O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Para Jean-Luc Godard



Por Bernard Eisenschitz

(Esta carta, enviada a Jean-Luc Godard por Bernard Eisenschitz, foi incluída no dossiê de imprensa do filme para o último Festival de Cannes. Nós agradecemos o autor por nos autorizar sua reprodução.)


04/05/2018

Caro Jean-Luc,

Obrigado por ter me convidado a assistir Imagem e Palavra. [...]

Você recria uma matéria pictórica com diversas fontes e formatos. Deformada, recolorida, aumentada pelos grãos, reenquadrada.

Bloqueada toda a sedução das imagens e também do texto, gaguejado, trêmulo, interrompido, recoberto.

Nas constantes interrupções, estar dividido entre aquilo que é representado e a máquina do cinematógrafo com seu próprio desenvolvimento, suas perfurações, sua decomposição. Reencontrar, através dessa, o descontínuo com os meios do digital.

A definição muito justa e bela do contraponto nos dá uma pista.

Ondas, chamas, bombardeamentos, exércitos, a história e o mundo em um espetáculo estrondoso à maneira de Dovjenko ou Vidor.

Um grande fluxo sinfônico. Mas não para contar uma história. Na verdade, não é mais “o cinema". Como o primeiro leitor de Moby Dick (segundo Giono): Isso não é um livro. – Não, diz Melville.

Não o suficiente para torná-lo popular, diante do digital onde se vê tudo e nada por trás (eu tive essa experiência com os filmes de Vigo, espero ter evitado isso por pouco).

Supomos que já entendemos o que você está falando. É o que há de surpreendente nesse filme.

“Se torna necessário chamar a atenção”, na verdade. Mas isso não foi mostrado dessa forma, por vezes dito, com os governos bestas selvagens de Hugo.

Os remakes foram inventados por Marx em seu Louis-Napoléon. A história se repete, mas aqui não como farsa. Os erros morais se confundem com os crimes de Estado. Há criminosos que só existem por conta da guerra. A humanidade está se destruindo. Há anos que a guerra está em todo lugar, cada vez mais literalmente, no sentido em que Goya ou Joseph de Maistre (eis como sua presença se explica). O hábito continua.

Dizer que Imagem e Palavra é de uma grande coragem, sem precedentes, é uma obviedade. Mas é o sentimento que me vem.

É verdade, como dizem os jovens que lhe escrevem no Lundi Matin, que você é o único que, etc. (Eles não acreditam tanto nisso, para dizer a verdade, fico curioso que eles vejam isso mesmo)

Você sempre esteve dentro da história, pensando que é para isso que o cinema deveria servir.

A partir das História(s), tratava-se antes de tudo sobre isso, antes da cinefilia contar suas pequenas histórias (que não são poucas).

Desta vez, a própria matéria, é a história.

Na verdade, você não está se afastando do cinema; simplesmente, ele só não é mais um amor dominante.

Ele serve como uma caixa de tipografia na qual o tipógrafo analfabeto de Fuller encontra a toda velocidade seus caracteres.

E você guarda o caractere, o hieróglifo com o qual Eisenstein sonhava. (Ele também, suas três aparições são magníficas: a coruja, as mãos sobre a Bíblia e o cavaleiro teutônico. Ele queria ter feito sua catedral das artes, sozinho. Sua resistência já era aquela da esperança, sua solidão também).

Você encontra todas as imagens nos filmes ou nas pobres atualidades. É apenas a justiça. Ainda melhor se Ridley Scott sirva para encher uma caixa tipográfica.

E para não se afastar do cinema, são suficientes dois longos planos do Plaisir nos quais se vê corpos em movimento que nos dão uma certa definição.

O pensamento se desenvolve nas imagens e nos sons (“um pensamento / virá / a seguir, como numa colagem que fizera uma amiga pegando os textos das imagens de História(s)).

É um bloco e é articulado como os cinco dedos... mais uma dessas coisas que eu não compreendia no papel.

Enfim, mesmo se o reemprego de História(s) são aquilo do qual eu tenho menos curiosidade – não se pode mudar sua escrita –, eu amo a ideia da imortalidade através de filmes líquidos, de Vertigo à Ruby Gentry passando por La Femme au corbeau.

E os momentos de calma da Arábia feliz nos quais eu vejo alguma coisa da felicidade de Barnet: o pôr do sol, um barco sobre o mar brilhante, os cantos banais do Maghreb que valem por toda a Arábia, aquela que temos atrás dos olhos.

[...] Mais uma vez obrigado,

Saudações,
B. E.

À Jean-Luc Godard foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 107, no outono de 2018. Tradução: Evandro Scorsin.