foi uma atualidade particular que nos levou a Patricia Mazuy, mas a melhor das razões: nossa admiração por seus filmes e pelo lugar muito singular que ela ocupa hoje no cinema francês. O confinamento não estava nos planos dessa entrevista e, no entanto, a conversa por vezes ecoou em outros artigos deste número: a circulação e a restauração dos filmes, a economia frágil da distribuição, o estatuto incerto dos criadores…

Você sabia que, com o tempo, Travolta et moi tornou-se um filme um pouco “cult” para certos cinéfilos?

O que é engraçado é que as pessoas acham que é um filme cult porque não o viram. Se o vissem, acho que diriam a si mesmos: não é tão bom assim!

De fato, o filme pode ser visto, mas de uma maneira um pouco clandestina, porque nunca foi editado.

Eu sei que isso parte de uma ótima intenção de fazer o filme circular, mas é realmente uma merda a pirataria, a circulação livre de um filme que tentamos recuperar para restaurá-lo…

Por que é tão difícil ver esse filme?

Não é a restauração física que custa dinheiro aqui. Tudo repousa em uma história de direitos. O filme pertence a uma coleção produzida pelo Arte, Tous les garçons et les filles de leur âge, que teve diversos detentores. Aqueles que têm seus direitos hoje gostariam de fazer algo com essa série, mas é um enorme trabalho de negociações de direitos musicais ao passo que o objetivo comercial não é muito forte. Tudo isso está ligado à limitação basilar da coleção: cada filme se passa na época em que o diretor foi adolescente e era preciso obrigatoriamente incluir uma cena de festa ou balada. Isso significava ter muita música. Eles tinham negociado os direitos para quinze anos sobre um território mínimo e unicamente para a televisão para que não ficasse demasiado caro. Inicialmente, eles tinham trabalhado constituindo um catálogo, fazendo um acordo com a Sony Music, que possuía um repertório enorme. Para os diretores, era ótimo, éramos como bebês em uma loja de brinquedos! No meu caso, havia tudo menos Bee Gees. Mas todos os outros títulos estavam nesse catálogo. O filme foi construído um pouco como uma comédia musical: Higelin, Miss You dos Rolling Stones, Aerosmith, Joey do Dylan, Et si tu n’existais pas de Joe Dassin, Nina Hagen, La Mouche de Michel Polnareff. E The Clash, London Calling, posto que, no fundo, é um filme sobre a passagem da disco ao punk. Além de Bee Gees,
tivemos também que negociar um pequeno trecho de Nos embalos de sábado à noite, porque era preciso que se visse o verdadeiro Travolta!

O que pensou de Travolta et moi revendo-o?


Agora, eu o faria de outra forma, faria menos planos. Por exemplo, eu tinha filmado toda a sequência do ônibus em um dia, enquanto eu só tinha 19 dias de filmagem. Eu queria fazer planos demais! Como no meu primeiro filme eu tinha filmado poucos planos, porque eu não sabia, depois quis realmente ver se eu era capaz de filmar muitos planos. Por vezes, isso foi em detrimento do que havia dentro, em algumas sequências, em todo caso. É a Leslie Azzoulai quem habita o filme, ela é realmente incrível. A cena da patinação no gelo foi divertida de fazer, sabendo que eu tinha filmado todas as cenas de gelo no começo da filmagem e todas as cenas “sem gelo” no fim da filmagem, como se fizéssemos campos-contracampos de maneira separada. Esse negócio era uma espécie de quebra-cabeças! Era muito divertido se perguntar se isso ia dar certo ou não.



Falando em restauração, justamente, você trabalhou recentemente em uma de Peaux de vaches.

Sim, comprei de volta os direitos do filme, isso foi muito complicado. E é a mesma coisa: ninguém viu Peaux de vaches. Ele foi difundido pela última vez no Arte em 1992 ou 1993, acho. Desde então, não passou em nenhum lugar, a não ser de maneira pontual, no Festival de Belfort, na Cinemateca e em Nova Iorque.

O que você sente ao mergulhar novamente nesse filme?


Ainda não sei, porque eu tinha que calibrá-lo de 16 a 18 de março, no Éclair, e você entende que isso não foi possível. Mas sei que isso será interessante. Já supervisionei, para Denis Freyd, a calibragem da restauração de Saint-Cyr. Recalibrar uma imagem que foi feita há muito tempo é um negócio notável, pode-se literalmente perder o filme fazendo isso. Eu fiquei enlouquecida após o primeiro dia de trabalho: o brilho do digital, os detalhes que saíram, que estavam de fato no 35 mm (o 35 tem uma definição incrível), mas não nas cópias positivas. Havia coisas de louco que eu nunca tinha visto! O calibrador dizia: que bela luz! Mas tinha se tornado algo como uma publicidade, eu fiquei com a impressão de que tínhamos transformado todo o filme em uma publicidade para chuveiros com garotas! Eu suei frio e pensei que estávamos destruindo o filme completamente. Retomamos um dia suplementar para repensar no sentido do filme, para manter o lado crepuscular e, finalmente, fiquei encantada: a restauração de Saint-Cyr é magnífica.

Então, foi preciso reinventar a imagem para adaptá-la ao digital?

Sim e, ao mesmo tempo, não se pode perder-se em outro lugar, deixar-se seduzir pela sobredefinição e o brilho. Mas descobri de uma maneira incrível os grãos de pele das adolescentes. Há algo sobre as peles que não estavam no 35 mm positivo, mas que estavam lá, no negativo.



Todas as suas falas me remetem à maneira como os filmes por vezes escapam ao diretor: não controlar mais seus próprios filmes, não poder mais mostrá-los, como você vive com isso?


A partir do momento em que não sou produtora de meus filmes, eles não me pertencem. Eu vivo isso mal quando não dá certo, porque isso não vai me ajudar a fazer outro filme! O que eu amo é fabricar, fazer. Depois, eu detesto a promoção e eu sonharia que não houvesse mais necessidade dessas coisas, que os filmes pudessem bastar a si mesmos, que não precisássemos explicá-los, que não precisássemos de críticas, de nada… Eu sonharia com isso, mas não é possível.

Esporte para moças
e Paul Sanchez está de volta passaram muito despercebidos, mesmo que tenham tido seus defensores. Você diria que eles foram mal lançados?


É sempre uma questão de poder e de dinheiro. E esses são casos particulares, muito complicados. O que é estranho é constatar como, agora, os festivais têm um poder considerável.

Este ano, os efeitos da anulação de Cannes revelam bem a que ponto tudo está subordinado a esse festival.

Quando fui a Cannes para o Peaux de vaches, era um teatro de crueldade para mim! Acho isso terrível. Há um lugar que eu achava bom, porque era claro, era direto: o mercado do filme. Achei isso incrível porque tive a impressão de estar na feira de gado. Era bom para o ego dizer a si mesmo: “Fizemos uma vaca e é preciso que haja esses caras que a vendam, eles têm muitas outras vacas para vender”. Mas, em 1989, o poder dos festivais não era tão grande quanto hoje.

Se um dos seus dois últimos filmes tivesse sido selecionado em um grande festival, você acha que as coisas teriam se passado de outra maneira?

Sim. Para Esporte para moças, Jean Labadie tinha investido muito dinheiro na coprodução e ele o lançou da melhor maneira possível, porque amava enormemente o filme. Mas, na quarta-feira, isso não deu certo, e, depois, estava acabado.



Onde se dá o impacto de um festival nesse caso? No espírito do público?

Sim, isso opera psicologicamente, mesmo psiquiatricamente! É como se fosse uma denominação controlada, como para um queijo. É muito estranho, porque é um verdadeiro ofício produzir e vender os filmes, mas isso não basta. Quando Paul Sanchez não foi selecionado em Cannes, Saïd Ben Saïd disse: “ele sai em julho, ponto final”. Tinha acabado.

Você já teve a tentação de ser sua própria produtora?

Eu já fui, com Simon Reggiani, eu cuidava de sua produtora Tact et Sentiments e fui eu quem produziu Basse Normandie. Mas tenho um problema grave com documentos desde que sou pequena e, para mim, isso foi um inferno absoluto! Eu sofria penalidades o tempo todo porque não depositava os documentos todos os meses para o IVA, em um período em que não fazíamos nada, não filmávamos… É idiota, porque acho que é um instrumento quando se sabe como utilizá-lo. Um filme tem dois patrões: o produtor e o diretor. E é legal poder estar com um produtor que quer o filme tanto quanto você. Foi o que aconteceu comigo com Saint-Cyr, com Denis Freyd. Ele veio me procurar para fazer esse filme. Foi um de seus primeiros filmes de ficção para o cinema, era uma loucura. O desenvolvimento levou sete anos. Paul Sanchez está de volta se passou muito bem também. Mas já faz 11 anos que voltei a Paris e vejo que tudo mudou: as velhas receitas devem ser contornadas. Os filmes muito baratos, “piratas”, vão continuar se fazendo e os filmes muito caros também. Mas, para os outros, é complicado… De fato, eu não posso ser autônoma a partir do momento em que faço ficção com atores, uma equipe técnica mais ou menos importante. Não é porque não há mais dinheiro que as pessoas não devem mais ser pagas. Aliás, não é verdade que não haja mais dinheiro.

Uma coisa que chama a atenção na sua filmografia é que você trabalhou com orçamentos muito diferentes e para realizar filmes que também são muito diferentes entre si, pelo menos à primeira vista…

É verdade que eles não se assemelham… mas um pouco, de todo modo. Um filme de Carax; é um filme de Carax, ele cava o mesmo sulco. Ao passo que meus filmes cavam, a cada vez, um caminho novo. Eu amo explorar formas, mas não quero que a forma prevaleça sobre o humano ou a vida.

Um dos pontos comuns entre seus filmes é que eles evoluem sempre de maneira surpreendente, você ama as rupturas, as mudanças de tom.
Não sei… Por exemplo, tenho um projeto de thriller em que quero explorar a fundo a forma “thriller-barroco”. Há uma ambição estética muito forte nesse filme. No caso de Saint-Cyr, era a mesma coisa. De fato, eu gosto de fazer o que nunca fiz, pura e simplesmente. Gosto de dizer a mim mesma que não se deve refazer o que já se fez. Finalmente, descubro que há ligações de um filme entre um filme e outro, mas independentemente da minha vontade.

Quando eu falava da evolução própria a cada filme, eu pensava, por exemplo, na maneira como, diante de Paul Sanchez está de volta, muda-se diversas vezes de distância. Há um momento em que não se sabe mais se dá medo ou se é engraçado…

Sim, era a ideia explorar uma tragicomédia bamboleante em que não sabemos mais se estamos em um negócio de comédia adolescente ou em uma tragédia, em que uma garota que tem a aparência frágil de fato não o é de modo algum. Eu queria deliberadamente trabalhar sobre a surpresa do espectador.



Esporte para moças é também um filme estranhamente construído, com duas partes muito diferentes. A primeira parte no haras é…

É muito desajeitada, pode-se dizer! Há um monte de coisas capengas na primeira parte, porque eu não estava em forma. Eu corri atrás do filme e só consegui, enfim, dominá-lo na segunda parte. Fazia muito tempo que eu não filmava. Dos 32 dias, os 10 primeiros, no haras, foram complicados… É bamboleante, mas não no bom sentido do termo! Depois, adoro o filme.

Por que o início da filmagem foi ruim?

Tive que gerir um monte de reveses, verdadeiros reveses… Mas, no fim, ninguém ligava para o fato de saber que houve reveses. É como para tudo no mundo, como na política, é preciso saber quais responsabilidades assumimos. No haras, eu estava doente, com muita febre, e não disse a mim mesma que o mais importante era assumir minhas responsabilidades no filme em vez de fugir.

Você reviu o filme desde então?


Sim, fiquei sobretudo desnorteada de ver Bruno Ganz e Marina Hands. Desde o momento em que seu personagem parte para a Alemanha, eu adoro, realmente. Ocupamos um concurso hípico alemão que era uma etapa para os campeonatos mundiais, então tínhamos a cada vez três minutos para invadir a pista, pois, caso contrário, isso poderia invalidar as provas dos verdadeiros concorrentes. Olha que bagunça! Isso se tornou divertido, porque era realmente complicado.

Você reivindica frequentemente um gosto pelos faroestes, os filmes de guerra, o cinema de gênero americano. De que maneira eles impregnam seus filmes?

Talvez na minha relação com o espaço. Seja em um pequeno cômodo ou em um grande espaço, acho que os cenários inspiram a ficção. Diverte-me muito buscar soluções quando o lugar torna as coisas um pouco difíceis, como o concurso hípico de que acabo de falar.



Você acha que seus filmes são muito franceses ou isso não tem nenhum sentido para você?

De fato, tento fazer filmes muito franceses, mas eles não o são. Eu adoro tanto A noite da encruzilhada e Um dia no campo quanto O homem que matou o facínora. É mais uma questão de música, de ritmo. Quando eles são filmados na França, tento fazer com que sejam franceses. Depois, eles são como são!

Um outro ponto comum a muitos de seus filmes é que você gosta dos personagens um pouco perturbados, que vão explodir em algum momento…

Sim, em Nova Iorque, quando revi todos os meus filmes, me dei conta de que meus personagens eram todos um pouco borderline. Paul Sanchez está de volta trata realmente da loucura, mas, nos outros filmes, os personagens têm razões objetivas e muito justas para explodir de raiva.

O que dissemos dos personagens retorna ao que eu tentava dizer acerca de suas narrativas: em um determinado momento, algo balança, não fica no lugar, precisa se transformar…

Em Saint-Cyr, as meninas se movimentam, mas é a História, a história da escola que se transforma, é a Sra. de Maintenon que enlouquece, progressivamente. Porque também há filmes em que cada coisa vai poder se contradizer: o personagem não se movimenta, são as coisas em torno dele que mudam. Por exemplo, um personagem que seria obrigado a sempre gerir as coisas, em uma condição social específica, alguém que está o tempo todo em sobrevida, na reação concreta diante das coisas. Será interessante colocar diante desse personagem que não se movimenta um personagem que se movimenta intimamente para criar colisões, portanto, criar vida.



Um dos problemas frequentes nos filmes franceses que buscam filmar o social é que eles têm uma tendência a reduzir os personagens a um modelo sociológico. Ao contrário, seus personagens mudam muito, o que não significa que você negue o social, mas você não tem uma visão imobilizada dele.


Sim, mas há também grandes filmes sociais em que se fica imobilizado em um negócio. A diferença é que o desejo desses filmes é estar no social. Ao passo que, pessoalmente, acho que me interesso sobretudo pelo que há na cabeça e nas emoções. Acho que as pessoas são sempre surpreendentes. Por exemplo, sou muito amiga de um policial que é fã de Espinosa. Bem, nunca vi isso no cinema. Se falarmos com qualquer um na rua e cavarmos um pouco, muita gente é imensamente rica de complexidades.

Pode-se imaginar um policial que lê Espinosa em um de seus filmes, ao passo que, na maior parte dos outros, ele não teria lugar. Os espectadores diriam “que ideia desvairada!”.

Se tratarmos isso no registro burlesco, sim. Mas, se for levado a sério, é preciso inventar as circunstâncias, as situações que fazem com que seja muito sério. E isso é verdade independentemente do gênero do filme, uma comédia, um filme policial ou um drama psicológico.

Em Paul Sanchez está de volta, você filma também personagens de classe média, sem muitas asperezas aparentes.

Quando se constrói um personagem, é preciso que ele seja de algum lugar. Didier Gérard não aguenta mais não ser nada aos olhos do mundo. É quase um ancestral dos gilets jaunes, em seu ataque de fúria.

O que você acha de Claude Chabrol? Vendo Paul Sanchez está de volta, disse a mim mesmo que seria possível aproximá-lo de alguns de seus filmes.

Não está errado. Quando ele olha uma classe social, é muito complicado, não é simplista. Não se está nunca pairando acima dos personagens em Chabrol.

Parece-me que, tanto nos seus filmes quanto nos de Chabrol, essa complexidade dos personagens passa muito pela liberdade que vocês conferem aos atores.

Eu amadureci muito, espero, na minha relação com os atores. Quando comecei a fazer filmes, achava que a espontaneidade vinha da ausência de preparação. Em Peaux de vaches, eu tinha 28 anos e muito medo de fazer um negócio prefabricado. É preciso dizer que, pouco antes, eu tinha feito um curta inteiramente preparado, mas que, no final, era vazio. Porque eu só tinha me ocupado dos planos, e não dos atores. Bruno Ganz me ensinou uma coisa essencial durante a filmagem de Esporte para moças: pode-se totalmente repetir várias vezes sem quebrar a espontaneidade. Antes, eu tinha medo de repetir porque tinha medo de perder a verdade, mas é um erro. O tempo em que cavamos, procuramos, erramos, como não temos dinheiro para fazer isso nas filmagens, é preciso encontrar esse tempo antes. Buscar, de maneira lúdica, dizendo-se: “E se fosse…”. Isso vai decantar, nós dormimos. Bruno queria seus diálogos antes, visto que o francês não era sua língua, mesmo que ele fosse perfeitamente bilíngue. Marina Hands também, mas porque, como ele, ela vem do teatro. Essas repetições fazem deles grandes atores de cinema, porque eles chegam a uma filmagem disponíveis como bebês: eles trabalham tanto anteriormente que não precisam mais pensar antes do plano. Muita preparação permite ao ator estar ali, pura e simplesmente, em vez de ficar preso ao roteiro. Quando abrimos a porta, abrimos a porta e não estamos dizendo “é essa ou aquela cena”. Eu continuei trabalhando assim no Paul Sanchez está de volta.

Você mesma foi atriz recentemente, notadamente em Dois Rémi, dois, de Pierre Léon e Jamais contente, de Émilie Deleuze. O que aprendeu com essa experiência?


Aprendi muitíssimas coisas sobre os atores com eles. No filme de Pierre Léon, eu tinha um pequeno papel e eu o observava. Admirava muito sua maneira de trabalhar com nada, fazendo coisas radicais. Esse tipo de cinema era um outro mundo para mim. Com Émilie, também era uma aventura, uma vez que, quando ela me pediu para rodar no seu filme, eu não sabia que era um papel importante. Imaginava que seria apenas uma figuração. Eu me impliquei realmente na mecânica do ator e aprendi o que era a espera do ator, a necessidade de permanecer sempre disponível sem perder a energia que imprimimos ao papel. Eu precisei vivê-lo para compreendê-lo.



Enquanto diretora, o que você acha da noção de female gaze?

Precisamos mesmo falar disso? É um momento, faz todo mundo se mexer e é muito bom. Mas não se deve dizer qualquer coisa. O desejo de um diretor ou de uma diretora é essencial. Não posso filmar alguém que não tenho vontade de olhar. Há sempre um desejo, mas que não é sexual. Na seleção de elenco, temos vontade de filmar uma pessoa ou não. E, depois, trabalhamos. Mas isso não é físico, é um todo. Por exemplo, acho que Sternberg era um grande canalha, mas, quando ele filma as mulheres e os homens, ele os olha. E ele quer devorar todo mundo, não só a Marlene! E, enquanto espectadores, ficamos contentes, porque também devoramos todo mundo! Tenho uma relação bastante infantil com o cinema, gosto de devorar o que vejo.

Ser uma mulher já foi por vezes incômodo para você? Isso chegou a prejudicá-la?

Sim, mas não no começo. No começo, o fato de ser uma mulher me ajudou. Foi porque eu era uma jovem mulher que propunha uma forma de faroeste com um monte de rebuliço que o produtor pensou: “olha, isso é curioso!”. Se eu não fosse uma jovem mulher, como o roteiro era bastante indigente, não tenho certeza se o teria feito. Depois, ser uma mulher nas relações de poder, em que podem ser tomadas as decisões, isso pode me prejudicar. Mas o problema não é só uma questão de gênero, é o problema do poder.

O que você está preparando agora?

Tenho três projetos em curso esperando que um deles se realize. O thriller bastante barroco de que lhe falei mais cedo. Um thriller puro, uma tragédia. O outro parece ser um filme social, mas, de fato, é um melodrama. E o terceiro é um filme de colagem para retraçar 60 anos da vida de alguém, é um assunto mais íntimo. São colagens, não sei aonde eu vou. É muito lúdico, bastante divertido. Para esse projeto, não tenho roteiro, mas, estranhamente, tenho todos os atores de prontidão. É incrível, não? É um projeto muito felliniano, com telas pintadas… é um pouco maluco.

Entrevista realizada por telefone por Marcos Uzal, em 16 de maio de 2020, publicada originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 766, junho de 2020. Tradução: Rafael Zambonelli. 

Sobre e em torno de "O casamento do meu melhor amigo"



Por Robin Wood

Eu quero discutir O casamento do meu melhor amigo (1997) em relação a três tópicos associados: sua relação com a clássica comédia screwball e as outras tentativas recentes de repensar este gênero em termos contemporâneos; sua relação autoral com O casamento de Muriel (1994); e o atual uso disseminado de personagens gays em comédias contemporâneas. Como este capítulo será então mais “em torno” do que “sobre” é melhor eu começar dizendo claramente que eu amo o filme: se não “profundo” ou, em algumas das maneiras mais óbvias, “inovador”, me parece um perfeito e progressivo exemplo do seu gênero, continuando a nos dar prazer mesmo depois de muitas revisões.

Screwball antiga e moderna

Nós todos reconhecemos certos filmes como “screwball”, ainda assim o termo requer uma definição; a maneira mais simples para defini-lo é situá-lo entre a comédia “romântica” e a comédia “louca” ou “slapstick”, já que claramente ela se relaciona com ambas enquanto permanece distinta das duas, sua diferença surgindo talvez das maneiras pelas quais ela empresta e combina elementos de cada uma. McCarey nos dá as diretrizes ideais, já que ele produziu exemplos excepcionais de todas as três categorias: Diabo a quatro, a comédia louca ideal; O amor da minha vida ou seu remake Tarde demais para esquecer, a comédia romântica ideal; e Cupido é moleque teimoso, entre as grandes screwballs.

No coração tanto da “screwball” quanto da “romântica” está o casal romântico, geralmente ausente ou na margem da “louca”. (Embora Chaplin e Lloyd sempre tivessem “interesses” românticos, seus filmes são celebrados principalmente pelas performances dos comediantes, set pieces, e suas habilidades; embora O Gordo e o Magro possam ser percebidos como um casal romântico, seria uma bela forçada de barra vê-los dessa maneira; e eu não acho que alguém rotularia as várias cortes ente Groucho e Margaret Dumont exatamente como “românticas”.) É por isto que a distinção não é sempre nítida. Um modo grosseiro mas suficientemente preciso de entender poderia sugerir que a comédia romântica é principalmente sobre a construção do casal romântico ideal, enquanto a comédia screwball é principalmente sobre liberação (e o casal que ela constrói geralmente está bem longe de um ideal romântico – veja, por exemplo, Levada da breca ou As três noites de Eva ­­– ou Maridos em profusão, que audaciosamente constrói um ménage): a derrubada da convenção social, das noções burguesas de respeitabilidade, dos tradicionais papéis de gênero. (A resolução de O casamento do meu melhor amigo é colocada às claras e pode ser considerada como o “happy end” lógico do gênero, que somente há poucos anos tornou-se possível dentro das limitações do cinema de Hollywood.) É precisamente aqui que a “screwball” liga-se com a “louca” – com a anarquia dos Irmãos Marx, ou a destruição (muitas vezes inadvertida) das normas sociais, lares e propriedade em O Gordo e o Magro: ser plausível é uma questão menor na “screwball” do que na “romântica”. Cupido é moleque teimoso pode ser entendido como o ponto de equilíbrio perfeito entre as duas, “loucura” e “romantismo” postos meticulosamente em harmonia.



O aspecto mais interessante desse movimento em direção à liberação, à derrubada das normas, é a ênfase recorrente da screwball (o tema, alguém poderia afirmar, das melhores screwballs) na emancipação e empoderamento das mulheres. Portanto Cupido é moleque teimoso é essencialmente sobre (nas palavras de Andrew Britton) “o castigo da presunção masculina”[1] e o progresso do casal em direção à igualdade. A instância mais extrema – portanto a screwball mais próxima de todas da “louca” – é certamente Levada da breca, preocupada somente com a liberação de Cary Grant das mãos impiedosas de Katherine Hepburn e culminando com lógica impecável naquela imagem ainda potente da queda do patriarcado, o colapso do esqueleto de dinossauro em “nada mais que uma pilha de ossos velhos”, parafraseando Hepburn anteriormente no filme. Outros exemplos notáveis: As três noites de Eva, Duas vezes meu (a versão original, não a horrorosa versão higienizada disponível atualmente em vídeo – veja Richard Lippe sobre isso em CineAction 35), e (em um nível mais baixo de sucesso) Os pecados de Theodora e Maridos em profusão, em que Jean Arthur, apesar de ter sido impelida pelo sistema júridico patriarcal a escolher entre Fred MacMurray e Melvyn Douglas, termina ficando com os dois. Deste ponto de vista, esses filmes são mais progressivos, subversivos, e potencialmente revolucionários que quase qualquer coisa aparecendo em Hollywood hoje. Isso torna-se particularmente claro quando consideramos uma tentativa mais recente de se fazer uma screwball que corresponda, da maneira mais óbvia, ao modelo clássico: Forças do destino (1999), em que o modelo é claramente Levada da breca. O filme foi na maioria das vezes atacado (com alguma razão) por sua inaptidão e pela total falta de química e carisma por parte dos atores, mas seu verdadeiro crime é trair seu precursor hawksiano: ao invés de progredir em direção à liberação, seus personagens simplesmente aprendem a ser mais maduros e sábios, uma condição que presumivelmente torna a liberação supérflua.

Comédias screwball não estão mais preocupadas com o empoderamento das mulheres, seguindo a suposição generalizada de que as mulheres não precisam mais ser empoderadas, elas ganharam todas as suas batalhas e elas estão mais que suficientemente empoderadas, muito obrigado. Enquanto isso, eu abro meu jornal toda manhã para ler sobre todas as mulheres espancadas, estupradas e/ou mortas que foram espancadas, estupradas e/ou mortas por homens, comumente seus maridos ou amantes masculinos; sobre todas as mães solteiras lutando na pobreza, levadas até ou ultrapassando o limite da miséria; o fechamento de abrigos para mulheres e de creches por conta da retirada de financiamento do governo; as batalhas das mulheres para assegurar uma posição titular ou promoção nas universidades, e suas lutas em toda parte para ter um salário igual para um trabalho igual; sua virtual exclusão dos escalões mais altos do capitalismo controlado por homens, a não ser que elas estejam comprometidas em apoiar ainda mais o empoderamento dos homens; ou, por outro lado, o número enormemente maior de mulheres secretárias, domésticas, faxineiras em relação ao de homens. A única screwball contemporânea a tratar deste tema de maneira responsável foi amplamente ignorada: O sócio (1996), imperfeita devido a uma construção falha e uma direção indiferente mas notável pelas performances esplendidas de Whoopi Goldberg e Dianne Wiest. O ataque do filme à subordinação e exploração das mulheres (e dos negros) dentro das estruturas, esmagadoramente dominadas por homens brancos, das instituições e corporações financeiras é crua porém devastadora.

Contudo, se o grande assunto subjacente da screwball clássica foi agora declarado oficialmente obsoleto pela atual conspiração capitalista/patriarcal, o próprio gênero acabou, por um processo de mutação, trocando-o por outras preocupações aparentemente distintas dele, porém claramente relevantes a ele: o assalto aos bastiões tradicionais do casamento, família, parentesco biológico, sexualidade e gênero. Se os problemas das mulheres estão agora oficialmente “resolvidos”, então os problemas que estão tão intimamente e intricadamente envolvidos na contínua opressão das mulheres – de fato, eles formam a sua base – estão agora sendo expostos à crítica como nunca antes. Penso particularmente em Procurando encrenca (1996), Um dia em Nova York (1996), e O casamento do meu melhor amigo.



Nossa civilização evoluiu bastante desde os grandes dias da screwball – evoluiu em direção ao potencial e talvez iminente cataclismo: tivemos a Segunda Guerra Mundial, a ameaça da aniquilação nuclear, e a devastação do meio ambiente pelas forças aliadas do capitalismo avançado – não somente em países ocidentais mas agora também na antiga Rússia soviética e até na China comunista – com a ganância aparentemente insaciável daqueles que acreditam que a posse de vastas reservas de dinheiro por poucos justifica a miséria social de milhões e a possível extinção da vida no planeta. Consequentemente, as estruturas básicas da civilização – social, política, ideológica – e as estruturas da organização social/sexual que são ao mesmo tempo seu produto e sustento estão provocando uma ansiedade, descontentamento e perturbação ainda maiores: não pode ser enfatizado com maior frequência (já que tão poucos parecem escutar) que existe uma clara e lógica conexão entre a família patriarcal nuclear e as dominantes estruturas socioeconômicas/políticas. Levando em conta o poder contínuo do capitalismo, especialmente seu poder de deixar sua população em uma condição de mistificação crônica através da mídia que ele essencialmente controla, essa perturbação se cristaliza em uma oposição completamente consciente apenas entre uma pequena minoria; mas o sentimento ainda mal formado de insatisfação já está virtualmente difundido, especialmente entre as gerações mais novas. Já que a insatisfação não pode ser conscientemente formulada, ela se expressa apenas em um cinismo e em uma impotente forma de rebeldia. Porém a insatisfação com as nossas instituições tradicionais e fundamentais – casamento e família, a organização do gênero e sexualidade – é discernível em todo lugar. Ela estrutura as melhores comédias screwball da mesma maneira que o empoderamento das mulheres estruturava os clássicos das décadas de 30 e 40.

A obra que melhor levou isso a cabo, da maneira mais completa e rigorosa, é claramente Um dia em Nova York, talvez o filme americano mais negligenciado da última década, pouco conhecido, raramente exibido, atualmente acessível apenas em um vídeo “formatado para a tela da sua televisão” e um DVD que nada faz para remediar isso. Em nenhum momento é uma screwball, e no fim não é mais nem uma comédia, apesar disso mantém uma premissa e estrutura narrativa arquetípicas da screwball: esposa, após uma terna e afetuosa cena matutina com o marido, despede-se dele quando ele vai para o trabalho, então acha (enquanto faz as tarefas de casa) um bilhete de amor assinado “Sandy” debaixo da cama. Transtornada, ela recruta a ajuda de sua mãe, que por sua vez recruta seu pai, irmã mais nova, e o noivo da irmã mais nova para uma viagem pela cidade para confrontar o marido errante en masse. Pode-se até imaginar como esse filme teria sido escalado, na época de ouro da screwball em seu modo mais conservador e “família”: William Powell como o marido, Myrna Loy ou Irene Dunne como a esposa, Mary Boland e Charlie Ruggles como os pais, Ann Rutherford como a irmã mais nova... Aconteceria uma série de hilárias desventuras; o marido, finalmente encontrado, iria explicar que “foi tudo um erro”; e a solidariedade familiar e conjugal seria restaurada, confirmada pela promessa do iminente casamento do casal mais jovem. Um dia em Nova York sistematicamente inverte esse padrão: a jornada, começando de manhã cedo, terminando tarde da madrugada, é um progresso estável para a escuridão e desintegração. No fim, tanto o casamento quanto o noivado terminaram, a família fica irremediavelmente separada, e as duas irmãs vão embora juntas noite adentro. Como é de praxe com filmes narrativos americanos, tudo isso permite ser lido em termos puramente individuais (este casamento em particular, esta família, etc.), mas de maneira alguma proíbe uma leitura simbólica, como uma “fábula para nossos tempos” (a família é claramente apresentada como uma “típica”). Talvez a razão de ser a comédia screwball (ou derivada das screwball) mais radical atualmente seja porque ela é a que mais se afasta dos seus modelos, no tom e na progressão narrativa.

O casamento do meu melhor amigo
é obviamente mais leve, mais verdadeiro ao espírito screwball. Mas debaixo de sua superfície mais frívola, menos abertamente subversiva, ele se relaciona de maneira clara o suficiente com as mesmas tendências.

O que O casamento do meu melhor amigo tem a ver com o de Muriel?



O casamento de Muriel foi escrito e dirigido por P. J. Hogan; em O casamento do meu melhor amigo ele tem apenas o crédito de diretor. Não tenho informação de por que exatamente ele ter sido convidado para Hollywood (apesar de que obviamente o sucesso crítico e popular do filme australiano tiveram muito a ver com isso), ou como ele acabou dirigindo o filme que dirigiu: foi sua escolha (de uma variedade de possíveis roteiros ou temas oferecidos), foi escolhido para ele como se ele fosse uma espécie de especialista em casamentos, até que ponto ele controlou ou contribuiu para a evolução do roteiro final? Se o roteiro final foi simplesmente entregue a ele com um “Dirija isto”, então estamos lidando com uma coincidência notável: apesar de suas diferenças enormes (em tom, meio social, caracterização), as estruturas dos dois filmes revelam impressionantes similaridades. As diferenças podem ter sido estabelecidas pela mudança no meio social e as diferentes possibilidades oferecidas pelos cinema americano e australiano e as inflexões divergentes do gênero cômico. Sob o risco de pisar em sensíveis dedos nacionalistas, tenho que dizer que a maioria dos filmes australianos que eu vi (ou filmes que se passam e são filmados na Austrália) dão a impressão de serem terríveis avisos: “Nunca, nunca emigre para a Austrália. Nem sequer considere isso. No melhor dos casos vão gritar e vitimizar você, e no pior vai ser sodomizado à força pelo Donald Pleasance.” (Deixe-me acrescentar que eu poderia dizer o mesmo do cinema do meu país natal, a Inglaterra.) O contraste entre a sofisticação e nuance de O casamento do meu melhor amigo e a crueza direta do seu predecessor são impossíveis de considerar em termos de uma simples sensibilidade autoral – apesar de que no caso do filme americano isso deva ser atribuído à influência do gênero em vez de qualquer coisa discernível na contemporânea cena hollywoodiana.

A trajetória comum a ambos os filmes pode ser resumida assim: uma mulher torna-se obcecada (por razões bem diferentes) com um casamento em particular, real ou inventado (o seu próprio hipotético – Muriel/Toni Collette – e o do homem que ela subitamente percebeu que ama – Julianne ou “Jules”/Julia Roberts). Em ambos os casos, porém, a mulher quer que o casamento seja o dela – para Muriel é um status simbólico que lhe dará finalmente algum respeito; para Jules é o meio de possuir o homem que ela ama, influenciado pelo ainda maior desejo ignóbil de fazer as coisas do jeito dela, seu comportamento sendo às vezes o da menina que pisa em seu pé e grita “Eu quero!!! Eu quero!!!” Cada mulher protagonista está obcecada com uma música em particular que oferece a ela uma imagem de si própria: “Dancing Queen”, do Abba, para Muriel, “Just the Way You Look Tonight” para Jules; e em ambos os filmes a música retorna nas cenas finais como um significante da sua liberação da obsessão. Em ambos os filmes a obsessão das mulheres as guia cada vez mais para um comportamento egoísta e irresponsável, que não leva em conta os sentimentos das outras pessoas e que, em última análise, as leva a reconhecer a traição que fizeram aos seus próprios sentimentos. O casamento traz a desilusão e com ela a liberação: ela começa a olhar a si mesma e a examinar o seu comportamento, e assim libertar-se da sua obsessão. O mais notável é a congruência dos finais: ambos os filmes terminam com a heroína reunida com o personagem que representou a sua consciência, mas que também, significativamente, é uma figura de fora, separada por uma marcada “diferença”, com quem ela parece estar firmando uma relação permanente, mas com quem ela não pode se casar, e cuja situação pessoal (aleijado, gay) os coloca em uma posição de onde eles podem ver o meio social, suas tradições e padrões comportamentais, de maneira objetiva e crítica. Alguém poderia dizer que eles são apresentados como os dois personagens mais admiráveis de seus respectivos filmes precisamente porque eles não podem casar – não podem, quer dizer, participar do princípio central de organização da sua cultura.



Os filmes partilham uma visão extremamente amargurada das festas de casamento e sua função e, além disso, implicitamente, do casamento em si. Isso é expressado claramente em Muriel, e de alguma forma mais sutil e circunspecta em Melhor amigo, no qual o tom é estabelecido desde o início com aquela charmosa, hilária e satírica cena de créditos. Nossa confiança no casamento Dermot Mulroney/Cameron Diaz é sutil mas totalmente destruída: o casal claramente não combina, seus interesses são incompatíveis (reminiscentes, na verdade, de Stewart e Kelly em Janela indiscreta!) na maneira arquetípica da nossa cultura, (homem) aventureiro versus (mulher) caseira. Jules é capaz de destruir a sua aparente estabilidade na primeira tentativa séria, a discussão instantânea que ela media só é resolvida pela instantânea e total submissão da mulher às necessidades do homem. E a sequência central no barco de turismo deixa claro que a ligação do noivo a Jules continua consideravelmente a ser mais do que uma amizade e pode ser reacendida muito facilmente. Tendo isso em vista, a celebração final do filme do casal tradicional, enquanto eles vão embora para sua lua de mel com a ajuda de música romântica, câmera lenta, confete e repentinas fontes jorrando, deve ser lida como uma parte irônica, e outra parte um aspecto da generosidade do filme, um tributo à gentileza e às boas intenções dos seus personagens: o efeito pode ser resumido na frase “Você não tinha chance, mas desejamos que fique bem”.

Performance/Estrutura



Apesar de ser geralmente apreciado, O casamento do meu melhor amigo não recebeu, nem de perto, o reconhecimento que merece. É uma das grandes comédias americanas, comparável em sua perfeição com as melhores screwball “clássicas”, perfeitamente escrito, elenco perfeitamente escolhido, perfeitamente atuado, perfeitamente dirigido. Eu devo tê-lo assistido pelo menos meia dúzia de vezes, revendo sequências inteiras pelo puro prazer das nuances de timing e da encenação em grupo. É continuamente vivo, nos mínimos detalhes: quando vemos (por exemplo) a cena no bar de karaoke ou a sequência do almoço na véspera do casamento algumas vezes, começamos subitamente a notar os figurantes: não há espaço “morto” na tela; todo figurante mostrado no bar lotado ou no restaurante está integrado à performance geral. Os quatro protagonistas estão para além dos elogios. Se Roberts e Rupert Everett nos atingem mais imediatamente, é porque eles têm os papéis mais chamativos; mas suas performances são equiparadas às de Diaz e Mulroney.

O filme é construído sobre uma dupla estrutura: as mudanças e evoluções do relacionamento entre Julianne e os dois homens em sua vida, Michael (Mulroney) e George (Everett). Os dois relacionamentos são introduzidos, com grande economia, logo no início: Julianne, uma prestigiada colunista e crítica de culinária, está jantando com George, seu editor (o “encontro” combina trabalho e prazer, já que ela está criticando o restaurante); durante a refeição ela checa suas mensagens no celular e recebe um comunicado urgente de Michael que impulsiona toda a ação (ela tem que retornar a ligação, a qualquer momento, até mesmo no meio da noite). Michael é o seu “melhor amigo”, com quem ela teve uma breve aventura romântica; quando terminaram eles juraram que se casariam caso não encontrassem alguém até a idade de 28 anos. Ambos terão 28 em algumas semanas; é George quem inicialmente coloca na cabeça dela a noção de que um casamento com seu “melhor amigo” está no horizonte.

O filme joga o tempo inteiro com o motif do “melhor amigo”. Quando Kimmy (Diaz) pede para Julianne ser sua dama de honra, ela acrescenta: “Isso significa que eu tenho quatro dias para fazer de você minha melhor amiga” (Julianne tem os mesmos quatro dias para romper o casamento). No estádio, quando Michael começa a ver Julianne sob uma nova luz, ele pergunta a ela: “O que você fez com a minha melhor amiga?” No alfaiate, quando Michael está provando seu terno, Julianne apresenta George como “meu bom amigo... meu melhor amigo esses dias.” George já substituiu Michael como o melhor amigo de Julianne; na conclusão extraordinária do filme ele também vai substitui-lo como o noivo de Julianne, o casamento de Michael e Kimmy se torna também o de George e Julianne, dando ao título do filme uma virada final.

A natureza do relacionamento entre Julianne e George é gradualmente definida pelas suas cenas juntos: a dependência mútua que não é nem romântica nem sexual, portanto livre de cobranças, restrições, e ciúmes dos relacionamentos amorosos tradicionais. Se um sobretom de domínio masculino ainda permanece, Julianne consegue rejeitá-lo no momento que quiser: profissionalmente ele é seu editor (apesar de nem o filme nem o personagem utilizarem isso); pessoalmente, seu sábio conselheiro – não exatamente porque, como homem, ele saiba mais, mas porque, como homem gay, ele pode ver pelo lado de fora das convenções sociais e dos padrões comportamentais dos quais Julianne nunca conseguiu emancipar-se. Sua preocupação com ela (pois ele pressente que ela irá se comportar mal, de maneira que a fará sentir-se envergonhada) nunca é expressada de modo intimidador ou ditatorial, e é sempre balanceada com o seu medo de perdê-la: o ciúme instantâneo de Michael quando ele acha que Julianne e George são amantes é balanceado pelo sentimento de perda de George, quando ele acredita que ela será absorvida por um casamento tradicional. Se ele é o seu “melhor amigo”, está claro que ela também é a “melhor amiga” dele; se isso não é o que geralmente achamos que um relacionamento “amoroso” deva ser, talvez tenhamos que repensar a nossa definição de amor.



O filme retoma de O casamento de Muriel a utilização de uma música associada com a heroína e que se torna uma marca de seu crescimento, mas desenvolve esse dispositivo de forma bem mais elaborada e satisfatória. Existem, na verdade, duas músicas envolvidas, uma associada com o relacionamento de Julianne com Michael, a outra conectada com o seu relacionamento com George. “Just the Way You Look Tonight” é introduzida na sequência da primeira tentativa séria (quase bem sucedida) de terminar o relacionamento de Michael com Kimmy – a cena do restaurante onde Kimmy, instigada por Julianne, pede para Michael trabalhar com seu pai em um escritório por seis meses, permitindo a ela concretizar algumas escolhas de vida (terminar a universidade, começar sua própria carreira na arquitetura) ao invés de sacrificar tudo por ele: ele chega no almoço cantando-a para Julianne, como uma memória da sua breve aventura romântica. Ele canta para ela de novo no barco turístico e eles dançam juntos, publicamente, apesar de aparentemente não perceberem a presença de estranhos. Nesse momento ele já admitiu que ele sentiu um “ciúme louco” de George, e sua revivida atração por Julianne tornou-se bem evidente; é o momento que a convence de seu direito de terminar o casamento, que não tem como ser feliz, com o casal sendo irremediavelmente incompatível e com Michael ainda sendo romanticamente ligado a ela, liberando-a de seus últimos momentos de consciência ou de consideração pelos outros, permitindo a sua pior e mais repreensível ação. A música de George, apresentada no almoço de véspera do casamento, é a “I Say a Little Prayer for You”, de Burt Bacharch (“Forever, and ever, you stay in my heart/... Forever, and ever, we never will part”[2]). George apresenta-a ao relatar o primeiro (hilário, e totalmente fictício) encontro com Julianne, e é imediatamente acompanhado, primeiro pelas duas damas de honra e em seguida por todo mundo: é importante que se torne uma música pública, simbolicamente unindo o suposto casal com o mundo externo, enquanto que a música de Michael/Julianne é estritamente pessoal e hermética, deixando o mundo do lado de fora.

Nas cenas finais as duas músicas sãos justapostas, representando a escolha que Julianne deve fazer. No seu obrigatório discurso de “dama de honra” na recepção do casamento, Julianne publicamente reconhece a natureza feia e psicopata do seu comportamento, e então concede a música que ela compartilhou com Michael ao novo casal, como seu presente de casamento, “até vocês acharem a sua própria música.” É a sua forma de renunciar a sua obsessão, e com ela ao passado. Depois que o casal parte para a lua de mel, a recepção continua, Julianne está sozinha na multidão. O celular dela toca: George é claro. Mas George está lá, em outra mesa, e ele a presenteia com o que é efetivamente o presente de casamento dele para ela: “I say a little prayer...” É-nos dada então uma variação completamente nova de uma velha convenção (uma convenção que vai se repetir, desbotada e completamente pouco convincente, na sua forma original, no fim do filme seguinte de Roberts, Um lugar chamado Notting Hill): o pedido público de casamento. George avança em direção a ela pelo salão, deixando claro que o que ele está oferecendo é um relacionamento permanente: “E apesar de você sentir, corretamente, que ele é... gay, como quase todos os arrebatadores homens bonitos de sua idade... Não haverá casamento. Não haverá sexo. Mas, por Deus, haverá dança.” Anteriormente no filme Michael comentara com ela no estádio (a dança entre ela e o padrinho na recepção do casamento estando em discussão) que “Você não sabe dançar. Quando você aprendeu a dançar?” A dança deles juntos no barco foi lenta, improvisada, privada; a dança com George é entregue e em êxtase, uma dança de libertação. O filme encerra com “Together, forever...” Assim o filme concretiza a obrigação tradicional de Hollywood em progredir em direção à “construção do casal”, mas não é mais a “construção do casal heterossexual.”



Assim como em Um dia em Nova York, é algo simples relacionar O casamento do meu melhor amigo com a screwball clássica: realmente, ele evoca diretamente Levada da breca, que também era sobre uma mulher determinada a impedir, a qualquer preço, um homem de casar com a sua noiva em um curto período de tempo. Nos anos 30, Katharine Hepburn teria interpretado o papel de Julia Roberts e o final seria uma conclusão já esperada: a futura noiva teria se revelado ou uma tapada atraente e idiota ou uma vadia calculista, portanto largada sem qualquer desconforto pelos personagens e plateia – o noivo perceberia seu erro terrível, Hepburn substituiria a noiva no altar em uma reviravolta de tirar o fôlego, e o casamento se transformaria em uma conclusão triunfante. Era precisamente assim que eu “sabia” que o filme terminaria na primeira vez que o vi, apesar de que eu estava em crescente confusão sobre como ele se livraria da Cameron Diaz sem provocar um dano irreparável a si mesmo: o seu personagem era simplesmente muito doce, muito amável, muito vulnerável, muito sinceramente apaixonada. Outra fonte de confusão era que o papel do Cary Grant parecia de alguma forma ter se dividido entre Dermot Mulroney e Rupert Everett.

Gays nas comédias dos anos 90: Problema ou solução? 



O que distingue acima de tudo O casamento do meu melhor amigo da screwball clássica é algo que não poderia acontecer em nenhum filme antes dos anos 60, e não aconteceu de fato antes dos anos 80: a inclusão de um personagem que não só é abertamente gay, mas é representado de maneira positiva e atraente. O George de Rupert Everett é muito diferente das grotescas almas perdidas que primeiro representaram os gays, quando acabou o tabu em mostrar explicitamente personagens gays nos anos 60 (Os rapazes da banda, Triângulo feminino...): em qualquer aspecto, tirando o sexual, ele é um parceiro ideal para Jules. Filmes recentes estão começando a sugerir que o medo da direita do “estilo de vida gay” não é sem fundamento: o que é temido não é somente que, caso os gays fossem vistos positivamente, virtualmente todo mundo se tornaria homossexual, mas que relacionamentos gays talvez virassem um modelo para uma nova, mais livre, “normalidade” alternativa. Quando você pensa sobre não é nem um pouco surpreendente que o colapso da confiança nas normas tradicionais seria acompanhada pela súbita emergência de imagens de homens gays atraentes com vidas aparentemente felizes e produtivas. Os aparentes braços abertos com os quais os gays foram rapidamente saudados no cinema hollywoodiano recente ainda não abriram completamente: gays estão restritos às comédias, onde existe menos necessidade de mostrar atos sexuais ou até mesmo expressões de amor. A história de amor gay é um gênero até agora restrito a filmes pequenos direcionados para o público gay (Fazendo amor foi ridicularizado pelos gays pela sua aparência, mas a sua audácia parece agora comprovada pelo fato que ainda permanece, vinte anos depois, sem uma continuação). Hollywood continua muito cautelosa em relação aos casais gays, apesar deles começarem a aparecer em alguns lugares surpreendentes (O paizão, Vamos nessa!). O uso mais radical de personagens gays é, de novo, em Um dia em Nova York, em que o colapso final do casamento e a dissolução da família coincide com – na verdade, é impulsionado por – a descoberta que não somente o marido tem sido infiel, mas que ele tem sido infiel com outro homem: no nível simbólico, a co-incidência do colapso de normas com a criação de um relacionamento gay é eloquente.

O papel favorito (e lógico) para os gays na nova comédia hollywoodiana foi rapidamente descoberto: transformar o personagem gay no melhor amigo da heroína (A razão do meu afeto, De volta ao presente) e os problemas estão resolvidos, o potencial constrangimento dos membros do público mais reprimidos e inibidos seria evitado. O casamento do meu melhor amigo aproveita isso e brilhantemente transforma suas limitações em vantagem: o uso do personagem de Everett no filme é exemplar em sua inteligência. A maturidade de George, a sua consideração, tato, estão intimamente conectados com o fato da sua homossexualidade o separar das normas sociais, permitindo a ele uma distância sábia das práticas e convenções nas quais aqueles em torno dele estão enredados. Ele é capaz de falar com Jules de uma maneira que seria impossível para um homem heterossexual, oferecendo a ela uma intimidade que é sempre mais próxima por ser não sexual. Daí a memorável conclusão do filme, seu “final feliz” e a que se torna a mais segura alternativa para a união marital que Jules renunciou, de sua maneira um “casamento” alternativo: o discurso público de George para ela, na recepção do casamento, para ele ser seu “melhor amigo” e ela a mulher que ele escolheu, constitui uma proposta autêntica, o compromisso de um relacionamento que será permanente mas não exclusivo, construído em fundações muito mais fortes que o amor romântico ou atração sexual. Como um amigo sabiamente me disse um dia, “Você deve viver com amigos, não com amantes.” O filme nos deixa perguntando qual homem agora é o seu melhor amigo, e esse casamento é de quem afinal?

As implicações de tudo isso podem ir longe. Eu omiti – na minha lista grosseira do que, da vida gay, o cinema hollywoodiano continua a suprimir ou margear desconfortavelmente – a questão da liberdade sexual. É por isso que O casamento do meu melhor amigo nos diz pouco ou quase nada da vida sexual de George. Há uma rápida cena que pode oferecer uma pista, a cena em que Julianne, desesperada, liga no meio de um jantar para que George venha ajudá-la. George na ponta da mesa, como anfitrião; à sua esquerda e à sua direita estão dois prováveis casais heterossexuais; na outra ponta (onde tradicionalmente a esposa sentaria) está um homem careca, vislumbrado rapidamente: devemos achar que é o amante de George? Outro amigo? Não há nenhuma outra pista a não ser a sua posição na mesa do jantar formal. A direita fala do “estilo de vida gay”, mas na verdade a vida gay abarca muitos estilos de vida diferentes. Temos motivo para acreditar que o modelo original para casais gays, imitado do único modelo disponível e imitando o casamento tradicional – ostensivamente monogâmico, com a “traição” (palavra horrível, conceito horrível!) [3]
por fora, com as brigas resultantes, a tensão crescente e a constante suspeita – está gradualmente acabando. Mais casais gays estão aceitando a poligamia natural da (maioria?) dos seres humanos e deixando de perceber o comportamento sexual fora do relacionamento como “infidelidade” (outra palavra horrível, como é usada comumente) já que o casal permanece, em essência, fiel um ao outro. Mas “viver com amigos, não com amantes” removeria qualquer resíduo do passado, os ciúmes, tensões e discussões. A própria noção de “o casal” não precisa mais ter o status que ainda tem: por que não três, ou quatro, ou mais, e o que importaria se os relacionamentos fossem sexuais ou não? Não seria, claro, necessário compartilhar o mesmo espaço (não há nada que sugira no filme que Julianne e George viverão juntos).



E quais seriam as consequências se tais práticas se espalhassem para o mundo heterossexual?

Certamente, para muitos, a libertação de todas as amarras do tradicional casamento-e-família implicaria, acima de tudo, um grande suspiro de alívio. Liberdade de escolha: você poderia, se é isso que você quer, fazer sexo com apenas uma pessoa pelo resto de sua vida (contanto que você não insistisse que ele/ela fizesse o mesmo) ou com cem mil. Você poderia ainda, se quiser, e se achar a(s) pessoa(s) certa(s), ter relacionamentos permanentes ou semipermanentes, e eles seriam construídos em fortíssimos laços de interesses comuns e compatibilidade, e não na areia movediça do desejo sexual e “amor romântico,” duas coisas que parecem enfraquecer rapidamente. Quantos casais, gays ou héteros, você conhece que ainda fazem sexo ardente (ao invés do sexo-como-dever ou sexo-como-rotina) depois de dez anos vivendo juntos?

Tudo que sobra é a questão das crianças: como elas seriam concebidas e como nasceriam? Como elas seriam criadas? E, de verdade, tudo o que precisa ser descartado é a obsessão da nossa cultura com o parentesco biológico, que é apenas uma forma de posse e orgulho (um dos sete pecados capitais!). Toda a nossa cultura conspira para sugerir às crianças, praticamente desde o nascimento, que é uma questão de enorme e extensa importância quem são seus pais e mães. Só que, dentro da nossa civilização, de longe a maior porção de neurose (acompanhada de inibição, repressão, ansiedade, potencial atrofiado, e em casos mais extremos resultados bem mais desastrosos) se desenvolve dentro da família tradicional, passada de geração em geração. Falando pessoalmente, eu com certeza me incluo nisso, mas eu também incluo virtualmente todo mundo com quem eu tive um contato próximo durante a minha vida. O dano é irreparável: Por que queremos que isso continue? Não haveria problema em fazer e criar crianças dentro das várias versões possíveis da organização social que eu esbocei: com certeza hoje poderíamos ficar sem as noções antiquadas de “bastardos” e “crianças nascidas fora do matrimônio”? Uma criança deveria ser livre para se relacionar com pessoas que não sejam seus pais biológicos; deveria, na verdade, ter uma liberdade de escolha similar àquela dos adultos. E o sexo cumpriria sua trajetória evolutiva, seu crescimento durante os milênios de mero agente reprodutor até seu destino último: o compartilhamento de prazer, afeição, e intimidade entre os seres humanos.

[1] “Cary Grant: Comedy and Male Desire”, CineAction, n° 7, pp. 36-51.
[2] NdT.: Em português, "Para todo o sempre, você estará no meu coração/.... Para todo o sempre, nunca nos separaremos”.
[3] NdT.: No original, cheating, que também significa trapacear, enganar.

On and around My Best Friend’s Wedding é um capítulo do livro Hollywood from Vietnam to Reagan... and Beyond. Tradução: Cauby Monteiro.