O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

David W. Griffith


Por Jean Douchet

Tornou-se realmente conveniente declarar, à propósito de Griffith, que ele é o inventor do cinema como arte específica, que esquecemos de tal maneira que ele é e continua a ser um dos maiores cineastas de todos os tempos. Temos o hábito, efetivamente, de considerar a obra deste realizador somente pelo ângulo de sua contribuição histórica. E com justiça. Não há um cineasta clássico – Stroheim, Ford, Chaplin, Keaton, Walsh, Renoir, Lang, Eisenstein, etc -, que ela não influenciou. Nenhuma forma de expressão cinematográfica que ela não decifrou. Nenhum método técnico que ela não experimentou. Isso pertence, talvez, a um fenômeno de ordem geral: o primeiro grande artista a distinguir-se em uma arte pressente imediatamente a sua natureza assim como todas as suas possibilidades. Aos artistas que lhe sucedem resta somente explorarem suas intuições. 

Pai do cinema, Griffith é, necessariamente, do cinema americano. Ele explorou todos os gêneros que fizeram a fortuna de Hollywood. Melhor, revoltando-se contra os trustes que sufocavam o cinema de seu país e fundando, com Chaplin e Mary Pickford, a célebre United Artists, ele concebeu os métodos de trabalho e de organização econômica. 

Mais profundamente ainda, Griffith continua o cineasta americano por excelência. Sua obra não poderia, de fato, almejar esta sorte de universalidade que a caracteriza, se ela não tivesse sido enraizada na mesma terra de seu país. É porque ela se coloca constantemente sob o signo da história, da tradição, da ideologia e do sentimentalismo dos Estados Unidos que esta obra ocupa um lugar tão preponderante dentro da arte cinematográfica. 

É porque Griffith encontrava-se de frente à extensão da arte virgem que era o cinema na sua época, na mesma situação dos pioneiros audaciosos que o haviam precedido em algumas décadas sobre o solo americano e haviam fundado esta grande nação. Da mesma maneira que eles, angustiados diante da imensidão do espaço a ser conquistado e da tarefa a concretizar, buscando fechar-se em si mesmos, refugiar-se dentro do quadro estreito mas conhecido e portanto tranquilizador dos costumes e tradições sociais, religiosas e culturais que eles tinham, ou herdadas da Velha Europa ou forjadas no barro das suas aventuras exaltantes nesse novo país, da mesma forma a liberdade intoxicante porém aterradora que implica a descoberta de uma arte nova forçava Griffith a se entrincheirar em quadros preexistentes – ao mesmo tempo aqueles da história e aqueles dos gêneros -, no interior dos quais o espírito e a imaginação podem trabalhar à vontade de tão pouco que eles deixam se fechar nesses quadros. 

Essas atitudes, as dos pioneiros como as do artista inovador, engendram necessariamente um conflito entre o espírito de aventura e o respeito pelas tradições. Não é possível portanto surpreender-se em ver aí o conflito fundamental que está na própria base da obra de Griffith. Tomamos como exemplo O Nascimento de uma Nação. Uma família do Sul passa suas férias com uma família do Norte. Uma atmosfera quieta e quente de tradição familiar. Mas o pai da família do Norte é animado por uma ideia certamente generosa porém aventurosa: o fim da escravidão. Ele inflama o Norte para impor a conquista dessa ideia ao Sul. Este último, ameaçado em suas tradições ancestrais, resiste. O conflito estoura. O Sul destruído vê todas as suas tradições desrespeitadas, sua forma de vida totalmente deturpada (os Negros governam e tiranizam os Brancos). Para restaurar a sua tradição, os sulistas são animados por um novo espírito de aventura. Eles fundam a Ku Klux Klan, criando assim uma nova tradição. 

Construído sobre o mesmo esquema, America será portanto o inverso de O Nascimento de uma Nação. A Inglaterra e seu rei Georges III não aceitam levar em consideração o novo modo de vida e de pensar que instaurou-se nas suas colônias americanas. O conflito é inevitável. A vitória pertence necessariamente aos Americanos, já que o espírito que anima a sua luta é a expressão de seu desejo de dispor, como bem entender, do seu modo de vida. 

O que condena incansavelmente Griffith, em toda sua obra, é a intolerância. Ela tem duas fontes, situadas nos dois polos desse conflito que ele tratará de filme a filme. Ou ela é fruto de um espírito fanático que quer impor uma ideia geral sem levar em conta o modo de vida dos homens; ou ela é o produto de uma ligação igualmente cega à tradições antiquadas. A inteligência sectária como a paixão cega são as duas causas das catástrofes e do mal que se abatem sobre a humanidade. Somente o coração, pelo amor que é respeito e compreensão dos outros, pode resolver esse conflito e reestabelecer a harmonia universal. 

Mas esse tema geral e naïf, típico do sentimentalismo e do otimismo americano da época, teria apenas um interesse fortemente limitado se ele não estivesse em concordância com um conflito mais fundamental, puramente estético, que existe no cinema desde que ele deixou de ser um simples modo de reprodução para se tornar um meio de expressão: aquele que se estabelece entre o espaço e o quadro. 

Basta lembrar o que era a sétima arte antes da revolução estética alcançada por Griffith. Assim que Lumière coloca sua câmera na plataforma da estação La Ciotat, seu aparelho não se mexe mais. O espaço é definitivamente circunscrito por um quadro fixo. Exatamente como no teatro, onde o quadro da cena não muda nunca. É portanto uma visão teatral que utilizarão os sucessores de Lumière, de Méliès até Feuillade: em Méliès o cenário é onde os personagens aparecem ou desaparecem no interior do mesmo quadro, como deve ser no teatro de um ilusionista; em Feuillade, progressão pelo caminho da decupagem: a câmera muda de lugar à procura do cenário, mas, uma vez encontrado, continua fixa. Existe nesses primitivos uma união perfeita entre espaço e quadro. 

É essa unidade que Griffith vai mudar transformando-a em uma dualidade. Conhecemos a lenda: em um plano geral, Griffith emocionou-se pela expressão dolorosa de uma de suas atrizes; ele avançou a câmera e fez um close dela. Assim teria nascido a primeira utilização do close para fins de expressão dramática. Descoberta que revolucionaria toda a linguagem cinematográfica. Pois, a partir do momento em que autorizam a intervenção da câmera no espetáculo, o dogma da sua fixidez é abolido. É a porta aberta a todas as possibilidades: travelling, panorâmica, mudança de ângulos, etc. Mas é também a intrusão de uma nova dualidade, que ainda continua atual, entre cinema-decupagem e cinema-montagem. Griffith devia explorar simultaneamente esses dois caminhos. E sabemos a influência considerável que tiveram sobre o cinema seus ensaios de montagem paralela em Intolerância

Tudo acontece em Griffith como se a pressão de quebrar, para as necessidades da expressão cinematográfica, a harmonia entre o espaço e o quadro suscitaram nele a nostalgia da unidade perdida; como se cada um de seus filmes fosse uma procura apaixonada da harmonia visual que ele precisou romper.

É suficiente observar a construção visual de um dos seus filmes. Ele começa sempre por uma visão paradisíaca, sucessão de planos gerais, de momentos felizes, em que se estabelece um acordo perfeito entre o quadro e seu espaço. A felicidade, a paz reina. Mas no interior desse mundo plano a ameaça da dramatização, de um conflito introduzido por um homem que quer substituir uma outra visão edênica àquela existente (como o pai nortista e fanático de O Nascimento de uma Nação, ou o Chinês de Lírio Partido), ou ao contrário impor aquela a qual ele está ligado (America).

Por consequência, a luta entre o espaço e o quadro se instaura. Liberado de qualquer entrave, restituído à sua natureza íntima, o espaço volta a ser fundamentalmente hostil. De pacífico ele se torna um importante lugar de guerra, de violência e de morte. Mais vasto ele é na tela, mais ele esconde perigos: basta lembrarmos, em O Nascimento de uma Nação, desses imensos planos gerais que descobrem as batalhas, ou daquela cena da jovem sulista perseguida pelo negro.

Como que para fugir do perigo que representa agora esse espaço, a câmera o corta. Os personagens buscam se refugiar em um quadro cada vez mais estreito. Mas em vão. Esses pedaços fragmentados, decupados no espaço, são da mesma natureza que ele. Eles aprisionam, cercam, torturam aqueles que eles prendem. O quadro por sua vez persegue os inocentes, participa do massacre deles ao mesmo tempo em que nos livra de suas dores e do seu apelo patético. No fim do filme, no ápice do conflito, as vítimas se encontram asfixiadas em lugares fechados e apertados (a cabana de O Nascimento de uma Nação, a despensa de Lírio Partido, o fortim de America, etc.), ameaçados por toda parte pelo assalto de foças externas. É preciso então que, respondendo aos seus socorros e ao apelo de nossa emoção, as forças amigas atravessem o espaço – pelo puro movimento lírico que são esses cavaleiros filmados em um travelling para trás – e libertem os desafortunados de um destino atroz. Graças à comunicação de almas e corações, quadro e espaço reconciliam-se. 

Griffith parece ter visualizado essa abordagem estética na célebre cena que termina Horizonte Sombrio. A heroína, grávida por culpa de um sedutor rico, entra em choque com o quadro rígido da família puritana que a recebeu como empregada. Caçada, ela foge, à noite, em pleno inverno, através das planícies cobertas de neve. Ela desaparece, exausta, sobre um rio gelado. Com o amanhecer, esse imenso espaço de gelo se quebra. O iceberg sobre o qual ela se refugiou racha cada vez mais até se tornar uma minúscula prisão flutuante que dirige-se até as quedas mortais do rio. O jovem rapaz da família, apaixonado pela heroína, parte a sua procura e a vê na borda do precipício. Ele corre de pedaço de gelo a pedaço gelo – de plano a plano – e salva in extremis sua amada, agora adotada pela família. 



Mas é talvez em Abraham Lincoln, um dos raros filmes falados de Griffith e um de seus últimos, que está melhor resumido o pensamento estético de nosso autor. Realizado quase inteiramente em longos planos gerais e fixos, o filme parece ser um retorno à técnica dos primitivos, a esta unidade do espaço e do quadro em cujo interior se passa a cena. É que aqui é a própria unidade do espaço, este imenso espaço que são os Estados Unidos, que está ameaçada. De onde vem esta forma de extremo rigor dos quadros, última tentativa de impedir esta ruptura fatal. De onde vem ainda, a vontade selvagem do próprio Lincoln de se fechar em um modo de vida cada vez mais austero, sacrificando tudo aquilo que poderia ter sido felicidade pessoal no altar da pátria, é o que explica porque o filme foi feito em função da célebre estátua do Capitólio, o filme termina quando a vemos, ele nos conta a história de um homem que aceitou tornar-se estátua enquanto vivo. De onde vem, enfim, a vontade de Griffith de colocar sua mise-en-scène sob o signo da imagerie d’Épinal, quadro por excelência da tradição histórica e da convenção estética, que melhor responde aos dados afetivos imediatos da sua audiência. 

Assim a motivação emocional que empurrou Griffith a capturar através de um close a face patética de uma das suas atrizes e o forçou a inventar o discurso dramático no cinema, tornou-se o motor do seu pensamento. Ele só pode atingir a felicidade e a paz em um quadro que circunscreve e ordena um espaço imenso. Mas todo quadro imposto à força cria uma cisão e resulta em desgraça. O quadro, para obedecer a sua missão, não pode, nem deve, obedecer a qualquer outra razão que não seja a do coração.

Texto retirado do livro L'Art d'Aimer, pp 51-58, publicado originalmente em Dictionnaire du cinéma, Éditions Universitaires, 24 de outubro de 1966. Tradução: Cauby Monteiro. 

Como todos os velhos casais, cinema e televisão acabaram se assemelhando


Por Serge Daney 

A guerra de posições entre a sétima arte e as estranhas claraboias, com seus encontros perdidos e suas toneladas de ressentimento não está acabada. Esse velho casal não disse sua última palavra. O cinema se reanima? Sim, mas em qual estado? Podemos ainda dizer sem rir: o cinema, a televisão? Sabemos hoje que a sobrevivência do cinema depende em boa parte da televisão. Que o cinema é, simultaneamente, a renda, a dançarina e o refém da TV. O que sabemos menos é que, esteticamente também, o cinema perdeu sua bela autonomia. A TV não ganhou, no entanto. É um híbrido, o telefilme, que ganhou. O telefilme e a novela. Em Nice, esse ano, na ocasião de um festival do cinema italiano, um jurado revoltado insistiu em salientar isto: ele nunca teve a sensação de julgar filmes, mas telefilmes. Sinal dos tempos. 

Pois há uma história da nossa percepção das imagens e sons pré-gravados (“o audio-visual”, palavra tecnocrática e feia). Nossa percepção do cine-visível e do cine-audível, como diria Dziga Vertov, passou pelo cinema, surdo depois falado, e então pela televisão. Ela começa a ser trabalhada pelo vídeo. É nessa “história do olho” que o casal cinema-televisão ainda se mantém como protagonista.

Flashback. Anos 50: começo da televisão. A TV não veio depois do cinema, para o substituir. Ela veio quando o cinema cessou de ser eterno. Quando lhe ocorreu a suspeita de que ele era mortal — logo, moderno. Ligado à atualidade. Sem recuo. Foi preciso uma guerra mundial (a segunda) e um continente (a Europa, mais Orson Welles que é um continente por si só) para isso.

Ser moderno, não é “transtornar a linguagem” do cinema (ideia ingênua), é sentir que não estamos mais sozinhos. Sentir que um outro meio, uma outra maneira de manipular as imagens e os sons, está prolongando os interstícios do cinema. O cinema foi primeiramente muito seguro de si (basta reler os textos de Gance ou de Eisenstein), ele começou por “devorar” tudo que o precedeu: o teatro, a dança, a literatura foram impiedosamente filmados. E então, um dia, um, dois, três cineastas sentem que é menos verdade, que o cinema tem menos apetite, que um monstro ainda mais voraz surgiu. 

Há poucos filmes tão perturbadores quanto Um rei em Nova York (1957). Chaplin se coloca em cena como um rei deposto, tendo abandonado seu reino (o cinema, a América), obrigado a ganhar sua vida atuando em uma publicidade (para uma marca de whisky, seu único diálogo é “miam-miam!”). O maior cineasta do mundo indica apenas, com uma ironia mordaz, que o centro de gravidade do cinema acaba de se deslocar. Ele não é o único. Entre o fim da guerra e a irrupção das nouvelles vagues (ou seja, uma quinzena de anos), os cineastas mais modernos foram frequentemente, avant la lettre, grandes teleastas. A televisão estava no fim de suas linhas de fuga, seus horizontes, seus inconscientes.


Por que isso? Hipótese: depois da guerra, na Europa, não era mais uma questão fazer o cinema servir às grandes causas e aos ideais tolos, não era mais uma questão de “uma arte total” ao serviço da “guerra total”, estava fora de questão uma música ou uma dança que nos submetiam a um ritmo. Começa a época da “caméra-stylo”, o gosto pelas microanálises, amostras anônimas, da queda das stars e, através das técnicas do direto, a era da vigilância. O cinema põe-se à espreita. Encontramos tudo isso em Rossellini (o primeiro grande repórter-viajante: Alemanha, ano zero), em Tati (o primeiro grande repórter esportivo: Carrossel da esperança), em Welles (o primeiro grande apresentador de programa, manipulado de preferência: Grilhões do passado), em Bresson (o primeiro inventor de jogos-dispositivos sádicos: Pickpocket). E mesmo no velho Renoir (o primeiro a filmar com várias câmeras, para a televisão: O testamento do doutor Cordelier). E, claro, no velho Lang-Mabuse, o primeiro chefe regente do vídeo-paranoico. Eles todos, de perto ou de longe, sabendo-o ou não, anteciparam o que deveria ser o normal da televisão. 






Pois a televisão, logo, é isso: um monstro brando que está de olho em nós e que nós, também, estamos de olho nele! Mas não mais nem menos que um gato ou um peixe dourado.

Cômico: a parte mais vivamente dilacerada, a mais “artista” do cinema (do neorrealismo italiano a Nouvelle Vague francesa) está sincronizada com um novo continente de imagens brutas, bárbaras, ainda mal delineadas. Anos 50: a TV (que ainda não sabe nada dos seus poderes) e o cinema (que começa a refletir sobre os seus, que se dedica a introspecção) se cruzam. Pois não haverá intermediário entre eles. Salvo nos sonhos obstinados de alguns visionários como Rossellini ou Godard que – escândalo — farão televisão: de O Absolutismo: A Ascensão de Luís XIV à France Tour Détour Deux Enfants.

Pois a partir dos anos 60, o triunfo de uma televisão que se tornou muito consciente de seu peso social e de seu papel de enquadramento vai dispersar pouco a pouco o cinema de sua modernidade. O cinema dará início a sua regressão: cinefilia, necrocinefilia, modas retrôs, gosto do kitsch, cinema celebrando o cinema como uma nostalgia, “cinema à antiga” que fazemos reviver nas velhas salas — e em breve na TV — com esquimós em estuque, lanterninhas mumificados, programações de época. O cinema reduzido ao seu rito. 

Passemos à TV. No começo, certamente, é a idade de ouro. Ela é feita por artesãos. Aventureiros, amadores, animadores. A televisão é primeiramente divertida. Chega (muito rápido) o momento em que o poder central (então, gaullista) acredita ver na televisão um formidável regulador social duplicado em escola noturna. Essa reforçando aquela. Homens de poder (barões, não necessariamente gaullistas) se precipitam nesse segmento. Hoje, anciãos da ORTF como Spade ou Dumayet situam essa reviravolta decisiva por volta de 1964. Ou melhor, essa derrapagem. A televisão tornara-se menos divertida, ela perdera seu frescor. Havíamos decidido na alta sociedade que ela deveria ter, ela também, sua especificidade, nós não a encontráramos jamais, e com razão. Ela estava lá, toda encontrada, desde o início. Mas não a queríamos ver. Nós tínhamos um pouco de vergonha.

Jerry Lewis disse um dia (com um desprezo não disfarçado) que a televisão era perfeita para informações e jogos, news and games. É verdade que nos EUA, ela fora raramente outra coisa. Na França, por outro lado, ela se vê confiada a uma importante missão social. Em primeiro lugar instruir e, em seguida, divertir. Primeiramente o curso permanente de instrução cívica, a história da França repetida até vomitarmos, toda a literatura do século XIX tornada “dramática”. Em seguida: news and games.

Essa nobre tarefa, infelizmente, não tinha em conta o que havia de novo no meio televisão. Sua especificidade, se quisermos. Seus próprios pseudópodes. A lista é longa. Em desordem: o impacto e os acasos do direto, a grande reportagem e o folhetim, o esporte e as câmeras lentas que ajudam a ver melhor, os interlúdios e le petit train, a mira, os jogos frequentemente débeis mas sempre complexos, o erotismo das locutoras, a Gilbertbrushing, o tratamento diferente de uma imagem — ela mesma diferente —, as incrustações e as cores achatadas, o circo e os risos enlatados, os debates minutados e o show daqueles que nos governam, os efeitos de feedback do vídeo, etc. Todo um mundo. Ainda pouco explorado (apesar de precursores como Averty).
   
A televisão tinha dois futuros possíveis. O videogame e a escola noturna. Um futuro-flipper e um futuro-teatro. Duas maneiras de perceber a imagem, de fabricá-la. Em suma, duas estéticas. Por ora, é a escola noturna que o arrebatou. É a TV-reciclagem. Reciclamos as outras artes (e o cinema mais que as outras) e reciclamos o telespectador, esse eterno grande debutante. Essa situação, notemos de passagem, é bem francesa. Bem francesa, essa oposição entre TV fútil e TV responsável. Em qualquer outro lugar, isso se passou de maneira diferente. No Japão, por exemplo, podemos interrogar seu terminal sobre todo tipo de assunto, incluindo sobre o assunto “valores tradicionais japoneses”, caso tenhamos um lapso de memória! Bárbaro, o Japão. Na França, a TV-reciclagem sempre cobiçou a dignidade cultural. Ela herdou então do academicismo de um cinema francês já moribundo (a QF e a repugnante tradição do intimismo psicológico “à la française”) e fez dele, coitada, seu modelo, seu superego. A tão aclamada “dramática televisiva” simbolizou essa derrapagem e essa escolha. Ela permanecerá como uma das vergonhas do século. Ela, a propósito, ainda não soltou seus gritos mais enfáticos. Esperemos oito centésima vigésima-sétima versão dos Miseráveis, a versão Hossein-Ventura. Esperemos a TV socialista. Temamos. 
   
A televisão, então, desprezou, rebaixou, repeliu seu futuro vídeo, o único por meio do qual ele tinha uma chance de herdar o cinema moderno do pós-guerra. Desse cinema à espreita. Do gosto pela imagem decomposta e recomposta, da ruptura com o teatro, de uma outra percepção do corpo humano e de seu banho de imagens e de sons. É preciso esperar que o desenvolvimento da vídeo-arte ameace, por sua vez, a TV, envergonhe-a de sua timidez. 
   
No momento, a televisão manteve sobretudo em uma redoma (protegida por um corporativismo de ferro) um sub-cinema e é esse sub-cinema que se tornou dominante. Economicamente e esteticamente. Pois o divórcio institucional entre cinema e televisão fora tal que ele tivera como consequência paradoxal a restauração do cinema. Fora o caso dos circuitos que se passou durante os anos 70. Mas esse cinema restaurado é, esteticamente, um golem. Ele é menos o herdeiro do velho cinema que da forma com a qual o telefilme (e a novela) colonizaram o cinema. Então, o cinema se reanima? Sim, mas em qual estado? O que resta das verdadeiras invenções do cinema?

1. O cinema tinha levado muito longe a percepção da distância. Distância entre os personagens, entre eles e a câmera, entre a câmera e nós. Distâncias imaginárias (visto que o ecrã é plano), mas ainda assim bem precisas. Essa “profundidade de campo” era essencial ao star-system já que ela permitia isolar e iluminar figuras (ídolos ou monstros). Quando um cineasta jogava com as distâncias, isso não era nada. O travelling sobre Nana agonizante em Renoir ou o extraordinário movimento de câmera que abre A nova saga do clã Taira de Mizoguchi são hieróglifos traçados no espaço. Apenas esse traço perturbava.


O que se passou em seguida? O travelling não desapareceu mas o zoom chegou. O zoom tornou-se a forma através da qual nós apreendemos o espaço. Foi um certo Frank G. Back que o inventou para filmar o esporte
à la télé. Foi Rossellini (não por acaso) que fizera dele o primeiro uso sistemático. O zoom não é mais uma arte da aproximação mas uma ginástica comparável àquela do boxeador que dança para não encontrar o adversário. O travelling veiculava o desejo, o zoom difunde a fobia. O zoom não tem nada a ver com o olhar, é uma maneira de tocar com o olho. Toda uma cenografia, feita de jogos entre a figura e o fundo, se torna incompreensível. Filmes como Francisca se tornam simplesmente difíceis de perceber para o espectador atual. Desde que a câmera não se mexa, lhe parece que nada se mexe. E se nada se mexe, lhe parece que ele não tem nada para ver. 
   
2. Outra coisa. O cinema tinha levado muito longe a arte do fora de campo, do off. Muitos efeitos de medo, de êxtase, de frustração vinham pois certas coisas eram filmadas mais que outras que permaneciam no fora de campo. A erotização das bordas do quadro, o quadro considerado como zona erógena, todos os jogos de entrada e saída do campo, os reenquadramentos, a relação entre o que foi visto e o que foi imaginado é – eu diria – quase uma arte em si. Todo um cinema. 
   
O que se passou posteriormente? A partir do momento que a TV passa filmes cortados, sem bordas, filmes em nemscope e em nemcolor, essa arte se tornou caduca. Boorman dizia um dia (com um desprezo não disfarçado) que ele alojava toda ação de seus filmes no centro da imagem para que, caso passassem na TV, nada se perca. Não faz muito tempo que Dançando nas nuvens viu, dessa forma, um dos seus três dançarinos ser amputado em um dos seus números musicais. 
   
O desprezo da televisão pelo quadro é sem limites. Porque na televisão não há fora de campo. A imagem é muito pequena. É o reino do campo único. Os chroma keys permitem, aliás, respeitar esse campo único na medida em que fraturam a imagem. Perspectivas inauditas. 
   
3. Enfim, a montagem. Ou melhor, a decupagem. O cinema clássico decompunha um espaço-tempo contínuo e o recompunha com a ajuda de raccords (com todas suas leis idiotas), todas as formas de inventar raccords aberrantes (principalmente os japoneses, principalmente Ozu), a transgressão do “faux raccord”, eis do que viveu durante muito tempo o cinema. 
   
O que se passou em seguida? A televisão não reconstitui um quebra-cabeça, ela é um quebra-cabeça. A ordem das imagens na televisão não pertence nem ao domínio da montagem, nem da decupagem, mas de algo novo e que deveríamos chamar de insertagem. A TV reserva sempre a possibilidade de cortar um fluxo de imagens, de inserir outras, a qualquer momento, sem nenhuma preocupação de fazer o raccord.

São só alguns exemplos. Eu não digo que o travelling, o fora de campo ou a decupagem são “melhores” que o zoom, o campo único ou a insertagem. Seria idiota. As formas da nossa percepção mudam, só isso. E nessa mudança, o velho casal TV-cine ainda são, no momento, os protagonistas. Como todos os velhos casais, eles acabaram se assemelhando. Um pouco demais para o meu gosto.


 A televisão, ainda prisioneira da sua vontade de “fazer cinema”, não vai talvez muito longe na sua fuga. Em direção ao videogame. O cinema, refém, dançarina e renda da TV, não vai talvez muito longe na exploração da sua memória. A mais arcaica. Há exceções, é claro. Em 1982, esperamos muito de Passion e Parsifal. Do estúdio e da trucagem. Pois assimptoticamente, a velha TV e o muito velho cinema se reencontram muito longe a frente e muito longe atrás. O lugar do encontro se chama Méliès. É preciso pedir pela lua. 

18 de janeiro de 1982 

Retirado do livro Ciné journal – Volume I 1981-1982, p. 104-117. Tradução: Letícia Weber Jarek.

Uma apresentação sobre "Carta sobre Rossellini", de Jacques Rivette*


Por Renato Santos 

A propósito de uma sessão comentada de Viaggio in Italia. 

Jacques Rivette se dirige àqueles que não gostam muito de Rossellini e, especialmente, de Viaggio in Italia. Escrita em 1955, Viaggio in Italia era seu último filme - também consumação de um período de sua obra, fato que Rivette praticamente profetizou no texto que era, em sua gênese, um artigo a propósito do referido filme e que, terminado, demonstra proporções mais amplas, de estudo e de síntese a respeito da obra rosselliniana.

De fato, Roberto Rossellini havia estourado no mundo em 1945 com Roma Città Aperta e Paisà; ele era um bastião, senão o principal, do chamado neorrealismo italiano. Seus filmes seguintes, Alemanha Ano Zero, Stromboli, Francesco, Europa 51, L'Amore, culminando com Viaggio in Italia, foram recebidos, por muitos de seus então entusiastas admiradores de um cinema novo, de modo cada vez menos entusiasmado, quiçá desprezado - e isto compreendemos através das ferrenhas defesas de seus verdadeiros admiradores: Rivette, Paulo Emílio de Sales Gomes, que resume admiravelmente a questão em seu "Escândalo Rossellini" (reeditado no livro O Cinema no Século) e, essencialmente, André Bazin, mentor de Rivette e dos Cahiers du Cinema que, na mesma época do texto de Rivette (seria interessante saber qual texto veio primeiro, qual orientou o outro), escreve, dirigindo-se à revista de cinema italiana Cinema Nuovo e, particularmente, a seu célebre redator, Guido Aristarco, seu Defesa de Rossellini, de teor bem parecido à empresa de seu discípulo Rivette. Destas citadas defesas, inferimos as razões do amplo rebaixamento de Rossellini a cineasta menor e desinteressante: sua aparente debandada de temas sociais já habilitados, ao abordar o universo burguês (Europa 51), a crônica histórica (Francesco), a tragédia moral e espiritual de um indivíduo face a sociedade (Alemanha Ano Zero, Europa 51), fazendo de seus filmes, cada vez mais claramente, esquematização de ideias muito particulares, filmes teórico-morais idiossincráticos que não agradam nem os padres, nem os comunistas, nem os que esperam do neorrealismo que seja a crônica (melodramática desde o começo, devendo isso inclusive, e muito, a Rossellini) da miséria. Primeiro, ao ver seus filmes tão desprezados por tais críticos, percebemos rapidamente que Rossellini não abandonou nem por um momento as preocupações sociais, apenas por deixar de filmar as consequências evidentes da guerra. Filmar um drama burguês não significa virar burguês (mesmo não sendo Viaggio in Italia um drama burguês: este é apenas um de seus elementos contrastantes), ou filmar um falso milagre, em Il Miracolo, não lhe torna herege.

Bazin defende o cinema de Rossellini e, especificamente, seu neorrealismo, de modo justo contra essas simplificações e má-vontades: o neorrealismo de Rossellini começa com seus filmes sobre a guerra, e não decai, mas culmina com Viaggio in Italia; da decadência simplista à culminância do olhar justo. Rivette não segue seu mentor quanto à defesa de um neorrealismo; esta palavra não cai bem para este hitchcock-hawksiano. Mas retorna sempre, como bom baziniano, à palavra realismo, com sentido quase idêntico, e à defesa muito característica de Rossellini como cineasta moderno por excelência. A caracterização da modernidade de Rossellini, e a defesa, quase absoluta, de um cinema consumadamente moderno (substituindo a defesa de um cinema puro ou o realismo total de Bazin) é de fato o ponto obsedante do texto de Rivette, algo também muito baziniano, por sinal, e que Rivette desenvolve de modo próprio. Mais adiante veremos de que se trata o moderno segundo Rivette.

Carta sobre Rossellini é um texto crítico exemplar, pois também pode ser lido como meta-crítica: ele trata, em seu sistema retórico, do contraste entre o pensamento teórico, eminentemente racional, lógico, e o pensamento intuitivo, elíptico, que dá seus saltos, muito amplamente através da fé ou da poesia, característica, por excelência, da grande crítica (de Bazin e de sua própria) e da arte, naturalmente. Mais: ele atrela o pensamento lógico, que necessita de provas, ao protestantismo, e o pensamento intuitivo, sensual, ao catolicismo, deslocando o debate em termos religiosos (no que o texto perde em força o que ganha em verve, ao mesmo tempo em que essa atualização do terreno de luta é vital para seu sistema retórico), e afirmando-se, retoricamente, ao afirmar Rossellini, como católico. Em resumo, o texto versa sobre os limites entre a construção lógica e a intuição, tomando sempre o partido da última - seu texto sobre Howard Hawks, por exemplo, é da mesma natureza.

Um primeiro ponto que necessita ser desvendado é a própria retórica carregada do texto: curioso, num texto que defende justamente o desprezo pela retórica que pertence a arte de Rossellini ("em Viaggio in Italia, ele não demonstra, ele mostra"). Contrasta também com o Rivette cineasta e sua tendência a certo respeito objetivo, sobretudo a uma humildade artística. O Rivette crítico, ao contrário, é sardônico, cínico, hiperretórico; contudo, apaixonado: a paixão autoriza seu cinismo das letras aos olhos do verdadeiro Rivette.

A carta também é uma meta-crítica em outro sentido: um tour de force de convencimento, realizado pelo Rivette crítico, apaixonado, católico, místico, portanto, em seus termos, não só aos céticos, mas, por sua insistência, nos faz pensar também num convencimento a si mesmo, ao Rivette cético, frio e racional, aquele que precisa de provas, que ainda não capitulou frente à evidência, que deseja secretamente uma justificativa lógica para sua emoção: sua insistência apaixonada nos mostra também essa dúvida, irrelevante, pois já sanada, mas que retroalimenta, contudo, a paixão, que também é o mecanismo de defesa da verdade contra a frieza da morte. Rossellini também é exemplar nesse sentido, pois parece não possuir tais dúvidas: ele foi, puramente, um apaixonado, chave de seu caráter individualista e utópico.

O fundo católico da carta já se desenha quando o autor reserva aos não-rossellinianos a atitude cética de São Tomé, que precisa tocar para acreditar (introduzindo também com essa imagem a identificação entre corpo e espírito, como desenvolverá depois), e para os rossellinianos a fé da bem-aventurança, a evidência, o sentimento, o mistério próprio, segundo ele, dos rituais quase sensuais dessa religião, da carne e do sangue de Cristo que se fazem presentes segundo o dogma e o sentimento fervoroso; o mistério, próprio, da arte, por natureza não-cartesiana, ilógica e, portanto, pouco adequada aos seus espíritos céticos. Para ele, os não-rossellinianos (para voltarmos a primeira definição de seus inimigos) rejeitam o sentimento em relação à arte e, por isso, se aproximam dela de forma equivocada.

O cinema envelheceu dez anos com Viaggio in Italia: o cinema moderno por excelência.

O texto, muito exemplarmente, introduz uma série de intuições assombrosas, que o autor procura demonstrar através de uma argumentação (para fins de adequação ao pensamento dos céticos, os que devem ser convencidos) que, no entanto, deságua sempre numa luminosa proliferação de novas intuições, insights críticos. A primeira intuição, resumidora, apresentada juntamente com a de que, com Viaggio in Italia, Rossellini consuma sua maestria e liberdade (palavra essencial aqui, que retomaremos adiante) é a de que o filme é exemplarmente moderno: a verdadeira ponta da lança da vanguarda e o momento em que o cinema toma posição igual, sintonia, ao mundo de 1955, especialmente ao mundo espiritual do século: Joyce, Matisse, Stravinsky, Rossellini portanto. Para Rivette, Rossellini encontrou o caminho, a "brecha pela qual todo o cinema deverá passar, se não quiser perecer". Queiramos ver nisso, também, um manifesto conciso da nouvelle vague. Rivette zomba, retoricamente, de seu pensamento intuitivo: "apenas um sentimento pessoal". E eis que Rivette praticamente profetiza o desenrolar futuro da carreira de Rossellini, ao afirmar que este se encontra num ponto de maturação, ou primeira maturidade, no qual os discípulos ainda podem seguí-lo: diferentemente de Renoir, Hawks ou Lang, que, neste ponto da história, já atingiram a perfeição de sua arte que se fecha sobre si mesma, dando aos jovens, não uma direção, como Rossellini ainda dá, mas, numa expressão muito feliz, um desespero salutar. Para Rivette, é o mesmo com as últimas obras de Mozart ou Stravinski. Pois bem, Viaggio in Italia, em retrospecto, é nada menos que o ponto de sutura de uma grande cisão rosselliniana, que se dará, contudo, lentamente - no espaço de uma década, passando por seu épico indiano, alguns filmes comerciais e culminando em sua fase "fechada em si" dos filmes didático-históricos para a televisão, ambientes irrespiráveis, o desespero salutar da lúcida velhice artística, também ele, exemplar.

Henri Matisse: liberdade e autonomia das formas.

A argumentação da modernidade de Rossellini, como dito, será levada a cabo através de novos insights críticos e identificações: a comparação a Matisse, a dos tempos modernos à adolescência, a reminiscência do Goethe da descrição objetiva e da vida exemplar, a identificação do senso de esboço e a realização cinematográfica do gênero do ensaio.
Henri Matisse, o pintor do olhar moderno sobre a eternidade. Rivette, mais uma vez, pede desculpas à lógica por sua explicação pantanosa, intuitiva, para tal comparação, a primeira vista quase absurda; bem detectamos quase um desejo fracassado de explicação aristotélica, teórica mesmo, de tal comparação, que não deixaria dúvidas; mas ela não é necessária, ela é, na verdade, irrealizável; Rivette o sabe, e a realiza sob os termos justos - a força desta comparação precisa ser sentida, reconhecida, vista, evidenciada, no lugar de ser destrinchada ou analisada.

A primeira argumentação, bastante sensata, na verdade, é, justamente, a da sintonia de ambos com nosso tempo e o ponto central de todos os três (o mundo moderno, Rossellini e Matisse) se encontrando na simplicidade de meios. O concretismo da eficaz arquitetura Bauhaus e cia. encontra a essencialização figurativa de Matisse e o englobamento, redução cênica de Rossellini. Tudo se torna limpo, luminoso, ventilado (digamos, para Viaggio in Italia; pois a escrita nervosa de Europa 51 e, especialmente, Alemanha Anno Zero, ao contrário, constitui fornos morais de ar irrespirável; o que é irrespirável, já, em Viaggio in Italia, é a relação do casal - o contraste com a luz e a forte influência telúrica da cidade de Nápoles, passado e presente, é o que coloca o pequeno drama da incomunicação burguesa de Bergman e Sanders em perspectiva e enquadra sua mesquinhez). Basicamente, Rivette defende o despojamento como a marca de nosso tempo e, especificamente, de seus artistas-chave.

Rivette introduz a palavra Realismo, como que identificando-a ao despojamento (algo que retoma no fim do texto, de modo mais obscuro e categórico). Isto é bem discutível quanto a Matisse; temos em mente, porém, o significado múltiplo do termo. Em Rossellini porém, por ser cineasta, a ligação cai como uma luva, dentro do sistema baziniano: uma redução de meios (o que não quer dizer descontrole, mas, inclusive, um maior rigor) aproxima o cineasta da essência de seu meio, ou seja, a própria realidade (fotografada, sim, mas realidade, marca luminosa, ontologia). Rivette praticamente cita Bazin ao afirmar que Rossellini é realista justamente por sua estilização globalizante, sintética, que "não separa, por amor, o que a realidade uniu".

Mas a questão realista, diferentemente de Bazin, é secundária em Rivette. O ponto, em Rivette, se desembaraça do realismo para se encontrar, bem definido, no eixo do despojamento próprio da liberdade.

Pois em Matisse há o seguinte: a interdependência entre forma (linha) e cor; que se realiza plenamente em seu último período, o dos recortes de papel colorido: nunca a linha e a cor foram tão independentes entre si, e ao mesmo tempo, além de se realçarem uma a outra, são a mesma e única coisa, uma mesma forma. Essa autonomia entre os elementos, que no entanto formam um todo equilibrado, único, próximo de um alegre repouso dinâmico, pode ser sentido como uma nova realização, inclusive, da mesma interdependência das formas encontrada na arte renascentista, esta como teoriza, por exemplo, Wolfflin, em sua definição de pluralidade interdependente, dentro de um todo fechado; Matisse e Rossellini são, inclusive, humanistas do século XX, e anti-barrocos: nada da falta, do contraste, da incompletude, da dependência de cada forma à outra. Em Rossellini, defende Rivette, cada movimento de mise-en-scène tem autonomia perante todos os outros; ele caracteriza o olhar de Rossellini como um lápis, como um traço de Matisse, natural e único, não trabalhado, mas completo na gênese, uma vez feito. Essa linha, "linear e melódica" (termos de Bazin) começa e termina como começou, deixando uma marca, na tela ou no espectador: uma marca que "pesa, engaja". Bem se vê a defesa da intuição, igualmente, na arte.

Ainda cabe constatar, como o constata, segundo Oliveira Jr., Jacques Aumont, que a defesa de Rivette do modernismo não é, como é comum, como contraste a um classicismo: o modernismo, para Rivette, aqui, parece ser a única escolha justa, contra um mau cinema; dentro dessa estrutura, moderno é sinônimo de justo, e seus exemplos são, inclusive, muitos dos filmes que hoje chamamos de clássicos (vide seus autores preferidos, como Hitchcock, Hawks, Renoir). O ponto, na verdade, é muito simples, praticamente tautológico: um grande cineasta é grande pois é moderno, e vice-versa: ou, se ele é grande, se sentimos a evidência de sua grandeza, sentimos igualmente a marca e o caráter de nosso tempo.

E a intuição também é o que dita o equilíbrio do conjunto, ou melhor, o leve desequilíbrio, contido, uma leve incerteza do olhar, mas que só revela um equilíbrio secreto maior. No decorrer desta argumentação, fica claro também a oposição entre céticos e rossellinianos: rossellini seria o cineasta da intuição por excelência. Essa assimetria discreta nos movimenta para frente, diz Rivette, e que, ao contrário das pesquisas de simetria estática, é a única que convém ao cinema - outra bandeira da modernidade, o equilíbrio dinâmico.

A terceira e a quarta identificações relacionadas à modernidade e a Matisse realizam síntese ainda maior: Rivette introduz a identificação de ambos os artistas com uma fase da vida, a adolescência, no que ela tem de "gesto estudado, mas que nasce, no susto", uma conjugação de constrangimento e graça, presente na gênese estilística de ambos; e isto se resume na palavra mais esclarecedora, decerto: o esboço. Segundo Rivette, o senso de esboço, no que tem de síntese e revelação do essencial ("que resume vinte estudos aprofundados") é o que caracteriza ambos os artistas, bem como ao nosso tempo, adolescente, confuso. O fator da indecisão que dá às pinturas de Matisse, esse imponderável traço tão gracioso, como o desenho maduro que não se esquece nunca das garatujas infantis, de uma espécie de humildade lúdica frente o modelo das formas visíveis, e que no entanto, devido a essa espécie de candidez, vê mais longe, vê melhor: rende-nos uma imagem esquematizada e mais clara da realidade do objeto. Uma arte adolescente, no melhor dos sentidos: "a poesia do fogo". Essa arte, em sintonia com o tempo, é uma arte fraternal, pois espelho, que revela a essência de nosso estado cultural, estado de alma.

A última comparação com um traço cultural eminentemente moderno é a feita com o gênero ensaístico: uma variação da comparação com o esboço, acrescida agora de um sentido de pesquisa e flanância intelectual. De Matisse, Rivette toca agora em Manet e Degas; e aproveita para criticar os velhos exegetas do cinema puro dos anos vinte: ainda vivos, esses antigos jovens, segundo Rivette, não reconhecem a modernidade de Rossellini, eles que defendiam a atualização do cinema em termos de vanguarda. O que se revela, no entanto, é uma pura mudança de paradigma, uma meia-volta: o cinema puro de Rivette é aquele baziniano, em tudo diferente da teorização do cinema puro nos anos vinte,que tinha por horizonte a abstração, no lugar do respeito ontológico à realidade visível. O que Rivette faz não é notar uma incoerência da geração anterior, mas uma provocação: confrontando sua própria concepção à outra, anterior, ainda viva, que possuia ainda, no momento, toda a autoridade.

Liberdade e ordem do mundo.

Não é só ao mundo moderno que Rivette se refere: a comparação seguinte é com Goethe; a primeira via desta comparação é a do sereno despudor: Rossellini é tão despudorado quanto um ensaio de Goethe ou Montaigne, pois seus filmes falam de sua própria vida, se aprofundam cada vez mais em sua vida cotidiana: Joana d'Arc (que não pude ver) "se trata mais de um documento sobre sua esposa, Ingrid Bergman, que uma adaptação"; o relacionamento burguês de Viaggio in Italia é um retrato de sua própria própria relação conjugal. Vemos portanto um cineasta falando, sobretudo, de si mesmo: a liberdade, novamente. Uma vida exemplar, uma cidade (Nápoles) providencial: é a cidade certa para a análise dialética do filme, para o conflito desenvolvido em Viaggio in Italia: a cidade que guarda em si esse segredo cristão, esse mistério que perdura e emerge de todos os lugares, do passado arqueológico, do cotidiano. Para Rivette, a vida de um artista como Rossellini é uma vida estética: ela própria se identifica à sua arte, constituindo-se assim numa liberdade conquistada.

Rivette evoca, ainda de Goethe, sua lucidez e franqueza, o que ele chama, como um conceito definido por Goethe que não tive a oportunidade de esclarecer, de descrição objetiva: uma "maceração do real" que nos rende a forma mais simples e franca de atingir a natureza de um elemento através de sua representação; ponto importante aqui para a defesa do cerne da arte cinematográfica, para Rivette: a expressão do espírito, através, puramente, da matéria, o que é, também, a identificação de ambos: o corpo se torna puro devir espiritual, e desemboca nas longas sequências, que fecundam todo o filme, impregnam-no de reflexão contida, de flanância nos filmes de Rossellini - o caso mais paradigmático sendo os quinze minutos finais de Alemanha, ano Zero: a indecisão da caminhada sem fim de Edmund, que desenrola para o abismo moral da culpa confusa na mente infantil, cada vez mais acometido pela fome e pela vertigem; a deambulação na verdade constitui a própria natureza dos filmes de Rossellini: "seus personagens, mordidos pelo demônio da mobilidade" (Bazin) procuram, confusamente, alguma coisa, uma resposta, uma epifania: e por isso se mexem, caminham, procuram sem encontrar, ou melhor, encontrando aos poucos uma resposta ao horror, como Irene em Europa 51, e a própria epifania, católica ou ateísta, do final de Stromboli. O espírito confuso, portanto, se torna sempre ação, através dela o compreendemos, com todo o seu índice de mistério.

Nesta altura, a argumentação já se desfez do sardonismo e se apresenta como francamente apaixonada, pura intuição. Rivette atinge uma ideia que tanto ele como seu companheiro Éric Rohmer, outro rosselliniano, desenvolverão conscientemente em seus filmes: a alquimia do acaso, ou melhor, da providência. Rivette fala dos poderes do olhar de Rossellini, "um olhar ativo, que não deforma, nem condensa, mas captura". A própria instância criadora está, no processo mesmo do filme, empenhada numa busca, que se dá no confronto com o mundo, próprio do cinema. Assim Rivette fala dos "seres submetidos sem saber a nosso olhar apaixonado", possivelmente se referindo ao que há de cinema direto na alquimia rosselliniana, o do olhar surpreso para a câmera, e do "sentimento mesmo do futuro, na trama impassível daquilo que dura". Voyeurismo, vidência. Aqui, a altitude mesma se tornou muito alta; a intuição já não pode ser esquematizada para a compreensão racional, e só é capaz de se exprimir em termos poéticos. Rivette, obscuramente, nos fala de teleologia, e convém lembrar da epígrafe, retirada de Charles Peguy, que deve ser sempre divisada, no texto, pois resume tudo: a ordenação encobre, a ordem reina. Voltaremos adiante à epígrafe. O cinema de Rossellini, ele mesmo, se torna aqui, uma busca da comunhão com Deus.

Solidão, encarnação.

Rivette também se dirige contra a debilidade do cinema de seu tempo, o medo do reconhecimento do gênio, que os coloca à margem e situa no centro da atenção o cinismo, o refinamento inútil, a moleza de espírito (o amor em Rossellini, para Rivette, não é erótico nem angélico, se encontra mais fundo, sensual) - Rossellini é o oposto de tudo isso, ao mesmo tempo em que não parece notá-lo. Rossellini tem a melhor das intenções, mas simplesmente não foi feito para essas pessoas; Europa 51 é um filme teórico e santo como sua protagonista: o filme, portanto, é vítima das mesmas pessoas que retrata e critica: para o mundo moderno, São Francisco de Assis seria um louco, eis a tese do filme, que é assim, naturalmente, descartado pelo mesmo mundo moderno. Irene simplesmente pula para fora de nosso tempo, ao encontrar a resposta na santidade, e não somos capazes de acompanhá-la; ela é assim trancada no sanatório. A paixão, mais uma vez, Rossellini e Rivette nos mostram, não tem seu lugar no mundo moderno; é descartada como assunto menor (a própria igreja considerou a fé ilimitada da personagem de Anna Magnani em Il miracolo, mais especificamente suas consequências, como heresia). Rivette, portanto, está usando as armas do inimigo, a retórica, como um super-Rivette capaz de se apropriar de algo alheio de modo a melhor atingir seus fins, ou então, mais simplesmente, não tendo conseguindo encontrar, durante a escrita, outra forma de fazê-lo. Ele, enfim, como que critica tal proceder: "a dialética é uma moça que se deita com qualquer pensamento, e se entrega a todos os sofismas". Chegado nesse ponto seu cinismo já se evolou quase que completamente do texto, que atinge a franqueza que admira em Rossellini, formulando, por exemplo, em função de Viaggio in Italia, a famosa frase, ecoada em ou eco de Bazin: "Rossellini não demonstra, ele mostra".

Para Rivette, como para Bazin, os personagens de Rossellini se encontram em becos morais e existenciais, numa solidão ontológica, irredutível, "que apenas pode ser revertida através do milagre ou da santidade". Voltando ao já discutido a respeito da deambulação, Rivette fala do "brusco repouso dos seres, destes ensaios imóveis diante da fraternidade impossível, súbita lassidão, que os paralisa um momento antes da ação". A ação rosselliniana é a da dúvida, da reflexão. Uma fadiga impaciente, giros sobre si mesmo, que por fim vencem o muro da inércia e do abandono, "esse exílio do verdadeiro reino", através da epifania (ou da morte). É a flanância espiritual e física, pois cinematográfica, em busca de algo que não se sabe o que é, de uma revelação, da comunhão, portanto. A personagem de Il Miracolo (assim como os de Francesco) nesse sentido, é exemplar por meio do contraste: ela é pura comunhão, do começo ao fim.

No primeiro parágrafo da 15ª sessão do texto, admiravelmente longo, encontra-se um resumo. A liberdade da paixão, em sintonia com a ordem do mundo, reconhece as provações e dificuldades como remédio e é fortalecida pela providência. A arquitetura do acaso é identificada, neste terreno católico, à teleologia geral. Olho moderno, espírito moderno: para Rivette, o catolicismo também é sinônimo de modernidade. Aqui temos mais uma comparação, uma caracterização desta modernidade, a fazer companhia junto às noções de esboço e de ensaio: o ligeiro abandono, mais belo que o preciosismo da busca dos gestos precisos (retóricos, afetados, portanto). Frente aos personagens Rossellinianos, que são menos do que interpretam, "depois deste sabor amargo (deste cansaço, desta pressa), toda gentileza perde a graça e a memória".

Eis a tese: "com Viaggio in Italia, o cinema envelheceu dez anos", ou seja, com tal sopro de juventude madura, a velhice do cinema feito no momento se tornou óbvia, evidente. Aqui temos o arremate de um manifesto da nouvelle vague que esse texto também realiza, através do anúncio de uma escola Rossellini, e o retorno ao termo realismo, noutra identificação sua com o despojamento: o realismo é um estado de espírito: pois que a linha reta é o caminho mais curto de um ponto a outro.

Voltemos à epígrafe: ela estabelece, se coloca na linhagem de uma dialética sempre retomada, e que tem seu início em Bazin: sua oposição entre os cineastas da imagem e os da realidade, ou a oposição (Vecchiali, apud Kerniski) entre estilo e escritura; em Rivette, tal oposição se investe das cores católica e baziniana da humildade frente a ordem do mundo e a corrente da teleologia. A ordenação (retórica) encobre a verdade, nos afasta da franqueza, do que é essencial. A ordem, que já reina, é o modelo para a criação artística que, paradoxo apenas aparente, encontra nela a liberdade total, pois é a felicidade da conformação com o mundo (o que de fato, como já discutimos, rende muito frequentemente a solidão no mundo social - vide a incompreensão de Rossellini).

A encarnação: Rivette volta ao sardonismo: Kant e o protestantismo têm as mãos puras, mas não têm mãos - ou seja, não têm cinema.


*Lettre sur Rossellini, Cahiers du Cinema, nº 46, abril de 1955, pp. 14-24. Tradução editada no Brasil por Maria Chiaretti e Mateus Araújo no catálogo da mostra Jacques Rivette - Já não somos inocentes, disponível online aqui.