O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Pele negra, capacetes brancos

Por Sandrine Rinaldi


Fix it!
Capacete de aço



Há algo de derradeiro, de subitamente claro demais no fato de que Samuel Fuller assine tardiamente um filme “de animais”. Um filme de bestas para esse cineasta da besteira. Um cinema que encontrou para si finalmente, após sua longa linhagem de homens broncos, de relações brutais, de garotos errantes, de criaturas femininas e de maus-caracteres, um animal como herói, do gênero doméstico, um cão adestrado, mas adestrado para uma forma de selvageria ao quadrado: uma selvageria inculcada, da qual apenas os homens são razoavelmente capazes. Bons papaizinhos de chapéu branco, racistas, bárbaros [1], condicionam, martirizando-os, jovens cachorrinhos para que se tornem cães de ataque, máquinas de matar os negros. O “cão branco” mata os negros porque eles são negros. Ele reage apenas a uma cor, a cor negra ou branca da pele. O cão não é racista. É um cão.

Cão branco vagueia seu ponto de vista intermitente, lúcido e distante, desliza até a superfície mole e úmida da pupila do cão, seu olhar inteiramente de dilatação e de contração reflexas, superfície pavloviana ininteligente, em todo caso, ininteligível à inteligência dos homens à qual o animal reenvia um eco neutro, atento e sumário. Besta. Por essa pupila o mundo é refratado em uma estreita contraluz, vemos o cristalino do cão constantemente obrigado a “acomodar-se” — que cor, que luz? — ao que está diante dele. Em uma fração de segundo, o cão inofensivo torna-se besta feroz; ao longo de um plano, mostrar os caninos, fazer cara de cachorro bonzinho. O sentido do corte duro que sempre foi a marca de Fuller: as brusquidões, os raccords aberrantes entre planos ou cenas sem nenhuma relação, sem aglutinante, a arte do entrechoque e da elisão. O filme, desta vez, impressiona pela discrição de sua mise en scène, que não realça, mantém-se aquém do grande efeito lupa, em uma retração do estilo até o impessoal — signo provavelmente comum aos grandes filmes tardios. Sem dúvidas porque ele encontrou aqui sua “criatura” por excelência, Fuller solta a rédea barroca e deixa o cão vagabundear, viver, fazer seu tempo no seu ritmo, evoluir nessa “zona cinzenta” (como a tonalidade da tela dos créditos sobre a qual os nomes deslizam em letras alternadamente pretas e brancas) nas bordas de um mundo primariamente clivado, preto e branco, preto vs. branco, do qual ele é ao mesmo tempo a cobaia, o executor sanguinário e a vítima sem qualidades. Mundo secundariamente dividido para um cara a cara estanque, um beco sem saída isolado sob o grande céu californiano: o mundo animal e o mundo humano se desafiam no espaço fechado da Arca de Noé, centro de adestramento (pacífico) para animais de cinema. Em Fuller, em virtude por um lado de um gosto pelos corpos rudes e massivos [2] de homens ordinários, os seres triviais e as vidas lamacentas, e por outro lado de uma preocupação com as paisagens e os cenários extraordinários, locais memoráveis saturados de signos e de linhas conduzindo o espaço à abstração, o afrontamento é de modo maciço sempre extremamente físico e perfeitamente abstrato. Por trás das grades altas da arena de estranhos gladiadores, ambos os lados se avaliam, zoológico híbrido em que o homem observa o animal, em que o animal observa o homem, bestas curiosas, cães de faiança, sem nunca saber com certeza qual está enjaulado. O cão, como todos os seres fullerianos, navega à vista**. Ele flutua, seja conformando-se às ordens, seja recalcitrando por instinto, aqui e ali nessa zona cinzenta que é apenas dele, irredutível, zona puramente expectante à margem de um mundo sem nuanças, com contrastes bem marcados, coagindo cada um a determinar-se em função das forças rivais presentes e a escolher seu campo: é fora da lei e fora da moral que as figuras solitárias de Fuller se situam, em posição de emboscada, à distância de tudo, quer essa lei, essa moral, indiferentemente, sejam as da sociedade e da ordem ou as do caos e do crime. Eles não roubam em socorro do Bem, assim como não estão a serviço do Mal. Mercenários de si mesmos, eles fazem o que têm de fazer. Cinzas, neutros, malvados, ariscos. Desprovidos de código de honra, na maioria das vezes simplesmente cúpidos, misantropos, vingativos ou arrogantes, estritamente individualistas, são personagens que estão entre a cruz e a caldeirinha, entre dois imperativos, entre os quais eles se contentam em circular, em esperar o desenrolar da situação, passando de um ao outro sem nenhuma hesitação e à imagem sem nenhuma transição, avaliando grosso modo sua melhor chance de lucro, de vitória ou de sobrevivência — engolfando-se, então, no instante presente completamente, como camaleões, avançando “um passo depois do outro” (Mortos que caminham). Sem pensar além. Tolos, tempestade sob um capacete, um Borsalino ou um chapéu molhado. Sua estupidez pode salvar sua pele ou custar-lhes a vida. Isso, ao menos, eles sabem. O ser cinza, em sua nuança impura e intermediária, recusa o claro demais como o obscuro demais. O contraste grande demais. Ele ziguezagueia, desprendido e inconsequente, como, após sua evasão, o cão encardido errando nas ruas desertas no meio dos detritos. Considerado sob essa perspectiva cinzenta e, contrariamente à reputação viril e ofegante do cineasta, frequentemente lânguida e estática, o mundo se transforma em uma espécie de imenso ponto de interrogação, tema de um constante quem está aí: de onde surgirão a ação, o assalto, os golpes, os choques e o ataque, a traição, em outras palavras: a violência do contraste? Que luz bruscamente crua precipita o acesso de raiva, o corpo a corpo ou a morte? Que clarão repentino, que cor viva demais — que o deixa à mostra e o expõe — impele o herói a sair de sua zona cinza entrincheirada, a perder a cabeça? O que o força a implicar-se? As consequências de seus atos (menos neutros do que ele imaginava), as vítimas colaterais, o amor. O cruzamento de uma alteridade, a passagem de um ou de outro lado, a empatia ou a loucura. Vigiamos, pressentimos, esperamos. Tememos o pior. E Cão branco é tão claro — em sua construção, seu desenrolar — que se torna insustentável. O filme tem, logo nos créditos iniciais e na pequena música para piano, oboé e cordas, simples e ampla, muito bela, de Ennio Morricone, a limpidez determinada de uma tragédia e a tristeza irremissível — sentimento absolutamente não fulleriano, inédito — encavilhada à narrativa (desde o preto da abertura e o barulho do acidente, o latido lamuriante, o cão com a boca ensanguentada que jaz sobre o asfalto). A tristeza assola, imediatamente, como um mau pressentimento ou o anúncio de uma curta suspensão. Estão longe os cabotinismos excessivos, a demonstração à carvão e martelo de Paixões que alucinam, filme-confissão penoso e superestimado do qual, contudo, Cão branco é o avesso mais exato — o cão, não vira-lata***, tem aqui a mesma experiência (da sociedade dos homens) que Johnny Barrett (de si mesmo) lá: a experiência da hybris. O que acaba por deixá-lo maluco, totalmente? E: como uma força obsessiva disfarçada de “terapia” e de (re)condicionamento transforma-se, com a maior boa vontade, a despeito do sujeito (da experiência) e da ciência (humana), em demência pura e em insanidade definitiva — sem esperança de retorno? O cão fica louco. O que não te salva te destrói.



Cão branco, portanto, filme derradeiro. Todos os temas fullerianos estão aí reunidos, sem um pingo de fanfarrice, um filme que somos obrigados a encarar de maneira semelhante à de um personagem fulleriano cuja única preocupação é enfrentar a adversidade sem trégua que regula seu destino. Encarar: é um grande cinema de rostos, de fácies, de epidermes, suadas e reluzentes, de humores exsudados, e quase um bestiário [3] que a câmera desvenda. A única emoção é a transpiração. Nunca se transpirou, gotejou, suou, encharcou a camisa, enquadrou de tão perto a pele, seus reflexos foscos e brilhantes como no cinema de Samuel Fuller. A pele, o couro. Mas um cão não transpira (no limite, seu único humor: ele baba). Fuller precisa encontrar outra coisa, algo mais árido, seco. Cão branco é esse filme depurado até o osso, rente, uma obra de soalheira e poeira. De uma fatura e de uma luz quase insípidas, é praticamente uma obra sem autor — ou então cuja única mão anônima**** seria a desse cão sem nome. Cão branco, filme besta. Enquanto o cinema (os anos 1970) havia liberado sua violência, assumida e desenfreada, demonstrativa e inteligente, Fuller, ao contrário, ele que havia, senão inventado, ao menos antecipado esse derramamento de efeitos, de (primeiros) planos brutais, de ruídos ensurdecedores, de fúria exibida e de sangue [4], terá optado desta vez por um estilo a minima imperturbável. Cão branco, de todos os seus filmes, é o mais sóbrio, o mais simples e, portanto, o mais belo. No universo de caos, de transvio e de extremos contrastados da filmografia, desenrola-se, pela primeira e última vez, um je ne sais quoi de sucinto, de retilíneo e depurado, de densificado no assunto como nunca, de ao mesmo tempo estranhamente sereno e pavorosamente trágico, que somente a sensação do irreparável pode proporcionar. Aqui a violência é tão mais sensível que ela é abordada com a reticência de uma tristeza inédita, em uma espécie de calma e de sentimentalismo. Resta, então, o sentimento da violência, decuplicado.

Era necessário esse anti-A força do coração, era necessário esse filme mutante que não pertence a um gênero repertoriado (o “filme parábola”?) para que não restasse nenhuma dúvida: toda a modernidade de Fuller consistiu em um “classicismo negativo”. Em uma bestificação das formas idealistas hollywoodianas, desnudadas como em um strip-tease estético e deixadas completamente nuas. A pele sobre os ossos. Sobre o equilíbrio clássico de formas harmoniosamente repartidas e de papéis alocados segundo um sentido arrazoado das proporções, dos valores e das escalas, Fuller pôs uma lente de aumento até o grotesco, o obsceno: seus filmes oferecem o espetáculo de um maniqueísmo virulento, todo de antagonismos duros, esboços, esborratados. Maniqueísmo virado e revirado como uma jaqueta da qual em breve não veremos senão o forro e os rasgos, as dobras (as feridas) mal costuradas, os overlocks. A demência, a besteira, o louco reversível. O Branco é negro. Fuller pôs o “malvado” no centro dos filmes, no papel principal (o melhor papel), com o “bom” contentando-se em no máximo fazer pequenos papéis indulgentes. Quando o “malvado” é um cão, o que fazer? O adestrador de cães negro quer “des-adestrar” o cão branco, reconduzi-lo ao Bem anterior originário — mas por sobreadestramento, sem que o recondicionamento anule o condicionamento prévio. Eis todo o problema. “If I don’t break him, I’l kill him”. Seria a mesma coisa que querer desaprender a falar ou a ler cortando a língua, furando os olhos. Nessa espécie de “maniqueísmo ambivalente” de Fuller, que tira sarro de toda pureza e do purismo como de uma aberração, a hybris da humanidade desencaminhada (a supremacia branca, ou negra aliás, a ideia de que existiria um mal absoluto ou um soberano bem), ninguém — nenhum valor supremo — acaba por triunfar, uma vez que o discurso feito se autodestrói, todo esforço é desmentido, a demonstração é dinamitada do interior por sua absurdez, seu impasse — seu patético. Ora, é da fonte desse recomeço do zero que Fuller haure seu estranho didatismo, sua esperança selvagem e sentimental. Do que o cão nos salvará senão de nossa própria besteira?

Nesse cinema as coisas tampouco se entremesclam (nenhuma confusão: o antirracismo não se confunde com o racismo, assim como o antifascismo não se confunde com o fascismo, a justiça com a máfia etc. — quem ainda é preciso convencer disso?), elas se entrechocam — até o delírio, próximo do que Frantz Fanon chamava de “maniqueísmo delirante”; o binário de ponta-cabeça só produz um reflexo-monstro invertido, seu pior pesadelo. Não se espera em Fuller nenhum paradoxo superior, a sabedoria dialética permanece fora de alcance e nós balançamos, como o cão com o cérebro implodido, no coração do insensato puro. No último instante, a amplidão do desastre. Na poeira, ao lado do cão agonizante, contemplamos chorando o mundo que deu cabo dele. A inumanidade e a humanidade do mundo, a luta até a morte que elas travaram ideologicamente, culminando no circuito queimado: o cão, maluco (totally fucked up). A (boa) vontade recai, inerte, atordoada, coberta de suor, o sermão cai por terra. Besta vil, pobre besta. Não se distingue mais nada, nenhuma cor.



O problema de Fuller é que, a seus olhos, o cinema não é bigger than life, é o contrário. Pois ele sabe, ele, Fuller, por sua experiência com a reportagem, dos casos criminais que por vezes levam à cadeira elétrica, pela guerra que ele atravessou e suportou como soldado de infantaria até a descoberta dos campos de extermínio, que a vida é maior, mais excessiva e sangrenta, mais aberrante e violenta e infinitamente mais doida que o cinema. Mais louca que toda ficção possível. É dessa equação invertida (mais uma) — o cinema “smaller than life” — que nasce também esse estilo “em negativo”, um estilo que tem plena consciência de exagerar ao mesmo tempo em que sabe que esse exagero nunca chegará aos pés da desmedida e do excesso da vida (como da morte). De seu horror e de seu estarrecimento. De todos os seus paroxismos. “Births. Marriages. Deaths. Bills.” [5] está inscrito em cima dos cacifos para classificar os despachos em A dama de preto. Seus mais belos filmes têm uma qualidade instável e híbrida, sem se preocupar com continuidade ou verossimilhança, eles cruzam, segundo um puro princípio de prazer tão eriçado quanto didático, os excessos mais maneiristas com a clareza mais seca.

Em Fuller, a vida é uma longa série de corpos maltratados. Nada do que é humano lhe é estranho. Corpos golpeados, extenuados, tumefatos, sovados, estragados, abraçados, espancados. Isso vale para todos sem discriminação: homens, mulheres, crianças, bestas, de pele negra, branca, amarela ou vermelha, todos no mesmo saco — da pulsão, da violência e do amor. Há também um igualitarismo negativo desse cinema. Os excessos, a brutalidade, o esgotamento, infligidos e que infligem a vocês, põem todo mundo em pé de igualdade. Mas não se deveria permanecer nisso. Quando algo ou alguém é quebrado, estragado, é preciso repará-lo. Reparar um transmissor de rádio, o primeiro linotipo ou um corpo com um membro arrancado ou então um erro, uma falha, ou ainda uma máquina de matar na forma de melhor amigo do homem. Reparar (o mundo). To Fix: é a meta e a missão atribuída, é a grande questão clássica da ficção hollywoodiana. Uma questão posta por Fuller, com sua ponta de sarcasmo, a cada filme, e com Cão branco levada a um ponto sem volta. A reparação impossível. O irreparável (voltamos a isso). O mal está feito, já era. O cão já era. O que se fez pela força não se pode desfazer à força. Os sinais enviados ao animal se acumulam, ele é sobrecondicionado quando se acreditava descondicioná-lo. O bom não é mais potente que o mal e, sobretudo, não o suplanta. Pode acabar por aniquilá-lo, liquidá-lo, mas não transformá-lo ou corrigi-lo. “You don’t murder animals. You kill them” (Agonia e glória). A questão é que, se é preciso resolver-se a matar, não mais reparar, mas resolver o problema (“fix things up”, A lei dos marginais), o bom se pergunta legitimamente se ele ainda é bom. Interrogamo-nos ainda. Então, resta gritar com as garotinhas em busca de seu cão, afastá-las da tartufice de seu avô racista (o mal que se insinua e assume a máscara do bem é para o cineasta o mais abominável — cf. os “Lobisomens” em Proibido!), em uma cena a respeito da qual Fuller disse que ela justificava a existência do filme.

Filme derradeiro e derradeiro filme, Cão branco é os dois. Última realização hollywoodiana antes do exílio e dos últimos fogos mal apagados na terra do cinema francês. Cão branco, que ficou parado nas prateleiras da Paramount pois taxado de racismo por idiotas que não haviam julgado útil vê-lo, por causa também dos retornos ruins das primeiras projeções-teste. Filme mal-educado de um cineasta já de idade avançada, agora menos sintonizado com o espetacular sensacionalista dos anos 1970 e 1980, filme finalmente não distribuído nos Estados Unidos e embarcado para longos anos de purgatório e má reputação. Como em um filme de... Fuller, nada lhe terá sido poupado. No entanto, reduzi-lo a um “filme maldito” não é um favor a lhe fazer. É melhor fazer-lhe justiça: simples, implacável, dilacerante, é um filme magnífico.


P.S.: Um outro cão, este mais flâneur do que errante, e plácido de outra maneira, se lembrará dele talvez anos mais tarde (e seu adestrador, um fulleriano de primeira hora); diante dele desta vez tudo se reveste de tons crus e cores primárias, aos seus olhos de cão o mundo dos humanos não é mais preto ou branco, ele se tornou fauvista. Adeus à linguagem. Não é assim tão besta.


*: o título Peau noire, casques blancs faz um jogo de palavras com o título do livro de Frantz Fanon Peau noire, masques blancs (Pele negra, máscaras brancas). [N.T.]

**: a expressão naviguer à vue significa navegar sem o auxílio de instrumentos e, figurativamente, agir de acordo com as circunstâncias tal como elas se apresentam imediatamente, mas há um jogo aqui com a referência à visão contida na expressão, já que o cão reage apenas às cores branca e preta, daí a opção por manter “navegar à vista”, locução pouco comum — ainda que eventualmente utilizada, sobretudo em Portugal. [N.T]

***: jogo de palavras com o termo cabot, forma pejorativa de designar um cachorro, mas que também pode significar “cabotino”. [N.T.]

****: jogo de palavras com o termo patte, que significa literalmente “pata”, mas também a qualidade ou o estilo próprio de um artista, reconhecível em suas obras. [N.T]

[1] “Charitable... Honorable... An Animal” (O investigador qualificando o chefe da máfia em A lei dos marginais)

[2] Fuller quase sempre impôs como vedetes atores cujos físico potente, falta de jeito, expressividade rudimentar deveriam ter, segundo os cânones hollywoodianos, confinado aos papéis de capangas, gatunos de segunda e turrões (John Ireland, Gene Evans, Vincent Price, Cliff Robertson, Rod Steiger, Glenn Corbett, Lee Marvin...). A televisão pegou a maior parte deles, assim como esse gênio popular de transformar sujeitos com físico de papel secundário em figuras protagonistas. Fuller teria adorado Família Soprano e James Gandolfini certamente.

[3] O “cão branco” tem toda uma série de precursores na filmografia: cabeleira branca de Barbara Stanwyck em Dragões da violência (ela evoca uma raposa branca), de Jeff Chandler em Mortos que caminham ou de Lee Marvin em Agonia e glória (e mais tarde de Keith Carradine em Uma rua sem volta), da dançarina de strip-tease de vulgaridade animal na abertura de O quimono escarlate, de Dolores Dorn em A lei dos marginais ou a desconcertante echarpe “integral” de plumas brancas de Constace Towers em seu strip-tease em Paixões que alucinam e seu cabelo chablis). Pelagens brancas, cabelos (ou sua ausência em crânios nus), perucas, escalpes... Fuller, mais do que troféus, filma paramentos no sentido mais amplo, trajes brancos ou pretos dos homens e das mulheres, roupas de neve ou uniformes enlameados, peles de animais, não como signos civilizados, mas como indumentárias sexuais e selvagens.

[4] “Não é sangue, é vermelho”: considera-se a frase de Godard como uma reminiscência provável de uma cena de um filme de Fuller. Ao acaso: no início de Renegando o meu sangue, a mancha vermelho-sangue no lençol branco no acampamento militar em que o médico opera os últimos feridos.

[5] “Nascimentos. Casamentos. Mortes. Contas”.

Peau noire, casques blancs foi publicado originalmente no livro Samuel Fuller: le choc et la caresse, 2017. Tradução: Rafael Zambonelli.