O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Gênio de Howard Hawks




 

Por Jacques Rivette

A evidência é a marca do gênio de Hawks; Monkey Business é um filme genial e se impõe ao espírito pela evidência. Porém alguns se recusam, se recusam ainda em se satisfazer com afirmações. A ignorância talvez não tenha causa diversa.


Dramas e comédias dividem igualmente sua obra: ambivalência remarcável; ainda mais remarcável é a frequente fusão dos dois elementos, que parecem se afirmar no lugar de se comprometer, e aguçam-se reciprocamente. A comédia jamais está ausente das tramas mais dramáticas; longe de comprometer o sentimento trágico, ela conserva-o do conforto da fatalidade mantendo-o num perigoso equilíbrio, uma incerteza provocante que aumenta o poder do drama. Sua tartamudez não pode preservar da morte o secretário de Scarface; o sorriso que suscita quase todo o tempo The Big Sleep é inseparável do pressentimento de perigo; o clímax de Red River, no qual o espectador não é mais capaz de refrear o desconcerto de seus sentimentos e se pergunta por quem toma partido e se deve rir ou temer, resume um frêmito pânico de todos os nervos, uma atônita vertigem sobre a corda bamba onde o pé titubeia sem escorregar ainda, tão insuportável quanto o desenrolar de alguns sonhos.

E se a comédia dá ao trágico sua eficácia, a mesma igualmente não pode dispensar, talvez não o trágico - não vamos comprometer nossos melhores argumentos indo longe demais – mas o sentimento severo de uma existência na qual nenhuma ação pode se livrar da teia das responsabilidades. Poderia ser-nos oferecida visão mais amarga que essa? Confesso pois ter sido incapaz de me juntar às risadas da plateia, estarrecido pelas peripécias calculadas de uma fábula (Monkey Business) que se aplica em contar – com uma lógica alegre, uma eloquência perversa - as etapas fatais da bestificação de inteligências superiores.

Não é por acaso que reencontramos um círculo de cientistas similar àqueles de Ball of Fire e The Thing from Another World. Mas não se trata, exatamente, de uma sujeição do mundo à visão glacial e desencantada da ciência, como de retraçar as desventuras de uma comédia da inteligência. Hawks não se interessa por sátira ou psicologia; a sociedade não importa mais aos seus propósitos que os sentimentos; diferente de Capra ou McCarey, Hawks está preocupado somente com a aventura do intelecto. Quer ele oponha o velho ao novo, a soma de conhecimento do passado à outra de formas degradadas da vida moderna (Ball of Fire, A Song is Born), ou o homem à fera (Bringing up Baby), ele permanece com o mesmo tema da intrusão do não-humano, ou de um avatar mais cru da humanidade, numa sociedade altamente civilizada. The Thing bota abaixo a máscara: nos confins do universo, alguns homens da ciência estão às voltas com uma criatura pior que inumana, uma criatura de outro mundo; e seus esforços tentam primeiramente enquadrá-la nas molduras lógicas do conhecimento humano.

Mas o inimigo agora imiscuiu-se no próprio homem; o sutil veneno do rejuvenescimento, a tentação da juventude da qual sabemos desde muito tempo não ser dos mais sutis subterfúgios do mal - às vezes bassê, às vezes macaco – quando uma rara inteligência o coloca em xeque. E a mais nefasta das ilusões, contra a qual Hawks luta com um pouco de crueldade: a adolescência, a infância são estados bárbaros dos quais somos resgatados pela educação; a criança se distingue mal do selvagem que imita em seus jogos; uma vez bebido o precioso licor, o mais digno senhor absorve-se na imitação de um chimpanzé. Aqui reconhece-se uma concepção clássica do homem, que não saberia ser grande senão através da experiência e da maturidade; termo de seu progresso, a velhice lhe julga.

Ainda pior que o infantilismo, a bestificação, a decadência - a fascinação que exercem sobre a inteligência mesma; o filme não é somente a história desta fascinação, como a propõe ao espectador como prova de seu poder. Assim sua crítica submete-se, de partida, ao olhar que a mesma propõe. Os macacos, os índios, os peixes dourados não são mais que as aparências de uma mesma obsessão pelo elementar, no qual se confundem os ritmos selvagens, a doce estupidez de Marilyn Monroe - monstro feminil que os artifícios dos figurinistas forçam à deformação - ou os elãs de velha bacante de Ginger Rogers, cujo rosto marcado se crispa na adolescência. A euforia maquinal das ações confere à feiura e à infâmia um lirismo, uma densidade expressiva que lhes eleva à abstração; a fascinação toma conta, dá beleza à lembrança das metamorfoses; e se pode chamar de expressionista a arte com a qual Cary Grant transforma os gestos em símbolos; no instante em que ele se maquia de índio, como não recordar do célebre plano de O Anjo Azul no qual Jannings contempla no espelho sua face degradada. Não é de modo algum leviano comparar estas duas histórias paralelas de ruína; lembremo-nos de como os temas da perdição e da maldição impunham outrora no cinema alemão a mesma progressão rigorosa do estimável ao odioso.

Do close-up do chimpanzé ao momento em que a fralda escorrega naturalmente do bebê Cary Grant, o espírito é solicitado por uma constante vertigem de impudor; e o que é esse sentimento senão uma mistura de medo, censura - e fascinação? A atração dos instintos, o abandono aos poderes terrestres e primitivos, o mal, a feiura, a estupidez, todas as máscaras do demônio são, nestas comédias onde a alma mesma é tentada pela besta, combinadas à lógica extrema; a ponta mais afiada da inteligência volta-se contra si mesma. I Was a Male War Bride toma como assunto simplesmente a impossibilidade de uma soneca até o embrutecimento e às piores implicações.

Melhor do que ninguém, Hawks sabe que a arte deve antes de tudo ir aos extremos, mesmo da infâmia, pois que este é o domínio da comédia; jamais teme as peripécias as mais duvidosas, uma vez que as deixou pressentir, menos preocupado em desapontar a baixeza de espírito do espectador que em saciá-la ultrapassando-a. Tal é o gênio de Molière, cujo frenesi lógico suscita menos amiúde o riso que o nó na garganta; tal como o de Murnau, cujo admirável Tartufo, a famosa cena de dona Marta (em Fausto), e várias sequências de A Última Gargalhada oferecem ainda modelos de um cinema Moliéresco.

Há em Hawks, cineasta da inteligência e do rigor, mas junto de forças obscuras e fascinações, um espírito germânico tentado pelos delírios metódicos nos quais se engendram infinitamente suas consequências, onde a continuidade faz o papel de destino; seus heróis o demonstram não tanto nos sentimentos como em seus gestos, que ele persegue com atenção apaixonada; Hawks filma ações, especulando sobre o poder, tão-somente, da aparência. Que nos importam os pensamentos de John Wayne caminhando em direção de Montgomery Clift, ou aqueles de Bogart durante uma surra; nossa atenção não se dirige senão à precisão de cada passo - ao ritmo preciso da caminhada -, de cada golpe – ao abatimento progressivo do corpo maltratado.

Mas Hawks epitomiza ao mesmo tempo as mais altas virtudes do cinema americano, o único que saiba nos propor uma moral, daí a perfeita encarnação; admirável síntese que contém talvez o segredo de seu gênio. A fascinação que ele impõe não é de modo algum a da ideia, mas aquela da eficácia; o ato nos retém menos por sua beleza que por sua ação mesma no interior do universo que o contém.

Tal arte impõe-se uma honestidade fundamental, ao que testemunha o emprego do tempo e do espaço; sem flashback, sem elipse, a continuidade é a regra; nenhum personagem se move sem que o acompanhemos, nenhuma surpresa que o herói não partilhe conosco. A disposição e o encadeamento de cada gesto têm força de lei, mas de uma lei biológica, que encontra sua prova mais decisiva na vida de cada ser vivo; cada plano possui a beleza funcional de um pescoço ou de um tornozelo; sua sucessão, suave e rigorosa, reencontra o ritmo das pulsações do sangue; o filme inteiro, corpo glorioso, animado por uma respiração resiliente e profunda.

A obsessão pela continuidade ordena o gênio de Hawks; ela lhe dita o sentido da monotonia e lhe associa amiúde à ideia de percurso ou itinerário (Air Force, Red River); eis um universo homogêneo onde tudo está ligado, e o sentimento do espaço àquele do tempo; assim, em certos filmes onde a comédia tem papel maior (To Have and Have Not, The Big Sleep), os personagens estão circunscritos em três cenários, nos quais se movem em vão. Adivinhamos a gravidade de cada movimento de alguém que não podemos abandonar. Quer evoquemos Scarface, cujo reino se concentra das cidades que dominava ao quarto onde é encurralado, ou os cientistas cujo medo da Coisa lhes tranca na cabana; quer nos lembremos de como os pilotos detidos no campo pela neblina escapam às vezes para as montanhas (Only Angels Have Wings) como Bogart escapa para o mar, do hotel onde vagava impotente entre o porão e o quarto (To Have and Have Not); quer reencontremos o eco burlesco destes temas em Ball of Fire, onde o gramático se evade do universo hermético das bibliotecas para os perigos da cidade, ou em Monkey Business, onde as fugas traduzem os acessos de juventude (como I Was a Male War Bride retomava, em outro registro, o tema do itinerário) – sempre o espaço exprime o drama; as variações do cenário modelam a continuidade do tempo. Os passos do herói traçam as figuras de seu destino.

A monotonia não é senão uma máscara; de lentas e profundas maturações se dissimulam, um progresso obstinado, as conquistas feitas passo a passo sobre o solo e sobre si mesmo ao mesmo tempo – até ao paroxismo. Aqui a lassitude como recurso dramático: a exasperação de homens que se refrearam durante duas horas, que pacientemente condensaram ante nossos olhos a cólera, o ódio ou o amor e deles se livram bruscamente, como pilhas lentamente saturadas cuja faísca deve enfim estalar. O sangue-frio exaspera o calor de seu sangue; a calma na qual se aplicam nos força a sentir sua emoção, a partilhar o tremor secreto de seus nervos e de sua alma - até que o copo transborda. Um filme de Hawks amiúde não é senão a ansiosa espera pela gota d’água.

As comédias dão a essa monotonia uma outra face: a repetição substitui o progresso, como a retórica de Raymond Roussel substitui a de Peguy; os mesmos fatos, retomados sem cessar, agravados por uma persistência maníaca, uma paciência de obcecado, turbilhonam sem controle, como aspirados por algum maëlstrom ridículo.

Que outro gênio, mais tomado pela continuidade, saberia mais apaixonadamente se prender às consequências dos atos, às relações que os unem; suas influências, suas repulsões, suas atrações suscitam um universo contínuo e coerente, universo Newtoniano onde se impõem a lei da gravitação universal e o sentimento profundo da gravidade da existência. Os gestos do homem são pesados e medidos por um mestre a quem preocupam suas responsabilidades.

O tempo destes filmes é o da inteligência, mas de uma inteligência artesanal, diretamente aplicada ao mundo sensível, e que busca a eficácia perseguindo a ótica precisa de uma profissão ou de qualquer forma de atividade humana às voltas com o universo e ansiosa de conquistas. Marlowe exerce uma profissão como o cientista e o piloto; e quando Bogart aluga sua barcaça, quase não olha para o mar, menos preocupado com a beleza das ondas que com a dos passageiros; todo rio foi feito para ser atravessado, todo rebanho para prosperar e ser vendido pelo preço mais alto. Mesmo sedutoras, mesmo amadas, as mulheres devem aderir à busca.

Não se pode evocar To Have and Have Not sem rever sobretudo a luta com o peixe que abre o filme. A conquista do universo não é empreendida sem conflito, e esse é o ambiente natural dos heróis de Hawks: combate corpo-a-corpo, lutas calorosas, que enlaçamento mais estreito almejar de outro ser? Assim amam-se mesmo numa perpétua oposição; um duelo incansável cujo incessante perigo os intoxica da evidência do próprio sangue (The Big Sleep, Red River). Da luta nasce a estima: admirável termo que compreende de uma vez conhecimento, apreciação e simpatia; o oponente torna-se parceiro. Mas que desgosto se é preciso combater um inimigo que a recusa; Marlowe, tomado de uma repentina amargura, precipita os eventos e se apressa em levá-los à seus fins.

A maturidade cai bem a esses homens refletidos, heróis de um universo adulto, amiúde quase exclusivamente viril, onde o trágico está no relato das relações interiores - Mas o cômico, intrusão e confrontação de elementos estranhos, ou a substituição de mecanismos ao livre-arbítrio, à decisão voluntária pela qual o homem se exprime e se afirma em seu ato como no ato de criar.

Não quero parecer estar louvando aqui um gênio estranho a seu tempo; mas a evidência de seus laços com nosso século me dispensa de qualquer demora no assunto, ao que prefiro fazer entrever como, se se atém por vezes à pintura do derrisório e do absurdo, Hawks se aplica primeiro em dar sentido e gosto de viver a esses fantasmas e lhes abençoar com uma grandeza insólita, de certa nobreza por muito tempo secreta; como ele dá à sensibilidade moderna uma consciência clássica. Red River e Only Angels Have Wings não reclamam outra filiação que não a de Corneille; a ambiguidade, a complexidade são privilégios dos mais nobres sentimentos, que alguns creem ainda monótonos, ainda que sejam mais rapidamente exauridos os instintos, as barbáries, as razões das almas cruas; - eis o porquê dos romances modernos serem chatos.

Como poderia enfim refrear-me em invocar essas admiráveis introduções onde o herói se instala em sua duração com fluida plenitude. Sem preliminares, sem artifícios de exposição; uma porta abre, ei-lo desde o primeiro plano, a conversação começa e nos familiariza discretamente com seu ritmo pessoal; a partir deste instante em que nós o surpreendemos, como poderíamos deixá-lo, companheiros de sua viagem, que se desenrola tão segura e regularmente como a película através do projetor. Ritmo de uma marcha assim flexível e constante como a dos alpinistas que partem com o passo firme que conservarão através das trilhas mais ásperas, ao termo das mais longas etapas.

Assim, desde as primeiras pulsações, não estamos somente certos de que os heróis não mais nos abandonarão, mas também sabemos que manterão ao excesso todas as suas promessas; não fazem parte da raça dos covardes nem dos indecisos: nada pode com efeito se opor à admirável obstinação, à tenacidade dos heróis de Hawks; uma vez a caminho, continuarão até o fim de si mesmos e do que prometeram, venha o que vier, através de uma forma extrema da lógica; é preciso terminar o que se começou. Pouco importa se foram no começo amiúde envolvidos contra a vontade; ao perseguir, ao rematar, provam sua liberdade e a honra de chamar-se homem. A lógica não é para eles alguma fria faculdade intelectual, mas a coerência do corpo, a harmonia e a continuidade de seus atos, a lealdade a si mesmos. A força da vontade garante a unidade do homem e do espírito, atados naquilo que lhes justifica e lhes dá seu significado mais alto.

Se é verdade que a fascinação nasce dos extremos e de tudo aquilo que ousa o excesso, quando a desmesura também se chama grandeza, - supondo-se que tal fascinação não desdenhe essas forças em marcha, que combinam à precisão intelectual dos poderes abstratos os valores elementares dos grandes elãs terrestres, as equações às tempestades, e sejam afirmações vivas - Todo filme de Hawks não oferece antes de tudo à beleza senão esta afirmação tranquila e certa, sem retorno nem remorsos. Ele prova o movimento ao andar, a existência ao respirar. Que o que é, é.

Jacques Rivette

Publicado na Cahiers du Cinéma nº 23, maio de 1953. Tradução de Eduardo Savella.

Dreyer: artifício, espaço, luz


Por Adriano Aprà

"Fui eu quem escolhi para encarnar velhos, pela primeira vez, homens e mulheres velhos", declara Dreyer a propósito de seu primeiro filme, Praesidenten; e, em A Paixão de Joana D'Arc, Renée Falconetti atuou sem a maquiagem com a qual o diretor lhe havia descoberto num pequeno teatro de boulevard, "pois atrás da maquiagem, da atitude, por trás desta aparição encantadora e moderna, havia algo. Havia uma alma por trás da fachada" 1. Este princípio de tipo "naturalista", amplamente propagado pela crítica oficial, é vigorosamente contrariado pela última cena de seu último filme, Gertrud, na qual os atores, Nina Pens Rode e Axel Strobye, aparecem sob peruca e pó-de-arroz, assinalando ao espectador uma longa passagem de tempo na ficção narrativa. Onde está, aqui, a busca pela "alma por trás da fachada", pela verdade atrás da ficção? Dreyer não esteve a sua altura, traiu-se? Ele escrevera em 1933 (O verdadeiro cinema falado): "No teatro tudo é falso, trata-se de conciliar todos os falsos detalhes de modo que juntos produzam uma ilusão colorida da realidade; enquanto que o cinema apresenta a realidade mesma numa estilização puramente preto-e-branca". 2

A ambiguidade da posição de Dreyer nas divergências do cinema não é facilmente resolúvel. O fato é que ele tenta ser fiel, em teoria e, sobretudo, na prática, a dois princípios opostos entre si: aquele pelo qual o cinema se define como ilusão da vida e aquele pelo qual o cinema se revela como cinema. Mas a presença simultânea de ambos os princípios nos filmes de Dreyer se faz de modo que de nenhum deles se possa de fato dizer que exibe ou que oculta a forma. Pode-se somente, privilegiando uma ou outra direção, fazer emergir uma tentação de cinema como vida ou de vida como cinema. Em particular nos últimos filmes (e em Gertrud que, sobretudo aqui, me interessa) nota-se, numa primeira impressão, uma prevalência da primeira direção. Mas as técnicas do cinema-como-verdade, plano-sequência e som direto vêm submetidas a um trabalho que não contradiz o "realismo" reprodutivo, e lhes extrai aquilo que não se suspeitava que contivessem: uma ficção, mais verdadeira que o real pois nascida de uma reflexão sobre o (decomposição, recomposição do) real. Projeto mais avançado que aquele que presidia filmes como A Paixão e Vampyr onde, tendo já a "ficção" como ponto de partida, na adoção das técnicas que mais explicitamente violentassem e contradissessem o "realismo" fono-fotográfico da reprodução cinematográfica, se tratava de expô-la, mais que de reproduzi-la. Por outro lado, só macroscopicamente as perucas brancas do final se distinguem do resto do filme; elas não fazem mais que realçar o princípio sobre o qual Gertrud é constituído (e resumir um princípio da arte de Dreyer): a manifestação da ficção obtida (no mais difícil dos modos) através de uma fidelidade ao "realismo" audiovisual do cinema (Dreyer mesmo gosta de precisar que Gertrud foi montado em três dias, dois a menos que A Palavra, e que nenhum som ulterior foi acrescentado na mixagem).

1. A vida é sonho




Nada do que acontece em Gertrud se coloca como mudança de direção narrativa, como “acontecimento” que mude qualquer coisa. Ou melhor, nenhuma transformação acontece no presente e na presença que o filme estabelece. Tudo, ao contrário, acontece na ausência, definida como tal na medida em que se opõe, interrompendo-o, ao princípio que caracteriza o plano-sequência, continuidade espaço-temporal e presença audiovisual. Uma enumeração de tais ausências: a fotografia de Gabriel Lidman, que nos dá logo uma personagem “de pedra”, como o definirá Gertrud (note-se, aqui e alhures, que Dreyer insiste no particular introduzindo um enquadramento apropriado para mostrar a foto em detalhe, interrompendo assim um plano-sequência habilmente desenvolvido); uma outra fotografia de Gabriel, que Gertrud rasga quando descobre as palavras que a convencem em abandoná-lo; estas letras e o perfil de Gertrud que as acompanha; a foto de Gertrud que Gustav rasga, quando ela o abandona definitivamente; o poema de Gertrud aos dezesseis anos e a fórmula para a lápide, dois escritos que resumem uma vida; as cartas de Axel a Gertrud e o livro de Axel sobre Racine, único traço dos anos que se passaram entre a penúltima e a última sequência; o telefonema de Gertrud a Axel, que estabelece “no fora de campo” uma decisão bem importante; os dois flashbacks, mais reflexivos que propriamente narrativos; a voz no fora de campo de Gustav na carruagem; as músicas tocadas por Erland (um noturno e um canto do cisne!) ou cantadas por Gertrud; a reprodução ampliada de uma partitura que orna a sala de Erland, emoldurada por duas velas, como o espelho da casa de Kanning; a tapeçaria que misteriosamente retoma e realiza o sonho de Gertrud; a reprodução de Daumier (na casa de Erland) e a tela de Munch (na saleta de Kanning, durante o diálogo entre Gertrud e Gabriel) que prolongam os personagens que as acompanham; a leitura acadêmica dos poemas (acadêmicos) de Gabriel; etc. 3


“Um dia – diz Gertrud a Axel no final – esta sua visita será uma recordação, junto às outras, distantes no tempo”. Neste filme tudo existe para ser narrado, transmutado em ficção: lembrança, flashback, livro, carta, quadro, música, canção – e cinema. Mas, à parte estes exemplos reveladores, nem mesmo os longos diálogos filmados em plano-sequência e som direto escapam ao princípio que sacrifica o “vivido” ao “narrado”. A ação de Gertrud é um longo adeus. O filme que inicia ao anunciar uma mudança (Gertrud abandona Gustav por um amante que ainda não conhecemos) resulta no fim um filme sem perspectivas, tudo retrospectivo: recorda-se daquilo que aconteceu, aspira-se a algo que virá, mas nada advém. Gertrud teve um amante, Gabriel, terá um outro, Erland; mas o passado com Gabriel é resumido em flashback, o primeiro encontro com Erland noutro flashback (cantado, nem mesmo falado), e a cena de amor com Erland acontece no fora de campo, traída somente por uma sombra na parede. Gertrud irá a Paris com Axel, esteve em Paris: um telefone nos informa da decisão, um livro e algumas cartas são os vestígios. Erland anuncia a própria decisão de ir à festa de Costanza, Gabriel conta, mas a festa (tão importante pelas consequências que tem sobre Gertrud) não se vê. Tudo se move, portanto, entre um sonho e uma lembrança, um futuro e um passado, uma aspiração e uma nostalgia. Nada existe no presente ou, dito de outro modo, na “vida”; tudo existe na ficção: no cinema.

Há no filme apenas um momento em que “algo” acontece de fato, na presença e na ausência: é o beijo que Gertrud e Erland trocam em casa dele e que, na economia do filme, tem a força da relação sexual. Mas, mesmo nesta cena, verifica-se algo que coloca-a sob o signo evidente da ficção: a inversão de campo 4 no momento em que as duas cabeças se tocam. A cena é, de resto, precedida por um diálogo (e seguida por uma música: Noturno) que a torna emblemática. Cito por inteiro sua parte final (também porque não está contida no roteiro do filme, publicado na Itália 5):

“Erland: És uma mulher estranha.

Gertrud se move e vai sentar num outro ponto da sala: a luz lhe ilumina violentamente o rosto. Erland senta-se a seu lado. Gertrud tem o olhar distante.

Erland: Quem és tu, de fato?

Gertrud: Acho que sou... tantas coisas.

Erland: Quais?

Gertrud: Sou a luz do dia, que traz vida às folhas; sou a nuvem branca que vai embora e se perde, ao longe.

Erland: E o que mais?

Gertrud: Sou os lábios, lábios que procuram os teus lábios adorados.

Erland: Agora estou num sonho.

Gertrud: É de fato um sonho. A vida... não é mais que um sonho.

Erland: A Vida?!

Gertrud: Sim, a vida toda não é mais que uma sucessão de sonhos, sem fim, que se ligam uns aos outros.

Erland: E os lábios de que falavas?

Gertrud: Um sonho.

Erland: E os lábios que procuravas?

Gertrud: Também eles... um sonho.

Gertrud e Erland se olham nos olhos. Gertrud se aproxima para beijá-lo. Paro (e inverto o campo): Gertrud e Erland se beijam.

Gertrud: Toca.

Erland: Que queres ouvir?

Gertrud: Um noturno.

Erland: De Debussy?

Gertrud: O teu.

Erland toca, enquanto Gertrud vai ao seu quarto, abaixa a cortina e, fora de campo, acende uma lâmpada e começa a despir-se: a luz da lâmpada projeta na parede a sombra de Gertrud que se despe. A câmera enquadra Erland, que toca; Fora de campo a luz se apaga; Erland se levanta para se juntar a Gertrud.

Gertrud, como conclusão da obra de Dreyer, lembra-nos de que o cinema não é a aventura da vida, mas aquela da palavra (os atos do processo que abrem A Paixão, tragédia já narrada antes mesmo de ser vivida diante da câmera; o livro que David Gray e o velho servente folheiam em Vampyr, palavra que permite, no pesadelo vivido, encontrar o caminho para o despertar e a libertação), do quadro (retratos e aquarelas em Michael, bordado incompleto em Dias de Ira), da música: da ficção. E nos lembra de que a ficção somente – o cinema – dá conta da “vida”: primeiro plano que conclui triunfalmente o drama de Ana, em Dias de Ira (mas se trata de um triunfo de todo estilístico para conter a derrota); “milagre” de A Palavra em nada surpreendente, pois que não faz senão levar à sua conclusão lógica o princípio estilístico do filme, sua circularidade, sua luz branquíssima e inofuscável.

2. O Labirinto



Na cena final de Gertrud, uma oposição de campo e contracampo (Gertrud na porta de sua sala, na qual se fecha; Axel, na entrada do fundo, pela qual sai) sela um adeus definitivo. Esta oposição de campos, que é assim também uma oposição de mundos (o espaço cenográfico de Axel é mais similar àquele fantástico de Vampyr que àquele “naturalista” no qual se move Gertrud), sintetiza o princípio mesmo do filme, alhures desenvolvido de maneira menos rígida, pois mais secreto e casto é o ritual de adeus. Trata-se, de fato, em Gertrud, de criar um espaço fraturado lá onde mais se esperaria orientar-se, de introduzir magia no cotidiano menos afeito à reviravoltas. De modo semelhante ao que acontece em O Anjo Exterminador de Buñuel, mas de maneira mais física em Dreyer, estabelece-se no espaço contínuo uma série de linhas intransponíveis, por meio da câmera (e, indiretamente, dos personagens). Os amplos salões escondem linhas de fronteira, subdividem-se em campos, cada um dos quais parecendo reservado a um ou mais personagens; e quase parece que estes o sabem.


Na saleta da casa de Kanning um espelho separa dois espaços principais: aquele reservado aos encontros entre Gertrud e Gustav e aquele aos encontros entre Gertrud e Gabriel. Os dois espaços estão entre si numa relação de campo/contracampo e o ponto de encontro dos dois campos é, justamente, o espelho: Gustav lhe denuncia a proveniência, para ele pouco agradável, durante o primeiro longo diálogo; Gabriel acenderá as velas que o emolduram para fazer reviver (como num ritual mágico, e magicamente Gertrud aparece no espelho) seu passado feliz; e Gertrud as apaga, selando o fim daquelas lembranças e daquela felicidade, a efemeridade do “contracampo”. Este segundo espaço, revelando aspectos da saleta que não tinham sido vistos antes e que não serão vistos depois, tem tudo para ser um espaço imaginário, reflexo de um espelho mágico, local privilegiado inventado pelos dois ex-amantes para colocar em cena a comédia de sua memória sem ter de partilhá-la com espaços outros; e o caráter imaginário de tal espaço é sublinhado pela sucessão de tempos diversos que ali se inscrevem: na forma dos diversos estilos de mobília, ao longo das quais os personagens se movem como numa peregrinação, movidos por uma vontade inconsciente de colocar sua recordação à prova (destrutiva) tanto do tempo como dos espaços diversos, e selar assim duplamente a irreversibilidade dos fantasmas que evocam. Assim como com o que acontece no final, mesmo se de modo mais severo, menos “sentimental”: um campo (um espaço, um tempo, um personagem), um contracampo (um outro espaço, um outro tempo, um outro personagem), e entre os dois a coupure, a fissura.

Outro exemplo: o salão da universidade. Aqui o espaço é quadripartido. Um “ângulo” é reservado ao encontro entre Axel e Gertrud (a tapeçaria); um outro aos dois diálogos entre Gertrud e o marido e entre estes e Gabriel; um outro ainda (ou melhor, uma angulação diversa do precedente) ao longo diálogo entre Gertrud e Gabriel; um quarto, obtido através de uma esplêndida variação do precedente ( a abertura de uma porta que revela um outro espaço, mas um espaço impossível, assim como se diz “um par impossível”, que introduz uma linha demarcatória que Gertrud não é capaz de atravessar), para a cena entre Gertrud e Erland. Depois de ter fugido de um espaço que não lhe pertence, ou que não deseja enfrentar: aquele da “academia”, espaço tipicamente masculino, espaço público (a sala do banquete: banquete fúnebre), Gertrud se fecha num espaço que lhe é mais familiar. Mas, colocada diante de seus homens, Gertrud se encontra a vivenciá-los como mais outras divisões de si mesma, e seu trajeto de um a outro, na tentativa de unir aquilo que é, por natureza (isto é: por cultura e ideologia) desunido, de ligar o que deve permanecer separado, leva logicamente à derrota: um desmaio, mais além da solidão e da morte.

Um terceiro exemplo. Para Erland, Gertrud inventa um espaço que não tem medida em comum com os outros: o parque, espaço externo e diurno, espaço absurdo na economia do filme (e também na da diegese: Gustav notara um pouco antes, olhando para fora da janela da sala, “o crepúsculo chegará em breve”; mas no encontro que se segue de Gertrud – colocado em relação paralela ao trajeto de carruagem de Gustav – nenhum sinal de noite). Este espaço parece fugir ao estatuto dos outros espaços: a divisão em planos não interfere sua continuidade, salvo na última cena. Aqui acontece algo que, dado o tipo de filme, poderíamos definir como um “escândalo” estilístico. Erland sai do campo do laguinho pela direita e entra no contracampo do banco de praça também pela direita: a continuidade que parecia ter-se criado, graças ao “erro técnico”, é interrompida: também este espaço que parecia privilegiado é submetido à destruição, como todos os outros. Cada harmonia é dissolvida, cada círculo é despedaçado.

Resta a fuga do tempo e do espaço esfarelados, o reencontro da “medida”, da orientação e do círculo num contexto cuja “ilusão” é declarada em aberto. Isto vem nos dois flashbacks: retornos não só temporais mas também espaciais, busca e descoberta de espaços e tempos perdidos para sempre. Um único plano-sequência permite a Gertrud passar de um corredor a um apartamento (forçando a câmera num inverossímil “atravessamento de parede” – que, junto ao canto triunfante, simétrico e oposto àquele interrompido pelo desmaio, sela como antes a vontade não podia sem infringir cada linha de demarcação); um outro plano-sequência segue Gertrud através de um grande número de cômodos: quarto de dormir, banheiro, sala de estar, escritório, cozinha, mas um texto e um desenho (a ficção) interrompem desta vez o sonho belo demais, a ilusão da continuidade durou apenas um instante, mas assombroso.

Esta separação dos espaços funciona, ainda mais, no filme tomado em seu conjunto. Os espaços então se revelam como celas. Entre a sala de visitas da casa de Kanning, o parque, o teatro, a sala de jantar e a de música, a casa de Erland (para não falar daquela de Gabriel e a de Gertrud no final) nenhuma relação, nenhuma possibilidade de ligação: outros tantos elos de uma corrente despedaçada, outros tantos espaços imaginários. Neste sentido Gertrud alcança o labirinto de Vampyr, mas percorrendo o caminho oposto. Ali a ilusão era manifesta, e a descontinuidade evidente acabava por chegar numa espécie de continuidade envolvente, aquela do sonho que tudo unifica; aqui, ao contrário, uma continuidade aparente atinge uma descontinuidade real, ainda mais inquietante. Aquilo que David Gray inconscientemente unifica, Gertrud separa, lucidamente.

A reflexão de Dreyer sobre o espaço (e sobre o tempo), sobre sua continuidade/descontinuidade, já estava plenamente manifesta n’A Paixão. Neste filme Dreyer leva às extremas consequências uma experiência de fragmentação do espaço-tempo sem precedentes. Opõe dois princípios contraditórios entre si e não resolve a contradição, mas deixa que se desenvolvam como numa fissão nuclear, alcançando uma explosão violentíssima: de um lado temos um trabalho de síntese (o longo tempo do real processo resumido a algumas assembleias; os diferentes ambientes concentrados em poucos); do outro, uma análise do espaço-tempo assim sintetizado. Mas tal análise recusa qualquer lógica; os planos seguem-se vertiginosamente se contradizendo um ao outro; sucessões de angulações, direções de olhares, entradas e saídas de campo, toda uma série de “erros”. Em suma, fogo-de-artifício que estupefaz e desorienta; fogo* e artifício que introduzem o espectador de Dreyer num cinema que se quer explicitamente falso, material, selvagem, escandaloso. Tal dissolução do espaço-tempo não nasce do zero: é uma primeira crítica à “continuidade” que Dreyer havia chegado em Michael, depois da descontinuidade extraordinária do primeiro episódio de Páginas do Livro de Satã; trajeto descontinuidade/continuidade que Dreyer refaz, num nível superior, de A Paixão a Gertrud, e que talvez o Jesus tivesse mais uma vez colocado em discussão. Porém, um paralelismo como esse entre dois períodos da carreira de Dreyer é aproximativo, conhecendo eu mal o primeiro.

Depois de A Paixão o fogo-de-artifício prossegue em Vampyr, mas já com uma correção, que é aquela do “gênero”. Inscrito no fantástico, os prodígios da descontinuidade espacial, temporal e luminosa surpreendem menos, mesmo se, talvez, encantem mais. O universo construído em A Paixão tinha qualquer coisa de cósmico (uma viagem na máquina do tempo, onde se perde qualquer noção das medidas terrestres; ou uma viagem lisérgica), impunha-se como terrorista pois recusava qualquer alternativa; já aquele de Vampyr possui parentescos literários e cinematográficos mais comuns, é já um tempo-espaço no qual é possível orientar-se, mesmo que culturalmente: seu espaço (um labirinto onírico) e seu tempo (crepuscular) são, a seu modo, ordenados e coerentes, criam oposições precisas, estabelecem pois relações também com outros espaços e tempos, o que de fato não se podia dizer de A Paixão.

Dias de Ira é para Dreyer o filme da contradição, do risco, da crise. Rico em lapsos, é seu filme mais revelador. De um início filmado num plano-sequência perfeito seguem-se cenas filmadas em planos alternados que o contradizem, sem providenciar a solução. O filme prossegue de maneira dramática, no sentido de buscar o próprio prosseguimento enquanto o realiza; ao contrário dos outros filmes de Dreyer, aqui nada é previsível, e o caminho de Anne, os conflitos aos quais ela se submete, são carregados de mistério. Por isso Dias de Ira é, entre os filmes de Dreyer, o mais inclassificável e incoerente, aquele mais intrincado e cambiante narrativamente, filmado quase às cegas: um filme pleno de interrogações apaixonantes, privado de certezas. Se A Paixão pode se definir como um momento na história da loucura retalhado e comprimido; Dias de Ira é a análise de tal loucura (que aqui chamaremos bruxaria, alhures santidade ou vampirismo), o confronto entre suas várias manifestações, uma tentativa de organizá-las, da parte do diretor que cada vez mais se abandona impudicamente ao próprio delírio cinematográfico, ao próprio terrorismo de homem que não admite compromissos. Mas também Dias de Ira no fim deve renunciar ao compromisso, deve operar uma escolha; entre os vários espaços-personagens, entre os quais procurou-se estabelecer um contato, se (r)estabelece a diferença: de um lado o espaço circular que unifica os representantes do poder em suas várias manifestações, que vão até a identificação dos opostos (Martin e a velha Merete); de outro, isolada e privilegiada no espaço fictício de um primeiro plano fixo e luminosíssimo, Anne.

A “generosa” tentativa de Dreyer de aceitar a discussão, de renunciar ao maniqueísmo do “quem não está comigo está contra mim”, falha em Dias de Ira: preciosa falência. Mas o círculo ali logicamente despedaçado é reconstituído, de modo igualmente lógico, em A Palavra: mas desta vez fora da história e de seus imperativos “democráticos”, num universo todo de invenção, triunfo do artifício cinematográfico. A Palavra é o filme da harmonia, privado de dissociações, contradições, fraturas. Um espaço circular (a sala de estar da casa Borgen) da qual irradiam-se um conjunto de cômodos; por sua vez ligado, por espaços visíveis (as viagens de carroça) a um outro espaço simétrico (a casa do alfaiate Petersen). Um tempo cotidiano, mensurável, escandido no relógio. Uma luz clara e estável, branquíssima, jamais contrariada. E neste triunfo do círculo uma “provação”, a morte de Inger, e um “milagre”, que confirma a estabilidade da corrente. Mas o milagre final não é uma surpresa: este já está contido no primeiro enquadramento do filme. É a construção mesma do filme que determina sua conclusão: tal espaço não pode ser interrompido, tal luz não pode ser obscurecida. Mas espaço e luz cinematográficos, e milagre cinematográfico: matéria visual e sonora. A “vida” não entra neste universo robusto da ficção. E se Inger a invoca é para que a tensão do filme prossiga, e a harmonia realizada no cinema (no universo do falso) ressoe no universo do verdadeiro. O resto (a crítica verossimilhante ou metafísica que denegriu ou exaltou o filme) é miséria.

Com Gertrud é o retorno à terra, ao universo histórico; mas com a lucidez, a ironia, a desilusão de vinte anos depois. E o retorno aos espaços separados, às relações impossíveis, às lutas inúteis. 6
3. Economia da luz



A lareira é uma imagem que pode resumir de maneira não muito arbitrária o cinema de Dreyer. Só que esse cinema é tudo menos um cinema “coerente”, como se gosta de definir normalmente: sobre a lareira o ponto de vista é sempre diverso. Assim, se em A Palavra ela funciona como elemento centralizador e se identifica com um espaço homogêneo e apaziguado, a lareira familiar, já em Gertrud ela é destruída e, quando vista concretamente (na última cena, com Axel e Gertrud sentados em primeiro plano defronte a ela, de costas) é para recordar-nos daquilo que não existe mais, serve para queimar as cartas de um passado talvez sereno, mas inútil. Na Paixão, pois, era uma fogueira. O fogo neste filme é um fogo violento, que destrói e regenera, que mata (Joana) e produz vida nova (a revolta do povo, e a repressão imediata desencadeada por Warwick, confronto sobre o qual o filme termina). Fogo presente não somente no final, mas em todo o filme, a começar pelo primeiro enquadramento: ritmo de fogo, montagem crepitante que solicita do espectador um envolvimento total, sem reservas (por isso eu dizia que é um filme terrorista).

A violência deste filme extraordinário já está aplacada em Vampyr, que contém seus vestígios: a fumaça e as cinzas, entre as brasas que ainda ardem, mesmo que sufocadas. E já fumaça, cinzas e brasas que tendem a se ultrapassar, tendem àquela luz que se entrevê no final: produto do fogo. Mas Dreyer se detém ante esta luz, reserva-a para um epílogo, ou para outro filme; portanto não a filma. David Gray e Gisele se lançam para a luz filtrada pelas árvores da floresta, mas a câmera permanece na floresta, entre a névoa; e o último enquadramento, assim, não contradiz o resto do filme. A oposição indicada no final (montagem paralela entre dois clarões: o branco da farinha que mata o médico/ a lua que palidamente emerge dentre as nuvens depois que a velha Marguerite Chopin é morta pelo servente e a consequente fuga de David Gray e Gisele em direção à luz para além da floresta) faz precipitar aquela oposição que move todo o filme (entre os habitantes do castelo e Marguerite Chopin e o médico); mas ambas aparecem substancialmente absorvidas pelo crepusculismo constante do filme.

Era necessária esta experiência da sombra, a fascinação da noite polar para poder defrontar de modo não-teórico a experiência da luz, a começar por Dias de Ira. Neste filme profundamente dialético, também a luz é submetida a confrontos, paralelismos, oposições, movimentos plenos de nuances. A compacidade de Vampyr e o maniqueísmo de A Paixão (violência maniqueísta que opõe a louca/santa Joana a seus juízes ignóbeis e “ignobilmente” filmados) não têm mais lugar em Dias de Ira. A luz é busca por uma razão por trás da paixão. Dreyer submete sua predileção por Anne e sua bruxaria positiva, de fogo (“os olhos que ardem”), a uma série de meditações; e, antes de chegar ao plano final, no qual luz e lágrimas exaltam seu rosto, e a escolha que este carrega, atravessou uma densa série de mediações, verificou todas as possibilidades de inscrever a “bruxa” no contexto das outras bruxas e feiticeiros, de precisar as diferenças e semelhanças sem ceder ao maniqueísmo das oposições drásticas. Mas se os representantes do poder, bruxas e feiticeiros do mal, vampiros da noite, se parecem todos (Martin alcança Merete); as bruxas da luz, os vampiros do bem não se assemelham a ninguém, e são condenados à solidão, ou à “santificação “ de um primeiro plano.

A Palavra é o triunfo da luz, e o filme simétrico a Vampyr. Lá a noite polar, aqui o dia polar. Lá (em Vampyr) a experiência “absoluta” das trevas, aqui a experiência igualmente absoluta da luz. E também este é um filme privado de contradições. A luz é uma luz fixa, que nada pode obscurecer. Se em Dias de Ira as forças da noite, forças mortais, colocavam em risco a luz de Anne, e no fim a derrota era evitada graças aos privilégios do primeiro plano que a separava de todo o resto; aqui uma morte nada pode contra um universo do qual a vida tomou firme posse. Mas, se já foi dito, esta vida é cinema, a vitória é vitória do cinema, da ficção, do falso, da máscara: da luz de um refletor num estúdio. É a proteção necessária a que recorre Dreyer para afirmar uma absurda esperança (ou talvez um lamento) sem torná-la improvável demais: a matéria do cinema, senão aquela da vida, pode realizá-la. O escândalo do milagre de A Palavra está nesta afirmação do cinema contra a vida.

A “vida” de A Palavra é posta em conflito, em Gertrud, com as imagens e sons de uma realidade menos abstrata, num contexto dotado de mais ganchos contemporâneos. Mas não é a ambientação minuciosamente datada a fazer de Gertrud um filme mais próximo de nossos tempos, que solicita ou autoriza para isto uma identificação (também Vampyr é um filme moderno neste sentido, de fato paradoxalmente, entre aqueles que vi, o único filme de Dreyer de ambientação contemporânea ao período das filmagens!); é o fato de que a formalização do récit e dos personagens leva em conta categorias mais próximas de nosso contexto histórico. As oposições homem político/poeta, músico/psicanalista com os quais se defronta Gertrud são outras tantas categorias próprias da cultura burguesa de nosso século, das quais fugiam os outros filmes de Dreyer (preocupados em indagar – de submeter a reflexões formais – outros períodos históricos: neste sentido o cinema de Dreyer, realizado ou não, tende a cobrir as etapas fundamentais da história ocidental: Páginas do Livro de Satã, Medea, Jesus, A Paixão de Joana D’Arc, Dias de Ira, Praestaenkan, A Palavra, Praesidenten, Michael, Gertrud...). Deste conflito determinado historicamente emerge de forma lógica a imagem da morte. Como Anne, também Gertrud procura em torno de si (não os outros ou dentro de si, como os personagens-limite de outros filmes) a possibilidade de um contato, de uma troca, do amor. Mas em torno de si não encontra senão a morte. Só que Gertrud não é heroína: não é Joana nem Johannes, isto é claro, mas também não é Anne, que tinha direito a uma vitória cinematográfica. Não que Gertrud seja um filme menos “fílmico” que Dias de Ira ou A Palavra; mas aqui a fidelidade ao cinema, sua vitória, foram separadas da vitória dos “personagens”; Gertrud não brilha com luz própria, mas com luz refletida; o olhar de Dreyer, antes implicado (a um personagem ou a todo um universo), agora se destaca, e julga. A luz que domina Gertrud, luz complexa e plena de nuances, precisa e articulada, é a luz do juízo crítico.

Do fogo à luz, da paixão à razão, a evolução de Dreyer é também aquela da loucura à crítica desta loucura. Se Joana nada sabe sobre ser louca/santa, e o é, impõe uma escolha de vida escandalosa e extrema, e por isso fonte de energia que transforma o mundo, dilacera-o e revira-o; Gertrud gostaria de sê-lo, permanece fiel até a morte à promessa do absoluto feita a si mesma aos dezesseis anos (“Amor Omnia”), mas não o é, talvez porque os tempos não mais o consintam, ou porque não basta ser santo para vencer na história. Gertrud é uma santa degradada e patética, sua fé nos confrontos do amor não é menos cega que aquela de seus homens, e seu destino enquanto face não difere do deles. Joana é o amor louco; Gertrud aspira-o, evoca-o, conta-o, mas não o vive: o fogo se tornou cinzas, a pedra ardente é lápide fria, a morte envolve tudo; a única vitória é aquela do olhar total que tudo julga, que tudo distingue, que tudo forma.

A luz de Jesus, luz que do “santo” se irradia para toda a comunidade, teria dito uma palavra nova? Teria sido curada a dolorosa e necessária ferida de Gertrud? Teria sido tirada a máscara da “vida” de A Palavra? E que outra máscara, que outro cinema teria sido?

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* N.T.: Em italiano, a palavra fuoco refere-se tanto a fogo quanto a foco.

1 Cf. Michel Delahaye, Entre terre et ciel, “Cahiers du Cinéma”, n. 170, setembro 1965.

2 Cf. “Cahiers du Cinéma”, n.127, janeiro 1962, p.28. Para os escritos de Dreyer ver: I miei film, Cineforum, Veneza 1965, e Cinque Film, Einaudi, Torino 1967.

3 Não por último, nesta enumeração de “ficções”, as cinco legendas que escandem o filme, antecipando-lhe a “ação” e fixando-a em palavras. Transcrevo-as, pois não estão traduzidas na versão dublada do filme que circula na Itália: 1. “Sonhaste algo/que te ajudasse a ser livre,/algo desconhecido/aconteceu em tua casa fria,/e vais plena de amor ao encontro de tua felicidade”. 2. “Uma nova luz nasceu em ti,/aqueceu teu coração/e alargou teu mundo,/ mas não trouxe a paz./Secreto é teu amor a quem não sabe”. 3. “Teu coração arde-te no peito,/ queima de tristeza selvagem,/ agarra aquilo que te foge/e luta por teu amor”. 4. “Teu sonho por ora acabou/apenas uma coisa permaneceu:/uma verdade dura como pedra, /límpida a dor, clara a vontade/e tu partes numa escuridão infinita”. 5. “Primavera e invernos passam./Vives só em tua cidade/isolada no crepúsculo da vida/nutrindo-te somente de lembranças./Conhecer é necessário para viver/ para viver e envelhecer em paz./Duas coisas apenas existem e contam:/amor e morte”. [Estas legendas foram sucessivamente eliminadas da versão definitiva do filme.]

4 Uma inversão de campo assinala uma outra transgressão: aquela de Anne e Martin em Dias de Ira (Anne: “Te vejo entre as lágrimas”; Martin: “Lágrimas que eu seco”; e então, depois do beijo e da inversão de campo, as metáforas do fogo sucedem àquelas da água. Martin: “Ninguém tem olhos como os teus”; Anne: “Como são? Inocentes, como os de uma criança? Puros e serenos?”; Martin: “Não, profundos e enigmáticos. Vejo...”; Anne: “O que vês?”; Martin: “Uma chama que vibra e palpita”; Anne: “A chama que acendeste”). Inverter o campo significa, para o cinema clássico ao qual Dreyer se liga substancialmente, transgredir um princípio “gramatical” que permite criar, na tela, a ilusão de continuidade espacial, e introduzir em seu lugar uma “aberrante” descontinuidade.

5 A publicação dos “roteiros” dos filmes de Dreyer (Cinque film, op. Cit.) é uma das tantas operações inúteis e incorretas às quais se habituou a crítica italiana oficial. Trata-se, de fato, de roteiros de partida, muitas vezes bastante diversos dos filmes tal como foram realizados. É evidente que tomar os filmes e analisá-los na moviola, para obter o roteiro de montagem, é um trabalho “técnico” que hoje a “idealista” crítica italiana de cinema deve ter em baixíssima conta. Tal livro, no que se refere aos roteiros, poderá assim ser substituído por: Guido Gerrasio (organizador), La Passione di Giovanna d’Arco, vol.2, da Cineteca Domus in volumi, Ed. Domus, Milão, 1945: 118 fotogramas tirados de cópia do filme e relacionados a indicações narrativas sucintas; Aldo Buzzi, Bianca Lattuada (organizadores), Vampyr, l’étrange aventure de David Gray, Poligono, Milão, 1948: roteiro de montagem do filme com 162 fotogramas originais; “L’Avant-Scène du Cinèma”, n. 100, fevereiro 1970: decupagem e diálogo por extenso de Dias de Ira (sem indicações de divisão de planos), com fotografias de cena e fotogramas originais (os diálogos italianos do filme foram publicados no n. 10. Janeiro de 1959, em “Schermi”), e com um dossiê sobre A Paixão de Joana D’Arc; Guido Cincotti (organizador), La Parola (Ordet), Bianco e Nero, Roma 1956: roteiro com indicações técnicas amplas feitas a partir da cópia original do filme, com 72 fotogramas originais. Nada existe, no entanto, no que diz respeito a Gertrud.

A iniciativa einaudiana, de uma abordagem toda “italiana”, de resto não surpreende, dando origem a uma crítica que sobre Dreyer não soube quase nunca acrescentar senão banalidades. Um compêndio infame, e sintomático, é aquele reunido academicamente por Orio Caldiron no n.7-8, julho-agosto de 1968, de “Bianco e Nero” (La Fortuna Critica in Italia, pp.121-199). Dele extraio dois exemplos que me parecem exemplares. Corrado Terzi responde (no último número, dezembro 1947, do “Politécnico”! – Sostanza di Dreyer) a Aldo Buzzi que escrevera (no prefácio ao citado roteiro de Vampyr): “Dreyer trabalha num espaço fechado, arrancado dos rumores externos, de qualquer contato com a vida; num isolamento que abre o caminho às experiências ‘artificiais’”. Ele diz: “Cremos firmemente que tal afirmação seja errada e contraditória. É evidente, de fato, que um artista (ou sua obra), quando reconhecida como tal, não possa partir de valores ‘artificiais’ e alcançá-los, nem pressupor uma substância e uma experiência que seriam então desumanas – porque, veja bem, o conceito que quer ser atingido na citada definição é precisamente de desumanidade, não de anti ou super-humanidade. Portanto é absurdo e está claro por que razão o é. Sem arranjar um argumento filosófico, é no entanto sempre lícito afirmar que a obra de arte deve conter um significado humano – a tal significado humano concedendo uma certa margem de movimento; deve estar, em outras palavras, em direto e contínuo ‘contato com a vida’”. E o Caldiron exemplarmente comenta: “O prefácio foi citado pois responde bastante prontamente ao clima do imediato pós-guerra no qual a solidariedade entre o fazer artístico e o contexto social era proposta com particular tensão ético-política”! Depois deste banho de idealismo, tão comum a tão pretensa crítica materialista-neorrealista de nosso pós-guerra cinematográfico, uma observação de Guido Aristarco: “Mesmo se devolvida à luz, Inger permanece num sepulcro (a casa de Borgen) e os outros com ela: ou seja, se movem no escuro daqueles cinzas e daqueles negros, entre aquelas paredes que as lâmpadas não são capazes de iluminar; e, fora, a noite boreal [...]. O tom de luto, lúgubre de A Palavra, seus personagens sepulcrais, talvez signifiquem que só os sobreviventes podem ainda se interessar por certa problemática, por certo misticismo; que só o moribundo – ou o que vive morto entre mortos-vivos – pode ter fé na última esperança: o milagre. Esta é para nós a chave de A Palavra; de fato difícil de encontrar entre tantos símbolos e simbolismos, entre tanta confusão de realidade e sonho e que culmina no personagem de Johannes, naquela sua natureza por assim dizer Hamletica: conquistou a razão, por fim? Se a chave fosse realmente aquela por nós sugerida, A Palavra viria a assumir na filmografia de Dreyer, e no âmbito do cinema de hoje, um peso bastante diverso” (in La Morte e la speranza, “Cinema Nuovo”, n.66, 10 setembro 1955 – itálicos meus, A.A.). Não parece que o “se” hipotético foi resolvido com os anos e revisões: cf. Guido Aristarco, Il Dissolvimento della ragione, Feltrinelli, Milano 1965, p.543.

Na coletânea de Caldiron, o único texto que denuncia um trabalho crítico parece ser aquele de Glauco Viazzi sobre Vampyr, em “Bianco e Nero”, n.10, outubro 1940. Não é a primeira vez, de resto, que Viazzi se revela, numa releitura, crítico atento e sério.

6 Ao ler o roteiro de Jesus (Gesù, Racconto di un film, Einaudi, Turim, 1969) – e com todas as reservas que um discurso sobre um filme não-realizado comporta – tem-se a estranha sensação de um retorno ao “experimentalismo” de A Paixão, e ao mesmo tempo de uma capacidade “crítica” que liga este projeto antes a Gertrud. Pela primeira vez, um filme de Dreyer se move num espaço aberto e não num fechado, não concentra, mas dispersa – difunde – as próprias forças; um enxamear de episódios se produzem em torno da narração principal, uma série de desvios multiplicam-na e complicam-na. E essa fragmentação do espaço-tempo não vem de coupures dentro de um único universo, mas por sucessivas generações: é uma fragmentação construtiva. Paralelamente se assiste a uma multiplicação de “modos” cinematográficos: as indicações técnicas que abundam no roteiro fazem pensar numa espécie de catálogo de figuras retóricas do cinema clássico, como se Dreyer tivesse decidido filmar este filme segundo um princípio de incoerência, sem o rigor dos dois últimos filmes, de modo “experimental”, precisamente. Mas este “experimentalismo” não parece ditado pelo furor, mas pela reflexão crítica: como se Dreyer buscasse – atingido o ponto da harmonia “fictícia” de A Palavra, e aquele da desarmonia controlada em Gertrud – recolher material, analisar e assentar as pedras de um discurso radicalmente novo, procurasse as formas de uma nova orientação, procurasse as formas de uma orientação não-presumível, toda experimental, toda terrestre (veja-se também o talhe “documentarista” com o qual são descritos muitos dos episódios). Portanto Dreyer alcançaria a parábola de Rossellini e de seus Atti degli Apostoli. Como o Pedro e o Paulo daquele filme, também o Jesus de Dreyer seria um Jesus “histórico”, no sentido de um “profeta” (louco, santo, bruxo, vampiro, segundo a casuística dos autres desenvolvida por Dreyer em seus filmes) que aceitou o tempo do aqui e do agora, tempo mensurável, tempo da vida e da morte, depois de ter vivido aquele cósmico, supra-histórico. E então o Jesus se ligaria também a “tentativa falida”, a Dias de Ira, o filme das mudanças contínuas, e lhe realizaria a vontade contraditória de diminuir e submeter à história os conflitos que recusam a história (isto é, em termos cinematográficos, que refutam seu tempo e seu espaço mensuráveis).

Publicado em “Cinema&Film”, n. 11-12, verão-outono de 1970, pp. 144-154; republicado em Gianni Volpi, Alfredo Rossi, Jacopo Chessa (org.), Barricate di carta. “Cinema & Film”, “Ombre Rosse”, due riviste intorno al ’68, Mimesis Cinema, Milano-Udine 2013, pp. 179-194.


Publicado online em http://www.adrianoapra.it/?p=1 a 25 de setembro de 2014. Tradução de Eduardo Savella.

Um coração posto à mostra


por Philippe Demonsablon

THE SAGA OF ANATAHAN, filme japonês de JOSEF VON STERNBERG. Roteiro e adaptação: Josef von Sternberg, segundo o romance de Michiro Maruyama. Diálogos em japonês: Asano. Comentário em inglês: Josef von Sternberg, narrados por ele mesmo. Imagem: Josef von Sternberg. Música: Ifukube. Montagem: Miyata. Cenário: Kono. Interpretação: Akemi Negishi, Tadashi Suganuma, Kisaburo Sawamura, Shoji Nakayama, Jun Fujikawa, Hiroshi Kondo, Shozo Miyashita, Tsuruemou Bando, Rokuriko Kinoya, Daijiro Tamura, Tadashi Kitagawa, Takeshi Suzuki, Shiro Amikura, Kikuj'i Onoe. Produção: Daiwa production, Josef von Sternberg, 1953.

The Saga of Anatahan oferece a quem nele atenta o exemplo de um confronto entre circunstâncias arriscadas de produção e uma vontade criadora há muito tempo detida, entre a pobreza dos meios de realização e a densidade daquilo que, através deles, o autor se propõe exprimir. Mas o filme oferece, também, o exemplo de um triunfo definitivo desta sobre aquela - justa revanche se nos lembrarmos até que ponto, já fazem vinte anos, a carreira de Sternberg vem sendo contrariada e se figurarmos a situação de um criador que viu-se recusar a possibilidade de criar. Contudo esses anos de silêncio ou de meio-silêncio [1] não foram território vão e, sem renúncia alguma, Sternberg nos dá com Anatahan uma obra de maturidade onde o rigor faz-se mais exigente e mais complexa a proposta. Pois esta obra contém duas faces estreitamente combinadas onde cada uma corresponde aos sentimentos que inspira: na sucessão em que se manifesta para nós, de início objeto cujos poderes de fascinação justificariam amplamente a admiração; depois reflexo e, mais ainda, projeção, voluntária ao extremo, do homem que criou tal objeto. Será cômodo à exposição, útil à compreensão, seguirmos esta marcha em duas etapas que venho indicar.

A imprensa publicou um episódio derrisório e trágico da última guerra: um grupo de pescadores e soldados japoneses encalhara em 1944 na ilha de Anatahan, que encontraram deserta, com a exceção de um casal. Ignorando a derrota do Japão e, depois, recusando-se a crer nela, esperando a chegada de um inimigo que não mais existia, vieram a guerrear entre si pela posse, acreditavam eles, da mulher. Isto durou sete anos. Era possível mesmo ter durado até o momento em que escrevo estas linhas. A partir deste acontecimento real de nossa época, e com grande atenção à verdade, Sternberg concebeu um filme resolutamente não-realista. O filme disto oferece numerosos exemplos; os mais chocantes dentre eles [2] mostram assaz que a provocação aqui não está ausente, bem como certo prazer aristocrático em desagradar: mas é aos tolos que desagrada. E para terminar de vez com qualquer mal-entendido, Sternberg não atravessou o Pacífico senão para construir num estúdio de Quioto um cenário de selva em todo caso pequeno, pois é na estreiteza que ele se acha à vontade (lembrando-nos de Shanghai Gesture ou do cenário das docas de Macao), e engajar uma trupe de dançarinos a fim de interpretar os personagens do drama.

Percebemos desde já tudo o que tal procedimento autoriza de transfiguração. Acertadas as contas com a lamentável verossimilhança, o autor conquista maior liberdade em exprimir uma verdade poética, essas linhas abstratas que acrescentam ao resplendor da matéria que reencontram; assim, que de mais abstrato que esta floresta árida e ressecada, no meio do bulício humilde que tantos filmes nos deram a ver? Sem dúvida restavam ainda algumas convenções, às quais era urgente fazer justiça. Convenções dramáticas antes de tudo que a interpretação dos atores contribui em dissipar. Fato único no cinema japonês, os gestos expressivos deram lugar à magia dos olhares dirigidos com frequência ao prodigioso desconhecido de sua visão; quem não reconhecerá esta estilização dos cineastas alemães, Fritz Lang e Murnau, muito mais preocupados em mergulhar os personagens num universo abstrato que de lhes confrontar entre si. Essa obliteração de toda estrutura dramática acha-se intensificada pelo comentário que acompanha o filme todo ao longo de seu desenrolar. Quero crer que tal procedimento fora julgado necessário para a exploração do filme na América [3]. Mas esse comentário, Sternberg escreveu-o ele mesmo, e é sua própria voz que durante uma hora e meia se dirige a nós por cima das imagens; não para resumir o que dizem os personagens, mas para comentar seus atos, introduzindo uma decalagem entre o espetáculo e a reflexão sobre o mesmo. Amiúde mesmo, tais atos são anunciados e o interesse dramático então dá lugar ao sentimento estupefato de uma espécie de fatalidade, o relato se torna uma cerimônia horrível e necessária realizando as palavras do relator. É dizer que se o comentário podia convidar à atitude de moralista, tal atitude é rapidamente ultrapassada. Impossível aqui alcançar, ou conservar, aquele desprendimento que os moralistas tentam tomar e que amiúde não é senão frieza: as imagens de paixão gravadas sobre a tela os contradizem imediatamente, e o espectador solicitado em sentidos inversos pela imagem e seu comentário (ou melhor dizendo, pelo comentário e sua imagem) não pode deixar de se achar com a consciência pesada dentro de tal dualidade.

Mas precisamos ir mais adiante se quisermos dar-nos conta de um sentimento que nada deve aqui senão ao espetáculo da sinceridade. Obra que Sternberg criou com cuidado açambarcante, a impressão é a de que foi antes para si mesmo que realizou The Saga of Anatahan. O espectador é um intruso na sala se ele adivinha que nudez se envolve no ecrã. Ou então, pois já afetado, que ele receba a confidência, mesmo se não é aquela que ele desejara ouvir. 

Bem sei que alguns, considerando a produção artística como meio de divertimento, indignar-se-ão por, para além da obra, interrogar-nos sobre o homem que a criou, e que através dela nos esforcemos para comunicar-nos com ele. Mas não é o homem um fenômeno assaz formidável para que todos os aspectos de sua atividade mereçam nosso interesse? E, entre eles, a criação artística me parece uma das empresas mais graves e audaciosas. De que me serve escutar tantos conversadores brilhantes que nada têm a me dizer? Prefiro frequentar Rossellini, Aldrich, Sternberg e alguns outros. Estes são caros amigos, nem mesmo as sombras, mesmo inquietantes, de seus rostos deixam de querer falar-me.

Tal me pareceu The Saga of Anatahan, realizando a obra impossível de fazer que Edgar Poe propôs chamar de "Meu coração posto à mostra"; e foi por pouco, com efeito, que o ecrã não rasgou ou pegou fogo sob as fulgurações que lhe projeta Sternberg, tiradas, não duvidamos, do mais secreto dele mesmo. Mesmo que nos ofereça algumas reflexões sobre a conduta da existência [4], esta fantasia em voz alta não se contenta em entregar o fruto de uma experiência. O sonho mesmo se torna objeto de reflexão e o moralista em seu solilóquio retorna à sua experiência, observa-a sem complacência, atento, lhe parece, àquilo que ela tivera de único e irreversível. Experiência erótica na qual a Mulher é o centro; antessala de uma inevitável fascinação, objeto de adoração e de terror que inspiram as divindades cruéis e impassíveis, seu poder erótico, a sacra Rainha ou Deusa, sua casa é um templo que decora a obsedante multiplicação dos atributos da mulher e tal efígie orna o menor de seus gestos, que sua corte observa com fervor.

Soberana absoluta e inacessível, seu poder aniquila aqueles que se aproximam: mas ela também não é senão um meio derrisório, pois não procurou esse poder, e os homens em seu entorno consagram-se à decadência e à destruição pelo mito que criaram para entreter sua paixão. Assim Keiko reúne-se às mais famosas heroínas de Sternberg. Sabe-se que tal ideia baudelairiana de Mulher fez-lhe durante sete anos divinizar Marlène Dietrich e, muitos anos depois, escolher uma atriz à imagem da primeira: Ona Munson. Em The Saga of Anatahan o próprio Sternberg vem ao nosso encontro, vinte anos depois, sob os traços do marido; o arco com O Anjo Azul se fecha, e não é provavelmente por acaso se no relato de humilhações semelhantes as cenas se descobrem, semelhantes [5]. Mas desta vez Sternberg pôde vivê-las, combinando-se assim a tal certeza qualquer coisa de horrível. Sem dúvida os olhares acossados do marido, suas crises de pânico, de submissão, tornar-se-iam impossíveis de se ver se para tais cenas Sternberg não jogasse um olhar lúcido e sem ilusões sobre os sortilégios de seu passado.

"As relações entre marido e mulher estão fundadas sobre sentimentos amiúde incompreendidos pelos outros, cujos atos contudo não são menos repreensíveis", nos diz um Sternberg de sessenta anos, enquanto um Sternberg de trinta e cinco se joga aos pés de sua esposa que se afasta. Retenhamos a lição. O essencial é envelhecer bem, o que é também o mais difícil.

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[1] Desde 1935, data de seu último filme com Marlene Dietrich, Sternberg não rodara mais filmes importantes senão I, Claudius, infelizmente incompleto, e The Shanghai Gesture: sete filmes entre 1935 e 1953, nenhum entre 1941 e 1951.

[2] Um dos homens foi apunhalado na rede; nenhum traço da ferida é visível onde fora atingido. Mesma consideração quando um outro é abatido por dois tiros de revólver no dorso nu; no mais os tiros não fazem barulho, mas são incorporados à partitura musical e executados pela orquestra. Quando os homens procuram Keiko pela floresta, Sternberg consagra um plano a nos mostrar um deles se escondendo, quase com o rosto detrás de um arbusto para lançar seu apelo. E os motivos gravados no paraquedas não são, seguramente, as marcas escuras e verdes de camuflagem. Mas não vejo nada neste ponto de partida que autorize o deboche.

[3] O público americano não gosta das versões dubladas, com razão.

[4] Tais fragmentos do comentário:

Consagramos boa parte de nossa vida a ganhar a estima de nossos semelhantes; não temos tempo a perder a ganhar nossa própria estima.

Observar as humilhações de outrem seria imperdoável se nossa própria conduta nisso não procurasse desculpas.

Ele morreu jovem, não pôde aprender a viver convenientemente.

[5] Como não pensar na cena do "Cocoricó" ao fim de O Anjo Azul quando aqui uma das concubinas mostra uma lagosta ao marido?


Publicado em Cahiers du Cinéma, nº 58. Tradução de Eduardo Savella.

Na sequência das desventuras do personagem



Por Serge Daney 

Por que se desprende um resto de emoção desses “seres” fictícios que são Robocop ou Terminator? É que se tratam de protótipos, únicos da sua espécie, cobaias descartáveis, ensaios modificáveis e imagens-brinquedos, e que não existe grupo de pressão ou lobby de verdadeiros Robocops ou de verdadeiros Terminators que viriam verificar se a imagem que é dada de seus semelhantes é “politically correct”. 

Esses personagens de fantasia, pura montagem de efeitos especiais, de aparências excêntricas e de humanidade residual permitem, sem dúvida, os roteiristas de contornar o que está prestes a afundar o cinema americano: o direito de toda “comunidade” de supervisionar a menor de suas imagens. Desde a reviravolta dos anos 1980, simbolizada pelos filmes de Lucas, iniciou-se a renúncia gradual dos roteiristas de tocar na representação fílmica de minorias (éticas, sexuais, religiosas, então figurativas). Essas, de fato, tem doravante o poder jurídico de impor uma imagem conforme e “correta” ou, senão, de proibir toda (outra) imagem. 

Daí, nos últimos Oscars, a contestação pela comunidade gay do personagem do assassino psicopata (e gay) do Silêncio dos inocentes. Que essa concepção merceeira do grupo torture justamente os Estados Unidos, nesse que foi o próprio país da ficção, da narrativa coletiva e do “what’s the story?” só pode nos deixar pensativos sobre a maneira catastrófica que essa parte do mundo evolui. O que é contestado, na verdade, não é nada menos que o “direito à ficção” (sem o qual percebemos que a democracia se enfraquece rápido). 

Então, não reconhecemos mais no cinema — nem na arte em geral — o poder de inventar personagens que existam o suficiente para exceder toda vigilância ideológica que visa enquadrá-los e protegê-los. O integralismo iraniano que fez rebentar, em alguns meses do caso Rushdie, o bastião de belos discursos ocidentais sobre os direitos inalienáveis da ficção ou da literatura como o “direito a morte”, se encontra hoje sob as formas débeis do “politically correct” americano. 

Essa história deveria terminar tão mal? O feminismo de há vinte anos deveria necessariamente produzir entre o desejo djanoviano de substituir a palavra history por aquela de herstory? Pois se trata de uma longa história e que foi um pouco a nossa. Há muito tempo, de fato, todas as esquerdas mundiais protestavam (muito tarde, sem dúvida) frente as imagens escandalosas, ausentes, negligentes ou racistas das minorias nos filmes hollywoodianos. Eu me lembro mesmo de ter implicado com Sidney Poitier, o bom negro dos anos 1950 e 1960, sob o pretexto que o contrário do negro mau de Griffith não era forçosamente o impecável “homem de cor” de Adivinha quem vem para jantar, mas um negro que seria um homem, só um homem, mas nada mais do que isso. 

Mas os militantes afro-americanos, aliás como todos militantes, já detestavam esse humanismo de arrependido que os privava da revanche de imagem que está no fundo de toda cor dominada e que consiste em exigir (e obter, por via judicial se for preciso) o direito de figurar, por sua vez, nas imagens piedosas de um press-book dominante, seja ele qual for. Hoje, a paixão ideológica cedeu o lugar a uma impecável guerra econômico-jurídica (há relativamente dez vezes mais advogados nos Estados Unidos que na França) que dá a todo “indivíduo coletivo” e a toda comunidade o direito de se constituir reclamante desde que se trate da representação de um de seus membros, seja ele fictício, ou porque justamente fictício

Em outras palavras, se eu vir um dia um personagem de filme dado como “gêmeos-capricórnio” e que seja um completo crápula, eu tenho o direito de alertar todos os gêmeos-capricórnio franceses para instaurar um processo ao cineasta. Há aí um mercado — o mercado da identidade — que, se lhe fossemos indiferente, nos enganaríamos já que se pode ganhar muito (eu pediria perdas e danos monstruosos) e que permite lutar contra o desemprego (nada além da empresa e da venda do arquivo gêmeos-capricórnio, é trabalho — e dinheiro). 

Suite aux mésaventures du personnage foi publicado originalmente na revista Trafic n° 3, 1992. Retirado do livro La maison cinéma et le monde, 4. Le moment Trafic 1991-1992, p. 111-113. Tradução: Letícia Weber Jarek.