O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Cedo demais tarde demais


Por Serge Daney

Recebidas as 1725 páginas do Dictionnaire du cinema de Jacques Lourcelles, belo calhamaço da coleção “Bouquins”, muito superior aos dois tomos precedentes (assinados por Jean Tulard) que eram nulos. Trinta anos depois, a altivez do tom e a segurança do gosto do Mac-Mahon estão intactas e sentimos o autor muito orgulhoso de não ter mudado nunca de opinião sobre o essencial e de sentir que esta opinião, hoje, não tem menos chances que ontem de ser seguida. Para Lourcelles, o cinema permanece esta arte que não foi tão plenamente realizada – de uma vez por todas e com o sucesso popular que conhecemos – quanto na era do sonoro e no quadro dos estúdios. Desde meados dos anos 1960 reina o voluntarismo de um cinema moderno autoproclamado que, não cessando de “se procurar” e de “não se encontrar”, merece, por isso mesmo, o mais profundo desprezo (a maneira como Godard e Antonioni são dilacerados é quase engraçada).

Este dicionário é perfeitamente adaptado à situação atual, na medida em que é a melhor introdução possível a este “cinema clássico” (1930-1960) que, como por acaso, é aquele que nós continuamos a consumir e a frequentar, nem que seja porque a televisão (onde está se formando uma cine-video-cabo-filia) o retransmite massivamente. É como se Lourcelles tivesse esperado – com um risinho de superioridade que eu não consigo gostar – o sinal do momento em que o consenso atual permitido pela televisão iria reviver o antigo consenso das salas de cinema. História de retorno do mesmo, sob a forma de listas, de catálogos e de dicionários arqui-revisados e arqui-corrigidos, estabelecidos para a eternidade e com todo conhecimento de causa.

O grande público real das salas de ontem tinha bom gosto, mas graças a um tal dicionário, o grande público potencial dos videocassetes se arrisca a ter ainda mais bom gosto que seus avós! Pois podem ver o que eles viam mal e saber o que eles mal sabiam: o talento subestimado dos Tourneur, dos Matarazzo, dos Naruse, dos Ulmer e dos Fregonese não lhes escapará. E é verdade que a sensibilidade de Lourcelles é a mais justa do mundo. Ele nunca erra a nota, o timbre, a tonalidade. Ele “sente” justo. E o que ele escreveu sobre Hitchcock e Bresson prova que diferente de certas penas do primeiro Mac-Mahon, perturbadas pela virilidade sol(it)ar(ia), Lourcelles, cinéfilo maduro e macerado nos limbos do seu próprio saber, sabe o que significa ter esquecido de viver a sua vida (ou de fazer uma obra) sob o pretexto de que os outros já tinham obtido êxito nas suas.



O que me incomoda, no fundo, neste livro indispensável? Eu não reprovo a Lourcelles os seus gostos, que são mais ou menos os meus (como não assinar embaixo do seu artigo vibrante sobre o vibrante À beira do mar azul?). Eu não lhe reprovo mesmo ter uma concepção fechada do cinema, por que o cinema, para mim também, acabou (quer dizer, pode ser que suas metamorfoses não sejam infinitas). Eu tento antes adivinhar o perfil moral de alguém que eu não conheço, que era, como eu, um jovem no momento das sublimes últimas explosões deste cinema “clássico” (O sepulcro indiano, Sete mulheres, Gertrud, nossas últimas cruzadas) e que, apaixonado para sempre por essa evidência, deve ter decidido que sua vida consistiria em celebrá-la e dela se alimentar, numa indiferença desdenhosa pela sua época. Poderíamos boicotar esta época e a considerar a este ponto tão indigna? Lourcelles pôde. Eu não.

Finalmente, Lourcelles me faz pensar em alguém que teria deixado passar a sua vez. De onde temos, pelo menos, um paradoxo: pois este homem a quem parece enojar toda falha à saudável virilidade criadora (fiel aqui ao velho tema de direita do otimismo clássico oposto à impotência moderna) só produziu este grande livro, balanço impecável do que foi jogado – e ganho – sem ele. E sem nunca ter precisado dele.

Trop tôt trop tard
foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 3, em 1992 e republicado no livro La maison le cinéma et le monde - Le moment Trafic, p. 108-109. Tradução: Miguel Haoni.