O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

As famílias de atrizes

Por Axelle Ropert 

Em torno de um encanto físico pode se formar uma vasta zona de amor, mas ela conta pouco. É a moral particular da atriz o que a leva mais longe.” 
Jean Cocteau 

As espirituais 

Figuras de proa: Delphine Seyrig, Leonor Silveira. 

País de origem: os altos cimos. 

Personalidade: elas não têm nenhum humor mas têm espírito, quer dizer, o senso da ironia e a inspiração permanente. Elas sabem respirar e implantar seu poder de oxigenação. Uma inspiração, e a voz decola, uma expiração e a palavra morre. A clareza é a sua virtude. Elas falam, nós prendemos nossa respiração, o ar se faz imóvel, a atmosfera se esvazia. A asfixia iminente e sempre adiada surge contudo, às vezes, sob a forma efêmera de uma ligeira confusão provocada por um lapso (o “Obrigado, Senhor” de Antoine Doinel a Fabienne Tabard em Beijos roubados) ou uma perda da palavra (o brilho marítimo de Michel Piccoli em Party). O espírito habita-as e elas sabem fazer essa ocupação dos lugares esbanjando a graça em torno delas. Elas só podem morrer de tuberculose, lenta mordida se atacando ao que nela faz as vezes de coração, os pulmões. 


Sinais particulares: a arte de sustentar uma voz em suspensão. 

Proibições: representar as esportivas. 

Sugestões: encarnar a Malibran ou Kathleen Ferrier. 

Traços: os olhos fundos de Kristin Scott-Thomas. 

O que elas nos pedem: perder o fôlego em plena declaração (como Michel Piccoli). 


As sossegadas 

Figura de proa: Françoise Lebrun. 

País de origem: um porto de Vermeer. 

Personalidade: elas falam depois de ter dormido muito. Uma palavra se arrasta, um coque se desfaz. “O lírio-verde cor da olheira e lilás / Lá floresce teus olhos são esta flor serena / Violeta como suas olheiras e como este outono / E a minha vida pelos teus olhos lentamente se envenena” (Guillaume Apollinaire[1]). O baixo país as acolhe de braços abertos e os divãs recebem suas posturas alongadas, essas posturas que permitem falar um tom abaixo. Uma ligeira desaceleração as afeta, pois o relógio íntimo das tristezas e das esperanças se desregula quando não há mais nenhum (outro) amor possível. Elas são enfermeiras (A mãe e a puta) ou figurinistas (Emmanuelle Riva em Liberdade, a noite), elas curam as feridas e elas costuram. Nós não reteremos o gosto pelas tarefas minuciosas que permitem corrigir as dores perdidas, mas essa pose que lhes assenta tão bem, o pescoço dobrado, o espírito atencioso. 


Sinais particulares: atrizes de vocação geológica, elas se deixam erodir. Que a erosão não seja a usura dos recursos mas a ocasião de uma “subida à superficie”, eis a sua sorte. 

Proibições: a facilidade de todos os últimos Garrel. 

Sugestões: representar de novo a embriaguez maravilhada de uma Ninotchcka visitando os países do ocidente. 

Traços: um copo de absinto? Um cigarro de ópio? 

O que elas nos pedem: perturbar nossos ciclos de sono. 


As desapossadas 

Figuras de proa: Joan Fontaine, Juliet Berto. 

País de origem: as casas assombradas, os orfanatos. 

Personalidade: elas se agitam em vão, pelo gosto por inimigos invisíveis que lhes permitem experimentar, no vazio, sua força de resistência. Em Hollywood, Joan Fontaine sofre, ameaçada pelo fantasma de Rebecca e por um copo de leite (Suspeita). Em Paris, Juliet Berto desfere golpes de judô e se debate nos meandros da dialética (Out 1, A Gaia Ciência). Se um afundamento do busto devolve Dana Andrews ao horror lógico do seu destino (Suplício de uma alma), a flexibilidade dos grandes desvios e a mania dos rituais de todo gênero tentam – topologicamente – reduzir um mundo incompreensível a leis em miniatura e lúdicas (Céline e Julie vão de barco). Joan se dobra, Juliet desdobra. Elas não são vítimas, só enganadas, e é a confiança que desregula suas relações com o mundo. De “desapossadas” à “munição”[2] é só um passo, que Juliet cruza facilmente, abatida na esquina de uma rua. Não é uma revanche do real, é só o desrespeito da parte delas de uma interpretação que poderia se chamar “Me assuste se queres que eu confie em ti”. Gracilidade e linha do terror não se chocam em vão. 


Sinais particulares: Joan cora e Juliet arrasta as palavras. 

Proibições: expô-las, pois o patético prejudica a pobreza, aos terrores reais (como Joan Fontaine diante das furias cukorianas de Mulheres). 

Sugestões: o papel da última mulher do Barba-Azul num roteiro de Jean-Claude Biette. 

Traços: o gosto pelas questões proibidas. 

O que elas nos pedem: a hospitalidade, a nós que estamos seguros. 


As soberanas 

Figuras de proa: Maria Casarès, Françoise Fabian. 

País de origem: as regiões exiladas, os palácios desertos. 

Personalidade: Não se trata tanto de reinar quanto de conquistar (o amor, a admiração, a adesão...). Lá onde algumas apostam no poder da sujeição, elas preferem o poder do respeito. Um dedo imperiosamente erguido, um olhar tenso afirmam-se com tanto mais força quanto mais eles não prescrevem nada. “A violência é justa onde a doçura é vã” (Corneille). Elas têm força de lei pois elas reinam no vazio, sem ordenar nem proibir nenhum fim determinado, nenhuma ação particular, nenhum objeto preciso (kantianas, necessariamente kantianas, elas têm, no entanto, as mãos – finas e nervosas). “Tu és minha morte”. Por essa réplica genial Jean Marais se submetia, em Orfeu à exclusividade da servidão amorosa. A crença (ilusória) de serem os únicos a sofrer por elas prolonga ad vitam aeternam o seu reino. Aristocráticas ou burguesas, o meio plebeu lhes é proibido pois não é a classe social que faz a força, mas a indiferença a todas as misérias, vistas, vividas ou compartilhadas. Coloque uma desapossada diante de uma soberana, e você verá a força de sua crueldade e de seu desprezo – ninguém esqueceu a humilhação de Juliet Berto diante de Françoise Fabian em Out 1. Mas não ser capaz de realizar os gestos salvadores da vida comum às vezes é trágico, e essa vulnerabilidade aumenta perigosamente a aposta de sua grandeza. Parodiando Corneille, seria necessário ensinar-lhes isto: “Por maiores que sejam as rainhas, elas são o que nós somos.”. 


Sinal particular: o porte da cabeça como arte de indicar silenciosamente o caminho a seguir. 

Proibições: interpretar as Marquesas de Merteuil (a exibição demasiada de veneno prejudica a evidência de sua grandeza). 

Sugestões: interpretar as mulheres abandonadas balzaquianas (mas já não houve La Visiteuse de Jean-Claude Guiguet?). 

Traços: Marie Armelle Deguy interpretando Viriate em Sertorius de Corneille. 

O que elas nos pedem: a posição – paulhaniana – do prisioneiro apaixonado, ver a síndrome Patti Hearst. 


As francas 

Figuras de proa: Ingrid Bergman, Deborah Kerr. 

País de origem: os territórios nórdicos. 

Personalidade: Cary Grant confessava à Deborah Kerr “Eu te amei imediatamente porque você era sincera.” (Tarde demais para esquecer). A franqueza, revelada instantaneamente no âmago dos encontros e das conversas, acelera senão curto-circuita o curso dos sentimentos – amor à primeira vista obriga. O choque da franqueza não se mede pela ausência de hipocrisia ou de segredos. As francas são, com efeito, capazes de mentir, de jogar, de enrolar, pois sua sinceridade prescinde das confissões do discurso, chegando mesmo a pôr em risco a promessa de uma vida amorosa (a retirada sacrificial de Deborah Kerr em Tarde demais para esquecer). Tudo está aí, tornando caducas as dissimulações e os não-ditos por vir, provocando inanição aos desmentidos da palavra, na expressão. A expressão impõe imediatamente a legibilidade dos mais secretos movimentos da alma. Ao contrário das desapossadas (Joan Fontaine...) ou das cristalinas (Gene Tierney...), não as imaginamos garotas. Em uma palavra, são por excelência mulheres maduras, valentes, como os pequenos soldados. Paradoxo: encarnação da franqueza, elas são contudo grandes atrizes de comédia conjugal, a qual supõe um cálculo (os bicos, os pactos, as faltas de jeito, as seduções). Uma comédia franca não é uma arte do timing, dos quiproquós, dos efeitos (antecipados) de seu charme..., mas uma maneira de pôr o fim antes do começo, de anular o tempo do sedutor saboreando a progressão de sua conquista e a iminência do momento no qual elas vão “quebrar”, confiando-lhe – francamente – que não vale a pena, pois o amor já foi vivido. A sabedoria e a impaciência dessa constatação, que não é cruel, vêm evidentemente do teatro (As estranhas coisas de Paris). A generosidade de sua interpretação lhes torna capazes, mais que qualquer outra, de uma grande compaixão. “Pois a piedade profunda é igual a uma chuva, ela acaba sempre por recair sobre a terra da qual ela se levantou e está aí uma benção para os campos.” (Rilke) Sua franqueza (expressiva) culmina no abandono de si e elas deixam assim seus maridos (Europa 51, Chá e simpatia) para dedicarem-se aos seus sacerdócios. 


Sinais particulares: elas sabem se calar para melhor escutar (Deborah Kerr e a mãe de Cary Grant em Tarde demais para esquecer, Ingrid Bergman e Giulietta Massina em Europa 51). 

Proibições: interpretar as mulheres de linha que se permitem uma escapada extraconjugal (Do outro lado, o pecado). 

Sugestões: que um marido morra de amor por elas (La Princesse de Clèves). 

Traços: não esqueçamos, do lado do Japão, Kogure Michiyo, a irmã mais velha de A música de Gion (Mizoguchi). 

O que elas nos pedem: compreender a sedução profunda exercida pela virtude doméstica. Viva o amor louco conjugal! 


As cristalinas 

Figura de proa: Gene Tierney. 

País de origem: as regiões boreais. 

Personalidade: “Eu era apaixonado por ela como às vezes nós somos por uma espécie de flor.” (Marcel Proust) Elas não são virtuosas, apenas reservadas e o lapso de memória as espreita permanentemente. Quando Gene Tierney deixa ressoar o tique-taque de um relógio fatídico (Laura), os gritos de um afogado esperando desesperadamente por socorro (Amar foi minha ruína), os ecos de uma sonata que escapa de um retrato assombrado (O Solar de Dragonwyck), os estilhaços de uma risada perdida no passado, aquela de Rex Harrison (O fantasma apaixonado) seu rosto parece fazer ou refletir perguntas distorcidas. Sempre “em excesso” como se o filme a ultrapassasse deixando-a, justamente, passar, ela abre uma a uma as portas de uma narrativa a fim de que nenhum obstáculo rasgue sua trama. Essa candura a toda prova devolve a luz, nossos olhares e os beijos dos homens às suas origens, lá onde o mal ainda não existe. As cristalinas não são mulheres, unicamente garotas ou falsas mulheres maduras (Tempestade sobre Washington) que suportam maravilhosamente os fardos artificiais do envelhecimento (O céu pode esperar) para melhor aceder ao que será sua recompensa: tornarem-se um fantasma, amar o que nos tornamos, amar os fantasmas (O fantasma apaixonado). Serem devolvidas aos charmes da eternidade, não estaria aí a miragem que as deixou à curiosidade contemplativa dos espectadores? 


Proibições: andar hipnotizada no parapeito da janela, a menos que seja sob a prescrição do doutor Korvo (A ladra), médico diabólico aplicando ao pé da letra o princípio do “remédio no mal”. 

Sugestões: encarnar o papel de Madame de La Chanterie, heroína cuja clemência súbita fez com que o antigo procurador, enfim perdoado, pronunciasse essa frase kleistiana: “Os anjos se vingam assim” (Balzac, O avesso da História Contemporânea). 

Sinais particulares: elas oferecem aos homens (Don Ameche) e aos fantasmas (Rex Harrison) a chance de serem mortais. 

Traços: uma voz infantil que, de casamentos fracassados a tratamentos psiquiátricos de choque, se considera curada. (Leiam a autobiografia de Gene Tierney, Self-portrait). 

O que elas nos pedem: ask JFK. 


As decididas 

Figuras de proa: as atrizes hawksianas, Ann Bancroft (Sete Mulheres). 

País de origem: os jogos olímpicos da vida moderna. 

Personalidade: são as mulheres mais aptas a tomar uma decisão. Essa decisão amorosa e dinâmica (em Hawks) ou moral e final (em Ford) é inseparável de uma ação física. Se a escolha de um lado ou de um movimento se faz em um instante, é que, no mundo delas, a incerteza não existe e não pode existir. Se a doutora de Sete Mulheres, disfarçada como uma boneca oriental, cruza, se sacrificando, o destino trágico das heroínas mizoguchianas, é para melhor acentuar uma diferença fundamental, a recusa de qualquer “condição feminina”. Seu heroísmo não compartilha nada com as outras mulheres, e sobretudo nada com a inexorabilidade de uma condição. A solidão protege, inclusive das solidariedades. Aquela que se sacrificou no último filme de Ford não podia deixar também de quebrar o muro do silêncio que prende uma outra garota, em O milagre de Anne Sullivan. As atrizes hawksianas (Paula Prentiss, Katherine Hepburn, Gail Hire, Elsa Martinelli, Carole Lombard, Ann Sheridan, Rosalind Russell) só podem ser amadas em plêiade, pois o gesto de uma chama a resposta de uma outra, pois a aparição de um “espécime” subentende a existência das outras. Uma atriz hawksiana é um exemplar, enquanto há apenas, diante dela, a indistinção de um povo masculino. Não se trata contudo de “guerra” dos sexos, mas de uma intransigência tão fútil quanto exigente: acabar com a paciência de seu parceiro masculino (objetivo secreto de toda atriz hawksiana). Elas adoram cair sobre canapés, se introduzir ilicitamente nos quartos, liberar as feras furiosas, andar como transpomos obstáculos e falar como saltamos as barreiras. “Meu caro Volgelstein, é o último produto, o fruto mais recente da grande evolução moderna: a garota que se faz sozinha!” (Henry James). Qual será a vitória delas? Oficialmente, uma vitória amorosa, e o homem cai nos seus braços; oficiosamente, uma vitória clínica, e ele volta à infância. Depois de ter enfim descoberto o bálsamo da juventude, a fórmula sonhada, o doutor Fulton não lhe confessou essa frase definitiva: “como é possível sobreviver à sua infância?” (O inventor da mocidade). Lembrem-se de Cary Grant em A levada da breca, A noiva era ele, O inventor da mocidade ou de Rock Hudson em O esporte favorito dos homens... Por que a sedução deve assumir essa estranha forma? Uma resposta se impõe: o amor para elas é só a oportunidade de se dar o luxo de uma pausa. Trata-se, na verdade, como sempre nos filmes de Hawks, de uma história de movimento, de dinâmica, de mobilidade, de ritmo. As heroínas hawksianas não poderiam simplesmente suportar o tempo sem obter, às vezes, pelo tempo de um filme, uma pequena pausa masculina, a conquista de um desajeitado regressivo e embonecado, sublimemente suave como Rock Hudson ou John Gavin. Não acreditemos, no entanto, que o gineceu constitui sua terra de eleição inatingível... Não é muito agradável viver como aqui, num mundo onde ninguém pode vos seguir, num mundo que não para de regredir ao vosso contato, num mundo em atraso, ou antes (verdadeiramente) atrasado? O mundo das atrizes hawksianas é um mundo atrasado pelos seus homens, todos os homens, pelos seus cientistas distraídos, seus detetives falidos, seus cowboys paquidérmicos, seus aviadores cornélianos, seus marinheiros sentimentais, seus caçadores irritados, seus jornalistas tomados pela velocidade, seus esportistas flácidos, seus faraós traídos, seus militares cegos... E, nesse mundo, é preciso sempre matar dois coelhos com uma cajadada: respirar um pouco seduzindo-os e reduzir o seu atraso, enlouquecendo-os. 


Sinais particulares: amam roubar dos homens seus aparatos, a voz grave (Lauren Bacall, Paula Prentiss) ou o uniforme (a doutora Cartwright de Sete Mulheres)... 

Proibições: ficar nua na tela. A elegância de seu físico ossudo vem de que ele suporta os vestidos e as palavras trepidantes. Tire a vestimenta, só restará a armação. 

Sugestões: o papel da Pentesiléia de Kleist para Ann Bancroft e as heroínas stendhalianas (Mathilde de La Mole, a condessa Sanseverina, a duquesa de Palliano...) para as atrizes de Hawks. 

Traços: elas semearam muito. Nos Estados Unidos, Michelle Pfeiffer, Linda Fiorentino, Jamie Lee Curtis e Melanie Griffith estão prontas para a substituição. Na França, esperamos que Marianne Denicourt se “desemburguese” e que Dominique Reymond se “descamponese”. 

O que elas nos pedem: prever seus feitos e gestos para estar, pelo menos uma vez, sincronizados com elas (missão impossível). 

[1] NdT: O jogo de palavras entre “démunies” e “munition” se perde na tradução. 
[2] NdT: Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1913. 

Les familles d’actrices foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n°2, verão de 1997. Tradução: Miguel Haoni. 

News from Chantal




Sobre a retrospectiva Chantal Akerman no Cinema République 

Por Vincent Dieutre 

Num filme dos Irmãos Marx, Harpo fica encostado num muro: ‘O que você faz aí? – Estou segurando o muro. – Você está brincando comigo! Saia daí!’ Harpo dá um passo para o lado e o muro desmorona. Não estaríamos todos nós encostados no muro, e esse muro não é o muro da realidade? Bastaria que uma única pessoa se retirasse e o muro desmoronaria, sepultando as milhões de pessoas que ocupam essa caverna abandonada. De qualquer forma, a situação é essa de um real devastado, e já não contamos mais com aqueles que estão soterrados vivendo sob os escombros. 

Jean Baudrillard, A contagem regressiva 

Pacientemente, na sombra, uma mulher, uma artista, parece manter a contagem das vítimas, a lista paciente dos feridos: Chantal Akerman. É pelo menos a tenaz impressão que deixa a retrospectiva corajosa que dedicou-lhe Anne Huet, no Cinema République, em julho. A questão das formas se colocará novamente diante do esgotamento de um cinema de urgência sociológica mais preocupado com a sinceridade e a pertinência denunciadora do que com a evolução de uma ideia de cinema? Lyotard o sabia, para ser pós-moderna é preciso primeiro que uma obra tenha sido, por um momento, moderna e o so-called pós-modernismo dificilmente teria sobrevivido a uma pós-modernidade de fato, muito mais complexa. 

Experimentando-se alternadamente em diferentes registros, Chantal Akerman nunca perderá de vista as conquistas formais de seus primeiros ensaios. Se a recusa do confinamento autorista foi geradora de “confusão”, ela testemunhou, no entanto, uma vontade feroz de abraçar sua época em toda a sua complexidade. E se Do Leste e Sul marcam inegavelmente um retorno à “inocência”, às origens do cinema segundo Akerman, é que o longo desvio pelo filme de gênero (Golden Eighties), pelo documentário (Diga-me, Um dia Pina perguntou…), o teatro filmado (Letters Home, O homem da mala), a comédia para o “grande público” (Um divã em Nova York), o telefilme (Retrato de uma garota…), a instalação (Do Leste, Au bord de la fiction exibido no Jeu de Paume), a escritura e mesmo um período de relativo silêncio permitiram-lhe habitar discretamente o que Deleuze chamava de “período pobre”, o tempo de uma reciclagem em todos os níveis, tão nefasto à criação autêntica e à reflexão audaciosa. 

Uma vez, eu voltei tarde para casa… 

No tempo longínquo da minha primeira mobilete, do Télérama e do marxismo-leninismo, à força da leitura de uma crítica elogiosa e excitante, lá fui eu na noite, subindo os cais de Billancourt no Quartier Latin para ver Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles. O filme deve ter durado muito tempo, mas eu não vi o tempo passar, medusado. Desde o fim da sessão, eu decidi rever o filme (que dura 200 minutos, após verificação). Foi só voltando para casa, encontrando ali minha mãe em pânico por causa da espera e da hora tardia, que eu percebi, atordoado, a amplitude do momento passado com Delphine Seyrig. 




É um filme sobre o espaço e o tempo… e sobre a forma de organizar a sua vida para não ter nenhum tempo livre, para não se deixar submergir pela angústia e pela obsessão da morte.” (C.A.) 

Foi provavelmente isso o que eu descobri naquela noite, justamente, o tempo livre, o tempo da arte, o desafio sensual da emoção que lhe submerge. Eu nunca me recuperei. A experiência de um outro modo de passar o tempo, na companhia de um filme. Claro, na sequência, teve a descoberta de Warhol, de Michael Snow, mesmo dos Straub, mas o deslumbramento primeiro de Jeanne Dielman ficou comigo mais profundamente, mais familiarmente, ousaria dizer. Como se, entre Akerman e eu, se construísse uma cumplicidade ativa que faz com que o plano pare quando eu sinto que ele poderia parar, que ele perdure quando eu tenho o desejo secreto que ele não termine. Uma cumplicidade que os anos não embotaram, nem sequer atingiram, e que impôs-se novamente, intacta e palpável, no último festival de Cannes, durante a exibição de Sul

Quando as formas se movem… 

Mover as formas”, tal era (e permanece) o projeto de Chantal Akerman, e isso desde o começo. Quando ela dá a ver um dia na vida de Jeanne Dielman, ela faz questão de mostrar cada momento na sua integralidade: tomar um elevador, lavar a louça, amassar a carne moída…O plano fixo torna-se unidade de narração, em “tempo concreto” (e não nesse “tempo real” do direto informativo que não questiona nada além da simultaneidade evento/difusão). Esse postulado minimalista, claro, legível, não tem nada de pose autorista, ele é a condição sine qua non da eficácia do filme. Impossível, vendo Jeanne Dielman ou mais particularmente Os encontros de Anna, não pensar na “linha clara” de Hergé, por essa economia afiada de uma narrativa em sucessão de sequências/quadros, absolutamente necessários, evidentes e claros. O que é próprio ao personagem encarnado por uma impassível Delphine Seyrig é, contudo, não ter nada de heroico nem de excepcional a priori. A neurose, o tédio, a histeria, se instalam aqui ao longo do plano, sem jamais serem provados, sugeridos, geridos como molas roteirísticas: gestão espetacular das imagens que, nos outros filmes, hierarquiza os fatos e gestos dos personagens, para melhor impor ao espectador a lógica de uma narrativa premeditada. Akerman desafia essa hierarquia, esse abuso de poder, a resistir à terrível banalidade das coisas, à violência surda de um tempo cotidiano alienado no seu próprio fluxo. A hierarquia que ela lhe opõe é a de um agenciamento plástico dos planos, de sua duração e de seu movimento. 




No République, esse tempo concreto do plano, sua duração, fazem-se subitamente máquina de guerra contra o efeito de real que hoje é de regra, a chantagem documentarizante das ficções social-gore, a retórica sequestradora do fazer-de-verdade. Com Jeanne Dielman, o fait divers tornava-se pretexto para a experimentação de um realismo abstrato, sem a chantagem do vivido, uma proposição narrativa “alternativa” que nos oferecia o luxo absurdo de tomar Seyrig por uma proletária de Bruxelas, sem nenhuma prova do tempo passado a fundamentar essa existência sobre uma crença original, total, graças à fixidez paciente e a uma lenta negociação entre câmera e espectador. Como esses pintores em luta contra a ideia de composição (o assunto bem no centro do quadro), Akerman trata preparação do jantar e prostituição furtiva, louça e assassinato, com a mesma atenção (o assunto é o quadro). Uma outra forma de “perceber” nos limites da arte conceitual que, seguramente, não foi estrangeira às inovações akermanianas e da qual um outro filme, News from home permanece o manifesto incandescente. 

O cinema me faz sair, me põe para fora.” (C.A.) 

O que vemos, e por quanto tempo o vemos, tudo em Akerman é questão de intuição, nenhuma duração é calculada com antecedência. Para não compor com a hierarquia que quer que certos instantes, certos personagens, certas palavras, signifiquem mais que outros e que a tela seja o lugar submisso dessa precedência, Akerman tentou tudo ou quase. Uma tal obstinação num empreendimento moderno, uma tal completude, teria desencorajado o crítico se, dessa mesma modernidade, não renascessem permanentemente a dúvida, a curiosidade e a necessidade irreprimível de captar o mundo aqui e agora… 

Postcards 

Sob esses ares de documentário, News from home é efetivamente uma ficção, por mais autobiográfico que ele seja. A câmera se põe aqui e ali em Nova York, para sóbrias “vistas” em som direto, estabelecendo plano após plano o registro de uma geografia sensível que privilegia a zona ainda desertada do Lower Manhattan, metáfora deteriorada da indeterminação exilada da cineasta. Com sua voz ainda adolescente, ela nos lê (rápido) as cartas inquietas de sua mãe, textos sem resposta que balizam por sua vez todo um outro espaço, aquele do afeto, da ausência e da distância. 




Mais uma vez, nós não estamos longe de uma abordagem de artista “moderna”, entre monocromo (as vistas da cidade, seu som agressivo – “porque um metrô que passa é um metrô que passa”) e ready-made (as cartas da mãe). Mais uma vez, é impossível de arrancar do filme um fragmento, um momento particular, ele é para pegar ou largar. Sem dúvida cada um de nós viverá um instante de News from home mais intensamente que outro, é que ele conheceu essa rua, essa palavra, ou que seu devaneio teria pendurado no trem fatal do filme uma dor íntima esquecida. Fique à vontade. O filme, em vez de se fechar sobre um sentido preconcebido, chapado, em que tudo concorre para sublinhar, se abre propondo uma multiplicidade de entradas, de passagens, de interstícios, em um dispositivo centrífugo no qual qualquer leitura pode vir se abismar, no qual qualquer sentimento preexistente do espectador pode vir contaminar o filme, qualquer lembrança ressoar nele. Akerman não impõe o dito, a mensagem, ela propõe um momento no qual toda mensagem pode vir (se) refletir e tomar forma. 

Objetarão sem dúvida que, para alguém que despreza a “composição”, o quadro akermaniano parece dar muito espaço ao equilíbrio, à simetria. É verdade; mas ainda aqui, é preciso pensar duas vezes. Na verdade, poucos realizadores permanecem tão completamente ligados à simetria do quadro, ou o são por más razões (Greenaway). Em Histórias da América, somos atingidos pelo respeito meticuloso pelos lugares, a saída do hotel está perfeitamente no meio da imagem, a mesa do banquete no improvável jardim também. Os exemplos se multiplicam (corredores em Hotel Monterey, ruas, cruzamentos e vagões de metrô em News from home). Quando a arquitetura do lugar não o sugere nela mesma, o que é raro pois o mundo de Chantal Akerman permanece majoritariamente urbano, logo, arquitetural, sentimos, apesar de tudo, o desejo, igualmente instintivo, de compor o fundo, a paisagem (eu penso, por exemplo, nas paisagens polonesas do começo de Do Leste ou naquelas de Sul). 

Mas nisso não há nada de paradoxal, dobrando o “fundo” do plano às regras da simetria que são as da cenografia clássica, além de deixar aflorar suas influências picturais com modéstia, Akerman autoriza sobretudo a catástrofe do movimento no espaço do plano, o movimento dos elementos, ventos, chuvas, fumaças (NYC), aquele dos objetos, carros, trens, aquele dos corpos que passam. Fixidez do quadro não quer, pois, dizer imobilidade da imagem, e os tableaux vivants, posados e saint-sulpicianos de A humanidade (Bruno Dumont) só engendrarão, não sem nobreza, um estetismo contrito diante dos ideogramas dramatúrgicos, animados e disponíveis que constroem um depois do outro os diversos Encontros de Anna. A frontalidade equilibrada (Hergé, sempre) da imagem organiza uma divisão emocionante do quadro entre o inanimado, imutável e centralizado, e o orgânico, o vivo, que o atravessa ou habita. Akerman desconfia do close, e ela tem razão. 

Tão reivindicado nos nossos dias como pretenso meio expressivo, o desequilíbrio “balançado” do quadro em perpétuo reenquadramento não seria finalmente uma forma de forçar um pouco mais o que aí evolui? Uma distorção autoritária do espaço/tempo do plano que já prejudicaria sua significação, seus possíveis. Em Akerman, em todo caso, a simetria é uma maneira, a mais inocente possível, de neutralizar o espaço do plano para que ele permaneça “à mercê da iminência” do que se passará ou não se passará; para que a pequena lâmpada que, após os minutos de penumbra, se acenderá à direita no fim do corredor de Hotel Monterey possa contestar só para ela a validade do ponto de fuga, do mundo, e por isso constituir um evento estético, dramático, do mesmo jeito que um crime ou uma explosão. Paciência e simetria são em Akerman as condições do acidente, logo, da emoção. 

Una lacrima sul viso 

Quando, no curso de Toda uma noite, o casal improvisado do bar se põe a dançar desajeitadamente um slow italiano que o juke-box cospe, é primeiramente a impassibilidade da câmera, sua fixidez, que leva os corpos caóticos a rasgar as bordas do quadro, a se aventurar no fora de campo. Se a incoerência bêbada de sua dança nos emociona até as lágrimas, é que nós enfim demos o tempo de vê-la para nela crer, para nos vermos lá; é por isso também que em nenhum momento a terrível retangularidade que encerra os dançarinos será deslocada nem um milímetro para acompanhá-los, mesmo que os percamos de vista por um instante, para reencontrá-los mais perdidos ainda. A duração será aquela de uma canção, o espaço, a sala estreita de um café. O tempo do plano e sua rigidez “cadavérica” são a chance única de evocar o fora de campo, todo o resto, tudo o que faz com que uma noite dois desconhecidos possam se pôr a dançar como duas almas penadas. O espaço definido pelo quadro se faz então janela permitindo “o aumento desse mesmo espaço pela incursão nele do que não é ele” (Renaud Camus): assim Akerman engendra um mundo. 




Mais cedo, no seu primeiro longa-metragem, a cineasta tinha tratado em preto e branco, com a mesma fixidez intransigente, o reencontro terno e violento de duas amantes (ela própria e a magnífica Claire Wauthion). Tendo, não faz muito tempo, descrito as relações tensas entre autorismo e pornografia, eu, revendo esse plano de Eu, tu, ele, ela, medi a candura cortante da filmagem de Akerman, diante dos navios de fogo eróticos de seus contemporâneos dos anos setenta. Duração e fixidez, isto põe as coisas no seu lugar, a anos-luz de toda malandragem. Nada de câmera na mão para flertar com o ponto G, nada de montagem sugerindo um crescendo qualquer, ou esboçando mesmo uma dramaturgia do gozo. Sempre encerrados nesse quadro/caixa que delimita mais do que constrange, é a dança dos corpos que se procuram, sua obstinação à ternura, sua hesitante certeza, que surgem sem preliminares roteirizadas; em um bloco compacto de imagens necessárias, suficientes e eficazes, como a graça. 

Sem dúvida essa cena, como aquelas que dão a ver os encontros furtivos de Anna (Os encontros de Anna), escapa de toda obscenidade e de todo envelhecimento, do fato que Chantal Akerman não faz nunca um filme sobre a homossexualidade feminina, sobre a lembrança dos campos de concentração ou sobre Nova York, ela faz um filme, eventualmente em qualquer lugar e com quaisquer pessoas; a escritura tomou lugar antes e muito intensamente para que na imagem não reste nada, tanto que a implacável pertinência do dispositivo a dis-pensou. Não é por acaso que a grande Marguerite concluiu ao sair de Jeanne Dielman

Essa mulher é uma louca.” (Marguerite Duras.) 

Sabemos da atração acalorada que Chantal Akerman e Pina Bausch exerciam uma sobre a outra (cf. Um dia Pina perguntou…). Quando os dançarinos oprimidos de Kontakthof se jogam de cabeça contra o cenário que os “enquadra”, não podemos deixar de pensar nos dançarinos perdidos de Toda uma noite, nos passantes de News from home, nos sapatos das atrizes hipotéticas de Os anos 80, que atravessam a tela sem parar, reenviando o espectador à vaidade de seu desejo de saber/ver[1] mais, de cercar um “tema”, e remetendo todo cineasta ao seu projeto de manipulação completa. Akerman prefere a inscrição à descrição, o concreto ao real. Nisso ela é moderna no sentido dos grandes artistas americanos contemporâneos (de Carl André à Sherrie Levine, passando, evidentemente, por Snow e Warhol), daqueles que preferem criar armadilhas para o real e complicá-lo com emoção do que caçar o emocional prendendo o espectador pelo efeito de real. 

Longo demais, verdadeiro demais 

Onde os Straub propõem ao espectador um “método” a serviço da História, Akerman não evita ser mais instintiva, mais literária. Se comparamos duas “estradas”, aquela que corre ao longo, incansavelmente, a câmera sacudida de Cedo demais, tarde demais, e aquela que fecha Sul, o último opus de Chantal Akerman, podemos entrever tudo o que separa duas das abordagens mais apaixonantes do cinema dos “caçadores”. A estrada egípcia dos Straub não foi escolhida por acaso, ela atravessa exatamente o lugar das grandes revoltas camponesas que sacudiram o país nos anos cinquenta. Partimos de um lugar preciso, a câmera mais ou menos afixada na frente de um carro, e alcançaremos, uma dúzia de minutos mais tarde, um outro ponto também muito significante. Nesse ínterim, teremos a oportunidade física de sentir, sob o desfile de um cotidiano camponês, crianças que nos sorriem, asnos recalcitrantes, mulheres veladas, carregadas e dignas, a presença cega desses mortos inúteis, sacrificados por essa terra. O fora de campo sonhado dos Straub é a História, o antes… e o depois. Cada metro desse caminho sedutor poderá ser sabiamente justificado em uma demonstração irrefutável. Claro, a beleza irromperá, porque um pássaro canta, uma nuvem passa, e sobretudo porque o próprio filme terá nos reensinado a paciência, terá inscrito em nós uma disponibilidade inaudita à sensualidade primeira da natureza, um reajuste salutar que permite compreender o que liga os Straub a Cézanne. 




Para falar do plano final de Sul, precisemos primeiro que foi durante as pesquisas em vídeo de um filme por vir que o real irrompeu num projeto de base mais contemplativa. Por isso, o filme tornou-se outra coisa, Akerman imediatamente ofereceu seu projeto à pressão emocional do evento (um linchamento). Reação instintiva, disponibilidade ao acidente, questionamento do projeto, todas as coisas que parecem longe das Lições de História de Straub e Huillet e de sua evidência serena. No sul dos Estados Unidos, um caminhão arrastou o jovem negro numa estrada durante vários quilômetros. 

O Sul de Akerman fecha-se também com um travelling para trás, a subida retrospectiva dessa estrada, lentamente, tão lentamente que alguns motoristas brancos, apressados, ultrapassarão o carro com a câmera. A ligação direta entre a estrada, suas curvas, seus buracos, e o sofrimento ainda ardente de um ser humano podia ter, em qualquer outro cineasta, caído no patético. Não é o caso. Ao contrário do que dizia um documentarista na saída da projeção em Cannes, não é esse travelling que dá seu sentido ao filme, estilizando-o com um trailer chique e militante. Ele é apenas o resultado de um momento escandido na sua complexidade. Foi o que aconteceu durante a rodagem do filme que impôs essa estrada, no fim. Nada foi premeditado, escolhido, organizado, gerido. A cineasta não podia simplesmente ignorar o acontecimento, mesmo que isso signifique fazer vacilar a metáfora literária aberta, larga e atemporal (Twain, Faulkner…) que ensurdece nos primeiros planos do filme e que toma de repente uma ressonância amarga. 

Os encontros do sentido 

Mais que do minimalismo (termo que só se adapta com muita dificuldade ao rigor do dispositivo), ou do estruturalismo, é de uma arte “conceitual lírica” que podemos aproximar o procedimento de Chantal Akerman. Quanto mais simples é a grade fílmica , menos UM sentido lhe é imposto, e mais O sentido se instala. Se o convite do filme permanece aberto, cada plano, cada cena reenvia, por menos que se queira abrir os olhos, a um fundo de imagens conhecidas, compartilhadas. A realizadora bem sabe que o mundo “já foi filmado”, que ele também já foi escrito ou pintado; mas longe de carregar o filme com uma convocação referencial autoritária, ela escolhe deixar para o plano, pela sua plástica e sua duração, sua onipotência evocativa. Nenhuma private joke ou elitismo em tudo isso, Akerman só ama um lugar na medida em que ele é um lugar comum. E todos os lugares tornam-se um, se soubermos encontrar o imaginário coletivo. A Alemanha paralisada do pós-guerra (Os encontros de Anna), a Rússia das filas de espera (Do Leste), a Bruxelas noturna, europeia e esquecida do seu passado (Toda uma noite, Jeanne Dielman, Retrato de uma garota…), Paris (Nuit et jour), Nova York (News from home, Histórias da América). Os lugares de Chantal Akerman ressoam; pelo tempo de um filme, ela pertence a eles, ela que diz não pertencer a lugar nenhum: 

Eu sou belga, judia polonesa, nascida em Bruxelas. […] Eu não tenho a noção de que sou ligada à terra onde estão meus pés. E mesmo aqui onde eles estão, treme um pouco.” (C.A.) 




Os clichês “tremidos” de Akerman não tem nada em si de proibitivos, sobretudo se eles são reivindicados como objetos de partilha, de filiação, de eco. “A memória desaparece ou se desloca? … E a História não deve levar em consideração esses deslizamentos possíveis de um lugar a outro, essa topologia móvel que nos impedimos de apreender se privilegiamos os lugares reais…” Tocando humildemente esses lugares metafóricos, Akerman sabe também que ela rasga por um instante o véu do esquecimento, por mais confortável que seja, para nos entregar cruamente a uma nostalgia incurável, mas perturbadora. Quando, ao curso das Histórias da América, se misturam piadas iídiche, lembranças trágicas da Europa e fofocas de bairro do Brooklyn, eu imagino que só Chantal Akerman poderia afrontar essa hierarquia sagrada dos discursos, da memória, para dizer o quão perigoso é um esquecimento mais radical, mais insidioso: a amnésia atormentada de um presente sem mais história, de uma perpétua atualidade. 

Com a imagem, se põe sempre o problema da moral. Sempre, desde que haja representação.” (C.A.) 

Nos registros de geografia subjetiva que Akerman apresenta já há trinta anos, o travelling “descritivo” (“inscritivo”?) é um elemento maior. Sabemos: o travelling é uma questão de moral. Aquele que retraça (pois é de traço que se trata aqui) o calvário do jovem negro não mostra nenhuma obscenidade justamente porque ele é um dos longos travellings de Sul, depois de outros, e se ele se carrega de uma significação mais pesada, é que ele é carregado do sentido daquilo que é dito antes, durante as entrevistas, carregado da beleza repentinamente culpada das paisagens sulistas, da brancura das igrejas. 

Sem dúvida porque Akerman combate com todas as suas forças a ordem informativa das imagens e porque ela não bate esse movimento final como sendo resultante dos outros, desses outros travellings laterais que, por exemplo, percorreram as casinhas coloniais em ruínas onde a vítima poderia ter vivido, atravessado os campos onde ele poderia ter trabalhado. Se Sul se deixa transbordar pela urgência política, é poque a humildade e o belo dispositivo akermaniano se deixa sempre transbordar pelo que é impossível de mostrar, e que deve permanecê-lo, pelo que ultrapassa o entendimento do cinema e que logo obrigaria a começar a gerir, a hierarquizar, ou a explicitar. Nós esqueceremos por um instante a fixidez, por um plano roubado com câmera na mão, com zoom, pouco importa, porque ele é necessário. Eu já lhes disse, do dispositivo nascerá, para quem sabe esperar, um mundo. Honesta, Akerman acolhe com Sul essa revanche do real sobre a abstração do dispositivo com a mesma generosidade que ela nos permite entrar lá. 

A elegia da sala de espera 

Durante uma projeção de Do Leste, fiquei muito impressionado, durante o debate que se seguiu, com a diversidade desses “mundos” engendrados pelo filme em cada um dos espectadores. E para evocar o lugar do movimento de câmera na obra de Akerman, fica gravado na minha memória esse vasto travelling lateral que varre interminavelmente uma estação russa à noite, ritmado pelas filas de poltronas de uma sala de espera gigantesca onde estende-se um povo abatido, adormecido, descartado pela História, o medo e o sono. Voltaram imediatamente ao meu espírito os grandes romances russos, Ressurreição de Tolstoi, os amplos movimentos elegíacos das sinfonias de Scriabin. Esse plano tinha aos meus olhos qualquer coisa de um lirismo mais russo que a Rússia. Para Arnaud Despallières, presente naquela noite, uma única leitura se impôs: esses olhares vazios, esses rostos mortificados, fechavam-se uns após os outros, à passagem de uma câmera que lhes coloca uma única pergunta: “O que vocês fizeram com seus judeus?” A própria Akerman foi confundida por essa análise, mas, no fim das contas, esse plano a permitia também, sem nenhuma dúvida, e é toda a grandeza desse cinema. 




Menos dirigista, professoral, que a panorâmica straubiana, o travelling lateral é o movimento mais propício à meditação akermaniana. Ele desenha um traçado arquetípico do espaço urbano, pela sucessão de fachadas ; a anedota de uma boutique, a marcha dos passantes em sentido contrário, a abertura fugaz de uma perspectiva numa encruzilhada. A razão maior desse apego ao travelling lateral permanece, para mim, ligada a essa vontade de uma visão frontal, não diretiva, do espaço dramático. Passando na frente desses blocos de casas, que são também o livro aberto de um estado do social, sem nunca parar sobre uma fachada miserável como sobre um monumento elegante, a realizadora dá a ver sua coexistência raramente pacífica. Ela estabelece precisamente “a forma de uma cidade”, aquela que “muda mais rápido que o coração de um mortal”. A regularidade inexorável do movimento, seu “naufrágio” (tanto quanto possível, e aqui, o próprio acidente torna-se poético), não privilegiam nada, inventam, pelo contrário, a coerência secreta do lugar, sua cor escondida. 

A forma das cidades 

Se a fixidez e a simetria são para Akerman o melhor meio de deixar eclodir o balé dos corpos, da luz e dos objetos, é a irremediável varredura da câmera que fará da cidade o continuum obsessivo da indeterminação primeira. A fachada diante da qual teríamos surpreendido um pedacinho de humanidade em plano fixo, o movimento de câmera nos lembra que há centenas como aquela. O travelling nega e multiplica ao mesmo tempo a exemplaridade obsessiva do plano fixo. 


Fixidez e movimento dialogam e fundam o verdadeiro projeto dramatúrgico de Chantal Akerman. Como em Sul, é um travelling para trás que vem fechar News from home: plantada corajosamente sobre a ponte atrás da balsa de Staten Island, a câmera enquadra Manhattan que se afasta, como em um adeus definitivo a esse magma urbano, que acabamos de pisar, bloco após bloco, pelo travelling, dos esboços às miniaturas, pelos planos fixos. 

O discurso e as motivações divergem profundamente, mas minha experiência do cinema dos Straub e daquele de Akerman, no que concerne em todo caso seus filmes ditos “documentários” (ou melhor, contemplativos ou meditativos), me leva a pensar que eles são aqueles que melhor souberam habitar as cidades que filmaram, percorrê-las. E se eu nuca vi o Egito, eu sei que, quando da minha chegada a New York, tive a impressão de já ter estado lá, de ter vivido lá por muito tempo, pela simples e tenaz pregnância de um olhar e de uma geografia poética, aqueles de News from home. Chantal Akerman tinha meio que feito o reconhecimento por mim, e de forma alguma empobreceu a revelação do modelo. Ela me inventou a cidade, me deu as chaves. 

Durante uma entrevista com a cineasta em 1986, Chantal Akerman não me escondida a sua profunda confusão. Difícil, para uma verdadeira moderna, admitir o advento lúdico e sombrio de um pós-modernismo que não tinha mais formas para mover nem retaguarda para fustigar nem territórios claros para balizar, para conquistar. É muito revelador observar como a realizadora soube, pelo viés da encomenda ou da “figura imposta”, tirar proveito dessa mesma confusão, sem nunca renegar os princípios “modernos” do seu trabalho, evitando também a crispação purista ou o silêncio desdenhoso. A retrospectiva do République teria assim permitido lançar um olhar mais completo sobre esses filmes e de constatar que Chantal Akerman por sua vez nunca especulou baixo. Cada uma de suas aparições (especialmente para a televisão) guarda a marca profunda de uma inquietação formal enunciada desde seu primeiro curta-metragem (Exploda minha cidade) de 1968. 

A ilusão cômica 

Ressurreição para uns, restauração para outros, os anos oitenta foram contudo aqueles do adeus ao modernismo. Mas eles teriam permitido, fazendo passar para o segundo plano a problemática das formas, o advento de uma certa liberdade caprichosa. Se oferecia então o luxo de revisitar os gêneros, de compor com a encomenda, a série, longe da chantagem dialética da superação e do sublime que caracterizava o exagero das vanguardas. Chantal Akerman teve assim a ocasião de abordar de frente os domínios que atravessavam seu cinema sem que ele fosse verdadeiramente interrompido. 




Poderíamos ter descoberto um personagem burlesco de uma graça impressionante: Chantal Akerman herself elaborando as estratégias mais derrisórias para escapar de seu roommate espaçoso, O homem da mala. Não sem relembrar Harpo Marx, que inaugurou, contra sua vontade, nossa pequena reflexão, o personagem cômico e mudo, redondo e animado, que inventa, com pequenos passos furtivos, a realizadora de Jeanne Dielman, causa surpresa pela autoironia paranoica e terna que desenvolve. Enquanto Duras roda As crianças, Akerman, brincando e se parodiando em O homem da mala, retoma a derrisão asquenaze mais virulenta. Se a topografia limitada do apartamento parisiense é captada com a mesma exatidão rigorosa que aquela do Hotel Monterey do começo, se o plano fixo permanece a unidade de narração, é para dar lugar à indizível tragicomédia da escritura impossível, à angustia da página em branco. Aqui é o corpo burlesco de Akerman que se enrola na fixidez ameaçadora do quadro. O apelo literário do plano fixo, que em New York convocava Singer e Hopper, continua seu trabalho ao lado de Paludes de André Gide ou a versão Queneau. 

O livro aberto de uma cidade se comprime aqui em espaço mental, aquele de um pequeno apartamento onde a dança dos que se evitam, a assombração da promiscuidade, a esperança ingênua do isolamento criador, tornam-se desafios cômicos e inquietantes. Em uma época em que querem nos convencer de que tudo pode se resolver na comunicação, o que há de mais corrosivo que uma Akerman mal-humorada, fechada em seu escritório para escapar do Outro e da angustia da página em branco? 

Aplicação inesperada do dispositivo akermaniano, O homem da mala não inaugura uma veia, nem faz receita. No mesmo ano (1984), na ocasião de uma muito pós-moderna tentativa de refazer um Paris visto por... vinte anos depois, Akerman realiza Tenho fome, tenho frio, no tom de um burlesco mais chapliniano, mais amargo. Esse registro não é um “achado” para mobiliar o fim das pesquisas formais e continuar a ocupar o terreno a qualquer preço, ele está lá desde o começo, na forma de jazigo: apesar da sua queda suicida e explosiva, o curta-metragem Exploda minha cidade anunciava quinze anos antes uma forte disponibilidade para a derrisão. Uma garota organizada e sua armada de objetos utilitários afunda subitamente no caos, na revolta e na morte. 

Eu poderia ter me tornado uma cineasta burlesca se tivesse continuado a trabalhar com meu próprio corpo, o que eu tenho menos vontade hoje. Mas é verdade que eu tenho uma ligação impossível com os objetos: eu quebro, eu derrubo...” (C.A.) 

Essa candura burlesca primitiva, fundadora, tomava em Eu, tu, ele, ela uma dimensão trágica. Sabe-se o quanto a nova geração de artistas contemporâneos, oficialmente em revolta contra a seriedade dos anos conceituais, faz bom proveito da autoficção cômica. Exploda minha cidade não tem, no entanto, nada a invejar aos vídeos mais festejados do nosso amigo Pierrick Sorin. O cômico segundo Akerman, deliberadamente ancorado ao lado da performance, é portador de uma modernidade surpreendente que a história recente da arte só fez confirmar. As retrospectivas são feitas também para isso. Esperemos, em todo caso, que a “vontade” de nos fazer sorrir (amarelo) volte para ela, rápido. 

- Você acha que Paris é bonita? 
- Veremos amanhã 

Outra forma dessa busca, o musical. Há pouca música em Chantal Akerman; sem dúvida porque, nós o vimos, toda arquitetura de seus filmes é a de uma estética musical (de uma maneira muito mais direta que no melodista Jean-Claude Biette). Tudo é questão de ritmo, de durações e de rupturas: movimento, fixidez, contraponto sonoro... Tudo se decide no “faro” com uma grande desconfiança do didático. É por isso que eu não posso me impedir de ver mais uma filiação com os cine-músicos americanos (essa América que a fascina tanto), como Snow, Warhol ou Viola, do que com os cine-ensaístas como os Straub ou Debord. Daí a disponibilidade, a recusa da torre de marfim... e, com os anos oitenta, o desejo de inventar formas híbridas, impuras sem dúvida, mas ferozmente de sua época. Num outro tom, o achatamento frontal dos lugares, dos personagens, das situações (As Florestas, as pessoas), enfim, a luta contra a hierarquia dramatúrgica continua. É bem o que se produz em Golden Eighties




Cantar está ligado à infância...” (C.A.) 

Cantar tudo é também uma maneira de igualar tudo, como em Pelléas et Mélisande (escrito pelo simbolista Maeterlinck, tão belga quanto Hergé, e musicado por Debussy): emoções menores, dramas maiores, romances de cabeleireiras, assombração do passado, dos campos de concentração, relações de trabalho, tudo acaba nas canções. Longe do exercício de estilo retrô, graças, entre outros, à música fina e inteligente de Marc Hérouet e à presença de Lio, Akerman faz o inventário afiado mas distante do charme e dos tiques do período New Wave. 

Off Broadway 

Quando ela aborda a comédia musical, à simetria do cenário junta-se a da coreografia. Resulta daí uma imagem clean, legível, gráfica e um pouco inquietante na qual o único signo quente, orgânico, permanece a inocência dos rostos cantantes; tudo o que permanece “verdadeiro” quando o artifício (musicalização, cenários de estúdio, iconicidade dos balés e dos figurinos) toma o poder. A margem de manobra “sensível” se reduz à representação sem exagero de um casting “pela fisionomia” de uma rara pertinência (de Myriam Boyer à Jean-François Balmer). Se Akerman experimenta o limite da desencarnação formalista, às fronteiras de uma abstração à la Bob Wilson, é, mais uma vez, para que o “cerne da questão” invada empurrando a totalidade do filme, fazendo, do que correria o risco de uma frieza superreferenciada, o espetáculo incandescente da indeterminação dos corpos, às tomadas com seu desejo de clichês (modelos que desmoronam-se um a um diante de sua representação perfeita). Quando tudo nos canta, o indizível vem se aninhar na ausência dos olhares, a pregnância dos clichês (gatinhas, bandidos, riscos do comércio), o fantasma teimoso das utopias (a imigração para o Canadá) ou das lembranças (os campos de concentração). 




Com o tocante Once more de Paul Vecchiali e Grand bonheur de Hervé Leroux, Golden Eighties é um dos acertos dessa reapropriação da comédia musical. Sem dúvida porque tanto um quanto outro tem uma consciência aguda da inviabilidade do projeto a longo prazo. Esses exercícios de (grande) estilo, de inegável dimensão irônica, são manifestos tão “confusos” quanto humildes. Dez anos mais tarde, constatando o quanto a pressão vitrificante do modelo, a re-produção idêntica de um Jacques Demy póstumo (música em paródia, presença física do filho de Demy, mesma montadora de Um quarto na cidade), paralisaram o projeto de Ducastel e Martineau, Jeanne e o rapaz formidável, medimos a liberdade inusitada desse pós-modernismo “encantado” dos anos oitenta. A época em que a releitura questionou primeiro o próprio gênero e por isso a “inocência” modernista dos anos sessenta, por uma re-criação absolutamente original e um desvio rico de uma perspectiva histórica dolorosa, deu lugar ao respeito pânico do modelo Demy dado como insuperável. Congelado no frenesi da repetição, Jeanne é um simulacro desencantado e, se nem o talento nem a sinceridade dos autores estão em causa, a irrupção de um fatum novo (a AIDS) não chega a dar ao Rapaz formidável sua autonomia. Eu temo que a dimensão mortífera desse objeto fílmico super-identificado não escapa, em parte, de seus criadores e, muito além do HIV, é a convocação frenética do modelo, o adeus a qualquer desejo de “mover as formas”, o advento do não-tempo espetacular e de sua terrível inconsequência, que contamina um cinema moribundo. 

Não tendo à mão nenhuma solução sobressalente, reconheçamos a amplitude desse trabalho de reconstituição da meticulosidade virtuosa, e apostamos que o próximo filme de Ducastel e Martineau nos reservará verdadeiras surpresas. Resta que a experiência de Golden eighties, muito ancorada esteticamente na sua época, nunca confundiu homenagem com submissão. Consciente do processo de reciclagem pós-moderna, de seus perigos (a usurpação, a impostura, o “juventismo”, que engendraram a aparição de um Besson, por exemplo), Akerman toma o cuidado de iniciar uma verdadeira reflexão crítica sobre o seu projeto, dando à sua comédia musical um duplo estranho em forma de making of e de meditação premonitória. Esse filme, Os anos oitenta, é a esse respeito um dos mais adoráveis de Chantal Akerman, e meu preferido. Explicações. 

A narração de meus filmes não é autobiográfica, mas o sentimento é.” (C.A.) 

Um filme está por fazer; uma comédia musical. Chantal Akerman, da qual nunca se dirá o bastante o quanto ela atribui importância à escritura, só se torna mais impotente (como eu a compreendo) diante da infinidade de possíveis: os lugares, as cores, os “motivos”. Uma vez encontrado o eixo do filme, sua musicalidade, o resto virá a seguir. 

Rasuras 

Os anos oitenta é o filme desse processo: uma colagem tateante na qual se respondem vídeo-ensaios e embriões de cenas definitivas: diálogo dos formatos, das tramas; jogo do “acabado” e do “inacabado”, do provisório e do definitivo; questionamento engraçado e modesto da presunção delirante que faz com que se decida contar tal história em vez de todas as outras. Raramente, nessa época de transição do cinema (1980-1985), o processo de criação foi denunciado com tanta delicadeza; mais cortante que o filme em pane do amigo Wenders (O estado das coisas), menos complacente que o fracasso dolorista de Garrel (Ela passou algumas horas sob a luz do sol), Os anos oitenta permanece o filme mais justo sobre essa “confusão” que presidirá o deslizamento fatal e lúdico em direção à pós-modernidade cinematográfica... e à equivalência das formas; equivalência indiferenciada que, teremos compreendido, não tem nada a ver com a empreitada de achatamento e de negação organizada da hierarquia que fundou o cinema de Akerman. Aos meus olhos, é nesse filme que a cineasta resolve definitivamente esse possível mal-entendido. 




Dando a ver a paciente procura de um passo, de um “porte” justo, em uma bela abertura em vídeo, Akerman sabe da piscadela furtiva que ela endereça aos créditos de Os guarda-chuvas do amor. O que ela não percebe ainda é que com essas imagens radicais ela se coloca no diapasão de todos aqueles (Pina Bausch, Bob Wilson, Bertrand Lavier, Daniel Larrieu, “Grand Magasin” etc.) que, nesse momento preciso, procuram em qual direção andar sem ceder à tirania da descoberta. Para escolher um rosto, investigaremos sobre ele, e diremos o quanto esses rostos serão ao final, no “verdadeiro” filme, os únicos habitantes de um shopping teatralizado até a morte. Renunciaremos mesmo a certos rostos vislumbrados (Magali Noël), o cinema é feito tanto de acasos quanto de necessidades. 

Esse Anos oitenta é o filme das ausências, a narrativa modesta da insatisfação que suscita um projeto diante de sua terrível realização. Como para se encorajar, depois desses primeiros ensaios, fragmentos de um casting abstrato, de passos, de matérias, de motivos, a cineasta faz uma pausa com ares de falso fim, uma respiração. Nós saímos então do estúdio, do hipotético shopping da “Toison d’or”, para medir a altura. A noite vai cair sobre Bruxelas, a câmera reencontra o seu espaço de predileção e varre com o olhar a cidade que se estende aos seus pés, por muito tempo. Só depois nós veremos algumas cenas rodadas, cantadas, dançadas, ainda separadas de seu próximo filme, e ainda mais perturbadoras. 

Exercícios de admiração 

Longe dos filmes-panfletos suplicantes e obsequiosos, tão importantes hoje, Os anos oitenta é uma obra integral, ainda que inseparável de sua forma definitiva. É quase a condição. No fim de Golden eighties, fora do estúdio e do “show”, o filme irá também respirar do lado de fora, no amanhecer, cheirar o tempo que passa sobre a avenida Louise, como num apelo à ordem, a ordem desses pacientes blocos de ar, de tempo e de espaço que são o sopro vital da Arte segundo Akerman. Pois, além de uma curiosidade insaciável, de uma vontade de “mover”, de se experimentar, Akerman soube impôr suas condições, é o que torna seu cinema exemplar. Falando de O demônio das onze horas, ela declara: 

Eu tive a impressão que ele falava de nossa época, do que eu sentia. E sem dúvida, eu quis fazer a mesma coisa com filmes que fossem os meus.” 




Falar do seu tempo nem sempre é coisa fácil; sobretudo quando a época parece deixar coabitar mil temporalidades diferentes, vagamente unificadas por uma visão televisual tão pobrezinha quanto inexata. Daí essa vacilação de toda perenidade ficcional. Fim das “grandes narrativas”? De Golden eighties a Retrato de uma garota do fim dos anos sessenta em Bruxelas, Akerman vai se aproximar “da borda da ficção”, retirar-se também diante da simples captação dos objetos pré-existentes, falar daqueles que ela ama. Mas, a cada vez, alguma coisa resistirá ao apagamento do “eu”. Bem antes de isso ter se tornado uma “tendência”, muitas vezes esperta, ela dará a palavra a desconhecidos sem cortá-los, montá-los, comentá-los. Em Diga-me, ela vai visitar encantadoras velhas senhoras judias do quarteirão da République, deixando-lhes enfim o direito ao silêncio. Um documentário absolutamente irrepreensível, sem nenhuma afetação, que confirma que, sem obras de arte à altura, o “dever de memória” não será muito mais que uma tarefa, uma obrigação voluntarista “solúvel” na boa consciência. Como Lanzmann, mas à sua maneira “doce”, Akerman sabe se retirar diante da imagem completa daquilo que ela quer nos fazer compartilhar. Poderia estar aí o verdadeiro “lugar de memória” que Marc Augé qualifica de “esforço sublime e por essência sempre inacabado de pensar um passado privado de sentido e um presente privado de futuro: o tempo como mistério exausto mas não solucionado”? 

Mesma ausência atenta entre os atores-dançarinos do Tanztheater de Wuppertal, mesma recusa da hierarquia. Pina não falará mais que os outros; será difícil estabelecer isso, fazer com que eles não falem só dela, do que ela lhes pergunta. Tomaremos todo o tempo, refletiremos e apareceremos refletindo sobre isso. As relações de poder não estarão ausentes desse retrato em mosaico, Um dia Pina perguntou... E ela pergunta tanto e sempre. Mais uma vez, longas praias quase warholianas deixarão para alguns o tempo de inventar um presente: bem mais que no palco, esse americano que, diante da câmera, traduz em linguagem de surdos a canção The man I love terá roubado do tempo que Pina pede, ao longo de dias, um momento de uma intensidade telúrica; minutos de cinema puro entre os mais belos que me foram dados a ver. O cinema de Akerman é generoso. 

Generoso até a ausência. Quando a cineasta relata uma representação de Letters Home, ela sabe não reinvidicar nada além da beleza do texto de Sylvia Plath, e a exatidão dos rostos de Delphine Seyrig, fiel, e de sua filha. Ou quando a câmera se aproxima e se afasta por lentas ondas (Wavelength de Snow entusiasmara Akerman em 1969) do corpo irônico de Sami Frey embarcado no monólogo cabotino de A mudança. A clareza angulosa de News from home, a legibilidade diáfana dos Encontros de Anna, foram assim postas ao serviço de puros “exercícios de admiração”. Bela forma de duvidar de si e de exprimir em imagens a confusão legítima de uma artista em contato com o mundo. 

Mal-entendidos 

Devo confessar que, quando do seu lançamento, em 1991, eu fui um pouco desorientado por Nuit et jour, cuja leveza cuidadosa nos limites de uma HQ truffautiana não correspondia ao relâmpago salvador que eu esperava beatamente do retorno de Akerman às telas. Eu aprendi há muito tempo que a expectativa que temos de um filme pode perturbar a visão efetiva. Se a retrospectiva do République não questiona o fato de que há obras maiores e obras menores, ela, pelo menos, permite indicar que não há obra completa sem obras menores, sem filmes de passagem. É só rever o fim de Nuit et jour para reconectar imediatamente essa comédia intimista (o bairro da République, sempre) às afirmações mais radicais do cinema de Akerman. Resignada, Julie (Guilaine Londez) sai do apartamento do seu primeiro amor, pronta a tomar seu destino nas mãos. Ela se afasta e nós seguimos quem caminha no meio de uma rua com um passo decidido. Esse longo plano conclusivo, que nenhum crédito vem desvanecer (o fim virá, no seu tempo), diz tanto, atravessa tanto do espaço, da noite, de Paris, exige tão pouco de representação, de “dizer”, que ele abre de um só golpe o filme a essa divisão clara do tempo, do quadro e do sentido, desencadeando o raio tão esperado, a emoção pura. 




Eu teria adquirido no République a certeza de que um ensaio mal acabado de Chantal Akerman permanece, aconteça o que acontecer, mais rico de ensinamentos que muitos sucessos apressados dos quais se alimentam os inumeráveis defensores do “no seu gênero é interessante”. E se, durante alguns momentos, alguns puderam querer neutralizar o cinema de Akerman relegando-lhe à fila das curiosidades fora de moda, deixando-lhe com condescendência a auréola de uma ativista feminista que passou para o lado inimigo, eles precisarão se arrepender. 

Breve nos cinemas 

Eu certamente vou parar um dia de fazer filmes, mas eu nunca vou parar de escrever.” (C.A.) 




Dessa pequena visão global emergirá, eu espero, o que, na carreira de Chantal Akerman, permanece exemplar: uma fidelidade a si mesma que poucos autores dessa geração podem reivindicar; fidelidade sem rigidez didática, sem rotina, sem negação nem concessões, inteligentemente negociada com a evolução do cinema e dos públicos. Nós temos dito, feminilidade, judaicidade (e “belgitude”...) nutrem a obra de Akerman, por vezes mesmo em segredo. Quanto à sua preocupação constante, fundadora e sempre visível, de renovação das formas, poderia ser não apenas descoberta mas também, podem estar certos, partilhada por todos aqueles a quem a abdicação pós-modernista não satisfaz mais. Eles são uma legião, aqueles que sabem que Harpo estava mesmo segurando o muro, e que Chantal manterá custe o que custar a “ficção de um cinema, salvando a si tanto quanto dele mesmo graças às metamorfoses às quais ele se submete”. Aqueles, portanto, que continuam acreditando na Beleza.

[1] NdT: o jogo de palavras (sa)voir se perde na tradução. 

News from Chantal foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n°11, outono de 1999. Tradução: Miguel Haoni.

Os trapos do realismo




Por Pierre Léon 

A querela do realismo na arte procede […] da confusão entre o estético e o psicológico, entre o verdadeiro realismo, que é a necessidade de exprimir a significação ao mesmo tempo concreta e essencial do mundo, e o pseudo-realismo do trompe-l’œil (ou do trompe-l’esprit) que se satisfaz com a ilusão das formas”. 
André Bazin, Ontologia da imagem fotográfica[1]

Realismo: em termos de arte e de literatura, ligação à reprodução da natureza sem ideal”. 
Ideal: o modelo interior do poeta, do artista”. 
Le Petit Littré 

Tudo está bem? 

O ódio, de Mathieu Kassovitz, é um filme muito curioso, pois ele põe, um pouco nas bordas de uma poética pobre, questões importantes, como o faziam há uns 10 anos A sociedade dos poetas mortos, de Peter Weir ou Imensidão azul, de Luc Besson, em um fluxo ininterrupto e por vezes eficaz de clichês sociológicos ou psicológicos, como se o cineasta drenasse com ele uma frustração, um incômodo diante dos temas encontrados, na falta de ter reduzido suficientemente o campo de suas preocupações. Já o próprio título, ainda que seja lúcido a respeito de sua polissemia, uma vez que designa ao mesmo tempo o antônimo de amor e uma expressão da linguagem corrente, mantém o espectador em uma posição deliberadamente inferior, fazendo apelo globalmente a sua consciência social diante de uma situação cuja gravidade o cineasta teira sido o primeiro a compreender. Não é uma caricatura: O ódio se situa de partida em uma metáfora carregada (o homem que cai do alto de um prédio e que repete para si durante sua queda: “até agora, tudo está bem”), reexposta no fim do filme e que não deixa nenhuma dúvida sobre a posição de árbitro que seu autor se outorga. Por mais desagradável e discutível que essa afirmação possa parecer, ela não deixa de ser a prova de certa força de convicção. A análise dupla de Kassovitz, ao mesmo tempo do cinema e da sociedade, mesmo que seja primária, não é completamente errônea, pois dá conta da dominação psicológica do primeiro sobre a segunda e da lei segundo a qual a eficácia de uma tese ideológica se mede pela capacidade de simplificar sua enunciação. É também a lição de Eisenstein, que Kassovitz parece ter naturalmente assimilado. 

Seu realismo platônico — o mundo das ideias antes do mundo dos homens — se situa na linhagem obscura do cinema francês, que vai de Duvivier (pela obscuridade pragmática) a Carné (pelo estetismo geométrico da decupagem), passando por Clouzot (pela busca por eficácia) e que, no cinema contemporâneo, desemboca em certos filmes de Tavernier, Corneau ou Blier. Mas o que desequilibra o filme de Kassovitz, principalmente do ponto de vista estético, é a gestão anárquica dessa herança: a qual ideologia dominante Kassovitz se opõe ou acredita opor-se com um método que se origina na pior prática acadêmica e em uma enunciação brutal e descabida de um ideal de cinema (e não mais de um modelo de artista), como se o mero fato de fazer filmes colocasse o cineasta acima dos que não o fazem, ou seja, de quase todos os outros? Em particular, a cena kubrickiana da pilhagem de uma galeria de pinturas parisiense, na sua grotesca incompletude, dá calafrios pelo que acumula de tentação totalitária. A câmera, inteiramente devotada à causa dos que quebram (e que acredita estar, assim, do lado dos oprimidos), filma e escruta os rostos angustiados, como se fôssemos assistir a um estupro coletivo, e os estupradores, em um movimento cínico e fazendo caretas, fossem confiar à película a imagem de seu crime. Mas não se deve esquecer que é entre os oprimidos desse tipo que os opressores recrutam seus milicianos. 

Sim, O ódio é certamente um filme político, mas talvez não no sentido desejado por seu autor. Sem sequer falar na recuperação massiva do filme pela mídia, o filme fracassa em sua meta principal, que é a de chamar atenção para um desequilíbrio social maior, e entra prudentemente no sistema da opressão, ao mesmo tempo tranquilizando os responsáveis pela organização social em sua impotência em tratar o problema e os espectadores, que se veem como as vítimas consensuais dessa impotência. 

Se, no plano estético, o filme de Kassovitz não é novo (e isso não é um defeito, o mero desejo de modernidade não envolve toda a modernidade), não pensemos, contudo, que lhe falte estilo. O roteiro é magro, mas preponderante, como em Autant-Lara ou Tavernier, a psicologia é tão banal quanto a de Besson, o desejo de marcar época é tão flagrante quanto em O boulevard do crime. Quanto ao estilo, se não é muito original, ao menos é eficaz. Esse tipo de decupagem, rápida, inteiramente a serviço da montagem, que Kassovitz pratica de modo profissional, provou seu valor há muito tempo. Planos fechados com grande-angular, a câmera levada ou fixada em cima ou embaixo das personagens, preto e branco consensual, geometria das linhas, asseio da dinâmica sonora, direção de atores ao estilo cinéma-vérité, todos os elementos funcionam em estreita osmose, o que dá ao filme uma impressão de coerência, em perfeita contradição com o caos teórico de seu tema geral. O que mostra bem que um olhar generoso sobre o mundo (exatamente o contrário do ódio) é sobretudo saber se manter à distância. Nem muito perto nem muito longe. 

Onde pôr sua câmera? 

Há uma quietude do olhar em À vida, à morte!, de Robert Guédiguian, cujas malhas do roteiro são suficientemente frouxas para permitir que nos deixemos apanhar nos fios de sua mise en scène. O filme é quase inteligente demais, atento que é a cada gesto, com a consciência grave que caracteriza a localização das personagens nos planos (como o corpo nu do cunhado sobre o rochedo imediatamente antes de a vida abandoná-lo — ou de a morte acolhê-lo) ou nessa maneira de fazer as personagens se engalfinharem e de logo se afastar, talvez no temor de forçar demasiadamente nossa simpatia. Se o filme começa como uma crônica desiludida da vida cotidiana de uma comunidade de gente pobre (no sentido dostoievskiano) e poderia nos fazer temer derrapadas wylerianas, a câmera instala pouco a pouco essa distância salutar, estreita, entre as personagens e nós, tão estreita que por vezes sufocamos nela, mas cujo princípio é relaxar a compressão com cenas de pura comédia, de dança ou de canções em que encontramos, em certos momentos, a graça de um Jacques Rozier. 




Essas personagens, por seu duplo pertencimento ao mesmo tempo ao real marselhês deslocado e ao romanesco poético do cineasta, não são, como em O ódio, funcionários de uma convicção ou prolegômenos, mas potentes portadores de solidão em uma comunidade difícil cuja confiança e coesão eles se esforçam para não trair. E, em cada situação problemática do ponto de vista dramatúrgico (a canção do avô obcecado pela guerra da Espanha, o strip-tease coletivo sonhado), Guédiguian sabe parar um plano imediatamente antes de ele nos tomar como reféns. 

Como não há realmente cenas que se sobressaem (será por isso que o filme é tão fugitivo?), trata-se da narrativa de uma experiência que nos interessa, a de um cineasta que descobre com modéstia o local exato em que deve pôr a câmera. 

O proletariado aos trapos 

Não é só o amor que responde ao ódio. Há também o cinema que responde ao cinema (sem, contudo, buscar fazê-lo) e Mulheres diabólicas, de Claude Chabrol, era, nesse ano de 1995, o antídoto salutar ao filme de Mathieu Kassovitz. Não há nenhuma semelhança de roteiro entre os dois filmes, mas uma mesma vontade de analisar o ódio como um sentimento de classe e, onde Kassovitz, inteiramente impregnado da débil ideologia pós-comunista, consensual e fundada unicamente no conceito dos direitos humanos, dá provas de uma visão unívoca, Chabrol de partida põe o dedo no que interessa eminentemente, a ambiguidade, presente em todas as formas de opressão.




Em várias entrevistas, Chabrol disse, com a malícia que o caracteriza, que Mulheres diabólicas era um filme marxista e isso é verdade, assim como Entre amigas o era. Mas a malícia de Chabrol é certamente fachada, tendo-se tornado tão de mau gosto invocar Marx, e o empréstimo que ele faz da teoria marxista não é nem fortuito nem superficial. O que falta a O ódio não é somente um contraponto ideológico, mas também o interesse mais elementar pelo que rege a realidade social. Chabrol não se deixa influenciar pela lamúria atual, mas reencontra, estranhamente, a acuidade de um Victor Hugo quando pinta com traços vigorosos esses Thénardier em potência que são Jeanne e Sophie, representadas por Isabelle Huppert e Sandrine Bonnaire (uma verdadeira ideia de casting), personagens saídas desse “proletariado aos trapos” cujas condições de existência aterradoras fazem com que ele “seja mais disposto a se deixar comprar por maquinações reacionárias[2]. Assim, sem fazer economia dessa ambiguidade fundamental, Chabrol mergulha com prazer nesse grande drama capitalista com a distância necessária para não afundar na caricatura (exceto, talvez, na atuação enfática de Isabelle Hupper — o episódio do chiclete — ou na personagem do padre) pela presença, ao lado do olhar do espectador, de um terceiro olho, ao mesmo tempo jocoso e grave, verdadeiro recurso e possível apaziguamento à sangrenta conclusão do filme. Terceiro olho que assiste a toda a família se instalar diante da tela 16/9 da televisão para gozar do espetáculo de um Don Juan dirigido em Salzburgo por Karajan, terceiro olho, que agora se tornou o nosso, implacável, mas divertindo-se com essa imagem perfeita de uma burguesia triunfante em seu bom gosto e em seu direito. Terceiro olho que não piscará quando o “proletariado aos trapos” apagará friamente essa imagem da face da terra, antes que um acidente de carro para uma e o tribunal (provável) para a outra apaguem-nas por sua vez.

Chabrol e o roteiro

Mais uma palavra sobre Mulheres diabólicas. Diz-se que há um problema de roteiros na França e deve-se ter razão, porque não há um roteiro julgado bom pelo establishment e pelo complexo rappenelo-berriano que não seja um roteiro ruim (O Urso, Camille Claudel, Urano etc.), dialogado com um garfo e recheado de clichês, mas que possui a vantagem de aferrolhar todas as saídas, encerrando a mise en scène na pura ilustração. Donde essa importância exagerada conferida aos roteiristas, como se a escrita das palavras, em absoluta contradição com a visão das imagens em movimento, fosse a garantia incontestável de um autor. Chabrol, que se abandona de bom grado a um academicismo sorridente à la Ivory (em Madame Bovary ou Um assunto de mulheres), soube liberar o lastro roteirístico e diversos pontos de sua história permanecem como que em suspenso. Por exemplo, do ponto de vista estritamente narrativo, nada nos permite afirmar que as duas heroínas cometeram os assassinatos de que foram acusadas, assim como nada nos indica que não os cometeram. E o fim do filme permanece absolutamente enigmático com algo de desproporcional nessa brusca irrupção do fora-de-campo (o acidente, a chegada da polícia na noite imensa), onde o espectador, sempre terceiro olho faceiro e atento, passeia e imagina o que lhe aprouver. Chabrol estabelece uma relação conflituosa com seu roteiro, que deixa de ser um simples tapete sobre o qual rola o travelling de sua mise en scène, ele o discute, questiona-o, obscurece o que não precisa ser dito, demora-se nos momentos em que não acontece nada (em particular, todos esses planos que mostram o corpo lento, como que anestesiado, de Sandrine Bonnaire) e, além disso, se dá ao luxo desse suspense hitchcockiano escalonado em que o analfabetismo de Sophie é primeiramente comunicado ao espectador e depois às outras personagens. É nisso que o roteiro deve à mise en scène, e não o contrário.

Ademais

Por outro lado, o cinema é uma linguagem” (Bazin). O que me interessa é esse “por outro lado”. Porque, para que haja um “por outro lado”, a sintaxe exige que tenha havido um “por um lado” e ele não está aí. O que Guédiguian afirma como que de passagem é que o cinema é uma linguagem e que, talvez, ele seja, precisamente, de outra parte[3] (e de outra parte é em seu lugar). Não se pode negar ao cinema essa capacidade de comprazer-se e denegrir-se, de buscar ao mesmo tempo a aprovação do público e a da crítica, de professar, como o fez Kassovitz em uma polêmica com Les Inrockuptibles[4], da qual o mínimo que se pode dizer é que ela não o fez parecer maior, o ódio aos intelectuais, ódio burguês por excelência, ou de buscar em experimentações subterrâneas a pedra filosofal. O cinema é, de fato, a arte total e, se ainda existem iletrados, como a Sophie de Chabrol, é pouco provável que encontremos mais de uma dúzia de analfabetos da imagem (Sophie assiste à televisão o dia inteiro). O cineasta fala a língua de todo o mundo. Eu acho que Guédiguian fala a língua de Mathieu Kassowitz, mas é pela elaboração de uma linguagem que ele se singulariza, e Kassovitz, por sua audiência excepcional. Não se trata de opor essas duas práticas ou de julgá-las, pois ambos os filmes são objetos culturais, que são iguais diante de nós, apesar de seus autores e do que eles quiserem dizer sobre eles, mas de buscar esse ponto preciso em que seus filmes operam a junção com a realidade. E é na diferença entre o julgamento de realidade e o julgamento de valor que reside a função essencial do realismo.

O sintagma de São Tomás

Se a querela de que fala Bazin entre a arte realista e a arte trompe-l’œil é como o Etna, que nunca se apaga completamente, acontece de um cineasta, pela importância que assume aos olhos de seus contemporâneos, conseguir mantê-la em uma atividade razoável, isto é, atrair para si oposições e propor sua síntese. Esse cineasta-ímã (e amante) chama-se Jean Renoir. Se olharmos de perto, o que encontramos no meio do caminho entre Grémillon e Duvivier? Renoir. Entre Gréville e Trivas? Renoir. Entre Pagnol e Guitry? Renoir. Entre Clouzot e Becker? Renoir. Entre Godard e Demy? De novo, Renoir. Entre Eustache e Truffaut? Mais uma vez, Renoir. Com isso, não quero dizer que Renoir seja o justo meio do cinema francês, mas, ao longo de toda a sua carreira, que vai do mudo à maturação do cinema moderno, ele soube, por sua técnica de camaleão realista, atrair para si todas as transformações maiores de sua arte, ao mesmo tempo em que permanecia modestamente o maior dos cineastas.




Um homem que não gosta de ser comparado a Renoir desempenha hoje em dia esse papel federador e é Maurice Pialat. Já pelo lugar que ocupa (ou que ele quer dizer que ocupa) no sistema cinematográfico francês, o de um mal-amado, de um eterno avexado, notório insatisfeito, à frente, mesmo assim, de uma dezena de longas-metragens em 26 anos, o que não é muito, mas não é algo desprezível. Um cineasta inclassificável, à distância das comunidades, dir-se-á o contrário de Renoir, sim, mas que se assemelha ao cinema de hoje no que ele tem de heterogêneo. 

De qualquer forma, é divertido constatar que Pialat, que pratica a arte do denegrimento como ninguém (inclusive a respeito de sua própria pessoa), é justamente o cineasta que, em pouco mais de um quarto de século, integrou em sua poética a destruição narrativa godardiana (e sua relação com os atores-estrelas), a experimentação estética eustachiana (sobre a duração de uma cena), a descrição atenta da juventude e de sua capacidade ou não de transformar o mundo (como em Rohmer), mas também a afirmação de certa vulgaridade enquanto fazendo parte do patrimônio (com empréstimos de Bertrand Blier ou mesmo de Michel Lang ou Max Pécas). 

Portanto, um homem contraditório, inteligente e sensível, um cineasta que se interessa pelo momento que passa sem deixar escapar nada de sua magia, um pintor da desordem, cujos filmes possuem todos esse pequeno perfume de inacabado, de falso natural e de aparente improvisação que os coloca de partida entre as manifestações mais singulares dessa segunda metade do século. Em qualquer filme de Pialat, há sempre — e podemos decididamente chamar isso de milagre — ao menos uma cena ou mesmo um único plano cujo grau de sentimento real é tal que tem-se paradoxalmente a impressão de viver um sonho (penso na primeira aparição, no vão da porta, do Pialat-ator em Aos nossos amores). É nesse tipo de aparição que se desenrola plenamente “essa cumplicidade buscada na filmagem e cujos indícios o espectador percebe como um convite a entrar na dança, como uma vara estendida a sua própria conivência”, como nota Jacques Bontemps a respeito de A noite da encruzilhada, de Renoir[5]. Há uma semelhança evidente na direção de atores tal como praticada por Renoir e Pialat. Ainda que este último exponha mais voluntariamente os traços e reduza ainda mais a distância que separa o ator da personagem, sem que se possa identificar precisamente com quem estamos lidando — com Pialat ou com o pai de Suzanne? Com Bonnaire ou com Suzanne? (ainda Aos nossos amores); com Jean Yanne ou com um sósia de Maurice Pialat? (Nós não envelheceremos juntos) —, há em Renoir o mesmo tipo de perturbação que nos acomete quando vemos A cadela ou A regra do jogo, em que a diferença que vibra entre Simon e Legrand ou entre Renoir e Octave é da espessura de uma folha de papel-bíblia. O papel-bíblia da ilusão[6]

O novo filme de Maurice Pialat, Le Garçu, para além da provocação regional de seu título — mas que cumpre suas promessas por causa do suspense psicológico que rege o filme e que responde à questão “mas de quem se fala?” — joga até o fim a carta da interpenetração entre a ficção proposta e a realidade documental da vida privada. Pela presença de Antoine Pialat, o filho do cineasta, pela presença intertextual de Depardieu, pela heterogeneidade da interpretação, pela explosão aparente da linha narrativa, Pialat mostra uma capacidade de organização do caos à qual ele mesmo não nos havia acostumado (e que falta tão cruelmente ao filme de Kassovitz). Então, seu filme torna-se um concentrado temático e estético de seu caminho pessoal, mas sem o ensimesmamento que caracteriza, em geral, esse tipo de exercício (seria divertido evocar Fellini e Moretti a esse respeito), porque a generosidade faz com que se olhe para outro lugar. 

Se Le Garçu não é o filme mais bem-sucedido de seu autor (não há nem essa adequação vertiginosa entre a filmagem e o argumento como em Antes passe no vestibular nem a acuidade ao mesmo tempo amarga e precisa das relações sociais como em Loulou nem a grandeza cômica da tragédia familiar como em Aos nossos amores nem o sopro inquietante de uma solidão exasperada como em Van Gogh), é porque ele acumula disso tudo elementos dos quais talvez ele não tenha o domínio absoluto: em sua maneira de filmar seu filho, há mais um olhar de pai que um olhar de cineasta, o que não se lhe reprovaria, mas sua presença incômoda (pela mobilidade e pela vida que seu corpo de antes do cinema exprime e que não pode dar conta dos imponderáveis de uma filmagem) exige do espectador que a aceite ou rejeite em vez de integrá-la à economia geral do filme, assim como ele não integra ou integra dificilmente as personagens de Elisabeth Depardieu ou de Fabienne Babe. Em contrapartida, Gérard Depardieu, tão enigmático, habitado por uma força de ordem mitológica (não é Aquiles saindo de sua tenda, imóvel a grandes passos?), propulsiona com uma real leveza sua massa invadindo os quatro cantos de cada um dos planos que habita: é preciso vê-lo correr na praia para compreender o que esse corpo estranho do cinema francês pode deslocar como sentido suspenso! 

O que caracteriza em primeiro lugar esse filme desconfortável é sua capacidade de integrar a querela de que fala Bazin em um conjunto de interrogações, correndo o risco de que elas o levem ao desinteresse por certos elementos narrativos (na recusa de tipificação social das personagens, entre outros), mas ganhando em outros planos, quando se recusa, por exemplo, a romper a sequência em que Rocheteau come torradas e em que sua falsa doçura pascaliana (“Não obstante essas misérias, ele quer ser feliz e quer apenas ser feliz e não pode não querer sê-lo”) rompe com a presença ilusoriamente viva de Depardieu. É nesse sentido que Pialat é um verdadeiro realista, um realista do presente, que vira do avesso, como uma meia, o sintagma de São Tomás: eu vejo o que creio. E que sorri gravemente para o espetáculo da divina comédia humana. 

[1] In: Qu’est-ce que le cinéma?, éditions du Cerf. 

[2] Marx e Engels, Manifeste du parti communiste, Aubier. 

[3] Jogo de palavras a partir da locução d’autre part, “por outro lado”, mas que também poderia ser lida literalmente como “de outra parte”, “de outro lugar” [NT]. 

[4] Descontente com o tratamento “crítico” do filme por parte da revista semanal Les Inrockuptibles, Mathieu Kassovitz enviou à redação do jornal uma carta virulenta, que foi publicada no nº 15 (21-27 de junho, 1995), acompanhada pela resposta não menos virulenta dos jornalistas incriminados. Foi-lhes fácil replicar ao “… ganhar a vida criticando os outros não é, na minha opinião, um trabalho glorificante…” e a outros “… a crítica deve permanecer objetiva, mesmo se for negativa”. 

[5] In: “Le feu de l’esquisse”, Trafic, nº 16, outono de 1995. 

[6] Penso que, no cinema americano, essa distância entre o ator e a personagem se define em termos de altura, de verticalidade (por exemplo, um dos maiores atores hollywoodianos, Dana Andrews, parece sustentar o corpo de suas personagens, ao menos nos filmes de Lang, Tourneur ou Preminger), ao passo que a tradição francesa tenderia mais à horizontalidade (penso, em particular, em Raimu que precede em alguns metros os modelos que ele deveria encarnar). Hipótese a ser explorada. 

Les haillons du réalisme foi publicado originalmente na revista Trafic n°17, inverno de 1995. Tradução: Rafael Zambonelli.