O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

O trabalho da crítica: Entrevista com Christine Martin




Não gosto de fazer entrevista, gosto de inter-vista, da alta auto-intervista. Trabalho 15 horas por dia, sexta-feira é dia maldito no jornal. Faço de 20 a 30 matérias. Cola retranca, bate título, cola título, bate retranca. Fecho 3 dias num só. 3 dias de roteiros, especiais, lançamentos, 2 notas para o suplemento dominical, pequena reportagem para sábado, capa de segunda, eventualmente uma crítica, nunca feita durante a sexta, sempre durante a semana. Cola retranca, bate título, prepara necrológio, confere telex... E agora tem a trolha de segunda. Ai, ainda bem que fiquei livre dos filmes da TV. Cola retranca, volto no arquivo, cola titulo, bate legenda... Abomino os proselitistas e patrulheiros de qualquer ordem. Quem sou eu? Não sou alguém, sou ninguém. Isto é: sou eu e Deus, mais uma partícula do pensamento revolucionário que não se conforma com a simples ilustração das aparências. Meu nome é Ligéia de Andrade e não gosto de diluição. E o importante não é o que está neste relatório confidencial, mas o que ficou de fora.

Jairo Ferreira, Nem verdade, nem mentira

E eis que chegamos, depois de dez filmes, dez encontros, dezoito textos e um expressivo atraso, ao encerramento do nosso dossiê em homenagem aos 25 anos da revista La Lettre du Cinéma. Para isto traduzimos a entrevista que Christine Martin (ex-editora chefe da revista) nos concedeu no começo do ano, no apartamento que por tantos anos recebeu as reuniões do comitê de redação. Nesta conversa, Christine completa o quadro desenhado pelos seus colegas. Sendo a única fundadora da revista que não produzia obras de arte, ela nos relata a experiência de uma outra perspectiva: a perspectiva do trabalho.

Serge Daney dizia que o crítico precisa escrever sabendo que no dia seguinte o seu texto vai embrulhar os peixes na feira. Christine Martin escrevia e fazia escrever, numa relação mais estreita com o jornalismo, no ritmo da vida mas respeitando os prazos, sem o "complexo de épico" que em tantos casos esteriliza o elã criativo, na consciência de que um texto é só um texto, entre outros, o que não é, em absoluto, pouca coisa. Escutando, transcrevendo, lendo e traduzindo o depoimento de Christine - como ponto de chegada desta exploração do planeta desconhecido da Lettre du Cinéma - uma vontade se consolidou: precisamos fazer uma revista de cinema. Uma revista sedutora, com humor, atenta à atualidade cinematográfica, disposta a ler uma história do cinema sem maiúsculas, sem terror, sem a genuflexão paralisante com a qual nos habituamos. Amando ao mesmo tempo Marguerite Duras e Jurassic Park, como diria Sandrine Rinaldi.

Uma revista que gostaríamos de ler, na nossa língua. Em diálogo com aquilo que Christine Martin chamou de "dimensão sensível da análise". Na entrevista que se segue, ela fala dos encontros com filmes e pessoas que alimentaram a sua sensibilidade: do coletivo pointligneplan ao blockbuster hollywoodiano, de Julien Husson a Monte Hellman. Christine Martin abriu o relógio e mostrou as engrenagens...

2021 nos ensinou muitas coisas. Espero ter aprendido que o trabalho da crítica é também entregar o texto no prazo.

Feliz ano novo!

Miguel Haoni

Vestido sem costura: Você poderia falar do seu percurso?

Christine Martin: Eu nasci em 1956, o que faz de mim a decana da Lettre du Cinéma. Tinha que ter um ou uma. Anteriormente, o trajeto é clássico: classes preparatórias literárias, letras modernas, um mestrado sobre O rosa e o verde de Stendahl (as pessoas sempre ficam nervosas com essas cores). Em seguida, os concursos da Capes e do credenciamento, depois dos quais eu rapidamente percebi, durante os estágios práticos, que eu não estava muito à vontade no meio da educação. Então, mudança total de percurso! Eu me registrei como trabalhadora independente para começar uma carreira de ilustradora, um velho sonho levado paralelamente com muitas realizações e algumas (modestas) exposições quando eu ainda estava na escola. As artes gráficas e o design em geral sempre me interessaram. Naquela época a ilustração era muito fértil, haviam muitas pequenas revistas underground, tipo a Façade, que utilizavam a fundo a cor e todos queriam desenhar/colar com o impacto de Kiki Picasso ou do coletivo Bazooka. Em 1980 eu realizei duas capas para a Masques (a Revista das Homossexualidades, que acabou em 1985), depois eu me vi fazendo para os editores uma espécie de trabalho simultâneo que consistia em criar uma ilustração para a capa e escrever um resumo sedutor para a contracapa. Um editor me disse: "Você escreve melhor do que desenha. Faça só isso." Então ali eu comecei a escrever para a edição, e para a imprensa.

Com quantos anos?

Eu diria 21 anos, eu tinha acabado meus estudos. Era uma vida muito agradável: eu saía muito, enquanto trabalhadora independente eu organizava a minha vida como eu queria - eram os primeiros anos do Palace em Paris, então passávamos todas as noites, ou quase, na rua... Eu reescrevia livros por encomenda, depois eu comecei a trabalhar para as marcas, mais dossiês de comunicação do que campanhas de publicidade, enfim, antes coisas que exigiam um pouquinho mais de pesquisa e de conteúdo. Uma coisa levou à outra, eu conheci muita gente nesse meio e foi assim que eu ganhei minha vida todos esses anos. Aliás, eu continuo, essencialmente na vertente design de marca. Os temas são muito variados, os interlocutores rejuvenescem o tempo todo. Eu trabalho com os designers, os vídeo-artistas, os desenhistas - muito logicamente o aspecto visual do objeto revista sempre me interessou, e eu me ocupei disso particularmente a partir do número 18 da Lettre du Cinéma.

E o cinema em tudo isso? Eu sempre fui cinéfila - seria mais exato dizer "bufílmica"; no curso preparatório eu me ocupava do cineclube. Mais tarde, nos anos 80, eu ia regularmente a Cannes porque um dos meus clientes se ocupava da administração do Mercado internacional do filme. A Deauville também, no começo do Festival do Cinema Americano. A partir daí foi tentador começar a escrever roteiros: em 81 ou 82, eu fiz uma formação de um ano na Censier (Universidade Sorbonne Nouvelle), com Pierre Baudry que era, de certa forma, célebre (mais que celebrado) graças a Sophie Calle que tinha encontrado na rua o seu diário e o publicou sem que ele soubesse. Na sequência deste ano, eu escrevi com amigos, futuros realizadores ou produtores, roteiros que nunca foram filmados. Eles devem estar em algum lugar, mas onde? Mais profissionalmente, eu trabalhei em paralelo com um produtor, Gérard Mital, que se lançava em projetos "de arte" depois de uma carreira na distribuição no UGC. Ele me pediu para colaborar com Lars Von Trier porque, na época, Gérard foi integrado in extremis ao projeto de Europa que baseava-se num financiamento pan-europeu complexo; como Lars escrevia em dinamarquês, depois em alemão, depois era traduzido para o inglês, quando se chegava à versão francesa do roteiro, haviam muitas perdas. Então eu reescrevia o script em francês porque, na época, nem todos os financiadores necessariamente falavam alemão, muito menos dinamarquês. Isso não deve ter melhorado depois! Europa foi selecionado pelo Festival de Cannes em 1991. Eu não sou co-roteirista do filme, mas eu me lembro de várias discussões sobre os diálogos.

Depois a vida tomou um outro caminho... paramos de trabalhar com Gérard, eu tive filhos, pequenos no começo, muito trabalho, enfim, bem, a vida era, ainda assim, muito ocupada.

E depois, um dia em 95, eu vi um filme que eu não gostei nada e eu enviei um texto ao Libération que o publicou durante o verão, sem que eu soubesse. Era sobre O ódio, de Mathieu Kassovitz. Quando eu voltei, uma mensagem telefônica de Julien [Husson] me dizia: "Eu li o artigo, ele me interessa, estamos montando um prêmio, precisamos de pessoas como você, etc.". Foi assim que tudo começou na minha história com a Lettre, porque ele tinha lido essa crônica. Quando nos falamos pela primeira vez, eu não sabia nada sobre quem eu ia encontrar. Eu disse a ele: "Mas eu não sou crítica!", e ele me respondeu: "Mas sim, você é crítica, porque você publicou uma crítica". Foi então essa mensagem de humor que me colocou na rota do pequeno bando. E eu me encontrei com Emmanuel Giraud, Julien, Judith Cahen, Stéphane Malandrin, Sophie Bredier - os nomes do prêmio Sadoul. Julien e Judith eram os motores. Éva Truffaut nos recebia na casa dela para vermos os filmes. Muito tempo depois eu os recebi muito na minha casa, para as reuniões do comitê de redação, na segunda parte da Lettre - a época em que eu era co-redatora-chefe com Axelle [Ropert], depois da interrupção de um ano que se seguiu à saída das Edições P.O.L. Era muito lógico que nos encontrássemos na minha casa pois os locais do nosso editor Yves Gasser/Alvisa não se prestavam muito para isso. Por outro lado, nos anos 90, quando não era na casa de Éva, nos encontrávamos aos sábados à tarde num lugar no 10° distrito, eu não sei mais onde. Para preparar a seleção do prêmio, víamos muitos filmes e dávamos nossas opiniões sobre eles, com um ardor na escrita tal que a ideia da revista foi rapidamente estabelecida. Eu escrevi em todos os números com muita alegria. No começo, Julien guiava na reescritura dos artigos, depois, pouco a pouco, cada um ganhava autonomia. Ele, realmente, abandonou o negócio depois de dezessete números. Ele estava num outro projeto, seus filmes, a Villa Médicis... depois as histórias sentimentais começaram a interferir nesta revista muito endogâmica. Histórias que tiraram o couro da revista em 2006. O fim foi muito complicado, impossível de manter as coisas quando a maior parte das pessoas não podem mais coexistir na mesma sala. É uma pena porque todos são pessoas que eu amo muito individualmente.

A isso se somou a falta de vendas, mesmo nessa escala tão confidencial. "É uma pena que acabou", nos diziam as pessoas que nunca tinham sido assinantes! Houve, contudo, uma época em que havia mesmo uma boa distribuição, seja na P.O.L., depois na Alvisa. Encontrávamos a revista na pequena banca de jornais embaixo da minha casa, isso dava muito prazer. Depois nas prateleiras de cinema das grandes livrarias na França e em Paris, depois cada vez menos...

Quando tudo acabou, em 2006, eu continuei assídua do Festival de Belfort, do qual Catherine Bizern era a representante geral, antes de assumir a direção do Cinema do Real no Pompidou.

Você parou totalmente com os roteiros?

Sim, sim.

Como você conseguiu resistir à cooptação dos seus colegas?

Não foi isso. Primeiro, meus colegas, como você diz, são cineastas. Logo, eles tinham primeiro uma vontade de fazer filmes à serviço da qual eles escreviam. Eu nunca tive vontade de fazer filmes, então é um pouco diferente. Eu achava amplamente suficiente escrever na revista e fazer aparições nos filmes deles, de Pascale Bodet, de Christian Merlhiot, de Vincent Dieutre, foi muito agradável. Eu atuei em Mon voyage d'hiver, uma passagem próxima do fim na qual eu fazia um playback de Berlioz, com Bojena Horackova. Uma aventura berlinense a -25°C. Estávamos com Vincent, que tinha rodado esse Voyage d'hiver com Itvan Kebadian, produzido pela Films de la Croisade (produtora de Emmanuel Giraud). A um dado momento Ivan encontra sua mãe, Bojena, que era sua verdadeira mãe na vida real. Eu interpreto o papel de uma amiga, e cantamos as duas. Christian Merlhiot me fez atuar numa sequência de seu filme Le Lac, no qual se tratava da maneira com que se percebe uma língua apenas no plano fonético, porque ele fez pessoas que não conhecem a língua francesa lerem O Lago. Eu apareço também num plano de Horezon, de Pascale Bodet, com Laurent Lacotte.




Paralelamente, o centro de interesse pela arte contemporânea de Vincent Dieutre ou de Christian Merlhiot havia um pouco estruturado uma segunda tendência na Lettre, ao lado dos defensores da "cinefilia clássica". Isso era particularmente visível após 2002. Sob a sua liderança, o coletivo pointligneplan nos permitia nos encontrarmos para projeções que aconteciam na Femis, mais ou menos toda quinzena. E íamos lá o tempo todo, nos encontrávamos também com as pessoas da Lettre. Isso soldava enormemente as correntes nos experimentos que os realizadores apresentavam pessoalmente: Arnold Pasquier, Jean-Claude Rousseau, Valérie Mréjen, Boris Lehmann... Ali também tinha material para escrever sobre os autores; eu escrevi sobre o trabalho de Julien Loustau. É todo um aspecto do trabalho sobre a imagem e a narrativa que eu acho muito inspirador. Cineastas, video-artistas ou artistas, qualquer que fosse a etiqueta que os qualificasse, pessoas como Dominique Gonzalez-Foerster ou Pierre Huyghe tinham para mim o seu devido lugar nos conteúdos da Lettre. Eles introduziam uma variedade nem sempre acolhida de braços abertos pelos defensores do cinema puro e duro, mas no fundo esses desejos de prestar contas sobre produções às vezes antinômicas fizeram todo o ecletismo da Lettre e seu caráter surpreendente - isso e o fato de não estar colada à atualidade.

Quem era o redator mais colaborativo?

Se levarmos em conta os ritmos de escrita de cada um, os formatos prediletos, a grande variedade de rubricas à nossa disposição, a periodicidade trimestral que podia dar a sensação de uma eternidade... Haviam pessoas para quem era complicado entregar antes do último segundo, outros que se aplicavam num detalhe meticuloso, o que fazia a qualidade das grandes entrevistas, entre outras. Da minha parte, eu tenho uma relação muito diferente com o mundo do trabalho, eu tenho uma ligação com a encomenda, enquanto freelancer a quarenta anos. Então quando alguém diz: " É agora e você tem que refazer para amanhã", eu sou capaz disso. Além disso, a crítica para mim não é uma obra de arte. Deve-se estar inspirado, sim, mas ela deve ser límpida, deve ser compreensível. Tivemos por vezes publicações muito confusas ou inchadas tendo em conta o volume da revista. O lado "panelinha" pode ser terrível para uma publicação que abre generosamente suas colunas, sobretudo sem remunerar ninguém, e eu acho que houveram momentos em que o nosso flanco pode ter cedido a isso.

Como vocês perceberam a baixa no público?

Nós sempre fomos "pequenos". Em 2004-2005, período Alvisa, tivemos uma boa onda de quinhentas assinaturas, o que não é desprezível, mas as vendas nas raras livrarias nunca decolaram. O diretor de publicação, Yves Gasser, tinha seus problemas de tesouraria, era quase engraçado: você chegava no seu escritório e ele tinha obras de arte por todo lado, uma semana depois ele teve que vendê-las. Eu achava isso muito rock'n roll. Exatamente o oposto da P.O.L., pelo menos. Não muito seguro, nem de uma transparência total! Ele tinha sido, porém, um produtor brilhante nos anos 70, especialmente no quadro do novo cinema suísso de Alain Tanner, de Claude Goretta e de Michel Soutter.

O nome da editora, Alvisa, é, ainda assim, difícil de encontrar nos fascículos da Lettre.

Tem uma pequena logo, muito visível, na primeira página até o número 29, e que desapareceu no 30 e no 31! Alvisa se constituiu como um micro-grupo de jornalismo cultural, com L’Avant-Scène Cinéma, Théâtre(s), Topo, uma revista literária e uma revista inicialmente dedicada ao roteiro, Synopsis - grupo que veio reforçar a Lettre. Como Synopsis, que era muito mais comercial, vendia bem na época, nos deixavam numa paz imperial em relação a nossa visão do cinema. Para fazer as coisas direito, Yves Gasser reunia todas as revistas num comitê de redação, às segundas de manhã. Enquanto publicação trimestral nós nunca tínhamos notícias muito quentes! Axelle e eu explicávamos que iríamos fazer uma entrevista com Jean-Paul Civeyrac, por exemplo. Ninguém entendia verdadeiramente do que estávamos falando, mas nos respeitavam. Então Yves nos deixou escrever e publicar tudo o que queríamos, mas entre o fato de que ele não era um administrador muito bom, que vendíamos pouco, e depois o grande clash na equipe de redação, o número 32 nunca viu a luz do dia.

Podemos retornar um pouco ao prêmio Georges et Ruta Sadoul para falar dos cineastas, dos filmes. Esse foi o momento em que vocês descobriram Pierre Léon, por exemplo. Um cineasta sobre o qual você escreveu muito. Como foi isso?

Pierre é um grande amigo de Éva. Pierre, seu irmão Vladimir, Serge Renko, eram todos muito próximos de Éva. Conhecê-los e vê-los na casa dela levava a amar ainda mais os filmes. Suas paisagens da região de Creuse me encantavam, tanto quanto o conhecimento deles sobre a música clássica. Pierre e Vladimir tinham um tal encanto nessa autoridade... russa.

Existem cineastas que estão no corpus da Lettre em função do seu engajamento, por exemplo Darezhan Omirbayev ou os irmãos Larrieu. Você poderia falar um pouco desses cineastas?

A Lettre mantinha boas relações com os assessores de imprensa que sabiam que a revista poderia se dedicar a filmes confidenciais, em termos de distribuição. Eles podiam facilitar os encontros. Nós tínhamos visto e amado os três primeiros filmes de Omirbayev, os filmes em K (Kardiogramma, Kairat e Killer). Eu adorava esses filmes a ponto de escrever sobre todos eles e de querer dialogar com Darezhan. Axelle e eu o entrevistamos. Eu me lembro muito bem, foi no hotel Rive Gauche, rua dos Saint-Pères. Darezhan só falava russo e havia um tradutor inglês. Pequeno palimpsesto das línguas que contribuiu ainda mais para engrossar o mistério. Eu sempre quis fazer entrevistas com pessoas que eu achava muito intrigantes. Monte Hellman, por exemplo. Teve uma retrospectiva em Pantin, eu vi todos os seus filmes e pensei: "Eu quero fazer uma entrevista com Monte!" E ele foi ótimo, nos entendemos verdadeiramente bem, e mantivemos, por algum tempo, contato por email. Eu adorava esse cara, eu adorava seus filmes. Eu fiquei muito triste de saber da sua morte na primavera. Ele tinha a mesma idade que o meu pai.

Qual foi, para você, a entrevista mais inesquecível dessa época?

Monte, certamente. Porque Monte era, ainda assim, essa versão de uma Hollywood um pouco improvisada, capaz de se divertir com o fantástico. Monte, para mim, foi um encontro verdadeiramente belo. Depois, porque era um amigo de longa data, Dominique Dubosc. Seu trabalho de documentarista se ancora, desde os anos 70, na França, na América do Sul ou na Palestina. Mais um que tinha, para mim, o seu devido lugar na Lettre.




Você fez muitas entrevistas apresentadas como depoimentos, quer dizer, sem as perguntas, sem o formato do diálogo, por exemplo na entrevista com Diane Baratier. Por quê?

Sim, eu comecei uma rubrica que se chamava "Le cinéma de...", elas não eram totalmente entrevistas, antes um olhar particular de um ponto de vista de ator, de técnico ou de encenador. Isso se lia mais como uma reportagem do que como uma entrevista. Eu gosto muito do fato de tê-las sintetizado. Depois, é talvez uma restrição que eu me impus porque já tinha grandes entrevistas que corriam por muitos números. Assim foram realizados "Le cinéma de Jacques Lassalle", "Le cinéma d'André Dussollier", "Le cinéma de Diane Baratier". São pessoas com quem eu tinha afinidades pessoais. Eu conhecia muito bem Jacques Lassalle porque vivi com o seu filho, então eu achava que havia no seu teatro elementos visuais muito cinematográficos, cuja gênese ele desenvolve bastante no artigo. Além disso, ele mesmo fez cinema, ele interpretou o marido de Catherine Deneuve em O vento da noite, de Philippe Garrel, ele estava tão orgulhoso!

E os irmãos Larrieu?

Fin d'été foi apresentado num dos últimos prêmios Sadoul, mas eles não ganharam. E, eu me lembro muito bem, eles tinham gostado muito do que eu escrevi sobre Fin d'été e eles vieram me ver dizendo: "Você é o nosso prêmio". (risos) E depois nós permanecemos próximos graças aos artigos, aos encontros nos festivais. Eu gosto muito da abordagem deles, eu me sinto em sintonia com a sua fantasia, verdadeiramente, e eu lhes perdôo quase tudo. Que objetividade!

Todos os filmes dos irmãos Larrieu passaram pela Lettre du Cinéma através da sua mão, havia esta relação de fidelidade com outros?

Sim, alguém com quem eu tinha uma grande afinidade era [Adolfo] Arrieta. Com Adolfo nos entendemos muito bem; mesmo se eu não tenho notícias recentes, e não tê-las é um erro. Adolfo é frágil, é realmente necessário levá-lo pela mão. Em 2003 nós fizemos durante alguns dias, no Reflet Médicis, uma pequena retrospectiva Arrieta (tiveram muitas outras depois) na qual ele queria apresentar o seu último filme Eco e Narciso, sem legendas. Eu fiz um pequeno texto para que as pessoas pudessem entender a sinopse, nem todo mundo é familiarizado com as Metamorfoses de Ovídio, e ele estava muito contente, fizemos uma bela sessão. E depois ele me enviou seus roteiros. Foi por isso que pudemos publicar tantos fragmentos deles na revista. Mesmo no número 31, eu acredito que publicamos coisas, verdadeiros fragmentos do seu último filme. Eu acho Arrieta realmente mágico, além disso ele tem um defeito terrível, ele retoma seus filmes e refaz tudo, ele corta, ele acrescenta coisas, como pudemos constatar na retrospectiva do festival EntreVues de Belfort, em 2009.

Ele não pára nunca.

Sim, ele não pára nunca, mas isso, ainda assim, é um pouco problemático. Não sabemos nunca se o filme terminou ou não. Mas Arrieta sempre foi generoso e também era muito bom ter ele do nosso lado. Que revista poderia se permitir publicar um roteiro com um storyboard como esse, tão poeticamente ilustrado em dois/três números?

Qual era o estado da crítica francesa na época da Lettre? Qual era o ambiente geral?

O ambiente geral é que haviam os grandes e os pequenos: Cahiers, Positif, Vertigo e Trafic, Les Inrocks na parte de cinema e mais muitas tentativas de duração mais efêmera. Vou tomar a liberdade de citar um artigo de Jacques Morice do Télérama na coluna "Critica das criticas", muito elogioso sobre a Lettre du Cinéma. "Diante dos dinossauros Cahiers, Positif, as pequenas revistas são uma legião (...) Desafiando a inclinação geral de querer, custe o que custar, reagir no calor do momento, a Lettre du Cinéma defende corajosamente sua posição de exploradora intermitente. Eis uma das revistas mais confidenciais, pouco mais de 500 exemplares vendidos, mas também das mais entusiasmantes do momento. A única que reúne pessoas que desejam fazer cinema - a maior parte já são roteiristas ou realizadores, Serge Bozon, Axelle Ropert, Vincent Dieutre. Como anteriormente os Jovens Turcos da Cahiers amarela, a equipe de redação põe suas ideias em prática e promove novas formas de discurso crítico: cartas, abecedários, poemas, entrevistas verdadeiramente longas, todos os meios são bons para melhor cercar o complexo arquipélago do cinema atual. A revista vale tanto como revista de cinema quanto literária. Aberta ao campo das artes plásticas, a Lettre du Cinéma sabe também se afastar das sereias chamativas da modernidade exibidas por Lynch, Bonello ou Grandrieux, como diz Axelle Ropert." Bom, da minha parte eu, ainda assim, adoro Bonello. "É um laboratório estrangeiro ao dogma mas aberto à experimentação, preferiremos sempre o impulso da pesquisa às certezas da teoria, confessa Christine Martin, redatora-chefe. Reconciliar prazer e reflexão, tal poderia ser seu credo, fazer, em suma, da revista de cinema uma arte de viver." Isso somos nós!

Havia uma pequena "guerra fria" com a Cahiers?

Não, eu não falaria guerra fria. No fim das contas, a Cahiers fazia sistematicamente referência à nossa publicação, os Inrocks também. Eles nos ajudavam. Eu me lembro que haviam festas, quando Noël Herpe fazia festas na casa dele todo mundo ia, todo mundo se gostava. Jean-Marc Lalanne era muito amigo de Sandrine. Um dia Charles Tesson me disse: "É ótimo isso que você fez com Diane Baratier". Fazíamos uma coisa diferente, nesse mundo minúsculo da crítica. Em todo caso, do meu ponto de vista um pouco afastado, eu não sentia nenhuma hostilidade.

Mesmo no nível teórico?

No curso da sua longa vida, a Cahiers teve várias linhas, duras ou semi suaves. Jean Narboni e Bernard Eisenschitz deram, cada um, um panorama edificante sobre isso durante a sessão de encerramento do evento genial que Serge Bozon concebeu no Centro Pompidou em novembro de 2010: Beabourg, la dernière major! Por falta de predisposição e de bagagem, eu não me encontro numa abordagem teórica, e reivindico mais a dimensão sensível da análise.

Você está mais próxima de uma prática crítica concebida como rotina de trabalho.

Que seria a tradução de uma paisagem mental complexa, feita de filmes recentes, filmes vistos anteriormente, de pontes entre as artes, da vontade de se dirigir a esses artesãos vivos que são os cineastas (e os vídeo-artistas, do meu ponto de vista) contemporâneos. A periodicidade da Lettre, publicação trimestral que não queria exatamente dar conta da atualidade, nunca nos incitou a dizer o que era preciso ver ou não. Os filmes que nós não gostávamos, não prestávamos conta deles, um ponto e isso é tudo. Logo, nada na Lettre, de todas essas páginas de críticas da Cahiers ou dos Inrocks, na época semanal, é num estado de urgência que não permite recuo. Aliás, o retorno dos Inrocks a uma fórmula densa e mensal, desde a primavera de 2021, é uma boa notícia.

Existem outras diferenças muito sensíveis na Lettre, por exemplo o lugar dado aos atores. Vocês colocaram em evidência certos atores que Axelle qualificou como excêntricos. E esse é um dos pontos cegos da crítica histórica, com a política dos autores...

Sim, que centraliza tudo na mise en scène!

E o gosto pelos atores é amplamente partilhado entre vocês.

Sim, isso é totalmente justo.

O que você achava dos filmes dos seus colegas? Você só escreveu sobre Lições de trevas.

Sim, porque depois de tudo nós todos queríamos evacuar um pouco o lado "panelinha". Então eu só escrevi sobre Lições de trevas. Eu não poderia escrever sobre Mon voyage d'hiver porque eu estava nele. Enfim, isso seria complicado de qualquer forma, mas eu acho que depois falamos menos dos filmes uns dos outros.

Você se lembra bem do lado "arte contemporânea", mas os seus textos nos dizem o quão "cinéfila clássica" você é. O cinema americano está sempre lá...

Sim, mas o que eu amo no cinema americano são também os momentos contemplativos, suspensos e inúteis. Eu me lembro às vezes mais de coisas que acontecem na natureza que das coisas entre os protagonistas. Os planos fixos da lua cheia são muito recorrentes (e não só nos filmes de Otar Iosseliani), eu posso ficar horas vendo isso.




Mas encontramos, por exemplo, Cassino de Scorsese, Prenda-me se for capaz de Spielberg, Mestre dos mares: blockbusters. Você era de certa forma dedicada a essa produção.

Não necessariamente dedicada, mas eu lembro de uma definição de Julien que dizia que um bom filme era aquele que honrava o seu contrato com o público, mesmo que seja muito comercial. Então, por que não falar de Spielberg? Cassino, eu falei mal dele no número um - eu o revi recentemente e ele é ainda pior do que eu lembrava. Ele não honra nada, enquanto que Steven Spielberg ou Peter Weir nos filmes que acabamos de citar, sim. Além do mais, essas são pequenas polêmicas que organizam as variações de humor sobre cineastas que podemos amar em outros momentos. Como tínhamos decidido falar só sobre coisas que nos tocavam, incluindo as "super-produções", tomávamos o tempo para argumentar e testar a sedução com o passar do tempo.

E tem as missivas também, a Lettre enviava cartas, era uma forma de...

Uma forma de receber noticias, de dá-las, de provocar reações...Sim, a Lettre enviou muitas cartas! ou bilhetes de humor. As "Notulettes et friandises" ("Notinhas e guloseimas") era um negócio genial que Julien inventou, formatos curtos que permitiam abordar o que quiséssemos. Terrivelmente radical, e sobretudo não convencional. São coisas como essas que Gérard Lefort amava. O "Movie-clubbing" de Axelle era um encontro extremamente fino, no limite de um cômico absurdo e, ao mesmo tempo, retrato mal-disfarçado do cinema.

Devemos falar da igualdade entre homens e mulheres na redação, e de uma espécie de cinefilia queer não declarada.

Sim, com isso eu estou de acordo, mas era encarnado por Vincent...

Não apenas...

Em quem você pensa?

Se pensarmos na Diagonale por exemplo, tem um lado...

Eu não tenho certeza se era o lado queer de Guiguet, Biette ou Vecchiali, nem as posições filosóficas ligadas ao gênero que fizeram da Diagonale um polo de atração tão forte para a Lettre du Cinéma. A igualdade? Eu acho que nunca nos pusemos a questão, as pessoas propunham textos, a espontaneidade e as afinidades faziam o resto. Nós certamente não colocamos a questão sob um ângulo politicamente correto.

Vocês sentiam na época que a Lettre tinha um certo impacto?

Na época eu acho que sim, nós sentíamos, havia um prestígio, digamos um pequeno prestígio, mas eu não sei se esse prestígio poderia ser avaliado. Pela imagem do interesse que hoje você tem pela gente, talvez? Desde o fim da Lettre, todo mundo ficou triste. Tarde demais - ninguém fez nada na época, mas isso é demasiado humano.

Eu não tenho nenhum ponto de vista sobre o que poderíamos escrever hoje. Provavelmente sobre as séries. Quando eu vejo como Sandrine/Camille fala delas no Libération, sim, eu acho que poderíamos ter continuado. Era emocionante fazer a revista, e a matéria foi infinitamente desenvolvida ao lado dos filmes clássicos que se faziam. Eu poderia ter escrito sobre a dança. Eu escrevi sobre Ribatz, Ribatz! ou le grain du temps, de Marie-Hélène Rebois. O que é a captação da dança? Um filme, um espetáculo? Ela realizou o filme reatualizado do pano de fundo de Dance de Lucinda Childs, que é absolutamente magnífico. Eu acho que eu teria perseverado nesse tipo de coisa, e eu teria também vontade de abrir as veias do filme popular, isso nunca foi uma coisa que nós tratamos de verdade. E quando você diz que eu trabalhava sobre os blockbusters, o que eu via era como um objeto tão dirigido poderia ser um sucesso artístico entusiasmante. Eu acho que Prenda-me se for capaz é um filme muito bem-sucedido, enfim, você pode vê-lo vinte vezes sem se cansar!


É o prazer quase absoluto, ele desliza.

Ele é feito no prazer total, o ritmo, o atordoamento das metamorfoses... É uma grande comédia, que não é mais do que uma comédia, claro. Como ele termina bem, como cada plano é perfeito, que belo objeto dito "para o grande público"! Enquanto que o Lobo de Wall Street é dopado, pesado, todos os truques hipertrofiados de Scorsese, no fim a coisa fica impossível, Scorsese que eu antigamente adorava e ultimamente com o Irlandês? Mas por que se perder à toa em procedimentos tão complicados? Existe um pequeno documentário sobre a filmagem, no qual se vê Scorsese, Pesci, Al Pacino e De Niro, os quatro sentados numa dessas trattorias nova-iorquinas que ele tanto filmou. E eles só falam da câmera multi-camadas que permitia, se podemos dizer, tratar em tempo real os estratos de envelhecimento ou de rejuvenescimento dos personagens. É patético.

Por que você parou de escrever críticas?

Escrever em outro lugar, você quer dizer? Eu não sei, eu não tenho resposta para te dar.

Você escreveu tanto, em todos os números, e no entanto você é quase a mulher invisível da Lettre. Não existem fotos no Google, nem Wikipedia, você é impossível de achar...

Sim, eu gosto muito disso. Isso corresponde totalmente à minha natureza.

Por quê?

Mas por que ser visível? Os outros criaram obras, é muito diferente, eu era crítica, eu escrevia artigos e fazia uma revista, o que é tudo menos uma obra. Todo mundo conhece os rostos dos editores? Não. Francamente, eu não vejo interesse. Aliás, existem pessoas que me viram e que me conhecem, eu apresentei muitos filmes nos festivais.

É a sua história também, você poderia fazer uma compilação dos seus artigos...

Só os meus? Ah não, isso não é interessante. Era o conjunto o que criava uma tensão, os contrastes. Seria muita pretensão pensar o contrário.

Você acha?

É muito interessante essa pergunta. Para mim as compilações a posteriori são realmente uma coisa de ego. Sim, eu adorei escrever para a Lettre, sempre segundo um esquema um pouco particular: eu escrevo num primeiro jato e deixo de lado. Eu deixo passar um dia. Eu releio, jogo fora e recomeço tudo. Depois eu não quero mais ouvir falar e não quero nunca mais reler. Nunca mais. Quer dizer que, na verdade, se você me apresentar um texto meu, eu não vou reconhecê-lo. Um distanciamento absoluto. O que não quer dizer que eu não lhe dê valor - mas não a ponto de publicar uma coletânea solitária. Para mim o projeto de escritura era coerente nas suas variações, porque tem alguma coisa muito engraçada de Vincent antes, alguma coisa muito incisiva de Serge depois, uma revista é uma montagem a partir do coletivo.

Foi triste o fim da Lettre?

Sim, você conhece um fim que não seja triste? Ao mesmo tempo eu acho que foi libertador. E nada nunca está totalmente acabado. A prova: nós estamos falando dela.

Entrevista realizada por Miguel Haoni em 10 de fevereiro de 2021.
Transcrição: Dalva Deshogues
Tradução: Miguel Haoni

O segredo e a lei




Diálogo com Jacques Rivette

Por Hélène Frappat

Parte 1: Trailer

Um filme é um filme.” Durante as reuniões que precederam a criação da Lettre du cinéma, o nome de Jacques Rivette foi frequentemente citado, tanto por sua obra de cineasta quanto por seu trabalho como crítico e também, mais tarde, como redator-chefe da Cahiers du cinéma. Eu sugeri várias vezes a ideia de uma entrevista com ele, especialmente porque, por vários anos, nos fazia falta os longos diálogos que, até os anos oitenta, ele havia mantido com alguns de seus cúmplices na Cahiers du Cinéma. Com exceção de uma entrevista bem curta publicada na La Nouvelle Revue française, em maio de 1996 e de entrevistas que ele dava eventualmente no lançamento de seus filmes, Jacques Rivette não havia mais dado sequência, pelo menos publicamente, a essas longas conversas das quais cada etapa dava conta de uma estado particular, não somente de seu trabalho de cineasta, e portanto de sua vida, mas também do cinema de modo geral (e nós suspeitávamos que ele continuava a ser um espectador mais assíduo que vários comitês de redação juntos...).

Quando nós o contatamos, ele estava terminando a montagem de Defesa Secreta. Nós nos encontramos várias vezes: primeiro no momento de lançamento do filme, em seguida, vários meses depois. A entrevista que publicamos aqui constitui o início do diálogo muito mais longo que nós publicaremos no próximo número; ele se intitulará "Vamos caçar os impostores!". Com esse "trailer", entramos no cerne da questão, tanto que Jacques Rivette não quis conservar todos os desenvolvimentos que precederam, julgando-os "anedóticos" demais.

Porém, ao cabo da segunda entrevista se iniciou um debate mais teórico, não tanto sobre os filmes (os seus, os dos outros) quanto sobre a crítica em si. Exatamente o gênero de discussões que havíamos desejado, criando a Lettre du Cinéma, que essa revista pudesse provocar! Uma questão de método, em suma; é por isso que é importante definir qual foi o nosso método, por iniciativa do próprio Jacques Rivette.

Você não lerá uma entrevista, mas mais precisamente o que Rivette prefere chamar de "diálogo", forma mais interessante, segundo ele, que o tradicional "perguntas e respostas", forma mais aberta e mais próxima do seu método de trabalho habitual, quando ele escreve, prepara, roda um filme com os membros da sua equipe. E o desafio desse diálogo será mais geral e teórico (o que é um filme?) que particular e circunstancial (como julgar tal e tal filme?). Talvez seja essa a razão pela qual - enquanto que ele não quer, na maior parte do tempo, evocar seus escritos passados - Jacques Rivette voltou a dois textos fundadores publicados na Cahiers du Cinéma, um em 1953 e outro em 1956: "Gênio de Howard Hawks" e a "Carta sobre Rossellini". No cerne desses dois artigos, Rivette se interrogava sobre uma dupla evidência: a evidência do gênio de Hawks, a da modernidade de Rossellini. Uma questão tanto mais crucial que ela coloca, de uma certa forma, a própria atividade da crítica em perigo: como se pode provar a evidência (se ela não se demonstra, mas se atesta)? E em quais condições é possível pensar a sensação de evidência que funda, frequentemente, nossos julgamentos críticos?

Numa época, a nossa, em que todos os cineastas são agora considerados como autores - consequência irônica de uma "política" que visava, pelo contrário, se livrar dos impostores -, a questão é importante, para todos nós, espectadores, críticos, cineastas: em que condições podemos dizer que um filme é um filme? Logicamente, cabia a Jacques Rivette nos refazer essa questão.

H.F.

Hélène Frappat. - Uma das coisas que lhe interessam, como dizia Serge Daney, é filmar o trabalho.

Jacques Rivette. - Sim, sim, sim, enfim... tentar. A ideia do trabalho. Porque filmá-lo, verdadeiramente, eu acredito que é impossível.

Trabalhar na filmagem dessa ideia do trabalho...

Sim. Isso reencontra a ideia de que os filmes são a história dos filmes. Poderíamos dizer que isso é tautológico, mas eu acho que não é só isso... ou antes que existe uma verdade na tautologia. Quarenta e cinco anos depois, eu sinto vontade de voltar às frases do começo e do fim do meu velho artigo sobre Hawks: "O que é, é", mas o segundo "é" não tem, se tudo vai bem, o mesmo sentido do primeiro!... Logo, o trabalho de filmar o trabalho não é uma pura tautologia, e ao mesmo tempo, eu acredito que não é necessário fugir da tautologia. Por exemplo, uma tautologia que é preciso reivindicar, é que os filmes são filmes. Isso implica muitas coisas, esse fato de que um filme deve ser um filme: ou seja, alguma coisa que existe no espaço e no tempo, sobre a tela, diante dos nossos olhos, mas é também a película que é impressa, sensibilizada por processos ao mesmo tempo ópticos e químicos, os quais é preciso levar em conta. A luz não é uma coisa mágica, mas ela também faz parte do trabalho, e existem pessoas cuja profissão é justamente trabalhar a luz.

Na ideia da mise en scène, existe portanto, ao mesmo tempo, essa evidência da qual você falou no seu artigo sobre Hawks e, para alcançar essa evidência, todo um desvio?

Sim, no cinema, há um desvio pela máquina que é a câmera, mesmo se era, no começo, a máquina mais simples, essa admirável câmera Lumière que é uma pequena caixa de madeira, cabendo quase na palma da mão, sem exagero: já é, mesmo assim, uma máquina - sem falar das câmeras atuais, que são muito mais sofisticadas que as de trinta anos atrás, como as películas atuais são infinitamente mais complexas do que foi a película Lumière. Mas, com essa película Lumière, o procedimento fotográfico intervém entre o que o olho vê e o que existirá na tela: existe aí também um trabalho que não se pode recusar dizendo "isso é mágico"... E quando eu tenho vontade de repetir "um filme é um filme", é também em relação aos críticos que podemos ler a torto e a direito, porque, muito frequentemente, trata-se da história, eventualmente dos personagens, às vezes dos atores, raramente. Mas do fato de que isso é um filme, quer dizer, alguma coisa que deve ter uma verdade de filme, no sentido em que Cézanne falava da verdade da pintura, logo uma verdade material, que isso se sustente no ecrã, como um quadro deve se sustentar na parede, na tela, isso é uma coisa que muito raramente está em questão. Eu admito, de bom grado, que é muito difícil falar disso com palavras, é mais uma coisa da ordem da intuição... Há uma sensação de que isso existe ou não existe, esta sensação é muito arbitrária, é muito difícil tentar justificá-la, e, frequentemente, temos vontade de dizer "é desse jeito", seguindo o método do senhor Alain, por exemplo, que, nos seus textos sobre as obras que ele admirava, recusava os argumentos e as discussões, preferindo os exemplos, e dizia: "Aqui está, isso é desse jeito, e depois isso é assim, e vocês concordam ou não concordam." O princípio é que as opiniões, como as obras, devem ser enunciadas o mais diretamente possível: é pegar ou largar. Eu continuo pensando que isso é o cerne da estética de Hawks, como, aliás, das de Ford ou DeMille...

É como se você tivesse a sensação de voltar a Hawks com Defesa secreta?

Eu espero não tê-lo perdido totalmente de vista no meio tempo!... Hawks foi uma das nossas raras referências para Joana: tomamos rapidamente como "modelo", para a construção dos episódios, o tom dos diálogos, as relações dos personagens, o faroeste em geral, quer dizer, Hawks e Ford, e depois, claro, Rossellini. Eram essas nossas referências. No começo, dizíamos também Renoir, mas no meio do caminho eu creio que Renoir saiu: ficaram os faroestes de Hawks e Ford, e Rossellini.




No começo das Batalhas, há um travelling sobre Joana que percorre uma muralha, depois a câmera faz uma panorâmica e descobrimos uma abertura enquadrada pela muralha: é Rastros de ódio!

Em todo caso é um plano de faroeste, concordo; além disso, nesse momento, ela olha em direção ao oeste... Agora, o que permite dizer que tal filme existe e que tal outro não existe? Eu citava Alain, mas no fim das contas, minha referência principal (eu falo dos autores que eu conheço bem, que eu li muitas vezes - foi Rohmer quem me fez ler Alain) então, a outra, é Paulhan, que eu descobri sozinho, se eu ouso dizer, quando eu era adolescente em Rouen. Existem livros inteiros de Paulhan sobre essa questão, não do cinema, mas dá na mesma. Pequeno prefácio a toda crítica, é o livro fundamental de Paulhan sobre o assunto, só que ele coloca a questão, ele não a responde: o que faz com que falemos de tal obra, porque pensamos que ela é importante, e o que faz com que todas as outras, elas possam ter muitas qualidades, mas sabemos que elas não têm nenhuma importância? É o que precede: o que vem primeiro. Depois, podemos fazer todos os comentários que quisermos, mas por que se fala desta e não daquela? O que faz com que mesmo as pessoas que dizem de uma obra que ela "é terrível, é monstruosa" levem ela em consideração, e não todas as outras que existem em torno? O que faz com que tal quadro, ou tal livro, ou tal filme, ou tal música existam? Que eles tenham uma existência enquanto quadro, enquanto romance, enquanto poema, enquanto sinfonia, enquanto filme? É essa a questão fundamental, e é dela que todo mundo foge. Por que, para os contemporâneos de Baudelaire, é rapidamente evidente que Baudelaire é alguém sobre o qual se briga, mas não se faz isso em relação a todos os outros? Isso é evidente, sobretudo, a partir do século XIX, no qual existe mais a ideia de conflito: as obras importantes são aquelas sobre as quais existe discussão, mas isso já era verdadeiro antes: quando se lê por exemplo, Madame de Sévigné sobre Racine, há discussão acirrada; e, para Corneille, é a Querela do Cid... Eu não digo que o único critério de "existência" é o do conflito, do conflito no momento da recepção, mas é um deles; é verdade que as obras que são desde o início muito bem acolhidas por todo mundo, em geral, não interessam mais ninguém dez anos depois. E, ao mesmo tempo, se trabalhamos tentando provocar o conflito, erramos grosseiramente... Aliás, Baudelaire e Flaubert eram os primeiros desolados pelo que lhes acontecia, e tinham, justamente, a sensação de um mal-entendido terrível.

Mas o cinema possui o mesmo estatuto? Um dos problemas que se coloca frequentemente à crítica de cinema é que não se sabe muito bem do que se fala. Os críticos, às vezes, não escrevem verdadeiramente sobre o cinema, eles poderiam muito bem escrever sobre a literatura...

Ah sim, claro! É por isso que, frequentemente, sinto vontade de repetir: onde está o filme nisso que você escreveu?

O cinema requer critérios de julgamento diferentes daqueles que se utiliza tradicionalmente?

Eu acho que sim, eu acredito.

Voltamos à questão da "mise en en scène"?

Mas dizer "mise en scène" é substituir o problema por outro! É, realmente, o que fizemos na Cahiers, e eu sou um dos corresponsáveis por essa entronização da palavra mise en scène, porque isso permitia colocar uma palavra sobre o mistério, mas, uma vez que se diz "mise en scène", o que se entende por isso? O problema está apenas deslocado, digamos que ele é nomeado, mas não resolvido. Realmente, isso gira em torno da mise en scène, isso é certo, mas o que é a mise en scène?... Vasta questão!

Isso gira em torno do que você chamou de "ideia"...

Isso gira em torno do fato de que a mise en scène é um trabalho muito preciso, e mesmo se cada um a faz à sua maneira, que não é a do vizinho, felizmente, porque, de outra forma, isso não seria interessante, cada um secreta sua própria técnica, mas ao mesmo tempo todos parecem falar da mesma coisa. É isso que, na Cahiers - existem, sem dúvida, outros exemplos, mas eu falo daquele que eu conheço melhor: então, a Cahiers dos anos cinquenta -, surpreendia frequentemente nossos primeiros leitores: por exemplo Bazin, que ficava, ao mesmo tempo, intrigado e às vezes desconcertado com a gente, mesmo que ele gostasse muito da gente, e nós o respeitássemos profundamente: "O que lhes permite defender, ao mesmo tempo, Renoir, Rossellini e Hitchcock?". Eis a grande questão: "Como vocês podem conciliar Rossellini e Hitchcock?" É evidente que, para Rossellini, Hitchcock era o diabo... Por seu lado, Hitchcock sabia bem que Rossellini existia (porque ele tinha "tomado" dele a Ingrid Bergman), mas será que ele, na sua vida, viu um filme de Rossellini, eu não sei, era sem dúvida o menor de seus problemas!... Bem, sim: havia alguma coisa que fazia com que se pudesse admirar, ao mesmo tempo e sobre o mesmo plano - não da mesma forma, mas de forma tão forte quanto -, Rossellini e Hitchcock. Era isso que era preciso tentar resolver.

Caímos no que você chamou de "política dos autores".

Sim, mas a política dos autores, isso foi muito rápido uma precipitação, porque era dizer: realmente, eles são muito diferentes, mas eles têm isso em comum, serem "autores". Bom, mas a partir desse momento, então, todo mundo se tornou um autor! Bem, isso é verdadeiro quando é Rossellini e Hitchcock, é sempre verdadeiro quando se trata de Ford e de Renoir, é ainda verdadeiro quando se trata de Hawks, é sempre verdadeiro, que fique claro, quando se trata de Lubitsch ou de Dreyer, mas seria ainda verdadeiro quando se trata de Minnelli, mais ainda, quando se trata de Richard Fleischer? E depois, chegamos à Positif, que se põe a falar de Pollack ou de "não sei quem", ou de "qualquer um", porque quando se diz Pollack não se está longe de "qualquer um"! Então, a política dos autores é uma má resposta, e sobretudo isso não explica por que, nos "grandes" autores, como, aliás, nos grandes romancistas, nos grandes pintores, nos grandes músicos, tudo é interessante, porque seus fracassos merecem ser considerados com muito mais atenção que o sucesso de um artesão; isso é, aliás, o que queria dizer no começo a política dos autores. Uma encomenda executada por Abel Gance é mais interessante (pois, se eu me lembro bem, a primeira vez que François [Truffaut] lançou essa expressão na Cahiers, foi para o filme de Gance, La Tour de Nesle, que era uma pura encomenda, da qual Gance falava com uma grande modéstia)... logo, porque La Tour de Nesle de Gance pode ser infinitamente mais levada em consideração que a obra-prima de Delannoy? Eis a primeira questão. E esse é um caso encerrado; mas o que nunca foi resolvido, o que ainda permanece em suspenso, é: o que faz com que se possa admirar no mesmo plano - por causa de sua coerência, por causa, digamos, de sua lógica, mas isso não é suficiente - cineastas tão diferentes, guardemos os mesmos nomes, quanto Rossellini e Hitchcock.

A "coerência" dá uma resposta parcialmente satisfatória, mas que anda também um pouco em círculos.

Sim, porque muito rapidamente, para justificá-la, do que falamos? Falamos de roteiros, falamos de temas e do retorno dos temas, e isso, então, é uma cilada; pode acontecer, por que não, de haver temas favoritos em alguns grandes cineastas: em Ozu isso é evidente, em Mizoguchi já menos, mas nos outros cineastas, em Hawks, por exemplo, isso exige um trabalho de "elaboração"; e em Renoir, isso é muito fluido: qual é o ponto comum entre A cadela e A carruagem de ouro, pode-se dizer, claro, o teatro, mas isso é um pouco rápido! E entre O rio sagrado e La nuit du carrefour... há dezessete anos e muitos quilômetros!... Sem falar dos "autores" indiscutíveis, como René Clair ou Mankiewicz, que não são, contudo, grandes cineastas... Essas são verdadeiras questões. Existem outras, que permanecem sempre em suspenso, como se as pessoas fugissem delas porque isso obriga a se questionar demais: o que é um filme? (Não sou eu que vou responder isso! Não contem comigo!) O que esperamos de um filme? Por que nos instalamos diante de uma tela branca da mesma forma que pegamos um livro e começamos a ler a primeira linha tendo a intenção de ir até a página 363? O que, verdadeiramente, esperamos nesse momento?




Essa é a questão da crítica?

Sim, é justamente por isso que eu falava desse livro de Paulhan, Pequeno prefácio a toda crítica, que é, aliás, muito decepcionante na primeira leitura: Paulhan é um autor essencialmente decepcionante. É por isso que o relemos infinitamente.

Você é um dos cineastas que se colocam essa questão...

Somos ao menos dois com Rohmer, três com Jean-Luc [Godard], mas Jean-Luc as coloca de uma outra forma, mais ou menos sob a forma de fórmulas enigmáticas...

Contudo, cabe à crítica se colocar: "O que eu espero de uma obra?" é uma questão, ao mesmo tempo, filosófica e política.

São, ainda assim, as questões mais importantes... O que chamam de metafísica, não há nada mais importante: autores como Spinoza, ou Kant, ou Hegel, se colocam questões de base. Eu tenho muita dificuldade para lê-los, mas mesmo se nem sempre eu consigo, eu sei que eles falam das coisas mais importantes que existem. Para isso, eles têm suas próprias técnicas: para ler os autores chineses, é preciso aprender o chinês, para ler os filósofos, é preciso aprender a linguagem filosófica.

Nietzsche tinha apelidado Kant de "o Chinês de Königsberg"!

Kant sempre me deu um pouco de medo...

Contudo você cita a frase de Péguy na sua "Carta sobre Rossellini".

A frase de Péguy que diz que Kant não tem mãos! Enfim, ele diz "o kantismo", ele não diz "Kant", quer dizer, os discípulos, os epígonos...

No fundo, essa é um pouco a questão de Defesa secreta: o que eu posso esperar? É a questão da exigência de uma certa maneira, e se o filme foi pouco recebido, é talvez porque ele esteve diante de pessoas que não têm nenhuma vontade de se colocar a questão.

Eles tiveram medo de se aborrecer, só isso. Eles sabiam do que se tratava, talvez não, mas eles tiveram medo de se aborrecer, isso é certo. É verdade que eu também, se eu tenho medo de que um filme seja chato, eu não sinto muita vontade de ir vê-lo. Simplesmente, os filmes que me chateiam não são os mesmos...

Paris, 30 de setembro de 1998

Parte 2: O segredo e a lei




Resumo do episódio anterior: em quais condições pode-se dizer que um filme é um filme? Em quais condições pode-se defender, ao mesmo tempo Hitchcock e Rossellini?

Algumas semanas mais tarde, demos prosseguimento ao nosso diálogo, coisa de encontrar, talvez não soluções mas algumas chaves para abrir os lugares secretos. "Um artista é 'difícil de entender' no bom sentido do termo se a compreensão nos revela segredos e não uma coisa que nós não tínhamos entendido". (Ludwig Wittgenstein, Cadernos)

Último episódio: as três notas foram escritas por Jacques Rivette alguns meses depois, quando ele releu a entrevista.

H.F.

Hélène Frappat. - Ficamos nesse mistério, nessa tautologia que faz com que "um filme seja um filme"...

Jacques Rivette. - Eu tentei repensar nisso depois, e me dei, não respostas porque eu não acho que possamos ter respostas definitivas sobre esse assunto, mas talvez elementos de resposta... - Mas, você mesma, o que você diria para tentar responder a essa pergunta?

Para localizar o mistério, e não para dissipá-lo, eu diria que uma das coisas misteriosas é a relação entre um trabalho muito concreto e uma ideia: como essa atenção muito concreta aos detalhes, a uma relação entre o espaço e o tempo, que é o trabalho da mise en scène, vai se ligar a uma ideia mais geral, à ideia do filme.

Eu estou de acordo sobre o fato de que isso gira necessariamente em torno de uma relação. Relação do que com o quê é a questão que devemos nos colocar. Eu tenho, aliás, a impressão de que essa noção corresponde a todas as formas de expressão: não apenas o cinema, esse poderia ser o caso também de qualquer abordagem artística, e talvez mesmo dos eventos da vida corrente. Uma coisa nunca está sozinha de qualquer forma, só existimos em relação às outras pessoas, e é justamente esse diálogo, ou esse triálogo, ou esse quadriálogo, etc., que temos o tempo todo na vida de todos os dias. Ninguém existe sozinho, e tudo o que concerne aos homens - os homens e as mulheres, digamos os homens no sentido genérico mesmo que isso não seja bem visto hoje - corresponde então sempre a uma relação dada: existe uma relação entre A e B, ou entre A e B e C.

Essa relação define a dinâmica: nunca existe a força sozinha.

Sim, essa relação a priori se reverte, eu não sei se é isso o que você quer dizer: ela existe nos dois sentidos...

É o que faz com que uma relação de forças possa ser consciente.

De forças, talvez não... Por que uma relação de forças, pode ser uma relação de amizade!

Eu pensava no fato de que as forças andam sempre em duas.

Sim, tomando a palavra força de forma positiva, as forças boas tanto quanto as forças negativas. Mas o que deveríamos saber é qual é, justamente, sua relação... Eu lembro que eu tinha citado o exemplo de Jean Paulhan que escreveu um pequeno livro, que se lê em menos de uma hora, Pequeno prefácio a toda crítica, e no qual ele se surpreende que ninguém, que ele saiba, nunca tenha colocado, clara e frontalmente, a questão que lhe parece, mesmo assim, fundamental: por que os críticos, e não apenas os críticos mas também os amadores que se interessam pela literatura, escolhem discutir, cobrir de elogios, criticar severamente tal e tal obra, e passam por todas as outras em silêncio? E Paulhan toma o exemplo de livros que, na época deles, foram muito mal recebidos, mas desde o princípio as pessoas estavam de acordo em dizer que eram justamente desses que era preciso falar muito mal, por exemplo As flores do mal (poderíamos evocar também Olympia ou A sagração da primavera) enquanto que, no caso de muitos outros, ninguém discutia sobre o assunto, pelo contrário, todo mundo estava de acordo em estimar que era muito bem escrito, e totalmente agradável de ler, e depois, seis meses depois, completamente esquecido.

Existem outros que parecem não exigir nada, no fundo, de seu público.

É isso. E então o que fazia com que, desde o início, os críticos, mesmo se eles diziam que Baudelaire era um impostor, etc., fosse justamente a Baudelaire que eles se dedicassem, e não a tal e tal, cujos nomes são agora completamente ignorados. Era essa a verdadeira questão de Paulhan: o que faz com que haja uma espécie de consenso que se produz às vezes muito rápido, às vezes não imediatamente (é o caso de Lautréamont, mas por razões puramente materiais, porque Os cantos de Maldoror foram publicados de forma quase clandestina, é preciso esperar alguns anos para que Gourmont ou Bloy comecem a se dizer: "olha, tem um autor bizarro aí", e depois a polêmica se encadeia). É essa a questão que coloca Paulhan, aliás ele não a responde categoricamente, Pequeno prefácio a toda crítica permanece aberto sobre um primeiro esboço de solução, que abre para outras questões.

Em que sentido, segundo ele, uma resposta é possível?

É justamente sobre essa noção de uma relação precisa e fundamental: simplesmente, levando em conta que se trata de literatura, é a relação entre as palavras e o pensamento, se eu quiser esquematizar de maneira muito grosseira o que Paulhan tenta sugerir, indicar, fazer com que seja encontrada pelo seu leitor: é que os autores que temos vontade de falar, de discutir, os que contam, são justamente os que escreveram com uma consciência clara do problema que coloca, na verdade, a relação das palavras com o que nós chamamos de ideias, pensamentos, sentimentos, emoções: as duas faces da linguagem. Ele dá contraexemplos, ele cita três trechos de autores da época completamente esquecidos hoje, três trechos de romances dos anos cinquenta, ele diz basicamente: "eis três textos, realmente escritos em francês, sem defeitos, mas ao mesmo tempo isso não funciona! E por quê? Porque falta alguma coisa, ou tem alguma coisa a mais, mas o quê?

Poderíamos chamar isso a relação entre a gramática e a ideia.

Existe um outro livro de Paulhan, Chave da poesia, em que ele procura então a chave que poderia permitir dizer, não: "tal poema é um grande poema e tal outro é completamente malsucedido", é menos ambicioso e, ao mesmo tempo, é uma outra ambição: "tal teoria sobre a poesia tem uma chance de ser justa, e tal outra teoria não é pertinente." E ele chega a uma fórmula algébrica que vem, muito basicamente, dizer que uma teoria justa deve ser reversível, ou seja, que uma teoria da poesia que fala das palavras deve ser a mesma se ela fala das ideias.

Reversível entre o pensamento e a linguagem?

É isso. Isso vem sempre dizer que a escritura de um real escritor, seja poeta, dramaturgo ou romancista, deve alcançar esse estado no qual as palavras não podem mais ser mexidas, modificadas, substituídas, invertidas: é o que distingue o verso perfeito da prosa jornalística. "A filha de Minos e de Pasífae", não se pode mudar, nem acrescentar uma palavra, é isso. Acontece que, além do mais, isso forma um alexandrino que cai bem, e que diz, ao mesmo tempo, coisas muito profundas e muito importantes sobre o personagem de Fedra, porque ser, ao mesmo tempo, a filha de Minos e de Pasífae, não é muito cômodo, de um lado a Lei, e do outro lado a besta, a bestialidade...

Eu tenho a impressão que...

... no cinema é mais complexo?

Exatamente. Eu não li o texto de Paulhan mas pode-se dizer...

Mas eu só o tomo como ponto de partida, porque, mais uma vez, seria certamente um erro querer fazer uma transcrição literal... Eu tentei às vezes, graças à leitura de Paulhan, como eu não sou um escritor e tento ser um cineasta, ver no que dá se se tenta transpor. A um momento, eu me dizia: no fim das contas, como o cinema, é, ao mesmo tempo, o espaço e o tempo, pode-se dizer, por exemplo (não para saber se um filme é um filme no verdadeiro sentido da palavra, ou apenas uma fita de película projetada numa tela, mas antes como chave das teorias do cinema), poderíamos talvez dizer: as teorias do cinema que falam do tempo são justas se se puder aplicá-las, tais quais, em termos de espaço.

Uma relação de reversibilidade entre o tempo e o espaço?

Sim, mas eu sei que isso permanece muito teórico no fim das contas... Mesmo se, realmente, o cinema é uma arte do tempo e do espaço, do espaço no tempo, ou do tempo no espaço...

... do espaço-tempo...

... do espaço-tempo.

Não é extremamente abstrato, portanto, separar o espaço do tempo?

É impossível, justamente. Mas é verdade que todas as teorias do cinema que existem, tendem, como muitas teorias antigas, a privilegiar o espaço, quer dizer, os valores plásticos, e então isso leva a superestimar filmes que não eram mais que catálogos de belas imagens, e então as pessoas confundiam Ford e Emilio Fernandez (toda uma época...). E outros que queriam privilegiar o tempo, quer dizer, nessa época, a montagem considerada da forma mais mecânica, e Pudovkin se tornava igual a Eisenstein... E agora, quando o valor-tempo, desde Leenhardt e Bazin, goza de uma cota impressionante, e além disso justificada, sobre bases alargadas e menos sumárias, o risco é de só ver o cinema como puro e simples desenrolar narrativo, e logo sob as categorias do romanesco, da história, da ficção, todas coisas, aliás, justificadas, mas de repente esquecendo que isso sempre concerne às imagens projetadas, às imagens fotográficas reproduzindo lugares, corpos, gestos, e que não é da ordem da "narrativa pelas palavras". Isso é, eu acredito, a tendência atual da crítica, tanto a dos jornais quanto a de Deleuze, que privilegia claramente o que ele chama de imagem-tempo.




Ele privilegia a imagem-tempo mais que a imagem-movimento. Eu estava pensando que essa questão essencial para a estética, a questão do julgamento das obras - o que constitui o julgamento, o que faz de uma obra uma obra?...

Ah não, não é: o que constitui o julgamento? É o contrário: o que faz com que uma obra mereça ser considerada? O julgamento vem depois, o julgamento constata, ele constata mesmo, frequentemente, a contragosto, porque, mais uma vez, uma das melhores provas é, frequentemente, a agressividade manifestada na recepção. Isso foi evidente para A regra do jogo, isso foi evidente para Bresson, isso foi evidente para Jean-Luc [Godard], só para citar nomes muito grandes. A prova é a hostilidade: bruscamente, as pessoas sentem que ali existe alguma coisa perturbadora. Mas frequentemente as pessoas se enganam sobre o que é perturbador: há coisas que são perturbadoras porque elas trazem uma nova justeza, uma nova verdade, e outras que são perturbadoras unicamente porque procuram quebrar os vidros! Logo esse também não é o critério: se fosse necessário dizer que todas as obras que tem más críticas são geniais, isso não nos levaria muito longe.

O cinema não está na origem da questão. Esse problema estético surgiu...

Não é um problema estético, é um problema existencial!

Sim, no sentido de que os dois são inseparáveis. Me parece que esse problema surgiu historicamente no fim do século XVIII...

Não. Isso sempre existiu, basta ler a Querela do Cid...

Mas há um momento em que a questão, no que concerne à pintura, por exemplo, aparece subitamente mais complicada do que no que concerne à literatura, ou a poesia - pintura e poesia poderiam ser postas no mesmo plano. Eu penso num certo número de debates estéticos do fim do século dezoito, sobre o que chamamos de sublime, e que constituem a origem de nossa modernidade estética...

Sim.

A questão se coloca para certas imagens, não tanto para a literatura quanto para certos quadros (os filósofos ingleses falam sobretudo da pintura), ou mesmo certos textos poéticos: todos apresentam distorções tais, em relação ao que se poderia esperar de uma imagem, que, de repente, se é obrigado a se perguntar o que faz com que ainda estejamos diante de obras. O cinema prolonga esse problema, de uma maneira talvez mais complexa que a literatura, se nos ativermos, ao menos, às definições de Paulhan. E depois eu penso num segundo problema: pode-se isolar o debate estético? Se se considera, por exemplo, a origem da modernidade do cinema, sem remontá-la necessariamente à sua origem histórica propriamente dita, mas a toda uma época que sucede a Segunda Guerra Mundial...

Sim e não, porque a origem da modernidade, pode-se dizer que é A regra do jogo e Cidadão Kane que datam de 39 e 40.

Eu repenso nos debates que você participou, e que colocam a questão da ligação, para dizer rápido, entre a estética e a moral: pode-se isolar os dois? A questão: "O que faz de uma obra uma obra?", é uma questão puramente estética - ou não?

Não, mais uma vez eu acho que isso não é uma questão puramente estética, e muito menos uma questão puramente moral: é uma questão existencial, eu mantenho essa palavra, e de repente, há, ao mesmo tempo, a dimensão ética e a dimensão estética. Volta-se sempre à essa famosa frase dos travellings que são questão de moral, que permanece justa, ela sempre foi e não existe razão para que ela deixe de ser. Mas, mais uma vez, isso dá o quadro geral da questão, mas isso não define os termos dessa relação que procuramos. Eu me coloquei essa questão, eu busquei quais eram, justamente, os termos da relação que faz com que uma obra cinematográfica mereça ser chamada de filme, porque é disso que tentamos falar. Eu acredito que essa relação passa, realmente, entre dois polos, mas é aí que isso se torna difícil. De um lado, eu sinto vontade de dizer uma palavra muito difícil de manipular, mas, mesmo assim, eu vou avançá-la porque eu estou abrigado atrás de grandes autores que eu, aliás, não conheço muito bem, mas enfim, bom, é a palavra "lei". Eu fiquei impressionado esses dias, enquanto eu pensava nessa questão, na medida em que eu sabia que iríamos nos rever para falar do nosso problema, eu pensava nisso, e eu tinha essa palavra "lei" que galopava na minha cabeça e que eu não sabia muito como pegá-la, e eu caí, por acaso, numa entrevista com um autor que eu nunca tinha verdadeiramente lido e que Daney, Serge, estimava muito, eu sempre tive medo de lê-lo, e aí, no último número do Télérama, o da semana passada, havia uma longa entrevista com Pierre Legendre que eu achei totalmente fascinante e muito esclarecedora... E então Legendre, como sabem melhor que eu aqueles que o leem há mais ou menos algum tempo, parte da ideia, do termo da lei, quer dizer, alguma coisa que é construída pela razão para dar ao homem o que vai permiti-lo constituir, prolongar, garantir a sobrevivência de sua humanidade, quer dizer, e aqui eu continuo tentando citar Legendre, o que vai lhe permitir fazer existir tanto o sujeito quanto a ficção, dois termos que ele coloca no mesmo plano. E a fala. A fala sendo evidentemente o elemento fundamental da humanidade, é através da fala que o homem se serve de sua razão para se constituir enquanto sujeito e ficção. O homem tem necessidade da fala e da lei para se construir, para sobreviver, de geração em geração, e não ser inteiramente submisso à morte, para poder se transmitir sobre o fundo da morte: que fique claro, cada existência humana está sobre o fundo da morte, mas é uma transmissão que, desde o começo passa pelas grandes ficções, e aí Legendre emprega literalmente as palavras mise en scène e montagem. Foi isso que me impressionou, eu me disse: aí, mesmo assim, o encontro é belo demais! E se eu entendi bem, Legendre usa a palavra montagem, exatamente no mesmo sentido que Lévi-Strauss emprega o termo bricolagem, quer dizer, tomar os elementos preexistentes que se reúnem para fazer um novo objeto, uma nova ficção que tenha sua própria lógica e sua própria necessidade.

Há uma heterogeneidade dos elementos...

Há uma heterogeneidade dos elementos, há mesmo uma espécie de gratuidade dos elementos, mas esse trabalho humano, através da fala, e no qual o homem realiza sua razão, dá um novo quadro ficcional, que não é eterno: cada civilização construiu em tal momento tal ficção que vai movimentar, necessariamente, porque ela é tomada na sucessão das coisas. Logo, se eu coloco de um lado esse termo de lei, eu acredito que realmente todos os filmes que merecem ser chamados de filmes têm uma relação mais ou menos forte com uma forma de lei[1]. E do outro lado, no outro polo, o termo que eu tenho vontade de colocar é a palavra "segredo", porque eu acredito que há, no centro de toda obra que merece ser considerada como tal - isso talvez não seja contraditório com a ideia de lei, aliás -, existe um segredo, e um segredo que não é um enigma de narração, que não depende da simples bricolagem (e aí, isso se transforma nos mistérios ficcionais de tal ou tal roteiro: não é à toa que tantos cineastas ou romancistas, não apenas Balzac ou James, brincaram com as histórias pondo em jogo os mistérios, os segredos, em que é o suspense que dá um sentido à ficção, como teria dito Corneille). Mas segredo no sentido mais fundamental: para continuar citando Paulhan que disse que nunca se pode esquecer que o que é próprio do mistério é ser misterioso, este segredo é um segredo do ser, um segredo que o cineasta não conhece, é um segredo que o cineasta carrega sem saber, é o segredo de coisas muito pessoais, muito existenciais, muito sugestivas, e do qual o filme acaba sendo portador: além do que queria conscientemente o cineasta, ele diz coisas sobre ele, e logo, através dele, sobre a humanidade, coisas que ele não tinha a menor intenção de dizer.

Você cai exatamente na definição que Kant dava do gênio!

Ah, é? Kant eu nunca li, mas é evidente que os autores que nós citamos leram muito, tanto Alain quanto Legendre, porque a história da lei descende diretamente do senhor Immanuel...

Ele diz que o gênio traz em si um mistério, um segredo, que ele seria totalmente incapaz de explicar, mas que vai se encontrar na sua obra, e que seus sucessores saberão talvez explicar e transmitir.

Sim! Mas, de novo, se só houvesse isso, não funcionaria, é preciso justamente que esse mistério que ele traz em si, ele sabe que ele traz em si um mistério, um segredo, ele tenta "tirá-lo", se livrar dele, expulsá-lo como diria Cocteau, mas ele não sabe como, ele o faz através das ficções, e se referindo justamente às leis: a certas leis, que ao mesmo tempo lhe concernem pessoalmente e o dominam, se impõem a ele como necessidade exterior, como destino.

É por isso que esse segredo pode ser transmitido: porque existe a lei.

Coloquemos então, como hipótese provisória, como ponto de partida oferecido à discussão, que o que faz com que um filme seja um filme é que existe, ao mesmo tempo, segredo e obediência à lei, a uma lei que não é obrigatoriamente a mesma para todos os filmes, mesmo que eu suponha que, profundamente, essas diferentes leis se unam. Vamos voltar à questão que nos pusemos outro dia: o que faz com que se possa admirar ao mesmo tempo Hitchcock e Rossellini?

Todos falam da mesma coisa.

Sim, mas, de partida, eles não parecem nada se submeter às mesmas leis. É mesmo evidente, as leis mais claras, mais visíveis, não são as mesmas. Mas o que é da mesma ordem, é, por outro lado, sem dúvida - tudo isso são hipóteses, claro, hipóteses que lançamos, e depois veremos se existem outras pessoas que se interessam, elas serão retomadas ou elas não serão retomadas; enfim, isso não está, absolutamente, destinado a ser uma teoria, isso, aliás, não poderia ser uma teoria, se isso fosse uma teoria isso não funcionaria, isso só pode ser uma sequência de práticas...[2]

Isso é muito bonito, essa relação entre a lei e o segredo: o segredo como alguma coisa existencial, e a lei como alguma coisa mais universal.

Sim, pode-se dizer que o segredo é o indivíduo, a lei é a sociedade...

A comunidade...

Sim, uma comunidade de indivíduos que conseguiram formar uma sociedade, através da fala, da razão, das cerimônias, das ficções, porque as cerimônias fazem parte das ficções, elas são uma etapa, uma forma da ficção geral.

Certos filmes se dirigem ao segredo de seus espectadores e outros não.

Sim... Mas isso não quer dizer, absolutamente, que é preciso que o cineasta faça autobiografia, pelo contrário, de uma certa forma! Essa era a grande discussão que eu tinha com Eustache, durante os três meses em que passamos nossos dias juntos montando os programas sobre Renoir: não parávamos de discutir vendo e revendo todo o nosso material, e revendo os filmes de Renoir (revimos a maior parte dos filmes dos anos trinta na mesa de montagem), e nossa discussão perpétua, era então Jean que dizia: "O cinema deve ser pessoal... deve-se falar de si", e eu dizia: "Não, não se deve falar de si, deve-se construir ficções, tentar inventar histórias..."




O que James chama de potência do indireto.

É isso! Eu acho que nós dois tínhamos razão, como sempre nesses casos, porque, finalmente, Jean fez seus filmes autobiográficos, mas que, apesar dele, se tornaram ficções, e eu tentei fazer ficções mas, duas ou três vezes, aconteceu de, nessas ficções, eu por, contra a minha vontade, coisas que eu tinha mais ou menos vivido... Em Amor louco eu sabia, claro, mas nos outros eu só fui perceber muito depois que eu tinha falado de certas coisas mais secretas, para mim o primeiro... E eu acho que essa é uma lei geral, vamos parar de falar de mim; por exemplo, se pensarmos em A regra do jogo e em Cidadão Kane, sabemos agora um pouco mais que, nestes dois filmes, Renoir e Welles "contaram", sobre eles mesmos, coisas que eles, absolutamente, não tinham a intenção de contar, e que depois parece que mais ou menos se deram conta. É por isso que, depois, Welles não parou de colocar narizes falsos, como se tivesse se sentindo nu quando ele viu Kane! E Renoir nunca mais atuou... Mais uma vez, isso não é necessariamente biográfico, esse segredo é corporal, isso é impensado: a biografia real do autor do filme, ou aliás, do autor do romance é, frequentemente, desinteressante, a biografia de James é a de um autor de romances, a de Flaubert também, o que não impede que a dimensão biográfica seja muito forte em Flaubert, e talvez ainda mais em James... Ou talvez ainda mais em Flaubert, onde ela é ofuscante: no fim não existe mesmo mais do que isso...

Eu diria mesmo que isso não é autobiográfico no sentido de que isso é a mola da ficção.

Sim!

É como se houvesse uma tal opacidade, por exemplo em James, sobre ele, que ele só fizesse uma investigação sobre ele mesmo...

Sim, sim, sem querer. Da mesma forma que Flaubert, nas suas cartas aos seus amigos, não para de repetir: "Sobretudo, aqui, eu sou totalmente impessoal, eu não falo de mim..."

Da mesma forma, poderia-se dizer que inversamente, num filme como A mãe e a puta, há um efeito de opacidade no fim...

Sim!

... que faz com que a autobiografia...

... se torne uma ficção! Sim, isso me atingiu... Eu conhecia muito bem Jean, e eu conhecia um pouco as duas jovens, e as grandes linhas de suas relações, e certos incidentes. E, vendo o filme, tudo, magnificamente, se tornou ficção.

Para voltar a esse termo da lei, um termo ao mesmo tempo preciso e extremamente vasto, e que também tem uma conotação moral.

Não! Enfim... "moral", eu não gosto da palavra: ética sim, ética por que não, por que não o senhor Spinoza com a gente! Com o senhor Kant, porque depois de tudo, Kant leu Spinoza, que eu saiba! E eu não li Kant, mas eu li Spinoza... Bom, vamos manter a seriedade, e tentemos avançar. Quanto mais rica for a relação entre o polo lei e o polo segredo, mais o filme será intenso. E a consequência é uma terceira palavra que eu teria vontade de destacar, para falar dos filmes que merecem ser chamados verdadeiramente de filmes, é a palavra "perigo": todos são filmes que afrontaram um perigo, todos foram filmes difíceis de fazer, filmes perigosos para todo mundo, não somente para o diretor, para todas as pessoas que estavam nele, e primeiro para os atores, são filmes em que houve um perigo real corrido - às vezes na inconsciência, às vezes na consciência - por aqueles que os fizeram, que os concluíram: onde, conscientemente ou inconscientemente, se assumiu um risco, mais ou menos voluntário, mais ou menos forte, de tal ou tal elemento fundamental do filme (narração, atores, câmera, tudo o que quisermos) que só pedia para viver tranquilamente a sua vida... E isto, mais uma vez, não apenas o cineasta sozinho e solitário à la Bresson ou à la Sternberg ou à la Eisenstein, mas o conjunto de pessoas que foram pegas na aventura. É uma série de perigos ultrapassados, não há, talvez, grande filme se não houver o sentimento de que poderia ter sido uma catástrofe, que deveria ter sido, sem essa espécie de milagre que salvou tudo, à custa, aliás, de trabalho e de cálculo e de obstinação. Mas dizer isso nesses termos é talvez uma abordagem mais moderna, e que nos afasta do grande classicismo dos pioneiros: para eles, o perigo é que eles eram obrigados a inventar tudo.




Poderia-se dizer que é uma perda de domínio em relação ao domínio clássico.

Sim, isso é evidente em um cineasta como Ophuls: Ophuls é o risco perpétuo, é, verdadeiramente, se jogar no vazio, e sempre cair de pé com a graça mais felina. Mas o perigo pode ser o de ser ridículo, simplesmente. Por exemplo, Bresson está às vezes no limite, Straub também: é talvez esse o perigo que correm os modernos, é bascular, e só precisam de um pelo para cair no pastiche ou na paródia, Duras é o exemplo típico, é o limite extremo da paródia, e depois mesmo assim, isso permanece no limite extremo, eu penso nos seus maiores filmes, e finalmente, eu acredito que eles são todos grandes filmes, mesmo se existem aqueles que me tocam mais que outros, mas eu acho que é uma cineasta enorme... É como com Jean-Luc [Godard], esse filme é talvez mais bem-sucedido, mais convincente, até mesmo mais emocionante que aquele. Qual a importância, o que conta é a trajetória, a grande linha do conjunto.

E ele, o que ele arriscaria?

Jean-Luc? Ah, ele arrisca tudo ao mesmo tempo! Ele assumiu todos os riscos, mesmo às vezes o da inconsciência... Agora, talvez poderíamos encontrar os filmes em que não há essa dimensão do perigo ultrapassado, da prova passada por um triz, eu não sei, talvez procurando bem... Mas no fim das contas, ela está também nas obras clássicas, mas como tema, como ponto de partida: a prova passada por um triz, não tem problema, é o assunto de Marivaux, e é também o da maior parte das tragédias: a prova perdida por um triz.

A provação.

Sim, a provação, salvo que a provação nas obras clássicas está mais do lado do tema e da ficção, dos personagens, enquanto que os modernos, em vez disso, põem à prova os meios, a escritura. Manet, por exemplo, na história da pintura, Manet e Cézanne, é aqui que isso se inverte, é a diferença entre Velasquez e Manet, ou já entre Velasquez e Goya: Goya é o momento em que isso bascula, pff!

É o que eu dizia há pouco sobre o sublime: tem um momento em que a crise se torna visível, explícita, e, portanto, para o espectador faz parte do que ele vê.

Então, é isso o que provisoriamente nós vamos reter... e esperando que eventualmente outras pessoas sintam vontade de encadear nosso diálogo... Bom, não são descobertas: a lei, o segredo, o perigo, se quisermos resumir em três palavras os dois polos, o perigo sendo talvez uma espécie de resultado da ligação deles, ao menos dizer mais simplesmente que o perigo é, justamente, o nome da ligação entre a lei e o segredo. Na história do cinema moderno, nós temos muitos exemplos disso...

Eu penso em Fritz Lang...

Sim, ou Nicholas Ray, por exemplo...

O perigo é ainda alguma coisa de existencial, como o segredo.

Sim, de uma certa forma nosso ensaio de definição não nos leva muito longe, e tudo isso, poderíamos tê-lo dito de uma outra forma, e os críticos continuarão a se enfrentar, tanto melhor... Trata-se mais uma vez de separar os impostores e... e os muito raros que tentam ver um pouco mais claro... Não os sinceros, porque os sinceros puros e simples são desinteressantes, a sinceridade não é um valor.




Se produzimos categorias - o segredo, o perigo, a lei - tem uma que eu acho importante, a categoria da inocência.

Sim! Mas inocência é um termo... Enfim, continue!

Eu me dizia que o cinema é talvez uma das artes em que se joga com a relação mais crucial entre, de uma parte, a inocência do que é filmado, o registro do que é, o lado ontológico, e de outra parte uma espécie de ausência total de inocência do artista. O cinema é uma das artes que mais podem pôr em cena essa tensão entre a inocência da invenção e da ficção e a ausência de inocência da economia. É talvez um critério de discriminação: existem filmes que fazem como se essa questão não existisse. Portanto, pode-se ligar a questão da lei à da inocência?

O que me diverte no que você diz é que o primeiro artigo que eu escrevi e publiquei, no comecinho dos anos cinquenta, eu estava em Paris depois de alguns meses, foi num pequeno boletim de algumas páginas, o boletim do Cineclube do Quartier Latin, do qual Rohmer, que ainda se chamava Maurice Schérer na época, se ocupava... foi o que lhe despertou a vontade, alguns meses mais tarde, de fundar a Gazette du Cinéma que teve cinco números, e foi ali que François [Truffaut], Jean-Luc [Godard] e eu, fizemos nosso primeiro aprendizado... E então, esse primeiro pequeno texto tinha por título "Nós não somos mais inocentes".

Eu o li.

Ah, você o leu? Eu cheguei em Paris alguns meses antes, vindo de Rouen, cidade onde, por causa da guerra e dos bombardeios, restou três ou quatro cinemas em 45: três cinemas, portanto relativamente poucos filmes, se não eram os filmes franceses correntes e os principais filmes americanos, dublados claro, e havia só um cineclube que tinha apenas uma sessão por mês, do qual, aliás, eu me ocupei um pouco, e onde eu tinha visto alguns filmes mais antigos como A regra do jogo, Cidadão Kane, A sombra de uma dúvida, mas, evidentemente, nenhum filme mudo: o cinema mudo, eu só o conhecia através dos Chaplins, dos Gordo e o Magro que eu tinha visto quando eu era moleque, no Pathé Baby na casa do meu avô, nas quintas à tarde. E eu chego em Paris, e no fim de um mês ou dois, eu ouso ir pela primeira vez na avenida de Messine, na Cinemateca, eu vou lá o mais frequentemente possível, e lá eu caio em cima dos Griffith, dos Stiller, dos Fairbanks, em cima de todo esse cinema dos anos dez e vinte, fim dos anos dez, começo dos anos vinte, com o sentimento muito forte de que havia, na verdade, nesses grandes filmes de Griffith e de Stiller e de Stroheim, ou nos primeiros filmes de Dreyer e de Murnau, uma inocência do cinema que foi irremediavelmente perdida. Era evidente para mim em 50, começo de 1950, uma época que, agora com o recuo, pode parecer ainda extremamente clássica, o quê que houve em 1950? Resposta: Renoir, Welles e Bresson, eles tinham, apesar de tudo, todos os três, começado a fazer uma revolução. (E Rossellini estava começando a fazer a sua, mas isso só se tornaria evidente alguns meses mais tarde). E agora eu acho que de fato teríamos que recuar mais longe, a inocência, ela está talvez apenas no Lumière, que não queria ser "artista", só um fotógrafo do movimento... pois mesmo já Griffith, se eu revejo agora os Griffith, já Intolerância, não se pode dizer que é um filme inocente: é o próprio tema do filme, de enfrentar as etapas da civilização e do saber e tudo o que isso implica de crimes, de destruições, de barbárie.

Ele enfrenta a total ausência de inocência da história.

Sim! E, aliás, já em O nascimento de uma nação, que confronta de uma parte a guerra civil, de outra parte o racismo: com uma parte de inconsciência e de falsa boa consciência, o racismo está no centro de O nascimento de uma nação. Portanto, eu acredito que vamos citar mais uma vez a famosa frase de Kleist: ela está sempre perdida, a inocência, e a única coisa que se pode fazer é um trabalho enorme de tentar, fazendo um desvio gigantesco, ver se não existe, por trás, uma pequena porta que nos permitiria retornar ao paraíso original. É esse texto magnífico de Kleist, que todo mundo conhece, Sobre o teatro de marionetes, e que se pode ler quinhentas vezes.

Pode-se tentar fazer a ligação entre essa perda de inocência e a relação com a lei?

Não, porque a lei, justamente, ela está aí, na medida em que a inocência é sempre já perdida; qualquer que seja o quadro no qual nasce o filho do homem, ele nasce numa civilização, com tudo o que essa comporta, uma cultura que se vai tentar impor a ele, nos quadros da qual ele vai crescer, aprender a rezar para Allah ou não sei quem... Depois, é ele que tem que tentar se virar, mas o que existe de certo, é que ele não é inocente, ele nunca foi. De qualquer forma, mesmo a inocência de Lumière é, sem dúvida, fictícia, como por muito tempo os pintores que acreditavam que havia uma espécie de inocência em Giotto, por exemplo, e mais tarde dizia-se: "Não, não é Giotto, é Cimabué...", e da mesma forma, na história da música, o século dezenove romântico viveu sobre a ideia de que a música tinha sido inventada pelos italianos no século dezesseis, tem um poema de Victor Hugo sobre isso, sobre a música que remonta à Palestrina... Ou os versos de Musset: "Harmonia, harmonia, que nos vem da Itália e que lhes chega dos céus"... Agora, sabe-se que a história da música ocidental é um pouco mais complicada que isso, a genealogia remonta um pouco mais longe... Agora, se diz: "é Pérotin, que, ele mesmo, depende da chamada Escola de Notre-Dame!" A inocência é sempre uma ficção.

Por um lado existe esse segredo do qual o artista não é consciente...

Não é que ele não seja consciente, eu acredito que ele sabe pela metade, e que ele recusa ver o que se passa, que ele recusa para poder fazer, se ele tivesse uma tal consciência, ele não poderia fazer nada, ele não poderia escrever uma palavra, ele não poderia colocar o menor toque sobre a tela, ele não poderia escrever a menor nota! Ele precisa saber pela metade, como as crianças que põem as mãos sobre os olhos abrindo um pouco os dedos... Existe um lado infantil de toda forma na atitude de qualquer artista, seja ele escritor, pintor, cineasta, há sempre um retorno à infância, mas uma infância que não tem nada de inocente, uma criança que é, pelo contrário, um filho do homem, que já sabe muitas coisas mas que não quer saber, que sabe mais do que acredita saber, que quer saber.

Ele não é completamente consciente do segredo mas ele é consciente dessa perda de inocência.

Sim, e ele sabe que ele arrasta alguma coisa muito pesada, que o encobre, ele não sabe bem o que é, ele queria saber e ao mesmo tempo não saber demais, de qualquer forma, tem o senhor Freud que passou por lá e que nos disse algumas palavras sobre a questão, e o senhor Lacan que, oportunamente, sublinhou dois ou três pontos sobre os quais se preferiu, muitas vezes, passar em silêncio...

Poderíamos aplicar sua definição do cinema - a relação entre o segredo e a lei - à psicanálise.

Sim, sim, claro! Tudo isso fala da mesma coisa![3] A análise, o que faz a sua força, é que ela fala a todos os homens de coisas fundamentais, e eu acredito que o que faz sua outra força, é que ela permanece sempre inacabada. Tudo é inacabado, claro: se for acabado, pronto, a história se interrompe e depois... o fim do mundo! Felizmente estamos no inacabado, e toda ficção, por mais bem-sucedida que ela seja, o mais belo romance do mundo, ele chama outros romances, e é também o que faz sua força. Dom Quixote suscitou primeiro suas sequências e seus imitadores, e depois ele criou muitos romances por trás dele, e Cidadão Kane ou A regra do jogo dão vontade, quando os vemos, de tentar lhes dar filhos! Fazemos outras coisas, que fique claro, não se faz nunca o que se quer fazer... De qualquer forma, faz-se sempre outra coisa, eu acho que ninguém nunca faz exatamente o que queria fazer, e felizmente. Depois se habitua mais ou menos bem com o que foi feito, apesar de si, consigo... Eu não coloco muito a questão do que eu penso sobre os meus filmes, além disso, depois do lançamento eu não os revejo, ou se eu os revejo mais ou menos muito tempo depois, eu fico muito surpreso, eles são... muito diferentes da ideia que eu tinha: finalmente, eu acredito que amamos mais aqueles que não parecem nada o que tínhamos a intenção de fazer! Eles são mais surpreendentes, mesmo se eles estão perdidos...




Você disse que, diante de certos filmes, tem-se a impressão de que todos falam da mesma coisa, mesmo se eles são muito diferentes; essa lei é alguma coisa comum? Ou pode-se dizer que existem relações análogas à lei? Há pouco nós falávamos de Hitchcock e de Rossellini, pode-se falar de Fritz Lang...

Não, eles são diferentes, é evidente que eles não têm a mesma relação com a lei, e não com as mesmas leis, mas ao mesmo tempo todos os dois sabem que existem leis as quais é preciso ter em conta, e todos os dois carregam seus segredos. Em Hitchcock isso é evidente: víamos bem, desde a época que, quando ele rodava Um corpo que cai ou Marnie, ele colocava em jogo coisas que ele só tinha até ali postulado nos filmes mais anedóticos. Foi François [Truffaut] que me contou como Hitchcock lhe mostrou Marnie em cópia de trabalho: François tinha visto o filme sozinho numa sala de projeção do estúdio, e no fim, Hitchcock estava lá para acolhê-lo, e o que tinha atingido François, é que ele estava todo vermelho (quando ainda não era a hora dos uísques), todo vermelho como se ele soubesse que através desse filme, enfim essa era a impressão que François teve, como se ele tivesse o sentimento de estar totalmente nu: ele sabia que acabava de mostrar um filme totalmente sem pudor.

Um sentimento de vergonha...

Sim, sim, de vergonha. Ele estava vermelho de vergonha, enfim, foi desse jeito que François o viu e me narrou. Ele poderia, aliás, às vezes, falar como uma espécie de fanfarronice adolescente: é a famosa frase sobre Um corpo que cai, em que ele diz que é o momento em que a heroína volta depois de ter tirado sua calcinha! E quando se revê, não tem problema, é isso. E ao mesmo tempo, é mais que isso, é outra coisa que ultrapassa a anedota erótica em todos os sentidos...

Para um certo número de filmes - os filmes de Hitchcock, de Fritz Lang, eu penso em A religiosa também, e mesmo pode-se dizer isso de todos os seus filmes - essa tensão entre o segredo e a lei, mesmo se posteriormente, e não desejada como tal, é, profundamente, o tema, a coisa fundamental que está em jogo.

Sim, mas frequentemente pode-se dizer que a lei em Lang, em Mizoguchi é mostrada sob o seu aspecto negativo, sob o seu aspecto morto, quase inepto, alguma coisa que restringe o indivíduo... É um aspecto real do que é a lei humana, mas não é a "verdadeira" lei.

Eu não pensava nisso, mas antes em A religiosa: na tensão trágica entre a lei e o segredo, que faz com que essa garota, estando originalmente no segredo, porque ela nem mesmo tem nome, exige então um processo.

Isso é a força dessa ficção de Diderot, ficção que, ela mesma, foi muito fortemente inspirada em fatos reais. A situação dramática e sem solução de Suzanne é que ela é condenada pela própria coisa em que mais crê, pela sua fé; logo é sem saída.

E sem processo.

Sim. Ela queria guardar sua fé e obter a liberdade, lhe dizem: "É impossível, uma não vai sem a outra", ou melhor, a fé implica a ausência de liberdade.

Nesse sentido, a liberdade está completamente do lado da lei.

Da verdadeira lei, sim, claro. Quando Lacan ou Legendre empregam a palavra lei é no sentido de que a lei é positiva, e a liberdade só pode existir no interior de um quadro, de uma civilização na qual a lei é instaurada pela razão, e portanto permite a liberdade do indivíduo. Legendre fala - e isso encontra o que você disse sobre Diderot, porque é a Diderot que é preciso atribuir a paternidade dessa ficção de A religiosa, eu só a transcrevi - do momento em que os representantes da lei se tornam criminosos, em que eles dizem: "Assassine!" Seja Hitler, seja Lenin, Stalin, Mao, todos disseram: "é preciso matar."

Então, o que caracteriza as "grandes obras" é essa relação muito tensa entre uma liberdade absoluta que é aquela da invenção - mesmo se essa liberdade se encontra posteriormente esclarecida, ou obscurecida por essa relação com o segredo - e uma relação muito estreita com a lei...

Sim, é isso que permite talvez não levar gato por lebre, segundo a velha fórmula, de tentar diferenciar os impostores dos...

Vamos caçar os impostores!

Vamos caçar os impostores, sim! O que permite dizer, por exemplo, que Lars von Trier é, me parece, um impostor? Eu acredito que compreendo muito bem como ele funciona, esse rapaz: ele soube muito rápido, depois do seu primeiro filme, que era muito brilhante, ele sofreu porque não era Dreyer e porque ele nunca será Dreyer já que seu grande problema, me parece, é sua ligação com Dreyer. Então foi necessário que ele continuasse a partir daí, e é cada vez mais evidente, sobretudo a partir do fracasso de Europa - que, realmente, é, sem dúvida, o filme mais irritante da história do cinema! Certamente não o pior, mas o mais irritante. E a partir do fracasso de Europa, ele se acredita obrigado agora, para cada um de seus filmes, a ter uma gag, um gimmick: logo, para Ondas do destino foi a câmera ziguezagueante, para Os idiotas é o Dogma, para o próximo, já se sabe, é Björk num musical... cada vez um diferente, isso não pode funcionar em dois filmes seguidos; e ele é muito dotado, ele tem muito talento, ele é de uma grande virtuosidade. Em Ondas do destino, em Os idiotas existem momentos fortes, a última sequência dos Idiotas é muito bela, mas o que não funciona, em nenhum desses filmes, é justamente o filme: não existe filme, só partes. Para mim, isso é tipicamente o exemplo do cineasta que é talentoso, que é inteligente, que é esperto, que o é excessivamente. Um pouco como Polanski, só que ainda mais distorcido...




É a diferença entre Lars von Trier e Dreyer sobre a questão do milagre.

Tem o fato de que Dreyer acredita em Deus. Eu digo isso com muitas aspas: ele acreditava ou não acreditava, não me interessa, mas seus filmes acreditam por ele, enquanto que Lars von Trier é sem dúvida um muito bom católico, muito crente e tudo, ele irá direto para o paraíso, eu lhe desejo, mas seus filmes não acreditam em Deus nem por um segundo.

Existe algo demasiado consciente no que ele faz...

Só existe isso! Ele sabe tudo progressivamente: não existe nenhum segredo ali, ele não tem nenhum segredo, o infeliz! Tudo está no manual. É, aliás, por isso que isso funciona tão bem com todos os críticos e os espectadores: tudo está no manual, não é uma novidade, sempre foi assim, é a lei do teatro acadêmico do século dezenove...

Pode-se dizer, como um personagem do Bando das quatro sobre Constance (Bulle Ogier): "O senso do mistério, ou se tem ou não se tem..." Ela tem o senso do mistério, sem fazer mistério, tem alguma coisa quase ontológica...

Sim, é um fato que se constata, é um estado de graça, de uma certa forma, para falar em termos teológicos e jansenistas. E aí, só se pode responder como Joana, não se pode responder outra coisa! "Se eu não estiver lá, que Deus me coloque, se estiver, que Deus me guarde."

Nós recaímos sobre o aspecto quase místico da lei.

Místico no sentido em que a mística é, mais uma vez, existencial: a mística é alguma coisa de muito corporal, de muito encarnada, isso não está nas ideias puras, é, ao contrário, ligada ao corpo. Os grandes místicos são grandes corpóreos, eles fazem um trabalho sobre seus corpos muito preciso, e mesmo, para alguns entre eles, muito codificado... Sobre Inácio de Loyola e Roland Barthes, eu caí esses dias numa frase que me divertiu (de Barthes, não de Loyola), na qual ele diz que é incapaz de ler um texto se ele está mal escrito!... é preciso primeiro que um texto esteja escrito para que ele seja legível.

Se voltarmos à recepção das obras, aqueles que reconhecem a grandeza de uma obra compreendem que ela se dirige a eles e que, através dessa ligação com a obra, eles fazem parte dessa comunidade, como dizia Legendre, que define a humanidade. Mas se tentarmos definir, o que existe de mais específico na obra cinematográfica?

O que existe de específico é a invenção do senhor Lumière.

É a maneira com que o trabalho da mise en scène propõe ou não uma montagem entre o segredo e a lei. Você chegou, no seu trabalho, a se sentir engajado nessa reflexão?

Eu acho que não, eu tenho a impressão de que nos colocamos questões mais anedóticas quando trabalhamos, felizmente! Se sente mais ou menos, no começo, se existem possibilidades de ressonâncias, de ecos, a partir de tal ponto de partida. Um ponto de partida como A obra-prima desconhecida de Balzac, por exemplo, ou a história de Joana, isso corresponde a um domínio de preocupações, de ecos, de sugestões, mais ou menos rico e que queremos tentar explorar, ou fazer "vibrar", do seu jeito e seguindo seus meios... Isso remete a essa famosa querela, que é um pouco ultrapassada, dos pequenos temas e dos grandes temas. Existe um artigo que Chabrol escreveu na Cahiers, no meio dos anos cinquenta, na época em que os grandes temas eram os filmes de Stanley Kramer e de Cayatte...

Os temas sociais.

É isso. A televisão, felizmente para o cinema, recuperou uma grande parte destes debates, e agora é a televisão que deve se encarregar, e isso é muito bom para ela, de tratar dos grandes temas, a sociedade, o bem e o mal, o racismo e tutti quanti. O que não quer dizer que os filmes não devam se interessar pelo bem e pelo mal, pelo racismo, etc. Então, Chabrol dizia basicamente: é preciso pegar os pequenos temas que parecem não valer nada e fazer grandes filmes, é melhor que pegar os grandes temas e fazer filmes pequenos!... Mas para voltar à pergunta que você me fez: no começo de um filme, existe, mesmo assim, o sentimento... - dizemos... - enfim, no que me concerne... Bom, tomemos um exemplo preciso: eu hesitei dois ou três anos antes de me lançar nessa história da Intrigante, porque eu sabia que um filme sobre a ideia de obra-prima - o que é um gênio da pintura, ou não, todas essas questões que estão no texto de Balzac, mesmo se depois, contamos uma história totalmente outra guardando só os personagens e o quadro -, que, justamente, essa história que Balzac contava, não se pode mais recontá-la, enfim, eu era incapaz de recontá-la. Mas eu tinha vontade, a partir dela, de contar uma outra que era, na verdade, a da relação do diretor com o modelo, no sentido bressoniano. Ao mesmo tempo, muito cedo, com Pascal [Bonitzer] e Christine [Laurent], nos dissemos que não iríamos, de nenhuma forma, trapacear nessa questão, e que iríamos, francamente, frontalmente, de forma deliberada e mesmo caricaturalmente, tomá-la como matéria, que nas conversas seria uma questão de verdade na pintura, de verdade da pintura, o que é um quadro... enfim, esse gênero de questões que estão no ar desde Cézanne, e antes de Cézanne porque já está subentendido em Balzac... Bom, todas essas questões eram, mesmo assim, questões fortes que não queríamos elidir, queríamos encarar de frente, sem trapacear, mesmo se o verdadeiro tema do filme não fosse esse. Era esse jogo entre dois níveis que, de uma certa forma, era divertido e tentador... Não tínhamos vontade de trapacear com o tema, mesmo se, ao mesmo tempo, havia um outro. De certa forma, a Intrigante é a relação entre o verdadeiro tema e do falso tema.

Eu diria uma outra coisa sobre a especificidade do cinema: nos filmes muito belos, existe sempre uma relação entre alguma coisa totalmente e absolutamente infantil, que é às vezes da ordem do conto de fadas, nos vossos filmes é o lado "Clube dos cinco"...

O bando das quatro, no qual, realmente, elas são cinco!...

... e alguma coisa totalmente pensada, reflexiva e filosófica, que está em tudo isso que você acabou de enunciar: a relação entre o segredo, a lei, etc.

Mas isso são coisas que não se diz, que eu tento dizer hoje mais ou menos de forma desajeitada, e com a ajuda, justamente, do senhor Legendre, do senhor Lacan, do senhor Spinoza e de muitos outros que eu li mais ou menos bem e que eu repito mais ou menos de maneira ingênua. Mas se, por acaso, eu tento ainda fazer um filme, eu espero muito, neste momento, não pensar nisso nem por um segundo. Isso é uma das coisas que tem muito no cinema: quando se filma, existem tantas coisas, questões, pequenos problemas, que se tem que resolver na medida do que é a filmagem propriamente dita, na qual se passa, ainda assim, o essencial, na qual tudo está em jogo... Se é mal filmado, depois pode-se fazer tudo o que quiser, isso nunca será bem montado. É isso que faz talvez a grande vantagem dos cineastas em relação aos pintores, aos escritores, que se encontram sozinhos diante da sua tela ou diante de sua folha mais ou menos bem escurecida, ou diante de sua tela não muito falante: felizmente, no cinema, no momento mais decisivo, não se tem muito tempo para pensar nas grandes questões, nos grandes problemas, de tanto que há coisas totalmente concretas para resolver o tempo todo. Precisei de três filmes para compreender isso: o que existe de bom numa filmagem é que só existem problemas práticos; os problemas estéticos estão antes ou depois, não estão durante. Eu vou citar mais uma vez Paulhan, um texto que se chama "Até amanhã a poesia"! E é assim que há, às vezes, no fim das contas, poemas muito belos, porque o poeta fez o seu trabalho, quase puramente mecânico, mas evidentemente com suas conquistas, dez anos de ensaios ou de esboços, e depois um dia funciona, bruscamente a poesia está lá! Por quê? Como? É o milagre que vem à custa do trabalho.




E daquilo que se pode chamar também de método.

Sim, claro, de trabalho crítico. A crítica está antes ou depois, não durante; mais uma vez essa é uma das vantagens da mise en scène: durante, verdadeiramente, não se tem tempo para pensar nisso; eventualmente, à noite, quando deitamos, mas como estamos cansados, adormecemos.

Mas, ao mesmo tempo, durante a filmagem existe uma invenção permanente.

Mas são os outros que inventam, se a coisa vai bem. São os atores que bruscamente tem muitas ideias, é o diretor de fotografia que diz: "Olha, se no lugar de pôr a câmera lá, puséssemos lá." Dizemos: "Claro, é realmente lá que devemos pôr a câmera, vai ser muito melhor..." Nos bons momentos, que são aqueles que contam, só resta escolher, fazer a triagem: "Olha, Sandrine tem uma ideia e Jerzy tem uma outra, mas se levarmos isso de tal forma, isso vai se encontrar, porque, profundamente, eles estão de acordo..."

Eu falo de método, no sentido em que Hawks narra suas filmagens, por exemplo.

Pessoalmente, eu confio muito pouco nas anedotas contadas pelos cineastas americanos, que em nove a cada dez, são grandes mentirosos. Hitchcock, com François, ele não mente, porque ali ele sabe que está diante de um cineasta e ele presta atenção, mas na maior parte do tempo eles dizem qualquer coisa! Mas, me desculpe, qual era a história de Hawks?

Ele inseria a filmagem na própria história: no set de Paraíso infernal, como Rita Hayworth não conseguia dar a sua réplica, a questão da cena passou a ser que ela não conseguia...

Isso é muito possível. Todo mundo fez isso, Renoir o fez, e todos os diretores que sabem que os atores não são máquinas, e que é preciso os tomar como eles são, porque é hoje e não amanhã que essa sequência deve ser filmada... Eu acredito que o que diferencia um verdadeiro diretor de um falso, neste momento, é que com seu sentimento de que o ator é justo ou não é justo (como na música, pode-se se enganar, mas é com esse sentimento que se trabalha), logo, com esse sentimento, percebe-se que um está na nota justa e o outro está um pouco deslocado, nesse momento, tenta-se fazer com que ele também encontre e dê essa nota justa ou pelo contrário, vamos jogar com o deslocamento? Às vezes a resposta é sim, às vezes ela é não, isso depende da cena, da relação dos atores entre eles, às vezes é mais interessante que a réplica seja modificada, às vezes, pelo contrário, que ela seja dita tal qual, mesmo se ela soe de forma um pouco bizarra...

Segundo o sentido que isso assume em relação à ideia geral do que é justo ou não...

Em relação a todo o resto, em relação a esse contexto que não se tem de forma consciente na sua cabeça, não se tem sob a forma de uma grade à qual é preciso se referir: ah sim, plano n° 477 b!... Eu nunca fiz plano n° 477 b! Tem-se no seu corpo, porque a cada filme temos um corpo diferente, e isso é o que se descobre no primeiro dia de cada filmagem. No primeiro dia de filmagem de Defesa secreta, era evidente que Sandrine, desde o início, estava diferente: conversamos sobre o personagem de Sylvie sabendo muito bem que não seria em nada a mesma personagem que Joana, a virgem, é mesmo o ponto de partida do projeto, ela mesma pensou nisso durante muitas semanas ou muitos meses, logo, é uma outra Sandrine. Eu sou necessariamente um Rivette diferente daquele que, no primeiro dia de filmagem de Joana, pedia à Sandrine para vir do fundo galopando em direção à câmera... Não é isso o que responde à pergunta do filme, que é verdadeiramente um filme ou não!

Eu acho que essa questão do corpo diferente que você fala, ela tem a ver...

Sim, sim, talvez, se se teve sucesso (e isso faz parte do trabalho muito inconsciente do diretor sobre ele mesmo) em ter em si, durante as seis, sete, oito semanas de uma filmagem, alguma coisa que faz com que, sem mesmo refletir, se diga "sim, não, não, sim", como François o mostra muito bem em A noite americana, a sequência em que o diretor diz quase maquinalmente às pessoas que o abordam quando ele vai voltar para sua filmagem: "Esse sim, vermelho", e a um outro: "Não, não tão volumoso..." Se é preciso refletir a cada vez, não se chegará nunca, não se poderá dizer "câmera" - eu não o digo, eu prefiro que seja a primeira assistente que diga "câmera", eu digo apenas aos atores para ir, de uma forma ou de outra, eu digo o nome deles, na maior parte do tempo; por outro lado, eu digo "corta", ou às vezes eu não digo, eu deixo rodar...

Paris, 6 de janeiro de 1999

[1]Aqui, o próprio movimento da conversa fez com que essa noção de "lei" do filme permanecesse na indefinição artística das generalidades: tentemos, alguns meses mais tarde, ser um pouco mais precisos.

Eu acredito que essa relação do filme com a lei pode ter, pelo menos, duas faces: a primeira, e a mais evidente, do lado do que chamaremos de assunto (ou o tema, a história: o "fundo", no termo dos velhos debates). É, por exemplo, uma das causas mais evidentes da grandeza do cinema americano clássico, no qual essa ligação do indivíduo com a Lei é o motivo primordial - e não apenas no faroeste ou no filme de gângster (que nunca tiveram outro assunto), mas também na comédia: basta ver o que separa radicalmente os "americanos" (Capra, Hawks, McCarey) dos "europeus" (Lubitsch ou Wylder). Tentemos resumir: de uma forma ou de outra, existe uma força exterior a qual se é obrigado a enfrentar, a resistir, a tentar vencer; ou ainda um quadro rígido e restritivo, e que será percebido pelo "herói", certo ou errado, como independente da sua vontade, e, às vezes, mesmo do seu saber.

E a segunda face, do lado do que se convencionou chamar de mise en scène (a "forma" dos antigos mestres): que, muito visivelmente, é um sistema claramente determinado e assumido de todos os parâmetros formais: decupagem, enquadramento, montagem, organização dos fenômenos sonoros, "coreografia" dos atores e da câmera, etc. Há, desde o primeiro plano, na tela, a execução de uma "regra do jogo", ao mesmo tempo enunciada e respeitada - e na qual todas as diferenças, desvios, inflexões adquirem força e sentido.

E claro, todos os grandes filmes são aqueles que sabem impor uma dialética forte dessas duas ligações com a lei: Fritz Lang essencialmente, mas também, com todas as variantes imagináveis dessa dialética (cuja história seria a verdadeira história do cinema), de Ford a Mizoguchi, de Dreyer a Renoir, de Murnau a Rossellini, digamos todos os grandes cineastas.

[2]Eis o que acontece de tanto abrir parênteses: a frase fica no ar, em suspenso se ouso dizer, e hoje eu esqueci como eu esperava concluí-la. É verdade que um pouco mais tarde, na sequência da nossa conversa, essa velha serpente do mar ainda faz uma ou duas aparições - sem ser melhor identificada: vamos deixá-la na sua neblina.

[3]Esse é o momento fatal em que, depois de muitos desvios e interrogações, nos encontramos diante do que poderíamos, ou deveríamos, pressentir depois um bom tempo: talvez seja preciso às vezes, mais ou menos ingenuamente, reinventar por conta própria os velhos clichês da reflexão filmográfica. No entanto: o processo analítico, a sessão cinematográfica são sem dúvida mais, e outra coisa, que a fácil metáfora de uma ou de outra; tanto seus nascimentos quase paralelos quanto todos os modos de transferência ou de catarse em jogo, sim, tudo isso foi muitas vezes comentado. Mas aqui está: ser tomado entre a lei e o segredo, é parte integrante de nossa identidade, e o cinematógrafo também.

As duas partes do Dialogue avec Jacques Rivette foram originalmente publicadas na revista La Lettre du Cinéma n° 10 e 11, verão e outono de 1999. Tradução: Miguel Haoni.