O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Rolos de primavera



Por Serge Daney

Maio 1982. Sempre essa tentação de passar os intervalos comerciais pela peneira da crítica de cinema. 

A cena se passa dentro de uma loja. Há a vendedora e há uma cliente. O que vendem? Tecidos em rolos arranjados em armários baixos ou afixados em um manequim assexuado sobre um balcão antiquado? Não temos certeza. Tudo se funde em uma decoração pastel e borrada: malva, rosa, verde. As duas mulheres estão vestidas austeramente. A vendedora é moderna, florescente, olhos brilhantes: ela poderia figurar em um pôster político de esquerda. A cliente é uma burguesa de bom tom, ociosa e atrevida: é dessas que se põem a dançar ex abrupto nas comédias musicais americanas. Entre elas, uma diferença de vinte anos, pelo menos. A vitrine da loja dá para uma rua abstrata e pouco movimentada. Um barbudo pensativo passa. A ação começa. 

- O que deseja? (um travelling pivotante, totalmente sirkiano período Universal, acompanha a cliente pelo balcão). 

- Eu gostaria de ver aquele... oh e depois mostre-me todos (a cliente é bem móvel, ela começa uma espécie de dança da sedução sob os olhos da vendedora, a qual não deixará jamais seu balcão). 

- Cada um tem seu perfume... O rosa: a rosa – O malva (inserção de um close-up da vendedora): a lavanda – O verde: capim-limão, eu diria (a cliente devaneia sonhadoramente)... Vou ver o malva na luz (ela sai do campo, pela direita). 

- Dupla espessura, madame! (de longe, a vendedora sobe o tom). 

- E eles estão disponíveis em quais larguras? (plano geral da loja vista por trás do balcão, em primeiro plano a vendedora e ao fundo a cliente coquete). 

- Oh. Uma só! (plano aberto novamente). É claramente o bastante (Desconforto). 

- Hum! (um tempo). Oh! Realmente, não sei qual escolher. Você não poderia me dar uma amostra de cada? (Aqui, o jogo de cena é muito bem resolvido: um plano de corte súbito captura três quartos do corpo contorcido da vendedora como se este corpo dissesse “eu não aguento mais, eu dou minha mão à palmatória, eu cedo, eu me rendo a você” e se desarticula perigosamente para se recuperar em um movimento que a traz de volta, radiante e jovial, em seu balcão). 

- Certamente. Com prazer. (close-up da vendedora que martela estas palavras quaisquer com um brilho no olhar e acentuando a palavra “prazer”). 

Tudo isso dura trinta segundos e doze planos. O leitor terá compreendido: trata-se de um comercial e trata-se de prazer. O objeto à venda não é seda nem renda [1], mas elegantes rolos de papel higiênico de marca Trèfle. Um plano final, o décimo quarto, mostra os rolos multicoloridos enquanto uma voz em off arrulha: “O Trèfle em quatro perfumes: uma belíssima coleção”. Há tantas razões para amar e para analisar este anúncio anal e um pouco banal às quais eu não resisto ao prazer de relatar duas ou três aos cine-teléfilos.

Vender papel higiênico come se fosse uma coleção de tecidos raros e sem preço, é uma primeira idéia. Imaginar uma loja que venda apenas isso, é a segunda idéia (muito onírica). Fazer a cena rolar entre duas mulheres é uma terceira. Nas publicidades higiênicas “normais”, partimos geralmente de uma triste constatação de sujeira para fazer surgir um ideal de limpeza miraculosa (lembremos do imundo Monsieur Propre). Enquanto aqui, é o contrário. É porque toda a cena banha-se em uma limpeza de um sonho pastel que a evocação da sujeira perde todo o seu peso. E que se trate de um face a face entre duas mulheres que introduz um inegável horizonte perverso. 

Esta pequena obra-prima de decupagem clássica poderia servir para familiarizar nossas caras cabecinhas saídas de escolas de cinema sobre coisas importantes como o campo e o contracampo, o plano de corte e a profundidade de campo. Através da evidente referência a Jacques Demy, toda a tradição da comédia americana revive sob nossos olhos. De McCarey a Cukor. A proibição de mostrar certas coisas (baixas) os obrigou a inventar uma mise en scène astuta. Quanto mais a idéia fosse suja, mais limpa seria a decupagem. Aqui também. 

Pois este pequeno filme sobre o prazer de se limpar toca evidentemente no inominável. A RFP (Régie Française de Publicité – Agência Nacional de Publicidade) não teve dúvidas. Até onde me disseram, ela teria censurado o filme. No momento em que o rolo se desenrolava formando uma espécie de cordão umbilical entre as duas mulheres, ouvimos um ruído de descarga! Este ruído, a RFP não quis. Nem este desejo. 

E contudo, é bem inutilmente que a voz do décimo quarto plano tenta nos fazer memorizar as palavras “Trèfle em quatro perfumes”. O mal já está feito: é o penúltimo plano, o décimo terceiro, com o misterioso “Certamente. Com prazer” que fica na memória. Neste momento preciso, a vendedora faz passar uma outra mensagem, uma mensagem que produto algum deixará esquecer, algo como: qualquer que seja a sua escolha, eu posso satisfazê-la. Seu pedido estará sempre aquém do que eu posso lhe oferecer. E esta é a verdadeira mensagem da publicidade, de toda publicidade. 

13 de maio de 1982. 

[1] “... n’était pas de la soie ou du batik” no original. Batik é um tipo de tecido tingido artesanalmente, muito fino.

Link para assistir a propaganda: http://www.ina.fr/video/PUB3784060015

Rouleaux de printemps foi publicado originalmente no jornal Libération, em maio de 1982, e republicado na coletânea Ciné Journal (Volume I, 1981-1982), p. 164-167. Tradução: Giovanni Comodo.

Vaidade da pintura


Por Eric Rohmer

Que vaidade é a pintura, que causa admiração pela semelhança com coisas das quais não admiramos os originais.
Pascal

A arte não muda a natureza. Outrora Cézanne, Picasso ou Matisse nos deram olhos totalmente novos. Que vaidade decerto é a pintura, que renuncia dizer ao mundo que este exista segundo suas próprias leis; mas verdade ainda mais profunda é que as coisas são o que são e passam bem sem nosso olhar. Ao mesmo tempo em que se arranjam em nossas paredes, o cubo, o cilindro, a esfera desaparecem de nosso espaço. Assim a arte devolve à natureza o que é seu. Ela faz da feiura beleza, mas a beleza seria verdade, se não existisse malgrado e até contra nós?

A tarefa da arte não é a de nos encerrar num mundo fechado. Nascida das coisas, ela nos reconduz às coisas. Ela se propõe menos a purificar, isto é, extrair das coisas aquilo que se dobra aos nossos cânones, que de reabilitar e nos conduzir, sem cessar, a renová-los. Hoje, este lento trabalho está bem próximo de se concluir. A covardia e a abjeção são a matéria de nossos romances, nossos pintores se comprazem no uniforme ou no chamativo. Entrevemos que logo não nos restará mais que devolver à nobreza e à ordem aquela dignidade que perderam. Temo, ainda assim, que atribuamos a esta falência comum da arte de falar e da de pintar causas completamente opostas. Pois uma, proibindo-se de cantar, não deseja mais que simplesmente mostrar, e a dignidade de existir não nos parece exigir outro ornamento. “Minha empresa não tem precedentes” – desde quase cem anos, que obra escrita não justificaria esta epígrafe? O pintor, em contrapartida, quis fazer do canto sua matéria, isto é, neste caso, de sua visão. Nenhum objeto entra em seu espaço que não se ajuste primeiro às dimensões deste e é a regra, escolhida de antemão, que traz em si a infinidade de suas aplicações. Mas, aqui como lá, vejo o mesmo desejo de solapar o prestígio do ser. Não admitir senão o insólito ou renovar o habitual são coisas, cremos, de todo semelhantes. Se nossa época foi aquela das artes plásticas é porque somente nelas nosso lirismo pôde achar sua medida; neste caso, a evidência desafia o canto. Dirão que este ponto de vista é aquele do mais grosseiro senso comum. É precisamente aí que eu queria chegar.

A perspectiva uma vez descoberta, reconhecemos nos objetos as dimensões respectivas que tomam em nossa retina. Aprendemos em seguida que não existem linhas e que tudo não é senão jogo de luz e de sombra, posto que a própria luz é cor e que a mais simples cor nasce da justaposição de vários tons. Nossa visão foi modificada? Mostre a uma criança um quadro de Picasso; ela reconhecerá um rosto que um adulto penará para descobrir. Mostre então um quadro antigo e ela dará a este último sua preferência. Se Rafael não tivesse existido, teríamos o direito de chamar o cubismo de loucura ou de garrancho. Guernica não refuta La Belle Jardinière, nem esta aquela, mas não creio que me arrisco muito em afirmar que uma destas obras foi, é e sempre será mais conforme a nossa visão normal dos objetos que a outra. “A maçã que como não é aquela que vejo”, esta frase de Matisse define tão-somente a arte moderna, não a arte como um todo. Chamamos, precisamente, clássicos os períodos onde a beleza segundo a arte e a beleza segundo a natureza pareciam ser um só. Estamos livres para exagerar suas diferenças. Duvido que o poder da arte sobre a natureza seja maior.

Uma arte nasceu que agora nos dispensa de celebrar a beleza e fazê-la nossa pelo nosso canto. Nada como o cinema demonstra melhor a vaidade do realismo e, ao mesmo tempo, cura o artista deste amor-próprio do qual por toda parte ele perece. Uma longa familiaridade com a arte não nos fez senão mais sensíveis à beleza bruta das coisas; somos tomados por uma vontade irresistível de olhar o mundo com nossos olhos de todos os dias, de conservar conosco esta árvore, esta água que corre, este rosto alterado pelo riso ou pela angústia, tais como são, a despeito de nós.

Gostaria de dissipar um sofisma. Onde não há intervenção do homem, se diz, não há arte. De acordo, mas é sobre o objeto pintado que o amador lança primeiro seu olhar e, se ele considera a obra e o criador, é somente através de uma reflexão posterior. Assim, o objetivo primeiro da arte é o de reproduzir, não o objeto, sem dúvida, mas sua beleza; o que chamamos de realismo não é senão uma busca mais escrupulosa dessa beleza. A crítica moderna nos habituou, pelo contrário, à ideia de que só gostamos daquilo que é pretexto à obra de arte: se o artista dirige nossa atenção a objetos que o senso comum ainda julga indignos, é que ele teria aqui mais o que fazer para nos seduzir. A beleza de um canteiro de obras ou de um terreno baldio nasceria do ângulo sob o qual o artista nos força a descobri-los. Todavia, tal beleza não é outra que a do terreno baldio e que a obra mesma é bela, não porque nos revela que se pode chegar ao belo a partir do informe, mas porque aquilo que julgávamos informe é belo. Chego então a este paradoxo, o de que um meio de reprodução mecânico como a fotografia é em geral excluído da arte, não porque ele sabe só reproduzir, mas porque desfigura precisamente ainda mais que o lápis ou o pincel. O que resta de um rosto num instantâneo de um álbum de família, senão uma insólita careta que não o é? Congelando o movimento, a película trai até mesmo a própria semelhança.

Devolvamos, pois, à câmera aquilo que pertence somente a ela. Mas não é dizer muito que o cinema é a arte do movimento. Somente ele faz da mobilidade um fim, não uma busca por um equilíbrio perdido. Observe dois dançarinos: nosso olhar não se satisfaz senão quando o jogo de forças se anula. Toda a arte do ballet não é senão a de compor figuras, aqui o movimento mesmo é o simples efeito do princípio da inércia. Pensemos agora em Harold Lloyd gesticulando do alto de seu andaime, no gângster que espera o instante no qual uma distração do policial lhe permitirá apoderar-se da arma que o ameaça. Estabilidade, movimento perpétuo, tantas violências feitas à natureza. A mais realista das artes, ingenuamente, as ignora.




Nanook, o Esquimó
é o mais belo dos filmes. Era necessário um trágico que estivesse a nossa altura, não do destino, mas da dimensão mesma do tempo. Sei que o esforço do cineasta tende, há cinquenta anos, em rebentar os limites deste presente onde ele nos encerra de antemão. Todavia, resta que sua destinação primeira é a de dar ao instante um peso que as outras artes lhe negam. O patético da espera, que alhures resulta grosseiro, nos lança misteriosamente ao coração da compreensão mesma das coisas. Pois nenhum artifício, aqui, é possível para dilatar ou encolher a duração, e todos os procedimentos que o cineasta julgou frequentemente no dever de empregar – por exemplo, o da “montagem paralela” – voltaram-se rapidamente contra ele. Mas Nanook nos poupa dessas artimanhas. Não citarei senão a passagem onde se vê o esquimó agachado no ângulo do quadro, à espreita do bando de focas adormecido na praia. De onde vem a beleza deste plano, senão do fato que o ponto de vista que a câmera nos impõe não é nem aquele dos atores do drama, nem mesmo o de um olhar humano, ao qual um elemento, em detrimento dos outros, teria chamado a atenção? Cite um romancista que tenha descrito a espera sem, de alguma maneira, exigir nossa participação. Mais que o patético da ação, é o mistério mesmo do tempo que constitui aqui a nossa angústia.

Ao contrário das outras artes, que vão do abstrato ao concreto e, fazendo desta busca do concreto sua finalidade, nos escondem que seu fim último não é o de imitar, mas de significar, o cinema nos lança aos olhos um todo do qual será permitido desprender um dos múltiplos significados possíveis. Tal sentido, é da aparência mesma que nos é necessário extrair, não de um além imaginário do qual tal aparência seria tão-somente um signo. Concebemos que o real aqui é matéria privilegiada, pois tira sua necessidade da contingência mesma de sua aparição, tendo podido não ser, podendo agora apenas ser, visto que foi. Pela primeira vez, além do poder de exprimir, o documento acede à dignidade da arte. Entrevemos uma das consequências de tal condição, a mais perigosa de todas: que o cinema não se distinga em pintar os sentimentos antes que estes nasçam de nossa relação incessante com as coisas e, coisas eles mesmos, não sejam mais que o movimento ou a mímica que eles nos ditam, a cada instante. E qual é o melhor juiz da autenticidade do gesto que sua eficácia? Não é mais a paixão, mas o trabalho, isto é, a ação do homem, que o cinema escolheu como tema.

Nanook constrói sua casa, caça, pesca, alimenta sua família. O importante é que nós o sigamos nas vicissitudes de sua tarefa da qual aprendemos lentamente a descobrir a beleza. Beleza que esgota a descrição e mesmo o canto. Pois, ao contrário dos heróis épicos, é no curso da luta que nosso homem é grande, não na vitória como coisa dada. Que arte, até hoje, soube pintar a ação abstrata a esse ponto de intenção que lhe dá um sentido ou do resultado que a justifica? Tomei como exemplo, de propósito, um documentário, mas a maior parte dos filmes, os grandes como os piores, não tratam eles, em seus melhores momentos, daquilo que está em vias de se fazer, não de veleidades, triunfo ou arrependimentos? Carlitos penhorista, Buster cozinheiro ou mecânico, Zorro, Scarface, Kane, Marlowe, o sedutor ou a mulher ciumenta, tantos artesãos, hábeis ou canhestros, que julgamos ao trabalho.








No extremo oposto de Flaherty, situarei Murnau. Que eles tenham outrora colaborado no mesmo filme, Tabu, não parece, em absoluto, resultado de um malicioso acaso. Sabemos que, antes de rodar Aurora, Murnau tomou o cuidado de construir todo um mundo, do qual seu filme não é senão o documento. O desejo pela trucagem nasce de uma necessidade ainda mais exigente de autenticidade. Logo que se trata de exprimir algum transtorno interior, e não mais de agir, o ator trai a si mesmo, liberto da limitação das coisas, e sua máscara tem de ser modelada na massa de uma nova matéria. Pobre aparência de um rosto se não sentimos todo o espaço pesar sobre cada uma de suas rugas. O que significaria o brilho do riso ou a crispação da angústia, se eles não encontrassem seu eco visível no universo?

Com a metáfora, reencontramos decerto o canto. Toda a arte, se quisermos, consiste em nomear cada coisa com um nome que não é o seu. Mas, livres do intermédio das palavras, saboreamos o estranho prazer de fazer de Aquiles ao mesmo tempo guerreiro e torrente, deus e cataclismo. Para que acoplar dois termos que só a imperfeição da linguagem nos obriga a isolar? Pastor-promontório, sóis-molhados, terra azul como uma laranja, o esforço da poesia moderna foi o de sacudir a inércia primitiva da palavra; mas, providos agora do direito de dizer tudo de tudo, de que nos serve utilizá-lo? Viva, portanto, o cinema que, pretendendo apenas mostrar, nos dispensa da fraude de dizer! Poema-cinematográfico, poesia descritiva, o mesmo contrassenso. Não importa mais cantar as coisas, mas sim fazer com que elas cantem por si mesmas.

Durante Nosferatu, deixamos por um instante o país dos fantasmas para acompanhar a lição de um biólogo que explica aos seus alunos o poder aterrorizante de uma dessas plantas em forma de hidra que se alimenta de insetos. Perdoaremos ao maior dos cineastas por ter, através deste artifício, indiscretamente entregue a chave de sua simbologia. Assimilar a ideia à ideia ou mesmo a forma à forma, como queria Eisenstein, repugna à arte do movimento e a figura que nos fascina sobre a tela ou na pedra esgota aqui o nosso olhar, se ela dura. O movimento é o ser de cada coisa, condenando-a a sua função, absorvente ou radiante, sórdida ou nobre e, como na Bouche d’Ombre, implicando um julgamento moral. Duas direções privilegiadas, centrífuga ou centrípeta, dividem o mundo e a cada espécie atribuem sua amplitude. A morte é dissolução, o mal domínio, a vida crescimento, a pureza germinação. A ideia jorra do signo ao mesmo tempo em que o funda, como a tendência o ato.Que retórica de nossos poetas foi mais convincente? Solicitado por nosso canto, o universo, até aqui mudo, se decide enfim a responder.







O tema do desejo é cinematograficamente um dos mais ricos. Pois exige que a nossos olhos seja exposta a completa distância que, no tempo ou no espaço, separa o observador de sua presa. A espera desfruta dela mesma e o brilho terno de um pescoço ou, como em Ouro e Maldição de Stroheim, o resplendor do ouro colorem-se, para o desejo impotente, de uma sedução sempre nova. Algo que, espectadores, não deixamos de sentir frente a essas imagens impalpáveis e fugitivas que fixam nosso olhar, ao mesmo tempo realizado e desapontado. Todavia não tem o cinema outra ambição que a de embalar o deleite moroso de uma humanidade a quem a natureza revelou cedo demais os seus segredos? Há outras relações que a arte da tela se revela de partida menos apta a pintar. Não mais aquela dos corpos, mas de cada vontade, uma ao pé da outra. Não mais Creonte ou Antígona tomando o hemiciclo como testemunha de sua sinceridade. A mentira, antes, nos solicita; mas não basta que do engano apenas o acontecimento seja o juiz. É da própria hipocrisia que traz sob a máscara que o farsante tira seu poder. Tartufo não abusa senão de Orgon e talvez sua fascinação não seja assim tão potente, visto que ele não o engana totalmente. Que homenagem mais bela a Molière que o rosto hediondo de Jannings suando falsidade por todos os poros: Onofre, a resposta mesquinha de um crítico invejoso.

Mas por que, dirão, recusar a penetrar o coração do homem? A agitação em nosso rosto não é o signo de alguma comoção interior que ele trai? Signo, sim, mas quão arbitrário, visto que nega a força da falsidade e estreita ao extremo os limites desse mundo invisível ao qual ele se vangloria de nos remeter. Remontar cada um de nossos gestos à intenção que eles supõem equivale a reduzir o todo do pensamento a algumas operações sempre idênticas, e o romancista teria o direito de sorrir diante das pretensões de seu irmãozinho que batiza com o nome de linguagem essa álgebra elementar. Ir do exterior ao interior, do comportamento à alma, esta é, sem dúvida, a condição de nossa arte; mas amo que, nesse desvio necessário, longe de turvar o brilho daquilo que dá aos olhos, ela o aviva e, assim livre, a aparência dela mesma nos esclarece.

Com A última gargalhada, Murnau aborda um tema assaz ingrato, uma pura relação de alguém consigo mesmo, que é a importância que cada um dá aos seus fracassos ou triunfos, e não sei que falsa vergonha que nos impede sempre de nos compadecer com o sofrimento moral, quando ele altera até mesmo a própria máscara. Saibamos logo que o propósito do autor não foi o de provocar nossa piedade mas, supondo-a suficientemente viva em nós, de esgotá-la abarrotando-a, como faria com alguma má inclinação, crueldade ou desejo. Assim a arte nos liberta de todos os sentimentos, mesmo os bons, e justifica seu imoralismo devolvendo à ética o que lhe pertence. Admito que nosso prazer seja condenável se nasce do enternecimento ou de nosso sarcasmo, mas esses dois sentimentos muito humanos não têm absolutamente parte na fascinação que exerce em nós o destino tragicômico de nosso porteiro. Citem-me uma obra, romance, pintura ou filme, que tenha mais deliberadamente negado a nos tomar pelas entranhas, servindo-se tão-somente do prestígio dos efeitos mais tangíveis da emoção? Acrescento àqueles que censurariam na atuação de Jannings certo parti-pris de estatismo, que a imobilidade traduz aqui um estado de tensão dolorosa, não de equilíbrio. Uma familiaridade demasiado longa com as artes plásticas nos conduzira a assimilar a alegria ao repouso, a infelicidade à desordem. O que o pintor ou o escultor não obtêm senão por astúcia ou violência, “ a expressão”, é dado ao cinema como fruto de sua própria condição. Caberá, para torná-la mais intensa, nem sempre acelerar o ritmo, mas abrandá-lo até o limite insólito da fixidez.

Aurora nos leva ainda mais longe no coração desse mundo íntimo onde os sentimentos, amor e ódio, felicidade e tristeza, desejo e renúncia nutrem-se de si mesmos e morrem de seu próprio excesso. E, contudo, nenhuma concessão às facilidades da elipse e do símbolo, uma espécie de harmonia preestabelecida parece atribuir a suas vicissitudes o ritmo das modificações do céu. No derradeiro desvio de nossa busca interior, encontramo-nos de novo face ao mundo. O cenário faz parte do jogo; se ele não consente senão raramente em se animar, não deixa de regular sempre, de alguma maneira, os deslocamentos dos personagens. À tirania dos limites do “quadro”, ele substitui suas leis. Não cedamos senão com cuidado às seduções da proporção áurea e da bela imagem. Qual fotografia igualará jamais a menor das frases? Por outro lado, qual dos mais belos versos de nossos poetas se vangloriaria de exaurir a magnificência desse mundo sensível que só o cinema tem o privilégio de oferecer intacto aos nossos olhos?




As imagens de Tabu brilham com todo o fulgor dessa beleza que elas nos entregam sem intermediários e o trabalho do fotógrafo é, através do excesso da arte, o de melhor mascarar seus ardis. Ele não trapaceia senão para aperfeiçoar um decalque que, baço, teria traído. Mas nada de ceder aqui à fantasia fácil das sombras, de envolver num mesmo halo esses objetos - palmeiras, ondas, conchas ou juncos - que os raios de sol marcaram com suas estrias inalteráveis. Vestidos de uma luz que é somente deles, eles se iluminam com suas diferenças e, sob sua casca múltipla, postulam uma polpa comum. Fascinado por seu modelo, o artista esquece a ordem que se gabava de lhe impor e, ao mesmo tempo, revela a harmonia da natureza, sua unidade essencial. O canto vira hino e prece; a carne transfigurada descobre aquele além de onde ela extrai vida. Não tenho medo de chamar de sublime essa fusão espontânea de sentimentos religiosos e poéticos.

E, deste reino dos fins onde nos encontramos agora, estamos em pleno direito de condenar a ambição louca de nosso tempo, impaciente demais em dominar o universo para conhecer dele outra coisa que uma substância abstrata e maleável, com a qual ele crê abrandar sua inquietude. Rompendo com a natureza, a arte moderna rebaixa o homem que se propôs a elevar. Evitemos seus caminhos, mesmo se ela nos seduz por meio de uma distante e problemática saudação. O cinema, instintivamente, repugna todo desvio perigoso e nos desvela uma beleza que tínhamos cessado de crer eterna e imediatamente acessível a todos. Estabelece na felicidade e na paz aquilo que fazíamos fruto da revolta e da ruptura. Descobre-nos de novo sensíveis ao esplendor do mar e do céu, à imagem mais banal dos grandes sentimentos humanos. Miraculosamente, o cinema sela o acordo entre a forma e a ideia e banha nossos olhos ainda jovens na pura e uniforme luz do classicismo.

A arte evolui pelo efeito de um impulso interior, não da história. Quando muito, sem nos alterar, nos arrasta para longe de nós mesmos, e se perde nos perdendo. Saboreemos portanto nossa chance: retenhamos ciosamente em nossas mãos um instrumento que sabemos ainda apto a nos pintar tal qual nós nos vemos. Que tal certeza, tão simples, nos reassegure e nos proteja de empreendimentos inúteis. Se algum cineasta ler estas linhas, talvez se surpreenda que eu louve em sua arte aquilo que ele mais deve ao acaso e privilégio de sua condição que ao fruto de paciente pesquisa. Mas de que serve repetir que o cinema é mesmo uma arte, isto é, escolha e perpétua invenção, não utilização cega da potência de uma máquina? As obras estão aqui, e o provam por si mesmas. Assim, meu propósito não era o de mostrar que o cinema nada tem a invejar das outras artes suas rivais, mas de falar daquilo que estas, por sua vez, poderiam lhe invejar.

Vanité que la peinture foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 3, junho de 1951. Tradução: Eduardo Savella e Letícia Weber Jarek.

A Cidade dos Piratas

Há filmes dos quais não estamos certos se não foram sonhados. São estes, talvez, os mais belos. Tal como esta nova aventura do capitão Ruiz no país de nossas crenças.

por Serge Daney

Tome uma criança e assegure-se de que sonha. Desperte-a e conte-lhe uma história. Embale-a com sua mais bela voz off. Faça-a insidiosa, não se esqueça da trilha sonora. É preciso que, adormecida novamente, a criança complete sonhando a história que lhe fora insuflada. É preciso que, ao despertar, ela sinta que foi a história que a escolheu, a ela, e não o inverso. Uma história imortal, título de um dos últimos filmes de Welles; mas toda história é imortal, dizem as de Ruiz. Disto as delícias, depois o excesso de delícias, depois o terror.

Mas se você não dispõe nem da criança adormecida, nem do tempo em suspensão, nem da voz que embala, nem de talento para improvisar (isto é, a arte de ter sempre a última palavra) não insista e renuncie a imitar Raúl Ruiz. Só ele parece ter guardado o segredo e o gosto para tais coisas. Desde o silêncio de Welles e a partida de Buñuel para a Via Láctea, fala-se muito de um retorno do cinema à ficção. Mas muito pouco do retorno da ficção (como se diria retorno do reprimido, ou retorno de Frankenstein). Os filmes de Ruiz são relatos, e possuem um caráter iniciático. Espiralados, trucados, intrincados ou maléficos, possuem um charme louco. Mesmo se foi preciso esperar dez anos (da queda de Allende em 1973, que exila Ruiz de seu país natal, à estreia, ano passado, de As Três Coroas do Marinheiro) para que um público de repente menos insignificante tombe sob este charme e marche em direção desta loucura.

Isto malgrado a reputação dada a Ruiz de hermetismo e de intelectualismo, que prova tão-somente que, logo que confrontados a um verdadeiro barroco latino-americano, os franceses têm dificuldade em admitir que sua própria tradição de filmes-labirinto, jogos de quebra-cabeça ou do Ganso, à Robbe-Grillet ou Resnais, não foi decisiva. Dito isto (e uma vez dito, não diremos mais, é uma promessa: na próxima, consideraremos Ruiz já conhecido, senão reconhecido) A Cidade dos Piratas, que faz quase um par com Três Coroas de um Marinheiro e que evoca esse filme mais ou menos bem sucedido que foi O Território (três filmes rodados em Portugal) possui sua tonalidade própria, seus truques íntimos, seus sucessos fulgurantes e suas falhas secretas. Em suma: um filme excelente, onírico, próximo do inenarrável e totalmente consumado.

Por onde começar? Retomemos a metáfora do adormecido. Estamos no Sul, defronte o oceano, sujeitos a todos os paradoxos. Em seu quarto, Isidore está adormecida. Sim, adormecida, pois trata-se de uma mulher. Sua mãe, que mal parece mais velha, acorda-a dizendo: "Dormes, Isidore?". "Conta-me uma história", responde a vozinha de criança de Isidore. Sobre uma mesa, ao lado, algum dinheiro deixado pelo pai. Ele abusou de novo de Isidore, e acaba de lhe pagar. Esta cena não dá, evidentemente, ideia alguma dos incontáveis acontecimentos que povoam esta Cidade dos Piratas, mas todo o Ruiz, de certo modo, se encontra nela. Como Buñuel, Ruiz se compraz com as mais simples permutações lógicas. Perversão de nome e de gênero, de idades e de amores, do antes e do depois. Incesto, relação social feita jogo de palavras ou "jogo das sete famílias". Além disso, essa "cidade" não é mais que uma ilha, salvo que não tem senão um habitante que interpreta todos os papéis. Para aqueles que dependem do conforto da identificação (quem é quem?) Ruiz é o menos seguro dos guias. Ele não acredita na identidade, não acredita senão nas cartas [cartes, tanto cartas de jogo quanto mapas geográficos]. Marcadas, de preferência.

Isidore beija um policial de modo que o formato vermelho do beijo revela ser aquele da famosa ilha dos piratas. Um homem explode os miolos de tal forma que um naco destes, ejetados num rio de sangue, desenha a forma da ilha. No começo, nada a não ser enigma; no fim, nada a não ser resíduo. No meio tempo a bela Isidore conhece um menino, mas este anjinho do mal é um grande criminoso. Ela se torna sua noiva e cúmplice; e segue-o até a ilha. Isidore retornará, sim, mas em que estado! Adivinhamos que a pequena palavra que está mal e deslocada no universo ruiziano é o verbo "ser". Está claro que nada se ganha em querer relatar A Cidade dos Piratas. Está claro que nada está claro.

Entretanto. Quanto mais nos desencorajamos em identificar aquilo (aqueles) que vemos na tela (ao ponto em que enfim gritamos mentalmente "puxa", e nos roça o tédio), mais Ruiz se compraz com a aparência das coisas, esse peso material, anedótico, que guardam apesar de tudo.

Dois macabeus putrefatos (mais orgulhosos ainda) tomam um chá Durassiano, um bocejo é filmado do ponto de vista da glote, detalhes em primeiríssimo plano carregam a imagem sem razão, uma caveira vira bola de rugby; toda uma ala da pintura espanhola do século XVII, aquela das Vaidades, do Valdes Leal dos Hieróglifos de nossos fins últimos, está prestes a se animar. Sob a pulsão dos vermes [vers].



De todo modo, quanto mais renunciamos saber em que tipo de filme caímos (ao ponto em que, lá pelo meio, cansados e lassos, achamos que já é o bastante) mais Ruiz se distingue em evocar, com alegria constante, o fantasma dos filmes B americanos, de Cocteau, ou dos filmes da inglesa Hammer. Há um pouco do John Mohune do Moonfleet de Lang no menino de A Cidade dos Piratas, como há um pouco de Tourneur (aquele de A Morta-Viva) no tom alucinado de algumas vozes. Como se, para se desculpar da abracadabrância de sua própria narrativa, Ruiz a vestisse com a memória dos relatos com os quais tivemos tão pouca dificuldade, na infância, em nos sentir em casa.

Quanto mais nos convencemos de que a linguagem, ela também, está encurralada, mais Ruiz é capaz de fazer falar os atores com um tom tão doce, com este nadinha de amuo desolado na voz, que torna perturbadoras as frases mais simples. Há poucos cineastas, dentre os que filmam em "francês", que capturaram melhor a música do "era uma vez..." francês, o musical que abre as portas de todas as histórias. Há poucos compositores que, melhor que Arriagada (cúmplice regular de Ruiz) saibam inventar notas dignas de um Ravel hollywoodiano e irônico. Enfim, quanto mais aceitamos seguir Ruiz em sua folia de autor, mais é preciso que nos rendamos à evidência: ele está cada vez mais seguro na escolha de seus atores. Em A Cidade dos Piratas, Anne Alvaro (Isidore) e Melvil Poupaud (o menino) estão particularmente bons.

Tudo isso, vocês dirão, tem um nome. Sim: sedução. Mas é a forma que seduz. Resta o fundo. Ruiz não é um esteta oco. Há um sentido em suas histórias, que creio terrível. Um fundo de imundície e promiscuidade que nenhuma poesia poderia silenciar por completo. Os cineastas - já dizia eu no começo (por provocação) - perderam quase todos o senso do relato. Mais ainda, o único que o conservou intacto (Ruiz) realizou sua loucura pessoal. O espectador "cartesiano demais" estará menos desamparado diante de um filme como A Cidade dos Piratas se se dignar a ver As Três Coroas do Marinheiro (que passa ainda, numa sala apenas, em Paris). Neste filme, Ruiz expõe em que condições uma história pode se tornar imortal. Ele precisava de carne fresca. Aquela daquele que contará tal história como se acreditasse que esta não existisse senão para ele. Aquela daquele a quem tal história foi contada e que pensa (erroneamente) que esta não o alcançará jamais. Tornada imortal, a história não cessa de retornar. Em A Cidade dos Piratas, numa primeira vez como filme de aventura, numa segunda como teatro Cocteau-ante, numa terceira como seminário teológico, numa quarta como colóquio entre mortos.

Viver, é sonhar uma história; morrer é contá-la. Resta a eternidade para apodrecer.

Publicado no Libération, a 25 de fevereiro de 1984. Editado em Ciné Journal, vol. II. Traduzido: Eduardo Savella.

Elena e os homens



Por
Jean-Luc Godard

Dizer que Renoir é o mais inteligente dos cineastas é como dizer que ele é francês até o último fio de cabelo. E se Elena e os homens é “o” filme francês por excelência, é porque ele é o filme mais inteligente do mundo. A arte ao mesmo tempo que a teoria da arte. A beleza ao mesmo tempo que o segredo da beleza. O cinema ao mesmo tempo que a explicação do cinema.

Nossa bela Elena é apenas uma musa do departamento. Sem dúvida. Mas à procura do absoluto. Pois filmando Vênus entre os homens, Renoir, durante uma hora e meia, sobrepõe o ponto de vista do Olimpo ao dos mortais. Diante dos nossos olhos, a metamorfose dos Deuses cessa de ser um slogan de bazar para se tornar um espetáculo de uma comicidade desoladora. Pelo mais belo dos paradoxos, na verdade, em Elena, os imortais aspiram morrer. Para ter certeza de viver, é preciso ter certeza de amar. E para ter certeza de amar, é preciso ter certeza de morrer. Eis o que descobre Elena nos braços dos homens. Eis a estranha e dura moral desta fábula moderna disfarçada de ópera-bufa.

Trinta anos de improvisação na filmagem fizeram de Renoir o primeiro técnico do mundo. Ele faz em um plano aquilo que os outros fariam em dez. O que eles fariam num só plano, por sua vez, Renoir dispensaria. Jamais um filme foi mais livre que Elena. Porém, no mais profundo das coisas, a liberdade é a necessidade. E jamais um filme foi mais lógico.

Elena é o filme mais mozarteano de seu autor. Menos pela aparência exterior, como A regra do jogo, do que pela filosofia. O Renoir que termina French Cancan e prepara Elena é um pouco, moralmente, o mesmo homem que conclui o “Concerto para clarinete” e começa “A Flauta mágica”. Quanto ao fundo: mesma ironia e mesmo desgosto. Quanto à forma: mesma audácia genial na simplicidade. À questão, o que é o cinema? Elena responde: mais que o cinema.

1956 - Eléna et les hommes foi publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 78, Natal de 1957. Tradução: Miguel Haoni.