O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Uma equipe muito especial

Por Miguel Haoni

Dois ou mais atores no mesmo quadro, filmados do joelho para cima numa duração suficiente para que se possa ver – ao mesmo tempo – os gestos físicos, as expressões do rosto, as conexões entre os personagens e a dinâmica entre estes personagens e o cenário. Nem muito perto, nem longe demais. É preciso encontrar a distância certa, estabelecer o ponto focal e a partir dele, as coisas podem começar a acontecer. Nos piores casos isso produz uma forma acadêmica, nos melhores isso é o veículo de um estilo sublime. Por trinta anos, Hollywood achou esse ponto e fincou nele a sua bandeira, transformando o plano “americano” na sua unidade gramatical. Com o tempo, porém, eles perderam o que tinham encontrado, de forma que às vezes é mais fácil encontrar a herança do classicismo hollywoodiano nas séries de TV do que nas salas de cinema.

Existem algumas exceções. Uma delas é de 1992, quando Penny Marshall (cineasta vinda da TV) adaptou para o cinema uma dramatização da história da Liga Americana de Beisebol Profissional Feminino. Não que o filme retome sistematicamente o plano americano (apesar da sua abundância) nem que ele se sustente no classicismo da encenação (também recorrente), mas ele nos faz lembrar que essas técnicas são meios e que os fins sempre estiveram do outro lado. Ancorado nas regras das comédias dramáticas de grande orçamento da Hollywood dos anos 90, a lição de cinema de “Uma equipe muito especial” é muito antiga: antes de tudo é preciso ver. Ver corpos e rostos ocupando um espaço, ver as faíscas entre eles. Ver tudo isso ao mesmo tempo.

A luz principal vem da era de ouro. A linha grosseira é a mesma da comédia musical. Geena Davis e Lori Petty, são cowgirls: jovens fazendeiras do Oregon, elas são filhas da América profunda e trazem no seu drama a herança dos faroestes, o desejo pela paz doméstica versus o chamado do dever, o irmão mais forte que se retira heroica e silenciosamente das páginas da história. Madonna e Rosie O’Donnell são as novaiorquinas: jovens operárias, dançarinas, garçonetes, prostitutas, telefonistas, atrizes, secretárias. Filhas da velocidade e da crise econômica, suas raízes são ainda mais profundas e distantes, remontando às comédias ligeiras e aos núcleos cômicos nos melodramas dos anos 30. Mas mais importante que o retrato individual é a pintura do grupo: em torno das quatro existe uma constelação de personagens flamejantes, que deixam um rastro vivo independente do tempo que ocupam na tela. É na dinâmica física e verbal entre as atrizes que o filme ancora sua principal beleza, fazendo reviver filmes esquecidos como The wild party (Dorothy Arzner, 1932) Three on a match (Mervyn LeRoy, 1932), Ladies they talk about (Howard Bretherton, William Keighley, 1933) Stage Door (Gregory La Cava, 1937), Marked Woman (Lloyd Bacon, 1939), The women (George Cukor, 1939). Todo um gênero sacrificado no momento em que Hollywood decide tomar parte no esforço pela redomesticação das mulheres, elegendo a ambição feminina como o oitavo pecado capital.

“Uma equipe muito especial” é também a alegoria desta geração perdida, a das americanas brancas que provaram o gosto emancipatório do trabalho e que, com o fim da segunda guerra mundial, tiveram que abandonar os seus postos e retornar às cozinhas. O mundo do beisebol, o mundo do cinema (ou simplesmente o mundo) é dominado pelos homens. É preciso jogar com as regras deles, mas também passar o contrabando, ocupar os espaços, penetrar no sistema, aproveitar as brechas. Como escreveu a cineasta feminista radical Michelle Citron, no texto de 1988, “Women’s Film Production: Going Mainstream” ao refletir sobre a escolha de “virar comercial”: é preciso celebrar a chegada de uma geração de cineastas feministas que, vindas do underground (mas não só) começam a cavar uma pequena trincheira em Hollywood.

Penny Marshall foi uma delas. Seu filme é um produto muito bem acabado do seu tempo, um tempo em que o cinema hollywoodiano virou drasticamente na direção da infantilização do público. Mas o que normalmente é um defeito, aqui é uma virtude: no filme existe também uma luz secundária, vinda da infância, uma janela para o ambiente escolar, para a hora do recreio, quando as meninas brincavam de vôlei, elástico ou aquilo que na minha cidade chamavam de “cemitério” ou “queimada”. Sentado à boa distância, esta era a única ocasião em que eu me interessava por esportes. O filme respira esta mesma tensão, essa desaceleração no tempo, a energia deflagrada pela iminência de uma briga épica entre duas meninas da sexta série. Muitas vezes esquecemos, mas é nesse pátio que nascem os atletas. “Uma equipe muito especial” nos permite ver isso. Ver tudo isso ao mesmo tempo.