O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Quatro estrelas e uma única flor




Por Benjamin Esdraffo

Há alguns anos, a rubrica “Cultura do abacaxi” de Bayon pregou no Libération o mais belo filme de Wes Anderson, Três é demais. Há algumas semanas, o crítico rock atacou o último e suntuoso filme de James L. Brooks, Espanglês. Que Bayon evoque o tédio que ele sentiu vendo o filme é, no fim das contas, questão de subjetividade. Mas que ele evoque ainda a “mediocridade crassa das situações” (seria interessante se ele fizesse uma lista de situações suficientemente nobres para ter direito à cidadania num filme), a dimensão “melodrama” da história (de que melodrama estamos falando? Ou ele queria simplesmente dizer “sentimental”?), seu “toque aculturado constrangedor” (como se Brooks não tivesse nenhuma distância crítica em relação ao que filmava), a classe social na qual evoluem os personagens – de onde podemos dizer que o crítico não deve gostar muito de Rohmer...

Mas Bayon não está sozinho, tudo está em sintonia. “Comédia sentimental boba e aterradora. (...) À guisa de comédia refrescante, encontramos, em vez disso, uma obra refrigerante e com um forte cheiro moralista.” Aqui, foi, visivelmente, a seriedade do empreendimento que constrangeu Marie-Pauline Mollaret (Cinéastes), que teria feito melhor se tivesse ido tomar um banho sob os coqueiros para acalmar os seus ardores cinéfilos. “Tela utilizada mil vezes por Hollywood (...). Nada de muito original nessa comédia otimista que defende a mistura de culturas, a fraternidade e a gentileza. (...) Amaríamos um pouco de fel, um pouco de pimenta, um pouco de rock’n’roll nesse mundo tão simpático.” E amaríamos, da nossa parte, que o inefável François Forestier (TéléCinéObs) citasse os mil filmes hollywoodianos (tantos filmes ruins, de qualquer forma) que recorrem à tal tela, ou que ele especificasse onde o filme defende a mistura das culturas... Eu bebo um copo d’água.

É preciso dizer que Espanglês foi vendido como um filme sobre o “choque das culturas”: há razões para estar desapontado (mas no bom sentido). Não se pode dizer que o realizador opõe a cultura mexicana à cultura americana porque da cultura mexicana não vemos nada, a não ser ao longo de um prólogo absolutamente estilizado, mais tarde, de uma cena de festa. O filme não joga a carta de um terceiro-mundismo sempre mais glorioso do que seriam nossas sociedades ocidentais, assim como não milita a favor de uma espécie de melting-pot salvador. A abordagem de Brooks é muito mais modesta e laboratorial que isso. Pois Flor, a moça contratada na casa dos Clasky, não seria nada mais que um corpo estranho, no sentido químico, um agente neutro mergulhado numa família rica da Califórnia para revelar, ao mesmo tempo, os defeitos, o cotidiano, a verdade? Sua “mexicanidade” é afinal pouco significativa: Flor poderia ser de qualquer nacionalidade (menos americana), isso não mudaria muita coisa.

Mergulhar um corpo estranho numa micro-sociedade pré-existente para ressaltar seus códigos, ritos, leis, é, assim, o princípio motor desse filme culturalmente unilateral. Os micro-episódios vêm em seguida se anexar, tendo a vocação de tornar a experiência (abstrata no papel) viva, “fazendo” o filme: Deborah, a mãe, tem uma queda por Cristina, a filha de Flor, antes de entrar numa relação adúltera à guisa de fuga; John, o pai, se inquieta com o sucesso crescente do seu restaurante antes de se apaixonar pela empregada; Flor tenta fazer seu trabalho da melhor forma ao mesmo tempo em que guarda suas distâncias em relação a essa família que a vampiriza e depois decide aprender inglês; Berenice, a filha, visa crescer evitando os golpes pérfidos e irreprimíveis de sua mãe; Georgie é ainda jovem demais para ter direito a um capítulo; Cristina, a filha de Flor, experimenta as miragens sedutoras de uma facilidade social nunca experimentada até então; a avó tenta reconciliar todo o seu pequeno mundo.

Durante a primeira visita de Flor na casa dos Clasky, a moça está acompanhada de uma amiga que veio para lhe servir de intérprete. Enquanto elas avançam no salão para chegar ao jardim, a amiga de Flor é subitamente cortada no seu impulso por uma grande porta-janela que tornou-se invisível de tão limpa. À semelhança de Melhor é impossível, o filme anterior de Brooks, Espanglês trabalha muito a ideia dessa fronteira entre os seres, fronteiras no sentido próprio ou figurado, fronteiras visíveis ou invisíveis. No lugar da fronteira, a presença de um intermediário é, às vezes, necessária às diferentes trocas, como na cena extraordinária da briga entre John e Flor traduzida ao vivo por Cristina. Essa figura inversa, a da circulação, aqui também pode ser visível (a bola do cachorro, o dinheiro, a filha de uma mãe para outra) ou invisível (os sentimentos, as relações humanas). Todas as apostas do filme parecem assim dobradas, ou mantidas, por uma estrutura abstrata que é, na verdade, a ossatura dessa comédia.




O filme respira de maneira incrível. A história se desenrola num ritmo que, sem ser preguiçoso, toma o tempo de conceder a cada um dos personagens um espaço vital justo e sensível, ao mesmo tempo em que dá o sentimento de que tudo se passa no presente, de maneira surpreendentemente horizontal. Esse presente apenas infletido pelo fato de que essa historia é na verdade um longo flashback contado por Cristina alguns anos mais tarde é, além disso, muito curioso. Ele não carrega nenhuma forma de mais-valia romanesca, tampouco dá lugar a uma apreciação enfática do tempo que passa (sem falar do fato de que Cristina relata as cenas entre sua mãe e John a que ela não assistiu). É que James L. Brooks aposta tudo no presente: presente dos atores absolutamente fundidos aos seus personagens (por trás dos quais eles se apagam, com a suavidade que isso eventualmente implica), presente de uma mise en scène invisível, prodigiosamente flexível.

Mas não respondemos à pergunta: qual é o tema de Espanglês? Se ele não trata do choque das culturas, do que ele poderia falar? É difícil dizer, pois há visivelmente uma série de temas em Espanglês. O filme fala da integração (de uma estrangeira num país de destino, de um elemento estranho numa família que não é a sua), evoca as relações familiares sob muitos ângulos (mãe-filha, pai-filha, marido-mulher, genro-sogra, avó-netos)... Mas ele não trataria, sobretudo, das relações entre uma empregada e seus patrões, e da crueldade social (ver o plano da filha olhando sua mãe fazendo a limpeza na nova residência secundária na praia)? Se tivesse um “grande tema” em Espanglês, sem dúvida não seria o do “choque das culturas”, mas o do “choque das classes”. Espanglês poderia ter sido um tema para o Jean-Claude Guiguet das Boas maneiras: Flor é pobre e à serviço de uma família que a vampiriza. É sob esse ângulo que James L. Brooks vai poder entregar uma certa visão da América.

O olhar que Brooks lança sobre a América navega entre a sátira e a benevolência – essa benevolência alternadamente divertida, irônica ou cruel, que é a do moralista. Sua critica à América não é, em nenhum momento, um questionamento dos seus fundamentos. Sente-se a ternura do cineasta por essa vida americana fatalmente provinciana, seus habitantes relativamente feios, gordos, alcóolatras. Se ele a critica, é como se critica qualquer coisa da qual gostamos, por consideração a ela. Mesmo a personagem da mãe, Deborah, encarna o mal sendo, ao mesmo tempo, o produto de uma sociedade americana voltada sobre ela mesma, impregnada de má consciência, histérica e maldosa sem querer, não revela nenhuma mesquinharia no seu tratamento. É mesmo um milagre de escritura não sentirmos a personagem como “sobrecarregada” – Deborah, na verdade, evolui no meio de seres, na maior parte, gentis. A composição de Tea Leoni tem tudo a ver com isso.

Espanglês efetua muito mais a observação que a utopia, a ideologia ou um gênero marcado. E chegamos a uma outra questão essencial do filme. Na sua proposição ficcional, o filme poderia muito bem seguir a mesma linha de Imitação da vida de Douglas Sirk: uma mulher e sua empregada, duas meninas, uma branca, a outra de cor, com a questão da integração, da mãe estrangeira renegada etc. Brooks faz escolhas totalmente diferentes. Hoje em dia, associa-se à ideia de melodrama a ideia de um necessário “excesso”. Sem dúvida, o problema de Espanglês é que ele não demonstra nenhum radicalismo. Para “salvar” um melodrama hoje, é preciso poder lhe aplicar esse tão batido epíteto desde o seu primeiro emprego a propósito de Sirk, o de “flamboyant” (flamejante, extravagante). É por ser flamboyant, excessivo, formalista que hoje se perdoa um filme por ser um melodrama. É certo que Espanglês não é um melodrama flamboyant, com seus falsos ares de telefilme ou de sitcom, sua reviravolta decididamente cotidiana e ingrata. Há alguns anos, Longe do paraíso, de Todd Haynes, encantou a crítica por suas referências diretas ao universo de Sirk, tendo por valor agregado todo o trabalho de colorista – aliás muito bom – posto a serviço do filme. É preciso portanto admitir que na sua tentativa de esposar a época, em toda a sua feiúra, James L. Brooks dá provas de uma audácia muito maior que a do seu jovem colega. Espanglês seria então um melodrama, não flamboyant, mas ingrato? A época e o cinema teriam os melodramas que merecem?

O problema é que, se ele flerta com uma situação melodramática sempre possível, Espanglês parece fazer tudo para se afastar e escolher deliberadamente uma outra via. Não apenas o drama da filha pronta a renegar sua mãe é finalmente resolvido, mas a história de amor entre John e Flor não é tornada impossível em função de nenhum fator externo. Diríamos inclusive que Brooks se deleita em fazer tudo para tornar essa história objetivamente possível: John, o esposo fiel, sem dúvida não foi com Flor, que imaginamos católica, mas ele acabou de saber que sua mulher o traía há muitos meses com um corretor imobiliário. É evidentemente inacreditável – talvez também inacreditavelmente misterioso – escrever hoje um fim parecido: enquanto tudo empurra John e Flor um nos braços do outro, eles decidem se separar mesmo assim. Eu não tenho a solução do enigma, e a solução “moralizante” parece redutora demais para ser satisfatória. Recusando o que alguns teriam condenado como um “happy end”, esse fim é talvez um ataque a mais contra a América tal qual o filme a representa. Ele significa sem dúvida o medo de Flor de se deixar contaminar um pouco mais pela loucura dessa família. Pela sua semelhança com um telefilme bem-sucedido, Espanglês quase chegaria a nos fazer acreditar que existe ainda uma língua comum do cinema. Que os críticos unânimes depreciem essa comédia da linguagem, da família e das classes sociais vistas sob um ângulo muitas vezes cruel, pouco melhorada por uma história de amor contrariada, como “mais um sentimentalismo forçado” é deprimente no que concerne o gosto do dia em matéria de cinema mas quase nos restauraria a confiança (se isso não confinasse ao cinismo) no peso da crítica sobre o público de hoje: na terceira semana, o filme só estava passando em três cidades. Essas três cidades, precisamos citá-las para terminar, tanto o exotismo de sua enumeração coincide com o tom dos filmes de James L. Brooks ou de Wes Anderson: Luxeil-les-Bains, Saint-Sulpice e Monte-Carlo.

Quatre étoiles et une seule fleur foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n°30, maio/junho/julho de 2005. Tradução: Miguel Haoni.

The Post – A Guerra Secreta, vazamentos de luxo


Por Marcos Uzal

Relatando a revelação dos documentos secretos sobre a guerra do Vietnã em 1971, Steven Spielberg torna heroico, em um filme de tirar o fôlego, o contrapoder jornalístico e o surgimento dos primeiros denunciantes.

Em retrospecto, constatamos que a segunda parte de Tubarão – em que, por cinquenta minutos, três homens confinados em um barco conversam enquanto esperam um tubarão – anunciava uma veia do cinema de Spielberg, na qual aquele que foi considerado como o paladino do grande espetáculo adolescente parece ter encontrado uma forma de maturidade nos últimos filmes (Lincoln, Ponte dos Espiões): o “filme de câmara”, principalmente filmado em internas, onde as confrontações são antes de tudo verbais e as aventuras são os caminhos morais que levam a decisões.

The Post – A Guerra Secreta leva essa tendência muito longe, chegando a criar um suspense de tirar o fôlego unicamente com discussões, reuniões e ligações telefônicas. Como em quase todos os filmes de Spielberg, tudo gira em torno de um objeto fascinante, obsessivo, mas aqui a aparição extraordinária, o tesouro, o milagre não é senão um documento fotocopiado de 7000 páginas – um relatório secreto do departamento de Defesa dos Estados Unidos detalhando as tomadas de decisão do governo americano durante a guerra do Vietnã, revelando principalmente que o envio de tropas foi decidido antes do engajamento oficial, e depois prolongado para evitar a humilhação, visto que a derrota era desde muito tempo previsível. O filme segue precisamente a trajetória do documento, de seu furto por Daniel Ellsberg em um cofre da Rand Corporation à sua transcrição pelos jornalistas, passando pela sua paciente fotocopiagem e sua circulação em diversas caixas, sempre abertas com uma fascinação infantil por seus destinatários.

Escolhas, riscos e negociações

Mas essas gavetas que se abrem e essas tampas que se levantam são apenas as premissas da atualização definitiva, onde o segredo de Estado poderá dobrar o curso da história tornando-se público nas colunas de dois jornais concorrentes, o New York Times e depois o Washington Post em 1971. A aposta do filme é, portanto, menos o percurso do famoso dossiê do que as diversas escolhas, riscos e negociações que vão permitir sua difusão nos jornais. O relatório desvela uma série de más decisões, e é por outro encadeamento de decisões que ele poderá ou não ser publicado. O essencial se dá aqui entre Benjamin Bradlee (Tom Hanks), redator-chefe do Washington Post, e Katharine Graham (Meryl Streep), proprietária do jornal. Esta última conseguirá superar todas as pressões externas – emanando do governo, dos financiadores do jornal, de seus conselheiros jurídicos – até dar seu aval para Bradlee?

Acontece justamente que Ellsberg, antes de furtar os “Papéis do Pentágono”, tinha se destacado pelos estudos sobre a "teoria da decisão", notadamente em um contexto econômico. Ele está, assim, na origem de uma descoberta chamada “paradoxo de Ellsberg”, demonstrando que quando duas escolhas se oferecem a nós, nós pendemos geralmente para aquela cuja lei de probabilidade é a mais conhecida. Em outras palavras: preferimos o risco, cujas consequências possíveis são conhecidas, à incerteza, cujo resultado é desconhecido. Mas aqui acrescenta-se um fator essencial: a ética. Para Katharine Graham, o dilema é trair algumas amizades (inclusa uma ligação próxima de longa data com Robert McNamara, secretário de Defesa de 1961 a 1968 e homem que encomendou o relatório secreto) e comprometer seu jornal para que rebente a verdade; ou seja, escolher arriscar ao máximo seus interesses pessoais em nome do interesse comum. Aí reencontramos a ética pragmática tão celebrada pelo cinema clássico americano (Ford, Hawks), onde a bravura política é menos o fruto de um pensamento, e menos ainda uma ideologia, do que um gesto justo ou uma boa decisão realizados no momento certo. E pela coragem de sua decisão, isto é, para além de sua classe social e suas conivências políticas, esta rica herdeira se verá reverenciada como um exemplo pelas hippies e feministas, com as quais ela tinha, a priori, bem pouco a ver.

Na contramão da época

Spielberg consegue, por uma mise en scène tão lúdica quanto precisa, compartilhar com o espectador a aposta de cada troca, a excitação de cada descoberta e decisão. Nesse didatismo eufórico, contracorrente ao pessimismo da época, reside também a dimensão política dessa ode ao contrapoder que representa o jornalismo quando praticado com independência e temeridade. O filme é notavelmente muito belo em sua maneira de descrever o nascimento intelectual e, sobretudo, material de um artigo, de sua primeira versão datilografada até o amanhecer, onde ele é depositado diante de uma banca, após ter passado pelas prensas e impressoras rotativas, - filmadas como fascinantes robôs pelo diretor de A.I -, sem esquecer o detalhe das tesouras que cortam a alça envolvendo o maço de jornais antes de estes serem colocados à venda.




Certamente não é anódino que este filme, que diz o quanto o jornalismo deve estar “a serviço dos governados e não dos governantes”, surja em um momento em que esta profissão e a ideia mesma de verdade são particularmente ameaçadas por um presidente americano que cultiva a arte das fake news para desacreditar toda forma de informação. Além disso, é saboroso que Steven Spielberg tenha escolhido não mostrar Richard Nixon senão de muito longe, através da abertura de uma janela da Casa Branca, como uma pequena silhueta irritada em um escritório obscuro, imagem derrisória do sujo segredo mal guardado, da arrogância do poder que uma simples escolha de ângulo da câmera basta para relativizar.

« Pentagon Papers », leaks de luxe foi publicado no jornal Libération em 23 de janeiro de 2018 («Pentagon Papers», leaks de luxe – Libération (liberation.fr)). Tradução : Luiz Fernando Coutinho.

The Post – A Guerra Secreta: Spielberg ancora a democracia sobre as impressoras rotativas



Por Murielle Joudet

Com o furo jornalístico do “Washington Post”, o realizador filma um ideal de transparência. É também um esplêndido retrato de mulher que evolui em um mundo de homens.

Na última década, Steven Spielberg deu início a uma viagem pela história do cinema americano. Esta começou com os muito fordianos Cavalo de Guerra (2011) e Lincoln (2012), continuou com Ponte dos Espiões (2015), filme de espionagem construído em torno de Tom Hanks. Com The Post – A Guerra Secreta, a viagem continua pelo gênero hollywoodiano do filme jornalístico, abordado em sua vertente clássica e populista (no sentido positivo do termo): de A Dama de Preto (1952), de Samuel Fuller, ao cinema de Frank Capra, filmar a imprensa consiste muitas vezes em dar corpo à ideia de democracia através das engrenagens de um de seus pilares.

Nunca adaptados para o cinema e precedendo o caso Watergate, os “Pentagon Papers” são o nome dado um dossiê de segredos de Estado publicado na virada dos anos 1970 pelo New York Times e depois pelo Washington Post, então pequeno jornal que sonhava em se tornar grande. Contendo trinta anos de mentiras do Estado e informações sobre o envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, sua divulgação acabará por deteriorar o apoio da opinião pública ao intervencionismo americano. Esta história, que o filme recentraliza sobre uma decisão a ser tomada – publicar ou não o furo de reportagem –, encontra a reorientação clássica do cineasta.

Impressoras rotativas em fúria, sala de imprensa em ebulição: Spielberg respeita literalmente os códigos do filme político-jornalístico e sua mise en scène deleita-se com a captura dessa agitação permanente. As numerosas reviravoltas que pontuam a narrativa são secundárias em relação a um movimento mais amplo, que é ao mesmo tempo o do ritmo febril da imprensa e o de uma mise en scène que mantém uma relação mimética com seu tema.

Cada movimento de câmera nos sugere que o ideal jornalístico é uma questão de velocidade que nada, nem mesmo um segredo de Estado, deve entravar. No cuidado com que Spielberg filma todas as etapas da concepção de um jornal, adivinhamos o que os grandes cineastas clássicos já captavam: esse movimento eufórico é o da democracia.

Esse episódio crucial da história da imprensa americana nos é contado, antes de tudo, através do itinerário da diretora do Post, Katherine Graham, impulsionada a encabeçar o jornal após a morte de seu pai e o suicídio de seu marido. Única mulher em um mundo de homens, Graham internalizou a suspeita de incompetência que se volta contra ela, nunca se deslocando sem sua horda de conselheiros que decidem em seu lugar. Enquanto o Post se prepara para uma oferta pública na Bolsa, a oportunidade de divulgar o conteúdo dos “Pentagon Papers” confronta-a com um dilema que pode custar a vida de seu jornal.

A virtuosa velocidade da democracia e o ideal de transparência se veem subitamente refreados, suspensos à decisão da diretora diante da escolha entre fazer valer a primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos e suas conexões com o mundo político. A partir desse momento, duas velocidades se confundirão graças a uma montagem paralela: esta, lenta, do modo de vida da diretora, cujos dias se sucedem ao ritmo dos jantares sociais e das reuniões com os investidores. A precisão da interpretação de Meryl Streep (que encontra aqui um de seus mais belos papéis desde muito tempo) chega a dar conta do menor movimento interior de sua personagem. Ao lado, o ritmo febril da redação encabeçada por Ben Bradlee (Tom Hanks), que, esperando a decisão de Graham, tem pouco tempo para organizar o conteúdo dos dossiês secretos.

Toda a força emocional de The Post – A Guerra Secreta consiste em fazer do filme jornalístico uma moldura para o esplêndido retrato de mulher que surge do plano de fundo. Unida a ela, a mise en scène de Spielberg dá a sensação de apoiá-la, de encorajá-la. Se o desenlace cristaliza-se em torno de uma decisão, The Post – A Guerra Secreta é também a história de uma montagem paralela que deve se desfazer para que o movimento de Kay se funda àquele do Post.

Para ela, contrair o vírus da imprensa é ser tomada em um movimento, como bem o demonstrava o frenesi de Jejum de Amor, de Howard Hawks. Mas, ao contrário deste filme, nenhum traço de romance em The Post - A Guerra Secreta. Na revista online Vulture, Liz Hannah, jovem roteirista de 32 anos que assina com Josh Singer o roteiro do filme, reconhece ter sido surpreendida por ver seu roteiro – “uma história de quinquagenários onde ninguém se beija” – levado à tela. O habitual caso amoroso hollywoodiano foi substituído por outro tipo de união maravilhosamente expressa em um dos últimos planos do filme: nas costas de uma Kay triunfante, a dança das impressoras rotativas retoma mais bela do que nunca, e parece figurar tanto o movimento de uma consciência individual quanto de um destino coletivo.

« Pentagon Papers » : Spielberg ancre la democracie sur les rotatives foi publicado no jornal Le Monde em 23 de janeiro de 2018 (« Pentagon Papers » : Spielberg ancre la démocratie sur les rotatives (lemonde.fr)). Tradução : Luiz Fernando Coutinho.

A mudança do olhar: Entrevista com T. Monassa

T. Monassa nos concedeu há mais de dois anos a entrevista que deveria abrir uma nova fase no blog Vestido sem Costura. Não calculávamos o quanto, de lá para cá, a vida, com suas exigências, seria implacável. Foram dois anos de gaveta, mas já havia uma longa história antes disso. Nosso primeiro contato (indireto) foi através da Contracampo, revista eletrônica que alimentou meus 15 anos de militância cineclubista. Depois, Monassa foi uma das primeiras pessoas a nos acolher, Leticia Weber Jarek e eu, quando mudamos de território. Sua entrevista foi a primeira a ser realizada, mas não a primeira publicada: Noël Herpe “furou a fila”, em abril de 2020, coroando o nosso dossiê Éric Rohmer. Chegou a hora, porém, de voltar ao princípio.

Monassa nos contou a sua história, e, com ela, uma história do cinema brasileiro recente, cheia de alegrias, tristezas e compreendida aqui como uma soma de filmes e ideias. Mais do que isso, nos entregou algo cada vez mais raro, e que – precisamos admitir - necessitamos cada vez mais: uma voz humana. Que fala do cinema por dentro e admite que filmes e vida estão num entrelaçamento permanente.

O que não sabíamos, na noite da nossa entrevista, é que nós mesmos passaríamos por várias das crises e transformações que foram descritas. Que experimentaríamos na pele, depois de uma intensa imersão em novas leituras e encontros, diversos dos estados aqui apresentados. Lendo e relendo a entrevista que agora publicamos constatamos que, na verdade, de lá para cá, o que mudou foi o nosso próprio olhar.

Boa leitura!

Miguel Haoni

Vestido sem costura: A gente te conheceu através da revista Contracampo, nos anos 2000. Como foi essa experiência?

T. Monassa: Na realidade eu tive uma revista antes, através da qual eu entrei para a Contracampo. Começou num movimento coletivo, dentro da UFF (Universidade Federal Fluminense): um dia recebo um telefonema de um colega, um pouco mais velho, que eu conheci por causa de uma disciplina em comum na universidade. Ele me falou: “estou tentando montar um projeto com alguns amigos, uma revista eletrônica de cinema, e a gente queria saber se você gostaria de participar.” Eu fiquei super feliz com o convite. Me pareceu inusitado, porque ele me conhecia pouco, mas, do pouco que conhecia, ele via que eu talvez tivesse uma afinidade com a escrita e gostasse disso. E eu falei: “claro, tô dentro!”. Era um grupo de oito pessoas no início. Isso foi no primeiro semestre de 2002, eu estava há mais ou menos um ano e meio na faculdade, a Contracampo já estava muito em vista e impulsionava as pessoas a quererem fazer coisas mais ou menos nesses moldes, usando a liberdade da internet. Nesse grupo de oito pessoas tinha o Luiz Carlos Oliveira Jr e também uma outra pessoa que já colaborava com a Contracampo, o Estevão Garcia. Fizemos várias reuniões e a ideia era que a revista fosse realmente coletiva, que não tivesse um editor, mas um coletivo editorial. As oito pessoas eram editoras e redatoras, e convidávamos outras para colaborar eventualmente. Demorou um ano para que conseguíssemos construir um site. Muita coisa foi produzida e não escondo que eu era, no que diz respeito à produção escrita, um dos motores. Fui a pessoa que mais escreveu.

Qual era o nome da revista?

Cinestesia. O grupo era muito heterogêneo, não tínhamos os mesmos interesses e gostos, nem o mesmo projeto de revista. Tinha uma diferença de idade em jogo também. Por exemplo, a Luciana Penna era bem mais velha que o resto e acabou se colocando à frente do projeto. Mesmo que tivéssemos uma igualdade de posição, era confuso. Também tinha uma vontade de profissionalismo muito exacerbada, que acho que atrapalhou a coisa de acontecer. Um ano para colocar o site no ar, muito bonito, e bem caro, mas pouco maleável: a gente dependia de uma webmaster para colocar os textos no ar, o que complicava demais.

Concretamente, comecei a escrever por volta de setembro de 2002, sob o impulso do Festival do Rio, e naquele momento eu me encontrei completamente nessa atividade, porque sempre gostei de escrever, sempre tive uma relação muito forte com a escrita. Praticar a escrita ao mesmo tempo em que praticava o meu olhar sobre os filmes representou para mim um encontro muito singular, que eu não esperava. Eu não tinha uma ideia da crítica, nem um conhecimento do que era, de fato, a crítica. Comecei com uma ideia de prática da escrita, quase sem pensar na prática da crítica enquanto posicionamento em relação aos filmes. Os meus primeiros textos eram meio poéticos, eu estava buscando mais uma expressão do que uma reação ou uma tomada de posição em relação ao estado do cinema.

Eram textos disparatados: lembro de um texto que eu escrevi sobre o Hulk (Ang Lee, 2003), filme que me marcou, e de textos sobre uns filmes japoneses completamente obscuros que passaram no Festival do Rio. Então, quando a revista entrou no ar, em agosto de 2003, tinha muito texto acumulado, publicados um ano depois de terem sido escritos e muito texto meu. Aí a revista foi se arrastando. Em um ano conseguimos colocar duas edições no ar, das quais eu participei. Os atritos começaram e eu falei: “não dá mais para continuar.” Eram atritos em parte pessoais, mas muitos eram profissionais também. Não funcionava também por causa da dinâmica do grupo que não era muito boa. Nisso o Jr. e o Estevão já tinham saído, já estávamos em seis quando a segunda edição entrou no ar. Eu saí e lembro de ter falado pro Jr. que queria ficar um tempo sem fazer nada, sem trabalhar na crítica e sem voltar a escrever. Precisava de um tempo, para ver o que eu queria fazer com isso. Nessa época eu já frequentava as pessoas da Contracampo, e eles achavam que eu tinha muito a ver com a revista. Numa dessas estávamos reunidos, tomando cerveja em São Paulo, e o Jr. não se segurou e fez uma brincadeira, falando para o Ruy Gardnier e para o Eduardo Valente, que meu passe estava livre. Eles me convidaram para começar a colaborar e foi muito rápido. Isso foi no final de 2004. Eu já tinha uma prática da escrita, já tinha engajado uma relação muito própria tanto com o que eu escrevia quanto com os filmes em cartaz.

Tinha uma certa imagem negativa da Contracampo dentro da universidade. Embora houvesse admiração, tinha também a idéia de que eles eram um clã, uma máfia, fechados neles mesmos, com uma certa misoginia no ar. Uma gangue de garotos, o que é uma coisa muito própria de certa cinefilia. A Contracampo tinha esse mal, era uma tentativa não completamente assumida, mas bastante clara e sincera, de emular a Cahiers du Cinéma em todas as suas fases misturadas. Tinha uma vontade de ser enfant terrible, de ir contra, de refazer a política dos autores no contemporâneo – o que a Cahiers também nunca deixou de fazer. E nesse contexto também acabaram surgindo piadas do tipo: eu e o Jr. éramos os “jovens turcos” porque éramos mais jovens que os outros e sempre prontos a ser radicais.

Eu entrei com o pé atrás, vendo as minhas diferenças e pensando: “não quero me integrar completamente”, pois sempre tive problemas com comportamentos de grupo. Mas não demorou muito para eu começar a funcionar na lógica da revista. Acho que perdi um tanto da individualidade que eu tinha na Cinestesia, na Contracampo. Mas isso também em função de outros fatores da vida. Para mim foi uma experiência muito boa, na qual eu aprendi muito e que, sobretudo, me ensinou muito sobre a dinâmica de grupo. Considerando, inclusive, as muitas besteiras que fizemos em relação a essa dinâmica, no que diz respeito a tomadas de posição públicas. A Contracampo tinha muita visibilidade. A Cinestesia tinha uma certa visibilidade, mas muito restrita ao Rio de Janeiro e à comunidade em torno da UFF. A tomada de posição pública, a reflexão política, essa experiência eu vivi na Contracampo, e acho que a vivi bastante bem. Das pessoas reconhecerem, saberem quem você é, dizerem: “li seu texto”. Isso é muito formador e está para mim no centro da crítica: ter minimamente essa exposição pública. Acho que a crítica sem isso não se completa.

Falaste que na Cinestesia tinha uma distância de gostos e interesses. Quais eram os seus gostos e interesses naquele momento?

Não sei bem, porque esse momento era de descoberta. Talvez fosse mais uma questão de prioridade. Tinham as pessoas que tentavam liderar, que queriam fazer uma revista a meio caminho. Elas não queriam uma revista de crítica, mas uma revista sobre cinema que não fosse completamente universitária. Elas não tinham nenhuma afinidade com a postura crítica. Elas queriam textos com uma boa dose de reflexão, próximos do universo acadêmico, mas que não fossem tacanhos. O lugar da Cinestesia era esse – e eu, mesmo tendo entrado sem saber o que era crítica, sabia que aquilo não me correspondia. Eu entrei com a ideia da liberdade de escrita. Me lembro de uma discussão bastante besta que tivemos numa reunião, que para mim dizia muita coisa: “temos que colocar o nome dos atores entre parênteses quando citamos um personagem no meio de um texto”. Uma diretriz para todos os textos, como forma de uniformização. E eu falei “eu não vou fazer isso porque vai quebrar o ritmo do meu texto. Para o que eu quero expressar isso não tem razão de ser. Se você pode colocar uma ficha técnica com os nomes de todos os atores, por que eu vou quebrar a estética do meu texto colocando informação entre parênteses?” E a discussão durou um tempo e ficou num impasse. Tudo bem que tinha um idealismo jovem na minha teimosia, mas, para mim, era assim porque eu estava com outro projeto. Meus textos eram também muito passionais e eu não tinha interesse na argumentação com referências, na informação. Era um momento forte de descoberta da cinefilia, da relação que eu podia desenvolver com um filme e com a escrita, e como essas coisas podiam se entrecruzar. O que me interessava era como o texto podia ser o testemunho dessas duas coisas juntas. Embora dissessem que não queriam ser tacanhos, para mim eles estavam justamente sendo tacanhos, inclusive na hiperprofissionalização, no engessamento.

E na Contracampo, conseguiste definir um campo que te atraia?

Eu já tinha bem de longe um interesse marcado pelo cinema asiático e encontrei um eco disso na Contracampo. Era também um reflexo do momento na cinematografia mundial, nada muito original, mas isso encontrou em mim uma sensibilidade particular. Desde criança eu desenvolvi uma ligação particular com a cultura japonesa. Entrando na Contracampo, eu tive uma pequena contribuição na primeira edição que “presenciei”, mas a primeira grande pauta da qual eu realmente participei era sobre o Chang Cheh, que era meio “revolucionária” como proposta. Era uma pauta que o Ruy queria fazer há muito tempo e eu lembro que entrei de cabeça. Para mim era uma descoberta, porque eu realmente não conhecia os filmes de sabre de Hong Kong. E nós tentávamos fazer sessões coletivas de filmes, embora não desse muito certo,. Lembro de ter ido até a casa do Ruy e de termos visto alguns filmes juntos, o que já permitia delinear linhas de reflexão, ideias de artigo. Cada um fazia um artigo sobre um ponto específico. Lembro desse primeiro grande texto que eu escrevi, em que fazia uma decupagem, uma análise imagem por imagem, da sequência de um filme do Chang Cheh. Ali eu senti que estava experimentando uma coisa nova, que me excitava muito e que também estava ligada a uma expressão coletiva, porque não fui eu que tive, do nada, a ideia de fazer isso. Era uma ideia que o Ruy tinha na cabeça: “acho que a gente pode começar a fazer isso...” E eu embarquei completamente porque esse tipo de análise de imagem me interessava antes, mas eu nunca tinha pensado em fazer num texto, para publicar.




No fim das contas, acho que é uma questão de formato de texto. Os formatos que a Contracampo propunha me interessavam e tinha o encontro entre o formato dos textos e o trabalho prospectivo... Não era a descoberta de nada novo, era um estudo. Eram cineastas antigos. Volta e meia nós tínhamos pautas que não eram sobre cineastas comtemporâneos, mas que faziam com que o coletivo se debruçasse sobre uma obra, visse muitos filmes e discutisse junto. E a Contracampo viveu muito por causa dessa dinâmica coletiva. Nunca foi um conjunto de pessoas, cada uma enviando um texto e um cabeça publicando. Na verdade, a Contracampo só fazia sentido porque era uma dinâmica coletiva, porque nos encontrávamos para uma reunião semanal no bar. Às vezes nem falávamos da revista, mas em milhões de outras coisas ligadas ao cinema. Foi a descoberta de uma relação com o cinema baseada na troca. Se fosse resumir minha experiência na Contracampo, seria isso. Sentir que aquilo existe de fato porque tem um eco no corpo social. Você não está escrevendo só para os seus amigos. A dimensão íntima, interna da revista e a dimensão pública são os dois traços que poderiam definir o que era escrever na Contracampo. Depois tem a questão do que a gente produziu como pensamento. Hoje, com a distância, posso dizer isso sem ter muito o pé atrás: o que sobressai, para mim, é essa tentativa de emulação da Cahiers, que é muito forte, muito definidor. E isso me incomoda um pouco. Mas eu não tinha consciência plena disso na época, acho que ninguém tinha. Talvez o Ruy tivesse... É verdade que modelos fazem parte do momento de formação, só que o modelo ali estava um pouco distante da nossa conjuntura – e talvez não fosse o melhor mesmo. Mas acho que funcionou, em relação ao vácuo que tinha no Brasil desse tipo de reflexão. A relação que a Contracampo travou com o cinema brasileiro também era suficientemente original, e era uma parte da identidade da revista, mas da qual eu pouco participei. Era não só, por exemplo, em relação à amizade com o Carlão Reichembach, mas escrever sobre o Rogério Sganzerla, entrevistá-lo, etc.

Acho que é no diálogo com o cinema brasileiro que a herança da Contracampo no Brasil ficou mais sensível. Pois parece que em algum momento houve um cinema, assim como o francês da Cahiers du Cinéma, um cinema que...

É o efeito Novíssimo, né?

Exatamente. Acompanhaste um pouquinho disso?

Sim, eu vivi um pouco disso. Mas engraçado, no meu ponto de vista não é a mesma relação. Para mim, a emergência do Novíssimo, na relação que pode entreter com a Contracampo, não tem ligação direta com a relação que a Contracampo tinha com o cinema brasileiro. Tem talvez uma ligação com o gosto pelo cinema mundial (especialmente pelo cinema asiático contemporâneo) que a Contracampo comunicou. Eu escrevi um texto sobre isso na Filme Cultura, que se chama “Ressaca da onda asiática em solo nacional”. Nele eu tento, muito timidamente, circunscrever o que eu sinto. Eu acho que tinha alguma valorização de um certo cinema asiático, mais do que de um World Cinema, Lucrecia Martel, etc. Acho que isso veio pela Contracampo, a valorização do cinema asiático naquela época, e teve efeitos estéticos no Novíssimo. Hoje vejo que essa valorização também era inspirada na Cahiers daquele momento. O cinema brasileiro que a Contracampo defendeu era ou o cinema passado ou o cinema dos velhos no presente, do Eduardo Coutinho, do Sganzerla, do próprio Carlão, do Ozualdo Candeias... não estava ligado ao que estava acontecendo, muito pelo contrário. Na verdade, quando a gente publica o Cinema brasileiro 1995-2005: Ensaios Sobre uma Década, a posição da Contracampo em relação à Retomada é muito crítica, muito virulenta. Salvava-se o Karim Aïnouz, que não é na verdade um dos cineastas da Retomada. Acho que era o único cineasta que a Contracampo defendia de fato, dos que surgiram naquele momento, e o Novíssimo é um fenômeno que aparece em seguida. Então, para mim, as duas coisas não estão ligadas diretamente.

Sim, mas tem um efeito duplo: de um lado vocês atacam a máquina decadente do cinema da Retomada (e nisso tem, por exemplo, o texto do Jr, “A Publicidade Venceu”, que vai direto ao ponto nas duas figuras de proa naquele momento, o Walter Salles e o Fernando Meirelles) e do outro, a valorização do cinema asiático... O Novíssimo, para mim, é o produto desse contexto.

Sim, isso eu concordo. Teve a Mostra de Cinema de Tiradentes de 2010, que eu fui cobrir, e escrevi alguns textos que também tiveram repercussão. Lembro que o Ruy tinha adorado na época. Hoje eu tomei certa distância em relação a isso, eu escrevi com uma virulência desmedida sobre o filme do Affonso Uchoa ...

… o Novíssimo, quando ele aparece?

É, foi uma reação. O texto do Jr. e essa minha cobertura foram as grandes bombas que a gente lançou. Eu aderi muito a isso naquele momento. Depois fiquei pensando, não sei se foi um acerto estratégico ou não... O fato é que era estratégico! Era a prática crítica na sua melhor forma estratégica. Muito menos passional, ali já não tinha nada a ver com o que eu tinha feito cinco, seis anos antes, porque eu assumi completamente a postura política. Para mim era muito mais um jogo político, criticar aqueles filmes com tudo. Isso teve repercussões. O Affonso me escreveu uma longuíssima carta dizendo que não entendia o texto, porque era um filme muito frágil...

Imagino o cara: "Estou entregando o cinema brasileiro que vocês queriam, vocês não falavam de cinema asiático? Não falavam de ir contra a máquina? Está aqui, estamos aqui! E agora?"

Eu acho que você tem razão. O interessante do texto que o Uchôa escreveu é que ele me contra-atacou justamente na questão estratégica. Para ele não fazia nenhum sentido a Contracampo atacar um zé-ninguém que estava tentando fazer alguma coisa: “Por que, estrategicamente, você não está defendendo o que estou fazendo? Você poderia me fazer críticas construtivas. Por que você está demolindo um filme que ninguém vai ver de todo modo? Por que você está matando esse cinema antes de nascer?” E eu acho, agora, que ele tinha razão, mas isso não mudava minha cólera do momento, porque eu passei duas horas do que pra mim era um desprazer. Era uma coisa muito passional, no fim das contas. E acho que isso vale para o Jr. também. “O cinema que eu amo, o cinema que me faz vibrar não é o que essas pessoas estão fazendo. E essas pessoas estão começando. Por que essas pessoas estão fazendo filmes? Você tem que ter uma razão muito boa para pegar uma câmera e fazer um filme, gastar tempo, energia, dinheiro. Por que você está fazendo isso? Isso não merece o meu tempo, não merece o tempo das pessoas.” Ao mesmo tempo que era essa cólera, essa coisa totalmente passional, não era uma questão de desvalorização do cinema brasileiro, mas de dizer: “vocês podem fazer coisas muito melhores!” Era uma vontade de que aquilo fosse muito mais. Era quase uma frustração por ter colocado um voto de confiança. Mas é verdade que, estrategicamente, eu cheguei em Tiradentes já com as armas na mão. Acho que a Contracampo tinha criado um ranço com o que Tiradentes se tornou.

Miguel: Pensando nesse contexto, a impressão que eu tenho é que a crítica venceu: veio um cinema que se contrapunha à Globo Filmes e à Retomada, mas os filmes ficaram piores. A crítica venceu, mas o resultado daquilo foi tão ou mais decepcionante.

Letícia: Eu não concordo completamente com isso, acho que tem uma distância da compreensão entre o que a crítica passa, o que as pessoas entendem e o que os cineastas fazem. Não é uma linha tão direta de causa e efeito.

Eu não sei se a crítica venceu. Também não sei o que seria uma vitória da crítica. Isso me faz pensar no texto de uma mesa-redonda, com o qual eu inclusive trabalho com os alunos no meu curso de crítica [na Paris 3], “Le point critique” (Cahiers du Cinéma, no 356, fevereiro de 1984), com Serge Toubiana, Serge Daney, Alain Bergala e Olivier Assayas, em que eles falam como a crítica venceu. Mas a crítica venceu para eles no início da década de 80, em relação a uma certa uniformização e a uma certa expansão do cinema de arte, do cinema de autor. E na ascensão dos festivais como lugar de excelência do cinema, digamos, artístico, não-comercial. Eles acham que a crítica venceu, que a política dos autores venceu nesse momento. Essa questão é também um discurso histórico, não sei se é formulado em algum momento, mas pareceu um momento chave no início da década de 80, em que eles acham que de fato “trabalhamos para isso e conseguimos com que isso se tornasse um estado, uma realidade. Só que a gente não necessariamente gosta dos filmes.” Uma coisa é você ter propiciado uma forma de ver o mundo, de conceber o cinema, como se você tivesse moldado a opinião pública em relação ao cinema: todo mundo concorda que o cinema autoral tem que prevalecer, que o autor é uma figura existente e válida. Você tem um público que reflete as suas ideias, mas você não tem como ditar o conteúdo da arte. Você dita o contorno e a forma, mas você não vai ditar se os filmes são bons ou não. Isso passa por outras coisas que escapam. Talvez inclusive a melhor arte venha justamente de lugares inesperados. A partir do momento em que você prepara demais o terreno, pode ser que a criação não surja com sua maior potência. Não sei se foi o caso do Brasil, é prepotente demais achar que a Contracampo teve toda essa influência. Talvez tenha tido, eu não saberia dizer, precisa fazer uma pesquisa sociológica para saber. Mas de fato aconteceu alguma coisa, e a Contracampo faz parte desse ecossistema dos anos 2000, isso não tem como negar. Mas a gente não pode esquecer que são também os anos Lula, tinha a lei Rouanet, não dá para achar que que o cinema estava funcionando em vase-clos, porque não estava.




Voltando a Tiradentes, o festival tinha se tornado, para a gente, um espaço de autocelebração de um certo cinema de que não estávamos gostando. Nasceu uma produção independente, autoral, nova, que deveria ser fresca, mas que ao mesmo tempo parecia já nascer acadêmica – como se eles tivessem pego traços que não são propícios ao academicismo e tivessem transformado em forma acadêmica. Você via um monte de filmes e todos eles se pareciam. Você não via personalidade nos filmes, havia um esvaziamento do roteiro, da ação, tempos mortos com muita contemplação que na verdade também não diziam nada, não traduziam uma realidade social ou existencial. Parecia realmente um formalismo vazio, calcado em algumas figuras-chave do cinema internacional. Me vem à mente o Lisandro Alonso, que eu também acho um cineasta vazio. É claro que esses filmes não são idênticos, mas você percebia esses traços se repetirem e do nosso ponto de vista, não tinha nada muito pulsante, que fosse de fato novo, no sentido de original, pessoal. Nenhuma radicalidade. Tiradentes se tornou o espaço de celebração disso, você sabia sempre o que ia ver em Tiradentes. Não eram só jovens autores. Existem algumas exceções, os cineastas brasileiros jovens de quem gosto hoje, por exemplo, Filmes de Plástico. O que o Gabriel Martins, o Maurílio Martins ou o André Novais Oliveira fazem não tem a ver com isso, embora eles estejam totalmente dentro da geração do Novíssimo. Nasceram em Tiradentes.

Com o tempo e com o recuo, tendo a pensar que todo esse fenômeno é totalmente natural. Mesmo nos momentos de efervescência não vai ter dez grandes artistas, isso não existe, assim como você não tem dez estudantes brilhantes numa turma. Talvez a gente tenha sido exigente demais, talvez fosse uma grande dose de idealismo e um voto de confiança. Esperávamos muito do mundo do cinema, queríamos que ele nos desse muitas coisas. Acho que realmente Tiradentes se institucionalizou como o lugar do independente. Entram também outras dinâmicas aí, dinâmicas coletivas. As pessoas se apadrinham. Embora as pessoas de fora também tivessem essa visão da Contracampo, de que a revista era um clubinho fechado, acho que do lado de dentro, uma certa radicalidade sempre foi prezada, para o bem e para o mal.

Havia uma radicalidade do tipo: "não, a gente não vai entrar no sistema!", que ajudou a preservar a função crítica. Continuamos julgando as coisas com a nossa maior sinceridade. Não que determinadas ideias não atropelassem isso às vezes. Acho que, no caso da minha cobertura em Tiradentes, eu estava com uma tal virulência que ataquei onde talvez não precisasse. Mas nunca deixei de lado a sinceridade, era só uma questão de tom. Lembro que elogiei Um Lugar ao Sol (Gabriel Mascaro, 2009), pois o objetivo era fazer um balanço das coisas que estavam aparecendo. Se eu tentar recuperar um pouco meus sentimentos, o que se cristalizou ali como reflexão, escrevendo dia após dia sobre vários filmes, era a questão do confronto com o mundo. Isso era uma coisa que estava sempre em nossas conversas e no Cinema Falado, mesa redonda sobre cinema brasileiro feita no final do ano, era uma coisa que voltava sistematicamente e que para a gente era muito importante: o confronto com o mundo.




Você está falando do mundo ou está falando do seu umbigo? Se você está falando do mundo, o que era o caso para mim do Um Lugar ao Sol, então você me interessa: no fim das contas, você é um cineasta. Mas se você está falando só do seu umbigo, aí não vejo interesse. Tinha essa postura, razoavelmente política, de buscar isso nos filmes. Isso não significa que o cinema tem que ser político em grandes letras, pode ser um filme intimista e pode falar do mundo. Eu acho que era isso o que a gente buscava, pelo menos eu. É o meu sistema crítico pessoal, para além da Contracampo. E isso era compartilhado, não por todo mundo, mas por uma boa parte das pessoas ali naquele momento. E o novíssimo parecia ir justamente na direção contrária.

Mas para fechar o negócio de Tiradentes, acho que a questão com a Mostra, enquanto evento, é que também dava a sensação de que aquilo era um mundinho fechado, que não estava aberto para o mundo. Enquanto festival, parecia que era um mundinho de amigos de pessoas próximas, completamente fechado sobre ele mesmo. Ser consagrado em Tiradentes parecia ser consagrado no universo inteiro. E não perceber que você está não só apadrinhando, mas lidando com seus compadres, sem sair dali, e que algo diferente de uma certa expectativa não entra. Víamos isso também, filmes interessantes que não entravam em Tiradentes porque não correspondiam a uma certa expectativa. Não porque os filmes eram ruins, ou porque não eram novos ou jovens. Nesse sentido, a experiência da Contracampo também foi a experiência de ver instituições nascendo, cineastas nascendo, toda uma conjuntura da qual a gente também fazia parte. Não necessariamente nascendo, mas crescendo, e aí os anos vão passando e você vai percebendo como as coisas se constroem. Existe uma euforia inicial e depois o mundo ganha formas reconhecíveis, sobretudo com a institucionalização – o que não aconteceu com a gente por causa da radicalidade, mas poderia ter acontecido. Em algum momento chegamos perto disso, e você começa a perceber as coisas existindo em torno de você, que passam a ser institucionalizadas. As pessoas mudam o comportamento, o que é muito revelador no sentido humano também. Isso serve para a política, para tudo. O fato de que você, de repente, chegou na vida adulta, numa certa maturidade – e isso vale para a revista, para o festival, para a prática do cinema, para as pessoas – e você percebe as pessoas ocupando lugares.

Isso existiu também a partir de uma conjuntura política, e eu não sei o que vai acontecer agora com a mudança dessa conjuntura. Porque seria diferente conceber que algo está nascendo no meio de uma ditadura. As raízes vão estar impregnadas de um tipo de comportamento de reação. Eu não sei qual vai ser: pode morrer completamente, pode reagir muito bem, de forma criativa. É uma grande incógnita.

Paralelo a isso, você desenvolveu o seu trajeto acadêmico. Em algum momento isso assumiu o protagonismo nos teus campos de interesse. Como é que foi isso, a crítica foi se afastando, você foi mergulhando mais na universidade, na pesquisa científica... Como a coisa aconteceu?

Para mim a ideia sempre esteve no ar, não surgiu do nada. E eu sempre fui, deliberadamente, empurrando, em função da ligação muito forte com a crítica. É uma coisa muito recorrente na crítica, ter uma imagem muito errada da academia. Esse era totalmente o caso dentro da Contracampo. Você fica com essa ideia na cabeça, achando que seu ímpeto, seu senso de radicalidade vai perder espaço. Eu sentia esse impulso, todas as pessoas com quem eu convivi na faculdade sempre me viram na universidade e me empurraram para isso, esperaram isso de mim, tanto professores quanto colegas, e tinha o fato do meu pai ter sido professor universitário… Esse sempre foi um horizonte para mim, também pela questão da estabilidade financeira. Mas eu fui empurrando, botando de lado, porque além da crítica que ocupava concretamente todo o meu tempo e, bem ou mal, me dava, de forma indireta, algum retorno financeiro, tinha o fato de que eu queria fazer filmes. Foi assim até o momento em que eu tentei entrar na escola de cinema Louis Lumière aqui na França e depois no Fresnoy, e não rolou. E como vir para Paris era muito importante para mim, era vital na minha vida por razões pessoais, eu uni o útil ao agradável e joguei minha última carta, a universidade, já que as escolas não funcionaram. Era também uma escolha de vida porque coincidiu com um momento de esgotamento do que eu poderia fazer na crítica, do meu ponto de vista.

Eu senti necessidade de pensar mais longe. O raciocínio que eu podia desenvolver na crítica não me preenchia mais. Desde que eu entrei na universidade no Brasil, eu planejava voltar para cá, pra França. Tinha que achar um jeito de voltar. Mesmo antes de entrar na crítica isso já fazia parte do meu projeto de vida. Eu cheguei num momento, depois de cinco anos de carreira real, em que eu sentia que fiz tudo o que eu podia fazer no Brasil, na crítica. Óbvio que eu podia continuar a fazer o que eu estava fazendo para o resto da vida e me aprofundar. Só que eu sou o tipo de pessoa que não consegue ficar no mesmo lugar. Eu senti que tinha ocupado todo o tipo de posto possível, que eu tinha chegado em todos os “escalões” de experiências que poderiam me interessar e que não tinha mais para onde eu ir. Era em parte uma questão pragmática de carreira, mas intelectualmente eu também sentia que não tinha mais para onde ir na crítica, que eu não estava avançando, que não tinha desafios. Coincidiu também com um certo arrefecimento da Contracampo, um momento em que a revista começou a estagnar. E ela estagnou também por causa das nossas vidas pessoais. A ironia da coisa é que a Contracampo, projeto voluntário, permitiu que a gente trabalhasse profissionalmente, só que esses trabalhos já não deixavam mais tempo para a gente escrever. A revista foi morrendo de inanição. A dinâmica interna foi morrendo, era muito difícil manter isso a partir do momento em que saímos do período universitário, em que precisávamos ganhar a vida, e que fatalmente outros trabalhos viriam e iriam impedir a gente de dar continuidade. Quando eu entrei na Contracampo, publicávamos uma edição por mês. Era um trabalho enorme, constante, vivíamos praquilo. Depois passou a ser bimensal e foi indo... Nos últimos dois anos, se conseguíssemos botar duas edições por ano no ar já era uma vitória. Era realmente muito difícil.

E o grupo acabou? A cinefilia de grupo que era um dos motores da Contracampo?

Sim, o grupo foi acabando por essa mesma razão. Teve uma primeira quebra mais ou menos natural: a saída do Valente, do Felipe Bragança e do Cléber Eduardo, que pouco tempo depois fundaram a revista Cinética. O Valente saiu para cuidar da carreira de cineasta, depois foi para a Ancine. Isso já quebrou um pouco da coisa ali, revelando um racha interno, porque o Valente, a quem o Daniel Caetano se alinhava, era de uma tendência um pouco diferente. Não era a mesma linha do Ruy, a quem, por exemplo, o Jr. se alinhava. O Daniel Caetano ficou na Contracampo e passou a ser uma voz dissidente. Não tinha quase ninguém com ele, mas ele era uma das pessoas que estavam ali quase desde o início. Os atritos foram crescendo, até que teve o chamado “Golpe de Estado”, uma expulsão em massa – coisa da qual eu me arrependo bastante. Apesar de não ter sido obra verdadeiramente minha, eu participei.

Fala disso.

Prefiro não falar disso. A Contracampo não estava mais funcionando. Em 2007 o Ruy pediu férias por tempo indeterminado – os editores eram ele, eu e o Jr. –, pois estava mais interessado em escrever sobre música. Em 2008, eu passei três meses aqui na França e fiz a minha primeira e única cobertura do Festival de Cannes, num gás danado. Aí voltei falando: " a gente precisa dar um jeito, porque realmente a revista não está funcionando". O grupo estava numa crise interna absoluta.

Você nos disse em outras circunstâncias que o seu olhar em relação ao cinema mudou. O quê que mudou?

Eu considero que foi uma passagem em bloco: uma mudança de país/cultura, de vida profissional, de vida pessoal... É muita coisa junta! E existe uma ruptura aí. Nos últimos tempos no Brasil, eu estava de fato com um certo desânimo em relação ao cinema, depois de ter tido um momento eufórico de descoberta de novas coisas. Você me perguntou quais são os meus gostos, e tem muita coisa que eu descobri estando na Contracampo, sobretudo no cinema contemporâneo. Às vezes eram coisas que me motivavam em relação ao cinema e não necessariamente em relação àquele objeto em particular. Existem os objetos de predileção, por exemplo, o M. Night Shyamalan, que eu acho que de fato entendi e com o qual desenvolvi uma relação muito pessoal quando estava na Contracampo. Pois o entusiasmo por ele era também um movimento coletivo. Mas tem outras coisas, por exemplo, o Apichatpong Weerasethakul. Vibrei com algumas coisas, mas é um cinema que não me toca muito pessoalmente. Gosto muito dos filmes, mas ali era mais um interesse pelo que aquilo era para o cinema do que propriamente o que aquilo era para mim. Tem essa diferença. Teve momentos de grandes euforias, fosse pelo estado das coisas do cinema no mundo, ou com algo mais pessoal. E depois, nos últimos anos, eu não estava mais vendo nada que me interessasse. Eu passei por uma grande crise e pensei : "acho que o cinema morreu para mim. Acho que acabou. Não tem mais nada que me empolgue". Eu fiquei pensando seriamente se eu ainda gostava tanto de cinema a ponto de passar a vida trabalhando com isso, dentro desse universo. Eu passei por uma crise mesmo, de relação com o cinema, como conjunto de obras, como forma de expressão, como existência e como cultura.




Quando eu me mudei e deixei a Contracampo, a revista, para mim, já estava definhando, e tentar fazer bombeamento não adiantava, ela não acordava. Não quero dizer que não foi um pesar. É difícil sair assim, parece que você está perdendo um membro do seu corpo. Mas a minha relação com o cinema também estava definhando.

Eu comecei a pensar que tinham outras coisas que me interessavam muito mais. A pintura começou a me seduzir e eu tinha muito mais interesse em ver uma exposição do que ir no cinema ver um filme. Eu comecei a me perguntar se era isso mesmo, se eu ia continuar nessa via. E quando eu cheguei aqui na França, eu estava plenamente nessa crise. A mudança de fase na minha vida intelectual participou plenamente dessa crise. Cheguei aqui e falei: "eu não quero fazer isso, eu não estou a fim de fazer esse mestrado. O quê que eu estou fazendo na universidade?” Foi difícil arrancar! Depois a coisa foi, porque a prática acaba te levando. Foi talvez no segundo semestre do primeiro ano de curso que eu consegui me adaptar às circunstâncias, ao ambiente. Quando eu percebi a liberdade de pensamento que existia ali, eu tive um ganho de energia, de entusiasmo. Porque a minha relação com o cinema já não era a relação da crítica de todo modo, e eu continuei um tempo com a sensação de que sair, acompanhar os filmes que entram em cartaz, estar nessa imersão, passar um dia inteiro vendo filme, cobrindo festival, já não me interessava muito. Mas as possibilidades de pensamento na universidade eram realmente muito estimulantes. Isso me renovou e eu consegui estabelecer uma outra relação com o cinema, mais madura, com outros recortes e interesses. Não mais uma relação tão passional. Eu encontrei outros interesses intelectuais no cinema. Talvez a mudança de olhar seja no fundo uma mudança de modo existencial. Eu tinha um modo existencial, que era o de uma certa crítica jovem: ver muito filme, de forma passional – por mais argumentado e politizado que fosse. Foi a passagem para uma vida intelectual muito mais estruturada e com outros objetivos para além da existência num certo coletivo. Existe um coletivo na universidade, mas ele funciona de forma diferente: não é a praça pública, não é o corpo a corpo com os espectadores ou realizadores. Houve um ganho de maturidade bastante particular porque ele se acompanha também de uma mudança de solo, de forma de pensar. Mas me permitiu redescobrir o interesse pelo cinema, por outras vias completamente diferentes. Tem muitos pontos de contato, claro, mas no fundo é muito diferente do que motivava a minha prática crítica.

A técnica, por exemplo?

Por exemplo, a técnica.

Que parece um lugar tão árido do ponto de vista da cinefilia, do interesse estético, da paixão crítica...

Do interesse estético eu não sei, mas da paixão crítica em geral, sim. Eu sempre tive uma afinidade muito grande com a técnica, ela sempre foi para mim um motivo de fascínio e de interesse. A minha apreciação estética sempre passou muito por isso. Mas, realmente, eu descobri a técnica como objeto de pensamento e de estudo em si, e foi uma das alavancas de renovação na relação. Eu acho que não foi o olhar que se transformou, foi a relação. Não sei se dá para fazer exatamente uma equivalência entre olhar e relação. Eu acho que foi a relação, na verdade, o lugar de onde eu olho e sinto. Porque a técnica é para mim um lugar de estética. E é o que faz muito a especificidade do cinema. E nesse aspecto eu acho que me diferencio muito da moda universitária atual de estudos sobre a técnica, não só na França, mas no universo francófono em geral. Me estimula muito pensar esse encontro singular que o cinema promove com uma técnica fria, com muita mecanicidade, mas que é extremamente variável pois são muitos os parâmetros. A complexidade da aparelhagem e a complexidade dos resultados que isso pode produzir é muito fascinante. No final das contas, é o pincel e a tinta do artista, não tem como você negar. Qualquer filme que você vai ver, se tem resultados estéticos apreciáveis, eles foram realizados com um maquinário. A maquinária é o pincel e a tinta.

Eu acho que o lugar da crítica, e muitas vezes da universidade, é pobre nesse sentido, porque você está muito distante, enquanto o lugar dos realizadores e dos técnicos de cinema é de corpo a corpo com essa materialidade, não tem como negar. A maior parte dos universitários não conhece um obturador. Foi uma coisa que me surpreendeu também quando eu entrei na universidade, sobretudo aqui na França. Ver que as pessoas ao meu redor não detinham um saber que eu detinha, porque eu fiz uma escola de cinema, porque eu participei de muito set de filmagem. Eu tinha um saber empírico, que não era um saber de sala de aula: eu via a câmera, eu sei como as pessoas se comportam num set de filmagem. Isso também fez com que desde sempre na minha relação com os filmes, mesmo na crítica, eu tenha tido um olhar técnico, no sentido da realização. Vendo as imagens, não tinha como meu raciocínio não passar por isso em alguma medida. Em algum momento eu me dei conta de que isso era um trunfo e que era muito pessoal também. No lugar que eu ocupo hoje, a minha forma de imbricar – forma inclusive imaginária – a técnica nas imagens que eu vejo, é um trunfo da minha trajetória. Porque as pessoas no geral não têm essa sensibilidade. A técnica foi um ponto de renovação da minha relação com o cinema.

E o cinema experimental entra em que momento?

O cinema experimental entra mais especificamente antes daqui. Ele entra quando eu passei a fazer parte do comitê de seleção do Curta Cinema, um festival de curtas do Rio de Janeiro. Nesse momento nós éramos, eu acho, sete na comissão internacional. Cada pessoa assistia, sei lá, quinhentos curtas-metragens num período de três meses. Cada curta tinha que ser assistido por duas pessoas no mínimo e tínhamos em torno de 3000, 3500 inscritos. Dava uma média de 500 curtas por pessoa. Era um grupo muito legal, uma outra experiência de coletividade que em algum momento se emparelhou com a Contracampo para mim, porque era uma experiência de corpo a corpo com os filmes que não a da crítica – quer dizer, é crítico em alguma medida mas tem absolutamente outro objetivo, o que muda muito a sua relação com o negócio. Também tinha certa radicalidade no grupo. E um gosto compartilhado por coisas mais experimentais – não necessariamente cinema experimental dentro da "casa" cinema experimental – mas coisas estranhas, ousadas, que saíam realmente do que era esperado. Isso encontrou também a minha birra com o World Cinema e outras coisas que estavam influenciando e alimentando o Novíssimo. Era um coletivo também muito fértil e foi uma experiência realmente maravilhosa durante quatro anos.

Aí que eu descobri o cinema experimental propriamente. Por exemplo o Ken Jacobs, grande cineasta histórico, mas que eu descobri fazendo as seleções, e que se tornou o queridinho da comissão – ganhando um prêmio inclusive. A divisão era por gênero então tinha o melhor filme experimental, a melhor animação etc. E ele ganhou o prêmio de melhor filme experimental na edição de nossa primeira seleção. Começou aí, e passou a ser realmente uma coisa de encontro e um ponto de renovação para mim. Mesmo que eu estivesse passando por um momento de desilusão com o cinema de forma geral, descobrir filmes estranhos, experimentais e apostar neles, no quadro desse comitê, era uma coisa que me empolgava muito. E chegando aqui, por azares da vida, eu encontrei o Sébastien Ronceray da Associação Braquage e descobri que aqui em Paris tem um circuito de programação de cinema experimental inacreditável. Não podia conceber que isso era possível, acho que nem Nova York deve ter, hoje em dia, algo parecido com o que tem em Paris. O experimental, para mim, remetia sempre à experiência que eu tive no comitê. E aí eu descobri esse mundo e por relações pessoais acabei entrando de cabeça.




Mas também me sinto em desvantagem, porque é um mundo muito vasto e eu conheço muito pouco, normalmente as pessoas que conhecem bem são as que priorizam esse tipo de cinema. É muito separado. Tirando cineastas superstar, como Stan Brakhage, Martin Arnold, Michael Snow, um grande cinéfilo ou crítico de cinema não conhece o grosso dos e das cineastas experimentais, que são grandes cineastas. É um universo muito à parte, outro mundo. Eu me sinto muito iniciante, mas é um mundo que me interessa muito. Ao mesmo tempo eu sei que não sou como os fanáticos de cinema experimental. Eu não acho que um filme experimental mediano é melhor que um filme narrativo per se. Eu vejo sessões de cinema experimental que eu acho “qualquer coisa”. É muito fácil produzir qualquer coisa no cinema experimental, e tem muito cineasta fazendo isso e que ainda assim tem nome. Para mim, os grandes cineastas experimentais vão no princípio da coisa: pegam um traço da técnica de base e inventam uma forma estética derivada dessa técnica manipulada. É como se você pegasse o dispositivo-cinema e declinasse um dado dele. A forma como você declina é a sua criação. O elemento pode ser a lente, a película, o mecanismo da câmera… é sempre alguma coisa ligada a essa materialidade. Se não, você não está experimentando. Se você não toca nesse ponto, você não consegue produzir nada que seja realmente convincente. Você produz alguma coisa de abstração ou contemplação, mas no geral é muito pouco.

E o teu interesse se expande também para exposição, performance, vídeo-instalação?

Não, são coisas que não me interessam. Nesse sentido, eu continuo muito tradicional, um pouco xiita. Para mim, vídeo-instalação não é cinema. Pode me interessar de forma episódica em termos de dispositivo ou de conteúdo, mas não como cinema. Me interessa a tela, a sala. Expanded Cinema me interessa, por exemplo, performance de projeção. Embora já seja uma forma borderline, uma forma limite, os efeitos produzidos estão ligados ao dispositivo-cinema. É nisso que me interessa: no quanto ele pode fazer pensar no dispositivo-cinema. A vídeo-instalação não entra, porque ela está ligada ao espaço do museu e nesse espaço eu prefiro pintura.

Me interessa a perspectiva de que a imagem em movimento é uma matéria de expressão, e não necessariamente um meio de expressão. O cinema é um meio, mas a imagem em movimento é uma matéria. Você pode fazer diferentes artes, ter diferentes formas artísticas com essa matéria. Eu não acho que o simples fato de ter imagem em movimento faz com que a coisa seja cinema. Essa perspectiva vem para mim também com um certo confronto positivo com as artes plásticas. De certo modo, as instalações podem ser pensadas como uma evolução do quadro da pintura com a matéria "imagem em movimento". Existem artistas que fazem isso e eu acho isso muito estimulante. Tem muito a ver com a historicidade que habita o artista. Por exemplo, eu gosto bastante do Mark Lewis, e o que ele produz em termos de construção plástica não remete à história do cinema. Ele não tem, no background dele, as formas cinematográficas, ele tem as formas plásticas que vêm da pintura. Ele trabalha com a imagem em movimento, com a câmera, mas ele as usa para criar formas. Quando vejo esse tipo de trabalho eu acho muito estimulante, mas é outra coisa. Ele é estimulante no campo próprio dele, mas não é a coisa que mais me atrai – em absoluto – nem em termos pessoais nem em termos de estudo.

E há alguns anos você está dando aula também. Sempre deu, mas agora sistematicamente, na graduação, na universidade. Como é a experiência? Sente alguma distância geracional? Como é o diálogo sobre cinema com as turmas?

Distância geracional com certeza – que é maior que a distância cultural. Em relação a isso eu assumo que não entendo bem quem tem 17, 18 anos hoje. E eu acho normal. Faz parte, mas mesmo assim, isso me causa questionamentos, porque eu não sei se estou me comunicando com eles. Às vezes eu tenho a sensação de que estou trazendo uma palavra de outros tempos, de outro mundo, que não é o mundo deles. É óbvio que eles estão ali para escutar, mas tem muita coisa que, se eu tivesse outras chaves, talvez eu conseguisse passar melhor, se eu falasse mais nos termos deles… Mas vivemos num tal momento de aceleração tecnológica que eu acho que isso nunca mais vai ser possível. Não tem como pessoas com mais de 10 anos de diferença compartilharem a sensibilidade com relação a produtos tecnológicos. E o cinema está totalmente nisso. Eu falo de projeção, de janelas de projeção e eles não reconhecem. Parece que eu não estou falando para eles de algo que faz parte da experiência. Mas quando eu falo, faz parte da minha. Eu vi filme queimar em sala, vi filme saltar. Eles não sabem o que é isso. A maior parte deles nunca viu um filme queimar na tela, ser projetado com janela errada. É muito difícil você comunicar uma sensibilidade técnica nesse caso. É claro que os termos técnicos vão passar porque isso faz parte também da continuidade e é algo que é importante no ensino: sensibilizar o aluno a partir da sua sensibilidade. Então quando eu falo de técnica, eu estou comunicando uma sensibilidade que passa pela experiência física da projeção, por um certo fascínio com essa máquina e isso é uma coisa que, bem ou mal, faz parte de quase toda cinefilia do modelo clássico. Essa experiência muito forte da sala de cinema. E mesmo para os cinéfilos não-especialistas, não-críticos, os cinéfilos-cinéfilos mesmo, a técnica é por excelência o fetiche do cinema – como já dizia Christian Metz. O fetiche do plano-sequência etc. Nisso eu percebo um hiato geracional. Eu acho que as novas gerações formadas por séries, Netflix, vêm de um lugar que eu não reconheço, embora certas questões como o plano-sequência permaneçam, acrescidas de novas virtuosidades.

Mas tirando isso, a experiência de sala de aula é muito renovadora. Existe o diálogo, claro, e a sensação de que você está fazendo as pessoas descobrirem as coisas, que você está ajudando de alguma maneira as pessoas a estabelecerem uma relação com objetos de que você gosta – no caso, um universo, o do cinema. Isso é muito estimulante. E o fato de falar, de se expressar, é também recompensador, traz um grande prazer e ajuda a pensar. Isso é um fato: os seus próprios projetos intelectuais, suas próprias ideias são muito ajudadas pelo fato de dar aula. Eu entendo as coisas muito melhor: o que eu estou querendo, buscando, o que me interessa e o que não me interessa tanto. Eu entendo o meu próprio pensamento quando eu dou aula, quando tento explicar para os outros. É um prazer que eu já conhecia, mas não dessa forma continuada. E eu acho que quanto mais continuada melhor porque o seu cérebro fica realmente ativo. A experiência da sala de aula é muito exigente, exige muito dos seus neurônios, exige muita energia, é extremamente cansativa. Mas como ela exige muito, o seu cérebro trabalha muito.

É que nem quando você escreve de forma intensiva durante muito tempo. Você começa a criar conexões que normalmente num período mais calmo você não cria porque não está, digamos assim, sob stress.

Você falou que tinha vontade de fazer filmes. Você já fez?

Eu dirigi um filme de formatura, de fim de curso, e participei de muitos outros, fiz um filme coletivo que eu não considero muito, mas… Fiz um filme, basicamente, um curta-metragem meu, que eu concebi do início ao fim.

E não quer fazer mais?

Claro que eu quero! Mas é isso, tomei uma decisão pragmática na minha vida e ainda penso muito em fazer filmes. Não sei se vou seguir a carreira universitária, estou fazendo o que eu acho que tenho que fazer, por necessidade pessoal, mas isso pode também chegar num ponto de esgotamento, como foi com a crítica. Às vezes eu sinto que estou vendo esse momento chegar, em que eu direi: “Deu para mim! Eu fiz o que pude fazer e o que tinha vontade de fazer.” O momento em que eu encontre a estagnação. Embora eu ache que não vai ser uma estagnação de desafios, como foi em parte, na crítica no Brasil. Porque os desafios na vida universitária são muito grandes e muito altos. Você nunca vai se sentir estagnado nesse sentido porque você sempre pode ir muito mais longe. Mas talvez no sentido do leque de experiências, ou do interesse pessoal mesmo, da vontade de estar ali fazendo aquilo. Porque a realidade concreta da vida de um universitário não é tão estimulante assim. Ela é muito trivial na maior parte do tempo, pesada e, sobretudo, muito exigente psicologicamente. E esse é um preço que eu não quero pagar mesmo: o da saúde mental. E, além disso, tem a frustração que me acompanha, eu quero fazer filmes e acho que tenho filmes para fazer. Eu não queria que eles não existissem, mas isso ainda está em aberto.

Reconheço também, na nossa experiência, essa mudança de território e de trajetória. Você falou não de uma mudança de olhar, mas uma mudança de relação no momento de formação na escrita, na crítica e a uma revista que estabeleceu sua fundação muito próxima da Cahiers du Cinéma e de uma ideia de autor. Eu me pergunto, hoje, com o distanciamento, quais ideias essenciais permaneceram e quais foram descartadas? Você consegue identificar o que surgiu nesse primeiro momento e ficou e outras coisas que parecem não tão importantes? Como a questão, por exemplo, do grupo que deixou de existir, tanto pelo movimento da vida quanto pela maneira como as coisas aconteceram. Não que não partamos de uma visão pautada pela política dos autores, mas hoje a gente também questiona o quanto esse autor virou um refrão mercadológico. O olhar do crítico cai muitas vezes numa zona cega para quaisquer outras questões: as atrizes, a técnica mesmo, que às vezes estão ligadas ao autor, mas às vezes a outras coisas…

Essa questão do autor é polêmica. Ainda na faculdade, quando eu li o O que é um autor? do Michel Foucault, fiquei com isso na cabeça, e eu nem tava ainda na crítica. Mas eu lembro de ter conversado sobre isso com o Jr., essa proposta de destruição do autor me instigou bastante. Ou melhor, me instigava o fato de que isso é um guarda-chuva ideológico. O Jr. me disse: “de todas as coisas que as pessoas propuseram, não tem nada que seja mais operante. Tudo bem você querer desconstruir essa figura, mas você acaba sempre voltando, não tem como escapar dela!”

Mas existem outros recortes que você pode fazer. Claro que o autor ou autora existe e vai continuar existindo, mas você pode fazer o seu recorte problemático que não passe necessariamente por ele ou ela. O problema é reconhecer que existem outras formas de autoralidade, como, por exemplo, a do diretor ou diretora de fotografia. Existem outras perspectivas que hoje em dia são mais comumente aceitas. Mas o meio da crítica permanece razoavelmente reacionário, muito agarrado a determinadas práticas e formas de pensar. Talvez eu esteja cometendo uma injustiça, também porque eu não conheço a fundo o que se está fazendo hoje na crítica, mas existe uma tradição crítica que foi vanguarda em algum momento, mas que há muito tempo já não é, e que não consegue absorver outras formas de ver. Mais do que isso, rechaça outras formas de abordar o cinema. Porque o outro lado do autor é o crítico. Existe o autor de um lado e o crítico que é o autor do texto e que…

O autor do autor…

Também! E que é o autor do amor (do amor lá do Jean Douchet). Ele é o dono desse amor, a figura heroica que porta esse amor. Eu acho que existe esse equilíbrio na figura do autor que mantém esse estado de coisas.

Quando você entra em recortes sociológicos, ou outros recortes, parece que a razão de ser da crítica desmorona ou se vê colocada em cheque. Isso talvez explique uma certa resistência de uma tradição crítica em abarcar outros pontos de vista de fora do cinema. Você pode continuar fazendo crítica pessoal, mas de outros pontos de vista, por outras vias de entrada. É como se essa perspectiva crítica cegasse, não permitisse ver outras. Talvez isso seja motivado por um certo medo.

Eu não sei se eu coloquei particularmente a questão do autor em cheque de lá para cá. Mas com certeza eu coloquei em cheque a hegemonia dessa tradição crítica. Eu reconheço uma certa performance minha dentro dessa tradição, como parte de uma performance de grupo naquele momento. E eu reconheço que não correspondo mais a isso. Eu sinto falta da crítica e às vezes eu tenho vontade de voltar, mas se eu voltasse hoje, seria de uma perspectiva totalmente diferente. Não uma perspectiva antiautoral, nada disso, mas eu voltaria de uma perspectiva infinitamente mais política, em relação à política da representação. Sempre fui sensível a isso, mas eu não trabalhava muito a fundo. Hoje eu tenho outras ferramentas intelectuais para isso. Entender que o cinema é o meio de representação primordial do século XX e que como meio de representação ele é, óbvio, um fato social. E ele é tão grande! Mas ele só tem essa dimensão cultural PORQUE ele é um fato social. A pintura teve esse papel durante séculos e o teatro, de certo modo, também. Mas, quando você fala de imagem, é outra coisa e isso é um assunto que me interessa muito. O quanto a representação pela imagem pauta a nossa existência social. Isso tem a ver com a força simbólica, porque a imagem encarna o símbolo de uma maneira totalmente diferente daquela com a qual o teatro pode encarnar. A afinidade da imagem com o simbólico é muito potente! E todas as incursões da psicanálise no cinema, ir buscar Lacan para fazer análise de filme, não produziu tudo o que poderia ter produzido. Produziu alguma coisa, mas só em determinado perímetro. Mas a questão do simbólico no cinema é para muito além disso e ainda resta muita coisa para pensar e fazer. Pensar o simbólico a partir de um ponto de vista sociológico ou antropológico e não propriamente da psicanálise – que foi também uma produção de pensamento muito situada histórica e geograficamente.

Isso me motiva e eu faria uma crítica hoje que, óbvio, não negligenciaria as questões formais, mas estaria mais interessada na força das representações enquanto atitude política no mundo. Isso mexe muito comigo hoje e me incomoda bastante, no sentido positivo, porque às vezes eu fico com a sensação de que é um “assunto de estado” representar algumas coisas e não representar outras, ou representar certas coisas sempre da mesma maneira. Às vezes eu fico num certo choque, pensando: “não é possível que as pessoas não estejam vendo isso! Não é possível que tendo tanta gente vendo e pensando o cinema, com ele fazendo parte da nossa vida (porque ele faz parte da vida de todo mundo, mesmo dos que não são cinéfilos, dos que não estudam cinema; a imagem, a representação, o audiovisual faz parte da vida de todo mundo), como é que pode que não consigamos ver que, justamente por isso, essa forma de expressão tem um poder absurdo”. Isso é uma coisa que está me obcecando.

Para dar um exemplo mais concreto: eu estou preparando as minhas provas de análise fílmica da Paris 3, não estou com muita disposição para ficar procurando coisa muito longe e resolvo aproveitar um trecho de filme de uma prova que eu dei há dois anos. Um trecho de No tempo das diligências (John Ford, 1939). É um trecho realmente sensacional em que o John Wayne está no corredor com a personagem da Dallas e eles saem, ele vai atrás dela e propõe que eles vivam juntos no rancho. Eu revi o trecho e disse: “vou aplicar esse”.

E fiquei pensando: “qual é o outro que eu vou aplicar?”. Para poupar tempo, tentei tirar alguma coisa dos exercícios que os alunos fizeram na outra faculdade em que eu ensino [Paris 8]. Tentando encontrar trechos que fossem bons para a prova, achei nos últimos trabalhos o trecho do início de Paraíso infernal (Howard Hawks, 1939): a Bonnie Lee chegando, descendo do navio e os dois personagens masculinos a seguem por determinado caminho. Aí eu pensei: “é, eu acho que vou aplicar esse aqui”.




Eu pensei em outro, um trecho do Sedução da carne (Luchino Visconti, 1954) que um outro aluno tinha analisado, e é um pedacinho de filme realmente muito bem decupado, perfeito para a prova. Eu fui lá olhar de novo e o trecho era a Contessa atravessando uma ponte e o oficial indo atrás dela. E se passa em Veneza, eles margeiam o canal, descobrem o corpo de um oficial morto e…

Eu disse: “Caramba! Tenho três exemplos e nos três tem um cara indo atrás de uma mulher!” É inacreditável! Dois filmes de 39 e um de 54. E foi coincidência eu ter encontrado três trechos de filmes que tinham exatamente a mesma construção. É muito impressionante e assustador, porque talvez todo filme tenha uma sequência assim. E é tão natural que isso seja representado assim. E é o momento que você tem um descolamento... Peraí! Isso é muito estranho! Isso é uma estrutura de representação, uma espécie de “macro”, que você aplica em situações completamente diferentes, em diferentes histórias que não tem nada a ver umas com as outras. Mas o que a construção das relações dos corpos no espaço implica na narrativa… é exatamente a mesma coisa! E essa percepção me causou um choque realmente muito grande. Eu já tinha pensado nisso, mas de forma muito vaga, e ali eu vi exatamente como isso se constrói formalmente, no roteiro, nos diálogos… é impressionante. O meu incômodo é praticamente filosófico, é o incômodo de perceber que a relação das pessoas com o mundo é atravessada por representações. E que as representações são construções discursivas e as construções discursivas são decalques de construções simbólicas que as preexistem. Elas já existem, mas no momento em que a representação as atualiza, ela coloca mais uma pedra. E constrói mais alguma outra coisa.

Enfim, eu acho que a imagem em movimento já é velha demais para que esse problema continue na zona cega. Essa é uma questão tão central e depois de mais de 120 anos de cinema não é possível que as pessoas não estejam vendo isso. É um acúmulo de coisas que eu leio. Por exemplo: eu li um artigo do Guardian, que circulou bastante, falando sobre as comédias românticas mais recentes – não ia, por exemplo, lá para as comédias do Stanley Cavell. Ele falava de como as comédias românticas naturalizam o assédio. Não o assédio físico, o assédio psicológico mesmo, com a ideia de que se o personagem masculino insistir, a personagem feminina vai ceder. E que o sucesso daquela relação depende dessa insistência, porque se ele não insistir, não vai acontecer nada. E isso cria um modus operandi, porque todas as comédias românticas funcionam exatamente da mesma maneira. O artigo vinha de uma pesquisa, uma sondagem que mostrava que isso influencia o imaginário, a maneira como de fato as pessoas se comportam no mundo. Isso pauta as expectativas de um gênero e de outro nas relações concretas. E você pensa: “Cara, é enorme. É absolutamente gigantesco.” E se você começar a puxar o fio, toda a história da representação está em causa nisso.




Eu não consigo pensar em outra coisa de uns tempos para cá. E assistindo aula de história da arte, da pintura religiosa… Você começa a pensar na questão da representação de forma muito mais ampla, não só no cinema. E o que é a representação da Virgem com o menino, o que é a representação de uma mulher com um bebê masculino no colo, ao fio dos séculos, e século após século essa mesma imagem impregnando as pessoas. O quê que isso produz no mundo?

É urgente trazer essa reflexão para o cinema sem que essa força de reflexão seja considerada, de cara, ideológica, ou seja, promovendo uma certa pauta. Ela precisa ser pensada como um problema estrutural e, ao mesmo tempo, essencial à representação.




Para mim, isso talvez seja uma revolução que fez parte da mudança de olhar. Pensamos, por exemplo, numa reflexão como a de “Da abjeção” do Jacques Rivette, que teve uma grande herança no pensamento crítico, porque compreendemos plenamente aquele contexto. Mas por que esse raciocínio não se aplica a outros problemas? Isso é uma questão para mim: por que o raciocínio político e estético que está cristalizado naquele texto não se aplica a outros contextos? Ele tem uma aplicação muito restrita a uma questão que é basicamente humanista – em relação a um histórico de guerra e extermínio – só que existem outras questões humanistas, em que a ética deveria encontrar a estética, e esse tipo de raciocínio parece não nascer. Será que não tem ninguém pensando no encontro da ética com a estética, colocando em crise a representação a partir desse ponto de vista, dizendo que certas coisas não são representadas? Que certas coisas não podem ser filmadas dessa maneira?

Se você considera a crítica como um ato de pensamento, que pode significar alguma coisa no mundo, você não pode ter zonas cegas. Isso é algo que me move muito hoje e que me moveria se eu voltasse a escrever crítica. Isso não tem nada a ver com os meus objetos de pesquisa universitária, não é essa a minha questão. Tem mais a ver com a questão política, de posicionamento. Do quanto a crítica pode atuar no presente, no que está sendo feito. Você reage às coisas que estão sendo feitas, não é só uma tomada de posição, você sente que pode, talvez quem sabe, mudar o rumo das coisas e estabelecer um diálogo com o que está se fazendo, no calor da hora. Isso é essencial para a crítica, eu acho que não existe crítica se não for nesse embate. É, de certo modo, uma forma de escrever a história. É o que mais faz sentido na crítica, para mim, e no fundo, no fundo, sempre foi, mas que só em determinado momento dei a guinada para essa percepção. É uma percepção meio perturbadora: ver que toda e qualquer representação dominante segue, desde sempre, uma agenda.

Entrevista realizada por Leticia Weber Jarek e Miguel Haoni em 14 de janeiro de 2019.
Transcrição: Eduardo Savella e Miguel Haoni.