O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Ajax ou O Cid?

Por Éric Rohmer

Lamentemos que os distribuidores franceses tenham acreditado ser de bom tom vestir, disfarçado de título do último Nicholas Ray, este nonsense, este monstro gramatical que é o amálgama (não ouso dizer a expressão) La Fureur de Vivre (A Fúria de Viver)[1]. É feio, é vulgar e além de tudo não quer dizer estritamente nada. O título americano é sóbrio, justo; se ele não fornece a chave da obra, ele ilumina apropriadamente a intenção de seu autor: Rebel without a cause, rebelde sem causa, a causa pela qual se combate.

O leitor dos Cahiers sabe que tomamos Nicholas Ray por um dos maiores – o maior, diria Rivette, e eu o seguiria de bom grado – da nova geração de cineastas americanos, esta que pegou em armas pela primeira vez depois da guerra. A despeito da modéstia aparente de seu discurso, é um dos raros que possuem um estilo próprio, uma visão de mundo, uma poesia própria: é um autor, um grande autor. Descobrir uma constante ao longo de uma obra é uma faca de dois gumes: prova de personalidade, mas também de aridez em certos casos. Todavia, esta é a condição imposta pela indústria ao cineasta – tão numerosos os fazedores, os diretores de fabricação, os bons contramestres, que a presença de um leitmotiv é um indício a priori favorável. A diversidade de assuntos tratados por Nicholas Ray, a riqueza de variações com que ele adorna seus três ou quatro grandes temas favoritos tornaria sua originalidade mais dificilmente detectável do que a de seus rivais. Impossível colocar em sua moral uma etiqueta cômoda, como ocorre com John Huston. Não são os problemas que lhe interessam, à maneira de um Brooks, mas os seres. Nada de sutilezas psicológicas caras a Mankiewicz. Nada de lirismo fulgurante para atordoar, como Aldrich num primeiro contato. Seu tempo é lento, sua melodia na maioria das vezes monocórdica, mas de um desenho tão preciso, de um caminhar tão absorvente, que não podemos nos distrair por um único instante. Os próprios momentos fortes, brilhantes como forem, só surgem depois de um lento crescendo. É uma arte de “relações” mais do que de “lampejos”.

O espírito desse filme é semelhante àquele dos precedentes, mas as próprias situações oferecem analogias muito precisas. A juventude dos heróis, seu ardor recalcitrante, é a mesma dos personagens de O Crime não Compensa e Amarga Esperança. O tema da violência já encontrado em Cinzas que Queimam e No Silêncio da Noite. O heroísmo inútil de James Dean é aquele de Mitchum em Paixão de Bravo ou de Cagney em Fora das Grades. O personagem encarnado por Nathalie Wood não é tão diferente, apesar da distância de suas idades, da Joan Crawford de Johnny Guitar. Eu iria mais longe: todas as heroínas femininas, sem exceção, de seus filmes, as Catie O'Donnel, Gloria Grahame, Susan Hayward, Ida Lupino, Viveca Lindfords e as duas já citadas, assumem sob sua direção um ar de semelhança física bastante surpreendente. Como aquele da violência, Nicholas Ray talvez seja o único poeta do amor: é a fascinação própria a esses dois sentimentos que o obcecam, mais do que o estudo de sua gênese e de suas repercussões próximas ou longínquas. Não a fúria, nem a crueldade, mas essa embriaguez particular onde nos mergulha uma ação física, uma situação, uma paixão violentas. Não o desejo, como na maior parte de seus colegas americanos, mas o misterioso acordo que une dois seres. Eu acrescentaria a tudo isto um sentido da natureza, discernível no plano de fundo – no sentido próprio e figurado – e em consonância com seu temperamento de colorista – mesmo em seus filmes em preto e branco – mais do que de artista plástico.




E, além disso, nenhum diretor sabe imprimir em seu personagem um ar familiar tão evidente. Eles são marcados pelo carimbo da mesma fatalidade, do mesmo mal moral ou físico – o que não é exatamente defeito ou decadência. Observem os rostos femininos de bochechas macias, mas de pálpebras delimitadas, de lábios grossos, essas silhuetas de homens atléticos, os Ryan, os Derek, os Mitchum, esmagados ou, melhor, como que recolhidos em si mesmos. James Dean leva ainda mais longe essa aparência, crisálida mal derivada de seu casulo. Retraimento sobre si? Solidão antes sofrida do que desejada, busca angustiada por afeição, amor ou amizade. Eu falava há um instante de um desenvolvimento linear: não se trata de uma dessas belas retas com que Hawks está acostumado, essa estrada larga da epopeia, esses passos calmos, esses pórticos altivos. Aqui tudo é circular, dos gestos de amor ao trajeto das estrelas, desses olhares que envolvem, mais do que fogem, a essas perseguições errantes, essas mortes que fecham o círculo e devolvem os heróis à sua inocência primeira. Sim, é isto: o que falta a esses homens-crianças é essa espécie de virgindade com que os contadores de aventura costumam ornar seus personagens. Eles não possuem a complacência resignada nem a vontade de abjeção do homem do romance moderno. Eles não são nem mesmo culpados...

Poeta, Nicholas Ray o é certamente, mas é o caráter trágico e não somente lírico de seu último filme que eu gostaria hoje de acentuar. Pela sua forma, em primeiro lugar, aspecto superficial, mas não negligenciável. Rebel without a cause é um verdadeiro drama em cinco atos. Ato primeiro. Exposição. Dois adolescentes e uma jovem acabam de ser apanhados pela polícia. Intervenção dos pais. O debate se coloca de imediato no plano moral sobre o qual ele permanecerá durante todo o filme; por que esta revolta? Ela não possui sequer aquela espécie de profundidade própria ao absurdo pretendido como tal. Não é, também, o simples sobressalto de jovens animais indóceis. É a honra desses garotos e dessa moça que está em jogo, uma honra mal concebida, mas que não pode sê-lo de outra forma porque o meio e as circunstâncias não sabem lhe deixar um campo de exercício mais nobre. O excesso de psicanálise sobrecarrega, certamente, o discurso. Mas eu não acredito que seja preciso tomá-la como uma explicação ou como desculpa: ela faz parte do cenário da vida americana. Esta é, pelo menos, minha opinião final. Essa confusão me incomodou no momento, assim como certo despudor, fraqueza, ousaria dizer até estupidez, nas personagens. Eles são assim, o drama os exige como tal. Deixemos então correr e passemos ao ato segundo. Nosso herói principal, encarnado por James Dean, prometeu ser razoável e ir à escola. Sarcasmos de seus camaradas cientes de suas pretensões de “duro na queda”. Primeiro interlúdio lírico, com essa aula no planetário, essa primeira evocação do apocalipse que mal consegue cobrir de inquietude ou de indiferença fingida os olhos vazios de nossos alunos. Ideia um pouco simples no papel, forte e profunda em sua realização, ornamentada, como tudo que vai seguir, ao mesmo tempo de gravidade e derrisão. Na saída, novas provocações. Dean tenta ignorar, mas é de sua honra – não sua honra de galinho de cidade pequena, mas de sua honra simplesmente, nós sentimos – não se esconder. Luta de facas cuja ferocidade e beleza da paisagem sobre a qual ela se decupa fazem esquecer que se trata somente de uma brincadeira de garotos. Não é tudo: a segunda rodada deve acontecer na mesma noite num exercício ainda mais absurdo e perigoso. Este será o ato terceiro. A intriga, percebam, teve até aqui como propulsor principal a vontade dos personagens: será assim até o final. O herói se retira em sua tenda – id est sua família – para pensar. Depois ele se entrega ao duelo. Novo momento forte, este mais noturno. Peripécia que encaminha a ação para outro desenvolvimento: trata-se de precipitar os carros no mar e saltar no último momento. O adversário se mata. Debandada. Ato quarto. Dean salvou sua honra, conquistou o amor da paquera da vítima, a jovem filha do comissário, encarnada por Nathalie Wood. Ele volta para casa e confessa a seus pais sua intenção de se entregar à polícia. Estes o dissuadem. Essa covardia o indigna. A fraqueza do pai não somente “explica” no filho a presença deste “complexo” de honra, dessa vaidade doentia. Ela a justifica, no sentido moral do termo, a reclama, a exige. Violência, cenas desagradáveis tratadas com uma rara franqueza. Ele se entrega ao comissário, mas a polícia não pode recebê-lo. Durante esse tempo, seus camaradas, receando por sua traição, o procuram. Seu único amigo, um moreno franzino curiosamente nomeado “Plato” (Sal Mineo), depois de muitos incidentes consegue juntar-se a ele: é o ato final, a noite, em uma mansão abandonada que nos faz pensar em Cinzas que Queimam ou em Johnny Guitar. Segundo interlúdio lírico, Nathalie Wood tendo se juntado aos dois garotos. Cena de amor à luz de velas na sala vazia; angústia e paz na noite; para além do cinismo infantil, primeira agitação, primeiros pudores: beleza dos beijos e das carícias. Diante da Mulher, nosso herói de agora há pouco se faz o pequeno garoto que junto de seus pais ele não pôde ser, mas ao mesmo tempo descobre sua responsabilidade de homem. O erotismo de Ray é, seja o que for, tão nebuloso e suspeito quanto quisermos. O psicanalista, ainda ele, dará a sorte grande. Mas certamente ele não pode dar conta das emoções que nós experimentamos, nós espectadores, em ver os colegiais da tarde se preparar para um combate físico e moral digno deste nome. E nós caminhamos. Não caminhamos somente em direção “aos fatos” (que então se precipitam: chegada dos camaradas, luta com Mineo que, amedrontado, atira, entrada da polícia, perseguição nos bosques); nem em direção à grandeza teatral, no bom sentido da palavra, da mise en scène (esses carros de faróis brilhantes que cercam o planetário, essas convocações, esse diálogo na sombra em que Dean tenta trazer seu amigo de volta à razão), nem em direção ao trágico da conclusão (quando um policial abate "Plato", como ele aparece no alto dos degraus, apertando nervosamente seu revolver que Dean, sem que ele soubesse, descarregou). Nós caminhamos absolutamente; nós suprimimos essa distância que ainda tínhamos prudentemente entre os personagens e nós. Suas razões são nossas razões, sua honra nossa honra, sua loucura a nossa. Eles saíram, para empregar o jargão moderno, do inautêntico. Eles conquistaram, mereceram essa dignidade de heróis trágicos, que nós não poderíamos lhes conceder totalmente no início.




Que me perdoem por meu vício favorito de evocar a memória dos antigos Gregos. Não creio que tal aproximação seja aqui artificial. A ideia de destino está em todo lugar, nas obras de todas as idades e de todas as nações. Ela não basta para fundar o trágico: é-lhe preciso o suporte de algum grande debate entre as forças presentes a todo o momento no homem e em torno dele, entre o orgulho próprio ao indivíduo e a sociedade – ou a natureza – que não pode admiti-lo, que o maltrata, o castiga. Um herói trágico é sempre em alguma medida um guerreiro desperto da embriaguez do combate, percebendo subitamente que ele não é mais deus. Quem, tendo as aulas terminadas, se diverte em reler o teatro grego, será surpreendido pela presença nele de um tema no qual os comentadores pouco tocaram e que não teve a felicidade de inspirar nossos clássicos: o da violência (assim deve-se entender húbris e orgê), uma violência perigosa e condenável, mas estimulante e bela. A imagem moderna do destino não é o acidente banal e estúpido como aquele no qual morreu James Dean, o ator, em pleno sucesso. Não é o absurdo do acaso, mas o absurdo de nossa condição ou de nossa vontade. É a desproporção que existe entre a parte sempre nobre do homem e a futilidade, a inutilidade da tarefa para a qual ele muitas vezes se propõe. Não é que as épocas precedentes tenham sido mais razoáveis do que nós, nem que não tenham dado o melhor de si mesmos nos combates, estes também sem causa: mas as regras de uma honra mais estritamente formulada sempre oferecia à conduta mais absurda algum motivo. O que eu gosto neste filme é que a palavra honra, para sair da boca de seres infantis, molengas e pequeno-burgueses, não brilha menos em seu esplendor puro, inalterável, e que essas crianças, como os peões e os foras-da-lei da pradaria, resguardaram este sentimento vivaz, mesmo que, por outro lado, sua vaidade, sua obstinação estúpida, a sociedade, a moral, sei lá, enfim, o destino os condene. Eles não são totalmente culpados, nem inteiramente inocentes, encarregados, talvez, somente da culpa de seu século. Cabe aos políticos e aos filósofos mostrar à humanidade horizontes mais claros do que aqueles onde ela decidiu se recolher, mas é da missão do poeta não acreditar totalmente neste otimismo, extrair das borras de seu tempo a pedra rara, nos ensinar a amar sem coibir o julgamento, manter sempre vivo em nós o sentido da tragédia. Essas reflexões eu as fiz, um dia, em uma sala de bairro que projetava No Silêncio da Noite. A cada visão de um novo filme de Nicholas Ray elas me voltam, e principalmente deste, sua obra-prima.

[1] No Brasil, Juventude Transviada.

Ajax ou El Cid? foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma nº 59, maio de 1956. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.