O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A beleza do mar




Por Sylvie Pierre

Uma vez os temores noturnos dissipados na luz do dia, os mistérios uma vez volatilizados em esclarecimentos prosaicos, ou minados pela ironia e o ceticismo, permanece o fato de que temores e mistérios foram sentidos como tais. Dessa memória do obscuro que resiste ao luminoso, dessa remanência de impressões no momento em que a realidade as substituem, o cinema – ao contrário da vida –, é perfeitamente livre para regular os efeitos, posto que decide por si até onde ele quer tornar impressionante a impressão, real a realidade.

Usufruindo desta liberdade, Jacques Tourneur tomou o partido mais incomum. O de opor, na maior amplitude de suas forças respectivas, dois sistemas irredutíveis de significações que podem dar conta do que é visto e ouvido no filme. Primeiro, a realidade das impressões. Os medos e os deslumbramentos de Betsy, subjetivamente justificados (pois a torre é realmente assustadora, o choro de Alma na noite sinistro, o rosto de Jessica apavorante, o mar belo), não o são objetivamente: a torre não é senão uma torre, os olhos de Jessica são somente marcados.

Em seguida, a realidade de dois sistemas de causas e efeitos: um pelo qual uma doença orgânica engendra uma doença mental, o outro em que uma maldição faz de um ser um zumbi.

Objetivo-subjetivo, natural-sobrenatural; ambos os pares, formados retoricamente a partir de uma mesma clivagem do racional em dois, são tratados no filme em rigoroso paralelismo quanto a suas potencialidades dramáticas. Que tal a beleza do mar na realidade? Que tal o zumbismo de Jessica? A resolução do problema não importa; somente conta o que dão a ver seus elementos quando confrontados. Jessica, doente mental, é o mar sem beleza: uma asserção pobre, um passatempo estreito para o jogo dos signos e do significado. Mas a outra alternativa não é menos indigente, pois faria de Jessica um zumbi e do cintilar do mar seria desferida a maravilha, em uma univocidade plana do maravilhoso. Mas duas Jessicas possíveis (e por que não três, posto que nada nos impede de pensar que Jessica só se torna um zumbi no final do filme?), e a beleza do mar em questão, eis que neste acúmulo a poética tira seu proveito, quando não sua lógica.

A abordagem do filme é inteiramente baseada nesse entesouramento inteligente (pois economicamente frutífero) de possibilidades.




Nesse sentido, a montagem paralela do final de A Morta-Viva, que mostra por um lado Jessica se dirigindo ao Houmfort e por outro o feiticeiro atraindo para si a boneca feita à semelhança de Jessica, infringe todos os clichês de sintaxe em vigor na “cine-língua”. Montagem jogando ao mesmo tempo “de facto”, com suas possibilidades de ditatura lógica (aqui somos irresistivelmente levados a estabelecer uma causalidade entre os dois grupos de gestos), e “de jure”, de caráter abusivo, com esta ditadura que ela autoriza sutilmente o espectador a descobrir.

Poeticamente, as belezas obtidas são exemplares, como essa rima imagética entre a flecha arrancada por Wesley do peito de São Sebastião e a agulha com que o feiticeiro perfura a efígie de Jessica, rima ela própria retomada um pouco mais tarde, com a imagem do tridente plantado por um pescador no ventre luminoso de um peixe. Ou então esse contraponto obtido pelo jogo alternado de dois movimentos: o de Jessica caminhando como se deslizasse e o da boneca puxada por um fio – rígido e linear – ao qual se opõe a flexibilidade sinuosa dos gestos do feiticeiro (visivelmente possuído por um deus da dança que o apressa).

Aproximações, simetrias, repetições, escapadas, assonâncias: o todo avança, em nada dramaticamente, rumo a uma espécie de floculação poética, conclusão sem desenlace.

Além do mais, como se poderia falar em progressão dramática ou de desenlace quando, como em A Morta-Viva, a narrativa se rompeu no curso do filme? No início, Betsy ainda parecia dominá-la. Com as memórias que ela escolhia evocar, a potência de sua voz por si só distribuía, em ordem, as circunstâncias, os alicerces descritivos, os episódios, as articulações. Em suma, acreditávamos estar lidando com esse tipo conhecido de narrativa-memória em primeira pessoa, em que o herói se vê delegado em algum momento da soberania ordenadora do contador de histórias. Mas a convenção aqui não é mantida por muito tempo. No momento mesmo em que ela parece continuar a agir (a reflexão de Betsy sobre os rochedos, descobrindo seu amor), ela se encontra sutilmente minada, posto que na verdade trata-se para Betsy, neste momento, de confessar sua implicação definitiva enquanto ator em uma ação que ela não terá, a partir de agora, o tempo livre para relatar. A câmera, então, encarrega-se sozinha da narrativa. E da terceira pessoa – modo de narração definido até o momento e ainda próprio essencialmente ao ritual da narrativa – passamos a uma espécie de não-pessoa para além dos próprios atores: o epílogo musical de um encantamento impessoal. Neste momento não há mais narrativa.

“Quando narramos o mundo, ele não é inexplicável”. Reciprocamente, quando ele não é, como aqui, explicado, o mundo não é narrável.

La beauté de la mer foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, nº 195, novembro de 1967. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

Retorno à Stromboli




Por Alain Bergala

Seria Eric Rohmer o mais livre dos nossos cineastas? Em um momento no qual o mais medíocre dos filmes standard esconde sua vaidade debaixo de um verniz impecável de profissionalismo técnico, no qual qualquer um sabe decupar uma cena com um número suficiente de complicações inúteis para dar a ilusão de ser um profissional, Eric Rohmer escolhe retornar à fonte primeira da sua arte, ao lado do Rossellini de Stromboli. Se lembrarmos de sua profissão de fé na entrevista que abre o Le Goût de la beauté[1]: "O essencial não é da ordem da linguagem mas da ordem do ontológico." Teria Rohmer sentido, após seus últimos filmes, que o seu cinema era ameaçado por um progresso na ordem da linguagem que arriscava afastá-lo, mesmo que apenas tendencialmente, do essencial, e que ele precisava, de uma certa forma, retornar a suas origens cinematográficas? Não seria nenhuma surpresa vindo de alguém que sempre afirmou que o melhor a se fazer para ir em frente na arte era guardar seu laço com o passado. Acontece que esse dito passado, hoje, não é nada menos que a moda. Também Raio Verde aparece para nós, em uma paisagem onde 99% do cinema está do lado da linguagem, ou da simulação, como decididamente contra-corrente e ao mesmo tempo, com Thérèse de Alain Cavalier, um dos filmes mais vivos do ano.

Contrariando os seus hábitos, pelo menos desde A colecionadora, Rohmer realizou "para relaxar", disse ele, esse "filme de férias" largamente improvisado, onde "tudo se passou oralmente, sem o intermédio do escrito", organizando apenas uma trama geral, os horários das estradas de ferro e das marés, um equipamento de 16mm. É impossível não nos impressionarmos desde as primeiras imagens do filme, pelo seu frescor, e não há outra palavra, um filme onde a simplicidade é restituída às pessoas (atores e não-atores) e às paisagens filmadas, a evidente inocência preservada algumas vezes no cinema amador. Em O Raio Verde, nunca temos a impressão que as coisas e os seres filmados estão lá para a câmera, mas é a câmera, da forma mais simples do mundo, que está ali, diante das coisas.

Dentro da melhor tradição rosselliniana, foi necessário para Eric Rohmer, para levar a cabo uma tal empreitada que o desvinculasse do cinema da escritura e da maestria, um assunto privilegiado que não poderia ser outro que não o seu próprio método. Depois que ele partiu, com seu filme e sua pequena equipe, sem plano de trabalho restritivo, ao encontro do seu assunto e da França das férias, ele precisava de uma personagem vagante, em busca de encontros, mas que não conseguia se estabelecer em nenhum ambiente ou em nenhuma relação. Ele contou então a história de uma jovem mulher para quem nada acontece durante uma hora e meia. E desde que ele escolheu Marie Rivière para interpretar sua personagem, ele retomou Delphine mais ou menos onde ele havia deixado Marie no fim de A Mulher do Aviador.

O Raio Verde descreve um caso de solidão contingente – muito contemporânea – que não tem nenhuma semelhança com a solidão essencial, constitutiva, de personagens como aqueles de David Goodis ou de Emmanuel Bove. Se Delphine se encontra, de repente, confrontada com a solidão, às vésperas de suas férias de verão, é quase por acidente, como resultado de dois abandonos consecutivos: o seu relacionamento com um homem acabara de terminar, e uma amiga com a qual ela planejava viajar cancelou na última hora. Depois dessas duas quebras no seu funcionamento afetivo e social habitual – ela tem visivelmente muitos amigos e toda uma rede de relações – Delphine descobre a solidão como um curto-circuito. Existe sem dúvida um germe longínquo deste roteiro na cena de Noites de Lua Cheia na qual Pascale Ogier, que acaba de realizar seu projeto de se encontrar sozinha em seu apartamento parisiense, telefona em vão a todos os rapazes que ela conhece buscando encontrar alguém disponível para passar a noite com ela. Em um registro completamente diferente, Delphine tem também uma maneira estranha de lidar com essa solidão inesperada. Ela decide, a partir dos conselhos carregados de bom senso de suas amigas, que é preciso "agitar" as coisas, encontrar as pessoas, e quem sabe – talvez – o amor. Mas tem algo nela que resiste a essa decisão banal de reagir contra a sua solidão. Ela vai percorrer a França das férias de verão de um lado para o outro para tentar escapar disso, mas a cada encontro ela vai fugir. Na verdade, Delphine está constantemente se protegendo daquilo que ela parecia procurar. Basta que um homem se aproxime ou que alguém se interesse por ela que ela parte rapidamente em retirada. Mais de uma vez o espectador pode se sentir irritado, pois Delphine aparentemente recusa, mesmo quando algo a faz sorrir, tudo aquilo que ela encontra pelo caminho que poderia levá-la a se aproximar daquilo que nós acreditamos ser o que ela procura.




A respeito disso, a abordagem de Delphine da sua própria solidão e a sua relação com outros (na linguagem, no social) permite Rohmer redistribuir de maneiras inesperadas seus trunfos. A tal ponto que Raio Verde é, no momento, uma exceção em sua série de Comédias e Provérbios, e, olhando para o conjunto da sua obra, em alguns aspectos, o filme nos lembra um outro "inclassificável", O Signo do Leão. Normalmente, se eu ousar dizer, a figura central do filme rohmeriano é uma personagem que constrói para si, com a atração das palavras, um projeto declarado que a ironia da realidade se encarregará de realizar por ela (e contra aqueles que ela talvez secretamente desejou os atos mais inconfessáveis: Os Contos Morais) ou sabotando, e a levando de volta ao seu ponto de partida (Comédias e Provérbios). Contrariamente a esses dois cenários, a convicção que eu tive ao final do filme é que Delphine, muito lucidamente, tinha consciência, desde o começo, de seu verdadeiro desejo: encontrar o homem da sua vida e não qualquer outro. Isso que nós podemos apreender, ao longo do caminho, pelas hesitações ou caprichos, era nada mais que uma fidelidade incorruptível a seu desejo teimoso e nunca formulado, que o espectador não pode de fato compreender até que o filme tenha terminado. Existe uma espécie de integridade na espera sentimental de Delphine: deve ser Ele, com "E" maiúsculo, ou nada.

Pois esse Raio Verde é um grande filme de espera, no sentido que Rossellini pode dizer ao crítico Eric Rohmer, em 1954: "Eu sei como uma espera é importante para chegar até um ponto, então eu não descrevo o ponto, mas a espera, e eu chego de uma vez à conclusão." A espera, aqui, dura 1 hora e 30, e o ponto deve corresponder aos dois sublimes minutos adicionais que, quase por acaso, completam o filme de 1 hora e 32.

O sublime destes dois últimos minutos, que fazem com que os espectadores, eu não tenho nenhuma dúvida, saiam da sala com seus olhos molhados de lágrimas e expurgados de paixões adolescentes adormecidas em cada um, assegura que mudemos de rumo de repente, passando disto que poderia ser nada mais que uma emoção fácil de fotonovela (uma jovem, após provar de maneira passageira a solidão, encontra o grande amor) ao sentimento metafísico de uma escolha designada por uma espécie de milagre cósmico.




A revelação final, contrariamente daquilo que se passou nos outros filmes da série, não é da personagem (eu penso que Delphine sempre acreditou nesse momento) mas do próprio espectador que entende de repente, como no último minuto de Viagem à Itália, que ele estava interpretando mal todo esse tempo o que estava em jogo e o alcance real daquilo que ele estava vendo: o que poderia, no comportamento irritante de Delphine, de suas sapateadas, confusões e repetições neuróticas, preparar de fato, sorrateiramente, as condições para a graça final. Eu conheço poucos filmes, onde o espectador pode como neste alternar, a propósito da mesma personagem, de um incômodo resistente (nós podemos facilmente detestar Delphine em cenas como a da refeição) às lágrimas.

Delphine, contrariamente a tantos outros personagens rohmerianos, não é alguém que constrói entre o seu desejo e o mundo, entre o eu e os outros, uma tela de palavras. Sua solidão passageira faz com que ela ainda se sinta subitamente exilada da linguagem dos outros, seja ela do bom senso, seja ela da sedução. Marie Rivière encarna de maneira admirável essa impressão física que nós podemos encontrar algumas vezes na linguagem comum como uma força efervescente e ameaçadora onde nós nos excluímos ou precisamos nos defender: é porque ela se sente ameaçada e isolada que Delphine não cansa de verificar o impasse que ela encontra em sua relação com os outros. Daí essa repetição de tentativas abortadas de reintegrar o (bom) senso comum, seguidas a cada episódio de reações e de retiradas cada vez mais depressivas.

Então chega a cena maravilhosa, onde ela cruza, por acidente, um grupo que fala do raio verde. Ela se coloca literalmente a circular em torno desta conversa que a fascina cada vez mais na medida em que a conversa não é endereçada a ela (ela não a ameaça), e ali ela se sente bem e sente que qualquer coisa de essencial lhe é portanto diretamente destinada. É sem nenhuma dúvida neste momento que ela ganha a certeza que nenhuma palavra, nenhum olhar, nenhum signo humano poderá lhe dar a convicção absoluta que ela precisa, que ela não está enganando a si mesma e que ela conseguiu chegar aos termos de sua missão. Para que pare essa repetição metonímica sem fim do encontro, da insatisfação e da retração (os primeiros 90 minutos do filme poderiam facilmente durar três ou seis horas; como em Viagem à Itália, não há nenhum progresso dramatúrgico possível, no sentido clássico do termo), ela precisou de um sinal visível que escapa à rede viciada da comunicação humana, ou seja, que o mundo ele mesmo confirme objetivamente, por uma raríssima e exuberante metáfora física, que esse encontro é O encontro que ela esperava. Decididamente, o grito final de Delphine, não é tão distante daquele de Ingrid Bergman no vulcão de Stromboli.

[1] Éric Rohmer: “Le Goût de la beauté", Editions Cahiers du Cinéma, Coll. Ecrits.

Retour à Stromboli foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 387, setembro de 1986. Tradução: Roberta Pedrosa.

Do zero




O Beijo Amargo / 1964

Por Axelle Ropert

Surpreendentemente, O Beijo Amargo é um dos filmes mais incômodos do cinema americano. Surpreendentemente porque se Fuller gosta de forçar o paradoxo das situações ao seu ponto de ruptura, ele não é por isto o cineasta do desconforto. Estaria isso ligado ao tema do filme, a pedofilia? Certamente. Uma ex-prostituta busca um novo começo desembarcando em uma cidade pequena. Ela é contratada como enfermeira junto a uma instituição para crianças deficientes. Ela fica noiva do benfeitor da cidade, ela logo descobre que ele é pedófilo e que ela lhe serviu como escudo perante os bons costumes. Ela o mata e se vê encarcerada por assassinato.

Fuller trata o tema, oh, quão difícil e ainda incongruente em 1964, com seu misto habitual de frontalidade e de delicadeza. Tudo é dito sem afetações, mas nada é grosseiramente explorado. Por exemplo, o benfeitor pedófilo possui uma boca generosamente orlada que faz imediatamente compreender a obscenidade do personagem, mas ele não é por isto entregue à punição do espectador. A cena do crime não é mostrada, mas dois planos bastam para tornar inequívoca a sua natureza: as pernas nuas de uma menininha que corre de costas, e um grafite sobre uma parede em forma de avião fálico, escondido pela mão dessa mesma menina. E, durante a cena do testemunho, o cerne não é o relato da agressão, mas a maneira absolutamente escrupulosa com a qual se deve fazer uma criança falar. De nada se esquiva, mas tudo é delicado.

Por que o incômodo perdura, mesmo quando o culpado é finalmente punido? O crime de pedofilia é no fundo a expressão de uma grande desordem, a expressão de um mundo desafinado – e para um cineasta tão musical como Fuller, estar desafinado é um grave defeito. “Não tenho ouvido para música”, assim se define o tira sacana do início. Nada está em seu devido lugar no filme: os adultos querem ter relações sexuais com as crianças, os inocentes são espancados pela polícia e jogados na prisão, as enfermeiras sonham em se tornar prostitutas, as velhinhas praticam um fetichismo perturbador, etc. Nesse mundo onde o lugar certo está perdido, tudo se desenrola em marcha lenta, em um universo estirado entre o desfile grotesco dos desejos adultos e aquele das crianças deficientes às quais nenhuma esperança de recuperação é realmente concedida.

A heroína – Kelly – não escapa a essa dissonância geral. É Constance Towers, a mais marcante das heroínas fullerianas. Vinda de Paixões que Alucinam, de Audazes e Malditos e de Marcha de Heróis de Ford, loira esplêndida com traços aquilinos, atlética, desenvolta, meio-deusa e meio-guerreira, ela possui um físico extraordinário. Ela parece maior do que o normal, deslocada nesses cenários estreitos como se o mundo, pequeno demais, não estivesse à sua medida – onde o cinema hollywoodiano clássico prefere dispor mulheres pequenas em grandes cenários. A heroína é uma mulher que esbarra em tudo.

Mas isso não é tudo. A heroína esbarra em tudo, mas é também golpeada por todos os lados. Por um policial de odiosa má fé, depois por uma multidão que quer linchá-la. É inclusive um calvário feminino com acentos penosamente repetitivos o que o filme desenvolve, e o qual já encontrávamos, sob uma forma mais alegre, na dupla formada por Jean Peters e Richard Widmark em O Anjo do Mal. Por que o que poderia ser insuportável, entre misoginia e sadismo, torna-se aqui comovente? Salvo não pelo erotismo do olhar depositado sobre a atriz (Fuller, cineasta hiper-masculino, por outro lado não fez passar sua libido para seu cinema), nem por uma fascinação por certo trágico feminino, o calvário feminino ganha sua nobreza através da admiração perceptível do cineasta pela resistência das mulheres, pelo seu vigor a toda prova, admiração que encontra seu apogeu nos magníficos planos de Kelly, sozinha, na prisão.




Qual é o remédio que pode suavizar a dissonância do mundo? A música, evidentemente. Disse-se muito que Fuller era um cineasta rítmico, talvez não o suficiente que ele era também um cineasta musical, ou mais exatamente um cineasta que gosta de encenar os benefícios da música – lembremo-nos das cenas ao piano em O Quimono Escarlate. Os personagens de Fuller gostam de ouvir música, e a música para Fuller é antes de tudo melodia. Aqui, a figura de Beethoven assombra o filme, dos acordes da Sonata ao Luar ao plano em que a heroína pousa sonhadora a mão sobre o busto esculpido do músico antes de descobrir a terrível verdade. A música é uma trégua antes da catástrofe. E depois, especialmente, vem uma espantosa sequência: as crianças deficientes, juntas em coro, entoam Mommy Dear sob a batuta de Kelly. A canção, composta por Wayne Shanklin em 1953 sob o título Little Child, é uma das maravilhas da canção popular americana, trabalhada em sutilezas e em emoção contida. Uma harmonia inaudita, no coração de um mundo perfeitamente dissonante, começa a vibrar. A cena é extraordinária, no cruzamento do McCarey de Os Sinos de Santa Maria (1945) e do Tod Browning de Monstros (1932); ela faz surgir a santidade no seio da monstruosidade, com o desprezo incrivelmente lírico de toda verossimilhança.

O espírito de vingança, totalmente estranho a um Fuller, cineasta de pulsões, mas amante da retidão, é maltratado. Ele é primeiro estritamente recusado ao espectador, que, estranhamente, nunca deseja a morte do pedófilo – como se a questão se situasse alhures. Ele se abate sobre a única personagem admirável, a heroína, graças a um desses paradoxos de que Fuller guarda o segredo. Uma cena, cortada na montagem, onde a heroína dizia o que pensava sobre a multidão linchadora, teria criado um irmão mais novo de Fúria (1936), de Fritz Lang. Entretanto, a lição de moral está lá, encarnada em uma cena de ação muito mais fulleriana do que um apelo oral. No meio do filme, Kelly faz uma visita a uma cafetina que subornou, com vinte e cinco dólares, uma jovem, para fazer dela prostituta. Ela vai lhe dar uma lição, mas sem belos discursos. Bizarramente, ela se joga de repente sobre a outra e lhe enfia na boca as notas que serviram ao desvio moral. Tudo está dito. A moral fulleriana é o elogio da literalidade: a heroína literalmente paga na mesma moeda a culpada. Nada a ver com a Lei de Talião, mas novamente uma forma de concretude impelida ao extremo: o que foi injustamente distribuído deve retornar ao expedidor, devemos meter o nariz do culpado no “lamaçal” de seus esquemas, devemos recolocar as coisas em seu devido lugar. Em Falkenau, Fuller não fará diferentemente, filmando os aldeões tchecos obrigados a ir à cena do crime, o nariz no “lamaçal” dos fatos. Fuller é tanto um pioneiro quanto um soldado experiente de 1939-1945, que conhece o preço real das coisas.

Essa moral tão literal não se assenta, por isso, sobre uma desconfiança dos princípios abstratos ou do pensamento, Fuller admira demais os grandes espíritos da humanidade para isso. Como prova, o pequeno diálogo em torno de Goethe entre Kelly e um policial, que nunca ouviu falar dele. À incultura reivindicada do tira (“Goe... quem?”), a heroína responde: “Goethe condenou justamente a ignorância”. Se o tira faz mal seu trabalho e a coloca na prisão injustamente, é porque, no fundo, ele despreza Goethe. Essa crença de que o “grande espírito” e a moral andam de mãos dadas é testemunha de um otimismo clássico – esse mesmo otimismo clássico que acha muito natural que uma pequena prostituta cite Goethe, onde um Tarantino e seus mafiosos letrados fariam disso um efeito de preciosidade premeditada.

Enfim, voltemos ao início. O filme inventa a abertura mais impressionante do cinema americano. Kelly briga violentamente com seu cafetão, golpeia ruidosamente e acaba por perder sua magnífica cabeleira – na verdade uma peruca –, desvelando uma cabeça raspada. Se a mulher careca é a heroína dos tempos modernos e a infâmia o signo secreto da eleição (Duras e Genet não dirão melhor), todo Fuller está contido nessa sequência. No fundo, um único princípio está no âmago de seu cinema: o da tábula rasa. Um princípio rítmico, então: varrer selvagemente o cenário. Um princípio moral: derrotar as falsidades, fazer uma “viagem de ida e volta” (tabefes, deslocamentos a Falkenau, dólares, etc.). Um princípio de mise en scène: um plano caça o outro. Mas o mais importante é o que vem depois da tábula rasa: uma vez varridos os falsos valores, deve-se construir um mundo novo. Cão Branco não narra outra coisa: para reeducar o cão racista, deve-se não somente destruir a semente do mal, como também lhe construir um novo cérebro. Um escritor vem à mente, um escritor inglês do século XVIIII com quem o Fuller de Cão Branco partilha inquietantes similaridades: Daniel Defoe. Em Robinson Crusoé, Defoe inventa um herói que, após ter agido mal, se vê sozinho em uma ilha e deve tudo reconstruir a partir do nada. Mesma tábula rasa como princípio geral, mesmo minimalismo, mesma ausência de narcisismo ou de interioridade psicológica dos personagens, mesmo combate contra o nada, mesma voz humana que grita absurdamente no deserto, mesma relação prosaica com a contagem do tempo, mesma solidão radical do herói, mesma força de trabalho como única ajuda possível, mesma concepção de escrita ou de mise en scène como perfuradora de uma página virgem, mesmo céu branco do desespero – pois, sim, o vigor extraordinário de Fuller é às vezes ensombrado por um pessimismo latente.

Por que Fuller, que não é evidentemente um cineasta do calibre de Ford, Lang ou Preminger, é tão cativante e mil vezes mais precioso do que um simples pequeno mestre? Por que ele é até mesmo indispensável? Moral clara e ao alcance da mão, tonicidade das ideias, amor exigente pelos grandes espíritos, temperamento incorruptível, economia da mise en scène: como Howard Hawks, Fuller é adstringente, ele lava o olho e o espírito de todos os falsos valores. Ambos colocam as ideias de volta ao seu lugar no mundo desafinado no qual vivemos.

À zero foi originalmente publicado na coletânea Samuel Fuller : Le choc et la caresse (organizada por Jacques Déniel e Jean-François Rauger), Paris, Yellow Now, 2017, pp. 270-275. Tradução : Luiz Fernando Coutinho.