O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

As fantasias de Ema


Por Camille Nevers 

O Vale Abraão. A primeira imagem é uma passagem ao ato muito física. Um momento, o vale se abre aos nossos olhos, visto de cima em uma paisagem escarpada com, no fundo, um rio, a voz do narrador se eleva, ele apresenta o lugar ao mesmo tempo que a história tão logo o atravessa, e no instante seguinte estamos sentados no trem que ali penetra. Vale Abraão é um filme erótico.

Mas o erotismo é pouco banal. Sem corpos que se agarram, nem as carícias que eles trocam, nem um único beijo langoroso, tão pouco de nudez revelada, e nenhuma palavra de amor. Parece que não há motivo para colocar o quadrado branco [2].Tudo estaria ligado, na verdade, como nessa imagem de abertura, à intimidade de uma relação entre tempo e movimento: raramente nós pudemos ver uma tal “harmonia”, essa atingida por Manoel de Oliveira na organização musical dos lugares, dos personagens, da narração, dos sentimentos, das sensações que ele coloca ao nosso alcance. Adaptação de uma adaptação de Madame Bovary escrita a pedido do cineasta por uma escritora portuguesa, Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão retraça o percurso de sua heroína que se nomeia igualmente Ema, que casa-se mesmo com Carlos, um esculápio sem relevo de fato, mas Carlos de Paiva. Para se aproximar da mulher, Oliveira toma suas distâncias com o livro (Flaubert não é mencionado nos créditos), mantendo somente um nome do qual foi retirado um “m”. Aliás, nós vemos no começo do filme a jovem Ema ler Madame Bovary, e então ao menos as coisas são claras: o cineasta se interessa mais pela sua leitora que pelo livro do outro... É somente nela que devemos estar atentos, é dela que é feito o filme. Oliveira se inspirando em uma história conhecida de cor, em uma heroína instalada no imaginário romântico, os maneja com um ar experiente nas pontas dos dedos e sobre o qual se torna possível improvisar, para que, do conhecido, surja o novo. Como essa pequena música que cada um tem na cabeça, Sonata ao luar de Beethoven, que literalmente acompanha Ema, e a qual respondem outros “luares” para outros personagens. Se esse filme com esses acentos musicais e formas profundamente femininas encobre todas as gamas de um sentimento erótico, é antes de tudo porque Oliveira permanece obstinadamente um cineasta lírico – e ainda mais se ele filma uma Ema -, bem longe de uma forma de cinema romanesco que frequentemente se assemelha a um livro ilustrado, ou, no melhor dos casos, a um exercício brilhante de estilo no seio do qual a narrativa não tem praticamente outra razão de ser que pontuar uma visão a priori poética. A grandeza do lírico, é que na base de sua imagem sempre lhe é necessário o texto escrito com o qual ele pode, em seguida e à vontade, compor. Um filme concebido como uma música de partitura, mas a partir do livreto.



No Vale Abraão, nós “ouvimos” o livreto apenas pela voz sensual de um narrador invisível, nós “vemos” a partitura a partir dos movimentos íntimos de personagens postos em cena e “sentimos” a música do cinema de Oliveira, tudo ao mesmo tempo. Numa entrevista recente[1]
, Manoel de Oliveira observou que ele era provavelmente o único cineasta ainda vivo (e em atividade) da época do cinema mudo... É sem dúvida por causa disso que o seu cinema, que faz da imagem uma experiência do tempo, um espelho onde o reflexo do personagem vem nos olhar diretamente nos olhos, como uma foto de recordação, é o trabalho contínuo de uma memória no presente. Nisso, ele é o único, verdadeiramente, que nos faz ver a vida e a morte ao mesmo tempo. E é nesse aspecto, acima de tudo, que o filme é absolutamente erótico. Lugar chamado erógeno: o Vale Abraão. A vida de Ema só é apaixonante pois essa não está mais lá no momento em que eu a vejo, já ausente, seus grandes olhos azuis sempre alhures, distantes, e uma perna já rígida (a expressão “ter um pé na cova” encontra aqui a sua bela imagem). Assim, da manca, figura erótica por excelência, Oliveira se apodera também da sua batida musical, Ema manca “no ritmo”, e esse movimento do coxeio marca o tempo do personagem desfasado dos outros, um “estado de espírito que balança” até o último instante de deslocamento no laranjal que se conclui no píer de madeira – um travelling para trás no ponto culminante, um dos únicos movimentos de câmera que a mise en scène se permite.

Contra todas as ideias preconcebidas, no lugar de nos convidar a uma educação sentimental, e ao invés da sedução dos sentimentos, Manoel de Oliveira apela a um cinema das sensações. No Vale Abraão, só há cores (todas aquelas da natureza), sons (todos os do mundo), odores (como os charutos que Ema respira), música, gestos, formas, deslocamentos. À imagem desse quarto arrumado por Maria de Loreto, a mulher de letras, para que seu marido possa receber suas amantes com todo conforto possível, o filme abriga o centro dos sentidos. A fim de que a sensualidade do espaço anime-se em movimento erótico, Oliveira, muito além do simples dispositivo teatral, filma “as entradas e as saídas”... O movimento secreto e perpétuo, a relação sexual que passa da vida à morte, do momento em que entramos àquele que saímos. Vale Abraão poderia se resumir a uma sucessão de entradas em cena, onde fazemos apresentações, como aquela dos três criados na cozinha, e de saídas de cena, como o último olhar pesado que nos dirige a velha tia se benzendo, de chegadas e partidas, como as várias viagens de Ema ao Vesúvio ou o plano inacreditável da partida da muda Ritinha, sua trouxa sobre a cabeça, de idas e voltas amorosas, de idas e vindas nas moradas burguesas. Em Oliveira, toda “entrada no plano” ultrapassa a alusão técnica e se transforma em atividade física: como o momento da chegada de Ema no baile, que marca sua entrada no mundo, sublinhada soberbamente pela maneira com a qual ela “faz sua entrada”, primeiramente em segundo plano, que sucede o instante de hesitação antes de passar ao salão...



Os múltiplos personagens de Vale Abraão se encontram sempre entre duas portas, ou na soleira da porta, de frente para uma janela aberta, no meio de uma refeição, no centro de uma discussão, frente a um espelho, etc. Ema é o corpo feminino do entremeio, entre dois amantes, entre dois lugares, entre sua vida sonhada e a realidade de sua existência, isso lhe dá esse ar inatingível, entre a vida e a morte. Esse movimento se inscreve completamente e com muito humor desde o começo, quando ela caminha da casa de seus pais até o fundo do jardim, voltado para a curva de uma estrada mais abaixo, de onde ela pode enfim “deslumbrar” com sua beleza os motoristas de passagem, a tal ponto que há acidentes graves e “mesmo mortos”… Mas a sociedade dos homens se certificará de pôr em boa ordem essa situação. E é essa “boa ordem”, a própria negação da vida (e da morte), da qual Ema quer se livrar, sem conseguir completamente.



Mas o erotismo de Vale Abraão, eu creio, encobre um último mistério. Aquele do andrógino. A jovem Ema cujo dedo separa e depois se afunda nas pétalas de uma rosa. Ou uma certa alusão à mulher pouco frequentável que Ema teria conhecido no decurso das suas viagens ao Vesúvio. Ou Ema, que contemplando seu jovem amante violinista de costas, acha que ele se parece com uma mulher. Ou então a cena verdadeiramente engraçada durante a qual Ema agrada seu gato sobre seus joelhos, o que perturba tanto Carlos (que traga como um louco seu charuto) que terminará por atirá-lo longe – em cima de nós. Ou ainda o único e último abraço trocado com a silenciosa Ritinha. Sem falar dessa discussão em que se fala do mito platônico do andrógino cortado em dois à procura da sua metade (e da qual o homem conservaria o traço inútil: para quê então servem esses mamilos?). Sem a mínima perversidade, simplesmente com a maior inquietação, o filme de Manoel de Oliveira é do início ao fim colocado sob o signo do feminino, de um olhar feminino pousado sobre o mundo, o olhar de um cineasta que abraça literalmente o movimento erótico infinito do tempo no espaço, e não poderíamos nós dizer que a história é aquela de um tempo antigo que veio visitar o lugar do presente, um cinema que dá vida e realidade às fantasias. Vale Abraão de Manoel de Oliveira é um dos filmes mais belos que existem.

[1]
Entrevista publicada no n° 466 da revista Cahiers du Cinéma.
[2] NdT: Na televisão francesa, é frequente o uso de um quadrado branco para sinalizar a classificação indicativa alta de certas emissões, não recomendadas às crianças e pessoas sensíveis.


Les fantasmes d’Ema foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, nº 469, junho de 1993. Tradução: Letícia Weber Jarek. 

Mercado do indivíduo e desaparecimento da experiência



Por Serge Daney

O sucesso dos reality shows marca talvez um duplo fenômeno de apropriação da televisão pela sociedade e de formatação do indivíduo adequado. O preço a pagar é, todavia, considerável: nada menos que o apagamento da ideia de experiência humana.

Como todo barco que acaba de entender que pode afundar, a televisão se tornou interessante e verdadeiras questões perfilam enfim no horizonte de nosso cátodo exaltado. Algumas destas questões são totalmente sólidas. Por exemplo, em que condições os canais, afim de produzir os seus elos de amanhã (vocês, eu, mas em versões mais dóceis, menos reclamonas), trabalham a partir de hoje nas novas formas de vigilância social? Que papel terá desempenhado a televisão no grande negócio que agita os países ultramodernos, a saber, o estabelecimento de um verdadeiro mercado do indivíduo (que não é talvez mais que um simpático mercado de escravos)?

Pois se a televisão começou por conquistar o mercado, seria ingênuo pensar que esta conquista seria suficiente para produzir a mercadoria adaptada ao mercado, ou seja, o indivíduo “profissional” de hoje. Já há muito tempo, nós assistimos à formatação deste novo herói do nosso tempo: cada vez mais personalizado, credenciado, alfinetado, quer dizer, reduzido ao folclore berrante de sua pequena diferença. Ninguém, evidentemente, pensou esse processo, mas foi possível, há alguns anos, acompanhar alguns desses episódios. O autor destas linhas, por exemplo, se sentiu muitas vezes bem sozinho para garantir este acompanhamento.

Não vamos voltar demais aos episódios conhecidos: A reformulação da equipe da comunicação no sentido de uma des-legitimação progressiva de seus membros[1]. As antigas razões que asseguravam um certo direito de intervir no espaço público (paixão, pedagogia, competência, talento, beleza, raridade) tiveram de ceder o lugar ao mau-comportamento de um mercenarismo vazio mas simpático e sem floreados. Tornou-se constrangedor ser o "Sr. Sabe-Tudo" num meio que edifica seu poder sobre a partilha igualitária da ignorância e da indiferença médias.

Esta des-legitimação atingiu duramente os homens políticos, seres ingênuos que não viram que, de tanto se verem tão belos nas suas "horas de verdade", alimentaram nada menos que o nacional-lepenismo, e apenas ele. Daí os amargos debates: democratização ou consenso? Consenso ou demagogia? Demagogia ou fascisação (frouxa)? O fato é que esta des-legitimação não poupou nenhum setor da "representação social", incluindo jornalistas.

Grosso modo, a sociedade burguesa parou de pagar aos griots da boa vontade a fim de representar seus próprios valores, preferindo, ao velho teatro do dissenso sonoro, as imagens em looping do silêncio consensual. Isso só pode fazer sonhar qualquer um que tenha vivido a crise da idéia de representação, teoricamente maltratada nos anos 1960 e totalmente dilacerada em 1968. Teríamos exagerado? Quem vai repensar tudo isso?A televisão foi o lugar recente desta transição. Foi necessária a política caprichosa e nula dos socialistas franceses para que o bom povo compreendesse enfim que a tevê estava escapando dos notáveis, dos tubarões e dos educadores e poderia se tornar enfim sua própria coisa, quer dizer, tão frívola e indefesa quanto ele. Este é todo o sentido do apoio à La Cinq, transformada em alguma coisa entre Justine e a Santa Cinq depois que ela foi vista, de repente tão humana, informando sobre ela mesma e choramingando (com razão) sobre os seus males e os infortúnios de sua virtude.


A tevê enfim entregue ao povo? Por que não? É, ao menos, o que dizem do lado dos lobinhos da Sygma-TV. Contudo, não se deve acreditar, aqui também não, que uma tal operação possa se fazer completamente sozinha. A tevê não será entregue ao povo a não ser que o povo se torne ao mesmo tempo um "tele-povo", e serão necessários, lá como em qualquer outro lugar, técnicos para trabalhar (e aproveitar) esta mutação. Pois se trata de um grande negócio: a re-formatação do referido povo, a quem é exigido interpretar o seu papel, mas não somente sob a forma de massa inerte, de audiômetro justiceiro, de candidatos imbecis ou de gado que aplaude, mas efetivamente de heróis personalizados.

Daí os programas como La nuit des héros (A noite dos heróis) ou Perdu de vue (Perdido de vista) títulos onde se lê bem a ideia de emergência em plena luz do dia ou de retorno à luz. Pois não se trata evidentemente nestas emissões de qualquer tipo de heroísmo (mesmo os tipos bem paradoxais), mas unicamente de pequenos fait divers que vão no sentido único (e familiar) de uma mitologia da redenção e do segundo nascimento. Na época da new age, é preciso aceitar a ideia de que um tal mito possa ser, em última análise, o único horizonte de uma televisão que, por outro lado, renunciou a quase tudo.

Isso é bom? Isso é mal? É certo, em todo caso, que o resultado não é, esteticamente, "olhável". Também é provável que se isso funciona tão bem, é porque não interessa o olhar (pois existe no olhar uma possibilidade de recuo crítico, de impulso ético ou de veredito estético) mas sim outra coisa. Nada menos que o aprendizado coletivo dos gestos pelos quais uma grande massa de excluídos aprenderá a interpretar o seu papel nos roteiros "personalizados" assegurando que são - enfim! - os seus. Por que não?



Se assim for, é certo que esta mutação põe em crise outras mitologias, aquela do artista, certamente, mas aquela do ator também. Pois o que é um ator senão o homem de uma paixão imemorial, esta paixão de ser um outro que pre(dis)põe alguns entre nós a "assumir", para representá-la, a experiência dos outros?

Este é evidentemente o sentido dos ataques de Patrick Sébastien contra La nuit des héros. No momento em que todos nós somos convidados, com antecedência, a sermos um por um os heróis de nossas próprias vidas (as vidas que agora nós "possuímos" e das quais nós acabaremos aprendendo a vender o copyright), como o ator-imitador profissional não se sentiria ameaçado no seu ser? Chega a ele, na verdade, uma terrível suspeita: seu talento particular interessaria muito menos ao seu público que o não-talento (ou mesmo a nulidade desoladora) destes "heróis" saídos da noite e que, warholianamente, retornam a ela!

A "paixão de ser si mesmo" substituirá, ao termo, a "paixão de ser um outro"? Se trataria de um momento - muito medíocre, mas provisório - da grande história da emancipação humana que, mesmo irregular, seculariza as crenças e individualiza os homens há séculos? É suficiente que, cada vez, se redesenhe as fronteiras entre o mercado profano e o humano profanado, quer dizer a parte de sagrado e de inegociável (chamemos isso de outro) que permanece(rá) sempre no coração do animal humano? Podemos pensá-lo, certamente, mas um pensamento em si sem alegria.





Pois nesta história de mercado do indivíduo, na qual os reality shows americanos são o último sintoma datado, vemos bem o que deve ser perdido e o preço que deve ser pago. Perdida de vista, definitivamente, a ideia de experiência humana. É como se a televisão tivesse sentado, de uma só vez, todo um povo sobre o divã de um psicanalista que trabalharia "em cadeia" (sic) e que, em vez de escutar calado as belíssimas elucubrações do "eu" lendário, aplaudiria o seu cliente desde a primeira sessão lhe dizendo: você é sublime, o que você contou é exatamente o que você viveu, lhe reinterprete na nossa casa estilo-tevê (que é, aliás, a sua casa) e você será curado.

Poderíamos jogar fora tão rápido o bebê da experiência humana com as águas (sem dúvida usadas) de alguns séculos recentes? Isso não parece razoável. Até a uma data muito recente, aquele que, por gosto ou por profissão, fazia perguntas a seus semelhantes sabia que nada é menos facilmente comunicável que uma experiência. É mesmo nesta dificuldade que reconhecemos se tratar de uma experiência. "Foi muito rápido, eu não senti nada (não entendi nada, não vi nada...). Foi depois que... É muito difícil de explicar... Ainda hoje..." são as frases que milhões de gravadores e de toneladas de câmeras registraram durante eras.

E é exatamente porque a experiência escapa - desde que ela seja forte - que houve por tanto tempo mediadores (que vão do santo ao charlatão e do amigo ao traidor) para ajudar a encontrar "as palavras para dizer". E atores para lhe emprestar os seus corpos, artistas para quebrar a cara nesse processo e escritores para concluir, tristemente, como Virginia Wolf: "As experiências da vida são incomunicáveis, e é isso que causa toda a solidão."

Toda experiência que se reduz facilmente ao show de sua realidade não é uma experiência. Ou melhor, não é aquela do sujeito que disse que a viveu, mas aquela do grupo sem ideal, que preferirá sempre o espetáculo retificado e imitável do re-representável ao antiespetáculo íntimo do já-representado. Trata-se da própria possibilidade do "laço social", e não é preciso acreditar que, na época do seu esplendor, Hollywood tivesse feito outra coisa (basta rever os filmes de Sirk).

É então possível que o grande mercado do indivíduo à base de heróis descartáveis e de roteiros como deve ser tenha decidido passar, com a anuência dos interessados, à contra-ofensiva. É por isso que a ideia de verdade subjetiva "salta" um pouco por todo lado na televisão ou aparece como luxo elitista e definitivamente insuportável. É possível mesmo que o cátodo encontre enfim uma missão à altura dos interesses político-mitológicos do grupo France: aquela do catecismo.

Por que "catecismo"? Porque se trata de uma coisa séria, não totalmente cínica e que, como a publicidade, tem a ver com o Bem. Bem do qual os futuros atores da guerra econômica, uma vez evaporado o império (comunista) do Mal, terão necessidade para crer no sentido daquilo que eles fazem. Isso dito, o catecismo não é nem a fé do carvoeiro nem a ciência do teólogo, é um conjunto concreto de procedimentos patetas que transformam suas ovelhas em marionetes aceitáveis de uma crença da qual, há muito tempo, elas não têm mais a experiência.



Neste sentido, o catecismo de La nuit des héros ou de Perdu de vue é a aplicação bem-pensante e sufocada da emoção daquilo que o cinema pornográfico dos anos 1970 foi o trailer um pouco vazio. Por um lado, na verdade, os filmes X se amontoavam quase sempre sobre o "resultado" da experiência sexual (acreditando, os estúpidos, que bastaria vigiar os órgãos ao vivo e espiar o passarinho). Mas por outro, é verdade que estes filmes reconstituíram para o seu público o espetáculo idealizado e tranquilizante de uma foda contínua que tinha a nitidez da fantasia e a inalterável e masculina monotonia do mito.

Do mesmo modo, os reality shows da televisão americana (pois não nos esqueçamos jamais que só existe da televisão que a sua versão americana) substitui a experiência lacunar e o indizível daquilo que foi pelo show plano e contínuo daquilo que terá sido. "O que terá sido” é o resumo estético e o catecismo humanitário do qual terá necessidade todo "mercado do indivíduo". Este futuro anterior (que é, acredito, o tempo próprio ao audiovisual) é ao mesmo tempo retificação do real e visualização do real retificado.

É assim que nossos heróis vão, enfim, ver e saber a o que seria preciso que eles tivessem se parecido quando vierem evocar na tevê os fragmentos de sua biografia. E nós também, infelizmente!, nós vimos: é preciso que eles pareçam com a má tevê, com o mau cinema, com o mau teatro. O preço, parece, é pesado: para estar do lado do Bem coletivo (pois o grupo quer comungar na casa dele, à domicílio, com a sua tevê), é preciso que eles sejam muito ruins (mas terrivelmente humildes).

Diríamos que o catecismo não é a grande-missa e que ele não exige nem receio, nem tremores, nem mesmo "retorno do religioso". Ele quer somente que, clones antecipadamente disfarçados e indivíduos únicos, nós renunciemos para sempre a lembrança de ter vivido o que quer que seja que Pascale Breugnot não possa nos fazer reviver, segurando um pouco a nossa mão. Ou seja, mal, ainda que sob nossos olhos embaciados de gratidão (o que não faríamos para sermos amados!).

Finalmente, por trás da poeira nos olhos da tevê entregue ao povo e do indivíduo retirado de sua noite, ainda assim se trata da forma com qual, na França também, a vila exige o que lhe é devido.

[1] Neste sentido, as desventuras de PPDA (Patrick Poivre d'Arvor, NdT) auto-incrustado em Fidel Castro não podem senão alegrar o espírito).

Marché de l'individu et disparition de l'expérience foi publicado originalmente no jornal Libération, em 20 de janeiro de 1992, e republicado na coletânea La maison cinéma et le monde - Le moment Trafic. Tradução Miguel Haoni e Leticia Weber Jarek.

Montagem, minha bela inquietação



Por Jean-Luc Godard

Isto salva-se na montagem: verdade de James Cruze, Griffith, Stroheim, tal máxima quase já não era a de Murnau e Chaplin, tornando-se irremediavelmente falsa no cinema sonoro. Por que? Porque num filme como Outubro (e mais ainda em Que viva México!) a montagem é sobretudo o propósito da mise en scène. Não podemos separar uma da outra sem correr perigo. Seria como separar o ritmo da melodia. Elena e os homens, assim como Arkadin, são modelos de montagem pois, cada um em seu gênero, são antes modelos de mise en scène... Isto salva-se na montagem: logo, um axioma típico de produtor. O que elevará ao máximo a montagem corretamente realizada num filme de outro modo desprovido de interesse é, precisamente, a impressão deste ter sido expressivamente encenado. A montagem devolverá ao que foi surpreendido ao vivo aquela graça efêmera que o esnobe e o amador negligenciam, ou então transformará o acaso em destino. Há elogio mais vivo que o do público, não importa quem, que a confunde, e com razão, com a decupagem?

Se a encenação é um olhar, a montagem é a batida de um coração. Prever é próprio de ambas; mas aquilo que uma procura prever no espaço, a outra o faz no tempo. Suponhamos que percebo na rua uma moça que me agrada. Hesito em segui-la. Um quarto de segundo. Como exprimir tal hesitação? À questão: "como aproximar-se?" responderá a mise en scène. Mas para tornar explícita esta outra questão: "Irei amá-la?", concordaremos forçosamente a respeito da importância do quarto de segundo durante o qual nascem ambas as questões. Logo, é possível que não caiba à mise en scène propriamente dita exprimir com exatidão e evidência a duração de uma ideia, seu brusco florescimento no curso da narração, mas que isto caiba à montagem. Quando? Sem jogo de palavras, a cada vez que exija a situação, que no interior do plano um efeito de choque demande o lugar de um arabesco, que de uma cena à outra a continuidade profunda do filme imponha através da troca de plano a superposição de uma descrição de caráter àquela da intriga. Vemos através deste exemplo que falar de mise en scène é, automaticamente, já e ainda falar de montagem. Quando os efeitos de montagem prevalecem em eficácia aos de mise en scène, a beleza desta encontrar-se-á dobrada, de seu charme o imprevisto que desvela os segredos através de uma operação análoga a que consiste, na matemática, na colocação em evidência de uma incógnita.



Quem cede à atração da montagem cede também à tentação do plano curto. Como? Fazendo do olhar a peça-chave de seu jogo. Combinar [raccorder] através de um olhar é quase a própria definição de montagem, sua ambição suprema ao mesmo tempo que sua sujeição à mise en scène. É, com efeito, fazer ressurgir a alma sob o espírito, a paixão por detrás da maquinação, fazer prevalecer o coração à inteligência ao destruir a noção do espaço em proveito do tempo. A famosa sequência dos címbalos na versão nova de O Homem que sabia demais é disto a melhor prova. Saber até quando se pode fazer durar uma cena já é montagem, assim como preocupar-se com os raccords faz parte ainda dos problemas de filmagem. Um filme genialmente encenado dá a impressão de um simples passo-a-passo, sem dúvida, mas um filme montado de forma genial dá a impressão de ter suprimido toda mise en scène. Cinematograficamente falando, a propósito, a batalha de Alexandre Nevski não deve nada a Marinheiro por Descuido. Em suma, dar a impressão da duração pelo movimento, do close através de um plano de conjunto, seria um dos objetivos da mise en scène, enquanto seu inverso um dos objetivos da montagem. Improvisa-se, inventa-se diante da moviola como diante do cenário. Cortar um movimento de câmera em quatro pode revelar-se mais eficaz do que vê-lo tal como foi rodado. Uma troca de olhares, para retomar o exemplo de agora há pouco, apenas um habilidoso efeito de montagem poderia exprimi-lo de modo igualmente cortante, quando necessário. Quando em Um Caso Tenebroso, de Balzac, Peyrade e Corentin forçam a porta do salão Saint-Cygne, seu primeiro olhar é para Laurence: "Vamos te pegar, minha cara" - "Não saberão de nada". A brava jovem e os espiões de Fouché adivinharam de um só golpe seu mais mortal inimigo. Esta terrível troca de olhares, um simples campo-contracampo, por sua sobriedade mesma, exprime-a com mais força que qualquer travelling ou panorâmica premeditada. O que se trata de exprimir é quanto tempo durará a luta e sobre que terreno esta irá se desenrolar. A montagem, consequentemente, ao mesmo tempo em que a nega, anuncia e prepara a mise en scène; uma e outra são interdependentes. Encenar é maquinar, e de uma maquinação diremos se está bem ou mal montada.

Eis a razão em dizer que um realizador deve supervisionar de perto a montagem de seu filme, o que equivale a dizer que o montador também deve deixar o cheiro de cola e película pelo calor dos refletores. Perambulando no set de filmagem, veria sobre o quê exatamente aflui o interesse de uma cena, quais os momentos fortes e fracos, o que incita a troca de plano, e não cederia portanto unicamente no corte à tentação do raccord no movimento, a b c da montagem, admito, mas à estrita condição de não utilizá-lo de forma mecânica demais, como faz, por exemplo, Marguerite Renoir, que dá frequentemente a impressão de cortar uma cena justo quando a mesma está ficando interessante. Tais seriam os primeiros passos, com o tempo, de montador a cineasta.

Montage, mon beau souci foi originalmente publicado na revista Cahiers du cinéma, n° 65, dezembro de 1956. Tradução: Eduardo Savella.

Três mortos


Por Jean-Claude Biette

CHAPLIN

Graças ao cinema, Chaplin, que acaba de morrer dia 25 de dezembro, teve mais espectadores que Ésquilo, Shakespeare, Molière, Racine, Claudel ou Brecht. Antes da multiplicação dos aparelhos de televisão, Carlitos era uma das primeiras pessoas que uma criança deste século conhecia, imediatamente depois de seus pais. Mas sem dúvida frequentemente a criança preferia o Gordo e o Magro, que interpretavam muito melhor a comédia do papai e da mamãe, e nos filmes em que podiam ainda reconhecer todos os membros de sua família. Mas Chaplin é o cineasta que melhor fez passar o espírito da infância nos sombrios assuntos dos adultos. Ele não se dirige às crianças, ele se faz de criança para que todos os adultos que sofrem e que estão enredados nos dramas da vida social assistam ao espetáculo da agilidade de um indivíduo que foge e não triunfa a não ser pela artimanha e o cinismo da exploração, das perseguições e da pobreza. Os filmes de Chaplin são, no fundo, o resultado de uma análise desencantada da vida: que ele chore, que ele ria, ou que ele suspire diante de uma mulher, ele interpreta sem cessar e não esquece nunca, durante pelo menos um décimo de segundo, de olhar para a câmera, quer dizer, para o espectador, para lhe pedir que acredite em seu jogo. À exceção talvez de O grande ditador, ele nunca idealiza seus combates. Fizemos de Carlitos uma espécie de Dom Quixote, mas ele é mais Ulisses, Renart ou Panurge. Sua primeira obra-prima de longa metragem, O circo, 1928, muito superior a Em busca do ouro, 1925, conduz a filmes cada vez mais profundos, onde o cinema se impõe com cada vez mais fluidez até à leveza sublime de A Condessa de Hong-Kong. Luzes da ribalta é o mais belo filme feito sobre o espetáculo e sobre a vocação artística e Monsieur Verdoux é um definitivo "Não se deixem enganar!", oposto a todos os valores sociais. 

Podemos pensar que sem Carlitos, Renoir e Pasolini não teriam talvez sentido a mesma urgência de fazer filmes. Cineasta menor que Mizoguchi, Chaplin é, no entanto, o único a ter filmado todas as emoções, e ele foi provavelmente o único ator a ter interpretado todos os papéis, inclusive a sinceridade, com tanta arte. 

HAWKS

Morto um ou dois dias depois de Chaplin, Howard Hawks simboliza a livre iniciativa americana, diante da grande máquina contra a qual Chaplin igualmente se batera. Hawks era unido ao dinamismo confiante dos USA. Sua obra afirma a sua certeza e ignora a crítica. A glória de Hawks na França é obra de Rivette, de Rohmer e dos cineastas-críticos da Nouvelle Vague. Esta glória repercutiu nos USA. E é pouco surpreendente que um cineasta que fez de tudo para ganhar sua independência em Hollywood, como produtor e diretor, tenha feito uma grande quantidade de filmes que dão o testemunho de suas qualidades de lutador e de lógico.

Muito mais que Chaplin, Howard Hawks simboliza, com Hitchcock, a cinefilia, fenômeno que consistia em descobrir e defender cineastas desprezados pelo conjunto da crítica. Pouco a pouco celebrávamos Hawks por ter dado a cada gênero sua obra-prima. Isto é, visto de perto, um pouco inexato. Rio Bravo, 1958, não é o mais belo faroeste do cinema americano (podemos preferir a ele um Ford, um Dwan, um Walsh, um Fuller, um Nicholas Ray ou um Boetticher); Águias americanas, filme de guerra de 1944 é menor que Fomos os sacrificados, filme da mesma época de John Ford, e O inventor da mocidade não eclipsa as comédias de Lubitsch, de McCarey ou de Minnelli, e porém Howard Hawks é um dos muito raros cineastas a ter acertado em todos os gêneros. No entanto a noção mesma de gênero marca o caráter relativo de seus sucessos: sua grandeza no relativo o impediu por vezes de considerar o risco de afrontar o absoluto. Este risco foi, no entanto, assumido uma vez em Terra dos faraós, filme extraordinário em que o relativo confessa seus limites: o trabalho, desta vez, conduz a um gigantesco dispositivo sepulcral.


A força de Hawks é o seu senso do concreto, do pequeno detalhe que constitui o funcionamento do todo, e a justeza do tempo de seus filmes. Se há ironia ou derrisão, não é Hawks que lhes inclui: elas não provêm de nenhum outro lugar a não ser da pouca importância no absoluto do desafio que anima estes personagens que vivem plenamente o relativo, mas que, sobretudo, não querem sair dele. A grandeza nasce da modéstia de uma mise en scène purificada de qualquer elemento simbólico. E é isso que levou tanto tempo para descobrir. Nesta obra que não evoluiu, nem progrediu, eu proponho a minha escolha: O código criminal, 1931; Scarface, 1932; Vivamos hoje, 1933; O paraíso infernal, 1939; À beira do abismo, 1946; Rio Vermelho, 1948; O rio da aventura, 1952; O inventor da mocidade, 1952; Terra dos faraós, 1955; Rio Bravo, 1958; e Faixa Vermelha 7000, 1966... alguns filmes inesquecíveis que é preciso rever tentando esquecer os discursos humanistas sobre a amizade viril e a grandeza do profissionalismo sob os quais a maioria dos críticos afogam ainda a obra de Hawks. E nesta escolha os maiores: Scarface, A beira do abismo, Rio Vermelho, O rio da aventura, O inventor da mocidade, e Terra dos faraós, estes só carregam esse traço com a maior ambiguidade. Poderemos reler com circunspecção "Gênio de Howard Hawks" de Rivette, "H.H. ou o irônico" de Comolli e "Velhice do mesmo" de Daney. Mas o mistério Hawks, para mim, nunca foi esclarecido... 

TOURNEUR

Precedendo na morte Charles Chaplin em uma semana, Jacques Tourneur teria passado despercebido durante toda sua carreira. As histórias do cinema consagram páginas ao seu pai Maurice, que era considerado por Griffith como um grande cineasta, mas se elas mencionam o nome de Jacques é apenas ligeiramente. Se houver a chance de os reencontrar, é preciso reler as excelentes entradas de Eisenschitz na "Enciclopédia do Cinema" assinada por Roger Boussinot, e os artigos de Louis Skorecki, alias Jean-Louis Noames, nos Cahiers.

Depois de ter sido montador dos filmes de seu pai e de ter realizado quatro filmes na França, Jacques Tourneur emigrou em 1934 aos U.S.A., encontrou trabalho na M.G.M., fez uma vintena de curtas-metragens narrativos, depois em 1939 seu primeiro longa-metragem americano série B (menos de 80 minutos), They all come out, filme sobre as prisões. Depois de três outros filmes nunca lançados na França, ele começa a sua colaboração na R.K.O. com o produtor Val Lewton, que resulta em seus três grandes filmes: Sangue de pantera, 1942; A morta-viva, 1943; e O homem-leopardo, 1943. Lembremos que Sangue de pantera, rodado em 21 dias com 130.000 dólares, primeiramente detestado pelos responsáveis da R.K.O. e finalmente lançado com um contrato de uma semana no Hawaï Cinema, ultrapassa as receitas de Cidadão Kane, fica treze semanas em cartaz, rende um milhão de dólares e salva naquele ano a R.K.O. Depois destes três filmes, a R.K.O. o leva a fazer Quando a neve voltar a cair, primeiro filme de Gregory Peck, 1944, e Idílio perigoso, 1944 - dois filmes de grande orçamento - então o "empresta" (estes são os termos de J.T.) à Universal para fazer um faroeste de grande orçamento, o magnifico Paixão selvagem, 1946. Tourneur volta à R.K.O. e faz Fuga do passado, 1947. Ele mesmo me disse ter recusado várias vezes rodar este filme policial cujo roteiro não lhe agradava até que todas as modificações que ele queria fazer tivessem sido aceitas: ao contrário do que se pode ter dito, ele é totalmente responsável por este roteiro. Em seguida, realiza Expresso para Berlim, 1948, comparável na sua proposta a Alemanha, ano zero de Rossellini. E para citar somente seus filmes mais marcantes: O testamento de Deus, 1949, inédito na França e que podemos, graças a Patrick Brion, esperar ver na FR3, filme preferido do próprio Tourneur; O gavião e a flecha, 1950: o sublime A vingança dos piratas, 1951; O gaúcho, 1952, belíssimo filme contemplativo com Gene Tierney; o desconcertante Almas selvagens, 1953; Choque de ódios, 1955; Pelo sangue de nossos irmãos, 1956; e em 1957 o relativamente célebre A noite do demônio, que podemos ver de tempos em tempos na Cinemateca. Depois disso, filmes claramente menos bem sucedidos: Fabricantes do medo, sobre a manipulação da opinião publica pelas pesquisas, 1958, que amaríamos ver na França, e Timbuktu (Tombouctou, na Bélgica), 1958. O Gigante de Maratona, 1959, tem algumas cenas bonitas. Em 1963, Farsa trágica, comédia macabra com Peter Lorre e Vincent Price, e em 1965 seu último filme, Monstros da cidade submarina, baseado no poema de Edgar Poe, "City in the sea", inédito na França e lançado na Itália em 1968. Jacques Tourneur realizou igualmente dramas de televisão dos quais o mais conhecido é Um chamado na noite, 1962, que Daney viu nos U.S.A., bem como uma série, Northwest Passage, 1959, da qual J.T. realizou oito episódios. (Para mais detalhes remetemos ao número 181 dos Cahiers e ao número especial de Présence du cinéma consagrado igualmente a Allan Dwan, onde figura uma filmografia estabelecida por Simon Mizrahi e comentada por J.T., números difíceis de encontrar, bem como a reunião realizada por Bertrand Tavernier na Positif n° 132).


À exceção de O testamento de Deus, que Tourneur teve tanta vontade de fazer que não viu inconveniente em receber o salário de um iniciante, todos os seus filmes foram filmes de encomenda. Tourneur era conhecido por fazer com nada filmes que se sustentavam. É o mínimo que poderíamos dizer dele. Tomado em Hollywood por um pequeno artesão, para não dizer um tarefeiro, hoje que as glórias terrestres da Meca do cinema estão desaparecidas ou mortas, a obra de Jacques Tourneur, solitária, modesta, sem brilho, revelou isto: enquanto que o cinema de Hawks é um manifesto da evidência (cf. texto de Rivette) e se afirma pela justeza (das relações, do jogo dos atores, das ações, do ritmo etc.), o cinema de Jacques Tourneur é um manifesto da verdade que se esconde no próprio cinema. Nada é camuflado: os elementos mais desprezíveis (segundo os outros) ou os mais pobremente convencionais (na minha opinião) aqui tem seu pleno emprego e seu recado para dar. Mesmo o vazio das convenções ou das censuras fala, aqui. Nos tempos mortos dos filmes de J.T., é a vaidade de Hollywood que se desnuda. 

Seu cinema repousa sobre a crença no invisível, que começa por se identificar ao espaço e aos sons em off para atrair até ele a linguagem supostamente pertencente ao reino dos mortos, aos fantasmas, ao além, e que o cinema é capaz de fazer dialogar com o visível, com os limites do quadro e com uma certa familiaridade psicológica exprimida pelos atores. Jacques Tourneur fundou seu cinema sobre esta troca que era para ele coisa natural, e na qual chegaram no fim de suas vidas Dreyer, Fritz Lang e Mizoguchi.


Posfácio


CHAPLIN

Podemos, talvez, ser surpreendidos ao ver que eu falo de Jacques Tourneur mais do que de Hawks e de Hawks mais do que de Chaplin. É que pela própria natureza de seu gênio e pelo eco universal que provocou antes e sobretudo o ator, Chaplin ultrapassa os problemas específicos do cinema. Se frequentemente os espectadores não enxergam reais diferenças entre os primeiros curtas metragens de Carlitos e, digamos, Tempos modernos, de Charles Chaplin, mas lamentam no curso dos anos um enfraquecimento da força cômica, não é o mesmo para quem é sensível a todos os elementos que entram na composição de um filme. E, contudo, os historiadores do cinema e os escritores terão escrito páginas e páginas sem nunca se dar conta do gênio cinematográfico de Chaplin: nós perderemos, então, tempo lendo-os. Vale mais ir imediatamente aos textos luminosos de André Bazin[1]. Chaplin é aqui desembaraçado da papa humanitária onde o mergulhamos habitualmente e reaparece ácido, seco, malvado e agudo. A grandeza deste cinema, seu sucesso imenso vem (na condição de que o sucesso obedeça a uma causa) do fato de que Chaplin vai e vem entre a vida e uma representação que a reenvia sem cessar a essa mesma vida, e que ele joga igualmente com o riso e as lágrimas que provoca, e que são poucas as linguagens tão universais quanto esse jogo com o riso e as lágrimas quando aquele que assim se arrisca descobriu as suas regras (como o grande McCarey, o inventor, entre outros, da dupla o Gordo e o Magro). Mas a dificuldade começa para os espectadores quando eles precisam aceitar que Carlitos o personagem se torna Chaplin o cineasta e para os críticos quando se trata de saber a partir de qual filme e de que forma o cinema é realmente posto em contato com uma visão do mundo e dos homens encarnada até ali num só ator, único verdadeiro protagonista, e como Chaplin desenvolve em termos concretos este progressivo alargamento de sua visão.


HAWKS

Compreenderemos melhor esta inversão de perspectivas sendo mais precisos: os filmes de Hawks manifestam melhor a especificidade do cinema que aqueles de Chaplin. Trabalhando sobre um material tematicamente e dinamicamente muito limitado: homens que aceitam correr toda forma de riscos (mesmo aquele de morrer) para exercer corretamente sua profissão. De filme em filme as profissões mudam, o cenário muda, a atmosfera muda, mas o drama permanece o mesmo: como viver plenamente o presente sob o risco de roçar a morte. O que significa, cinematograficamente falando: como, sem jamais dar ao espectador a impressão de uma ausência (por onde se insinuaria a dúvida, o desespero, o medo, ou o pânico), ocupar plenamente um plano e manter constantemente esta impressão de equilíbrio. A acumulação dinâmica do plano ameaçada por um acidente ou uma catástrofe, que chega por vezes, mas que é reabsorvida, foi sempre a grande preocupação (nunca vivida como um drama) de Howard Hawks. Nenhum tempo, nenhum suspiro são deixados de fora, noutra parte que forneceria um espectador que poderá recorrer ao seu conhecimento e à sua experiência da vida. Não pensamos jamais vendo seus filmes: como é belo! Como é emocionante! Mas: como isso funciona! Como é harmonioso! É disto que Rivette dá conta quando fala de evidência. Era lógico que uma revista de cinema que se propunha o objetivo de compreender o cinema, quando este era tomado como uma distração secundária e quando, no melhor dos casos, Hollywood era vista com comiseração diante da sutil Europa, se centrasse mais nos filmes de Hawks que naqueles de Chaplin. Chaplin foi sempre uma barganha para aqueles que queriam se gabar do texto em torno do cinema. Hawks é uma pedra de toque para aqueles que querem falar do cinema. Hoje que o cinema é ensinado em todas as universidades e que ele é enfim imposto como uma arte florescente, no momento mesmo em que ele perde toda a grandeza, é preciso quebrar as barreiras da rede de distribuição contra as quais a maioria da crítica relaxa esperando a sua quase cotidiana ração de códigos ou de ideias que ela ousa chamar de vivo e de humano e, se é verdadeiramente o cinema o que queremos compreender, em vez dos problemas abstratos impostos pelas mass-media, tentar descobrir o que, em não importa qual espaço de distribuição, é do cinema.


TOURNEUR

Diante do silêncio dos historiadores e dos críticos no seu conjunto - existem raras e preciosas exceções - o melhor é não procurar justificar o lugar acordado aqui à Jacques Tourneur. Podemos acrescentar, no entanto, que no todo do cinema americano, ele foi o único (mais radicalmente ainda que Nicholas Ray) a mimetizar totalmente a identificação ao cinema e à sua estrutura circunstancial, ao ponto que nenhum elemento nos seus filmes se sobrepõe a outro. Em grandes artistas como McCarey, podemos, nesta perspectiva, perceber ainda a importância da interpretação dos atores. Nos filmes de Jacques Tourneur cada elemento deve se fundir no todo que forma o filme e exprimir o lugar que ele ocupa. Os personagens vão assim para o anonimato e descobrem que são intermediários: é o que a mise en scène se ocupa em fazer sentir. Ela superpõe à maquinaria hollywoodiana um revestimento ficcional tão fortemente carregado de sentido quanto adequado e transparente. A totalidade da obra americana de Tourneur constitui, de maneira discreta, o grande negativo do cinema hollywoodiano entre 1940 e o seu declínio por volta de 1957, que coincide entre outras coisas com a saída de Fritz Lang dos U.S.A., com a mudança radical de tonalidade em Hawks após Rio Bravo etc... 


[1] Charlie Chaplin por André Bazin + 1 texto de Eric Rohmer sobre A Condessa de Hong-Kong, Editions du Cerf, n° 57.

Trois morts foi originalmente publicado na revista Cahiers du cinéma n° 285, fevereiro de 1978, e republicado na coletânea Poétique des auteurs, p. 28-33. Tradução: Miguel Haoni.