O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Camille Nevers / Sandrine Rinaldi sobre a Diagonale


Entre os dias 9 e 11 de outubro de 2024, Miguel Haoni ministrou o mini-curso "Arquipélago dos Amores: Introdução ao cinema da Diagonale" na Universidade do Estado do Paraná. No último encontro, os estudantes conversaram com a crítica e realizadora francesa Sandrine Rinaldi (também conhecida como Camille Nevers) sobre a produtora de Paul Vecchiali. 

Rinaldi escreveu sobre todos os principais cineastas da Diagonale e dirigiu Michel Delahaye no seu primeiro filme (Mystification ou l'Histoire des portraits, 2004) e Marie-Claude Treilhou no segundo (Cap Nord, 2007), dois dos personagens principais desta história

Suporte técnico e gravação: Victor Cardozo 
Tradução consecutiva: Letícia Weber Jarek e Miguel Haoni

“Como Você Sabe”, pequena maravilha de delicadeza e humor

Por Axelle Ropert

Um equilíbrio miraculoso entre comédia e melodrama. Uma inteligência sem igual no entendimento dos sentimentos humanos. Um esplendor.

Não se engane nem com o pôster e nem com o título que vendem uma comédia anônima: Como Você Sabe é pura e simplesmente o filme mais maravilhoso do ano que se inicia.

James L. Brooks não é um desconhecido, mesmo se ele filma pouco (seis filmes em vinte e sete anos), sem dúvida por causa da minúcia absoluta de seu cinema, devoradora de tempo.

Cineasta refinado, sim, o que não faz dele o cineasta de cabeceira da inteligentsia, mas sim um padrinho secreto do entretenimento americano (Apatow o venera), um pouco como McCarey e Rohmer inspiram o respeito à todos: pode-se até não gostar dos filmes deles, mas a arte deles implementam uma forma misteriosa e indiscutível de integridade.

As grandes palavras são lançadas, de modo que Como Você Sabe avança minuciosamente e só revela pouco a pouco a sua imponência. Uma esportista em declínio é expulsa do time nacional de softball. Ela conhece um jogador de beisebol em plena ascensão e um homem de negócios em queda livre. Quem ela escolherá?

Reese Witherspoon interpreta a chihuahua esportiva, Owen Wilson é o atleta idiota e ultra egoísta, Paul Rudd é o filhinho de papai (Jack Nicholson) sobre o qual o mundo está desmoronando.

Vivacidade feminina, loirice masculina idiota, mas vigorosa, morenice masculina angustiada, mas terna, se esfregam constantemente umas nas outras, agitadas por uma questão que o espectador, afinado, identificará ao mesmo tempo que os personagens.

A questão é profundamente americana: com qual dosagem de otimismo e pessimismo devemos encarar a vida? No fundo, mais do que uma escolha entre dois homens, é isso que Reese Witherspoon deve escolher, heroína rohmeriana que teria esquecido a metafísica (europeia demais para o filme) em prol da psicologia prática (estamos nos Estados Unidos). Ela está em uma encruzilhada em sua vida: deve escolher o homem otimista, reconfortante, mas bruto, ou o homem pessimista, inteligente, mas angustiado? Ao final das duas horas de filme, saberemos.

Assim, enquanto a maioria das comédias atuais adota um ritmo aleatório, os filmes de Brooks avançam em função de questões que não cessam de se metamorfosear para encontrar sua melhor fórmula: quando a melhor fórmula é encontrada, o filme pode parar.

As cenas são constantemente corrigidas: se Reese Witherspoon anuncia-se de início como uma mamãezinha (ela desaprova o tom feminista de Kramer vs. Kramer), ela diz alguns instantes mais tarde que a ideia de formar uma família a faz fugir.

É sempre na segunda vez que a verdade advém, porque para obter a exatidão, é preciso tempo, é preciso descascar as palavras. E do tempo, o filme requer: uma duração orgânica se desdobra a fim de que a ficção possa finalmente brilhar, inteiramente exposta em seus dados.

É aí que as coisas se complicam, pois o otimista e o pessimista não deixam de se esforçar para ser um pouco menos: Owen Wilson tenta matizar com preocupação a sua beatitude, Paul Rudd esforça-se para oferecer um rosto sorridente. Como Você Sabe é uma comédia de esforços virtuosos onde não se trata de comportar-se bem, mas de ser o mais justamente feliz: uma questão de sutileza infinita, tipo, como você sabe?

Os personagens brooksianos são pessoas que não conseguem deixar de ser o que são e que te fazem rir com a teimosia de seus caráteres. Mas eles também são personagens que fazem qualquer coisa para deixar de ser o que não conseguem deixar de ser, sendo que esse esforço de mudança é tão comovente quanto os primeiros passos de uma criança: a cada vez, é como se uma nova era começasse, talvez .

A vitória é sempre frágil, sujeita a uma recaída, e estremecedora. No mais, o filme é super divertido (atenção ao “good talk” de Owen Wilson) e não vamos lhe dizer evidentemente quem sai vitorioso, ou melhor, feliz.

« Comment savoir », petite merveille de finesse et d’humour foi publicado na revista Les Inrockuptibles, em janeiro de 2011 ("Comment savoir", petite merveille de finesse et d'humour | Les Inrocks). Tradução : Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.

Tudo começa em canção…






Por Gilles Esposito

Como (ainda) viver juntos? Poderíamos acreditar que no cinema essa pergunta interessante só encontraria resposta nas grandes missas ao humanismo rançoso (de A voz do coração aos piores filmes independentes americanos) ou no culto ao passado (do Crime de Monsieur Lange à cavalaria de John Ford). Ora quatro filmes recentes (estreados especificamente na França entre 26 de janeiro e 9 de março deste ano) fazem-se ouvir em diferentes modos, entre Hollywood e Paris, de abordar frontalmente a ideia de comunidade: ilustração do último (?) gênero congregador (Meninas malvadas), reativação não nostálgica dum outro (Espanglês), deslocamento da Cinecittà ao mar da China (A vida marinha); enquanto Les Métamorphoses du choeur perscruta a inquietante familiaridade dos rituais do 13º arrondissement, onde reside a forma primitiva do coletivo, o canto coral. Afinal, a música pode não somente acalmar os ânimos, mas também aplicar, como os lamentos das sereias, o bálsamo benfazejo do esquecimento.

Another teen movie: Meninas malvadas

Em tempos de gentileza proverbial e de desdramatização forçada, o “filme de campus” parece ter se tornado o último refúgio da crueldade e da dramaturgia aferente. Universidades e escolas representam por excelência o ponto de tensão máxima no qual uma comunidade, agregada pela escolarização obrigatória e o olhar dos vigilantes, deve se virar com o caráter profundamente desigual da puberdade, entre uns que têm corpos recém-saídos da infância e outros com as anatomias já formadas. Nos últimos anos ainda se viu a estreia do belo filme fantástico coreano Memento mori e de um grande número de comédias americanas, chegando ao ultraje autoparódico de Não é mais um besteirol americano (título original: Not Another Teen Movie). A crítica que saiu no Technikart define, no entanto, Mean Girls (ou Meninas malvadas) como um espécime terminal de um gênero moribundo, outrora triunfante e que representa apenas uma porção infinitesimal da produção US. Ainda que se apoie no best-seller Queen bees and wannabees, guia sociológico que explica às mães de família desamparadas o impiedoso universo escolar do ensino médio aonde elas veem partir todas as manhãs suas filhas, vestindo jeans de cintura baixa e calcinha à mostra, é certo que o filme despreza qualquer princípio moralizador.

Mas, longe dessas visões eruditas, fiquemos com um belo otimismo. O longo travelling que passa em revista as mesas do refeitório e os grupos ali reunidos (belas blacks esnobes, nerds espinhentos, losers, atletas, etc.) vem menos da antropologia estrutural do que da combinatória de possíveis relações entre os personagens, fonte inesgotável para a ficção. O final unânime não engana ninguém — a chegada de uma nova geração de garotas adolescentes dará certamente lugar a um outro filme, e assim sucessivamente. Basta um novo peão no tabuleiro para dar início a uma outra partida… ou batalha; e aí está a ideia, a única, de Meninas malvadas: trazer um personagem de “home school”, educado por seus pais, para desembarcar no ensino médio sem conhecer o mínimo dos rituais escolares. Nada de surpreendente já que esse “another teen movie”, o filme a mais, funciona num esquema sutil de regra e exceção, de mudança de tempo e de tonalidade — A cena a ser feita, a sequência musical. A heroína destitui sua rival, a abelha-rainha, durante a festa de Natal na qual, após um incidente técnico, uma versão Rn’B de Jingle Bell se transforma em coro a cappella. Mas verdade seja dita: não se trata de um jogo qualquer com os códigos, do jeito que gostam os teóricos do gênero; se há referências, elas não levam a reflexividade muito além do que o filme de um estúdio concorrente que estreou alguns meses antes. Assim como a versão disforme de Dancing With Myself de Billy Idol, que é gritada nos créditos finais, não se quer brincadeira ou revival eighties; destinada a um público que, com razão, nem se lembra dos hits do ano passado, essa interpretação malandra de uma canção ruim só está ali para nos guiar até a saída da sessão. Seríamos bobos de não aproveitar.

O monstro de mil faces: Les Métamorphoses du choeur

Bobos seríamos também se deixássemos passar a radical simplicidade do dispositivo do documentário Les Métamorphoses du choeur de Marie-Claude Treilhou, totalmente composto por registros de ensaios de um coral. O espanto vem somente após um tempo, frente à extraordinária variedade de fisionomias e jeitos dos membros do que nos dizem ser um Conservatório de música, aparentemente vindos de todas as camadas da sociedade. Mas aqui também a etnografia fácil é combatida graças às tomadas de partido formais da realizadora. As panorâmicas que descrevem pacientemente os diferentes grupos de cantores (ou “elementos de coro”) aproximam-lhes os rostos uns dos outros enquanto também circunscrevem a área comum onde eles deverão coexistir em harmonia. E sobretudo, sempre que possível, cada corista é enquadrado da cintura pra cima a fim de melhor resolver a oposição entre a origem das vozes angelicais (o peito) e as caras de quem não está em ação, o diferencial a ajustar-se entre o fôlego e o canto. O filme adquire então um clima de reportagem sobre uma seita estranha — os mestres da música sucedendo aos Mestres loucos? —, particularmente com os exercícios lúdicos propostos às criancinhas a fim de que tomem consciência de sua respiração e possam controlá-la. Ora se o fôlego é um “aquém” do canto, a parte que vai além é a palavra, que ressoa pela primeira vez quando a capitã do coral explica a seus pupilos o texto da obra, sem saber-lhe o significado eles não poderiam dar uma interpretação satisfatória. Sendo um filme sobre a arte, é do tipo que consagra integralmente sua duração à busca obstinada do elo justo entre a voz, o canto e o sentido: a matéria, a obra e a ideia.




Mas o filme é ainda algo a mais. Ele se encerra de fato no instante exatamente anterior à performance tão ardentemente ensaiada, na sala de concerto onde estão reunidos pela primeira vez os vários “elementos de coro”, como pedaços de tecido e de carne que, juntos, fundem-se numa nova criatura Frankenstein. É, no entanto, o oposto da ficção científica em cuja direção o filme de campus, essencialmente individualista, inclina-se ao subordinar mil corpos diversamente constituídos a uma só cabeça pensante, como a ruivinha heroína de Meninas malvadas. Mais como um filme de terror clássico que, como sabemos, só faz surgir o monstro em último lugar; o plano conjunto final descobre um corpo gigantesco, unificado pelo canto, que carrega uma infinidade de rostos díspares. Compreende-se assim a pertinência do título escolhido por Marie-Claude Treilhou: Les Métamorphoses du choeur é um grande filme fantástico.

Uma certa qualidade de silêncio: Espanglês

Por outro lado, não há apego paradoxal a esse ou àquele gênero em Espanglês, que se inscreve já de saída na linhagem de comédias familiares de Vincente Minnelli, como em Papai precisa casar. Essa crônica da vida doméstica de uns hipsters californianos, subitamente perturbada pela chegada de uma empregada doméstica estritamente hispanófona e de sua filha, foi recebida na França com um silêncio ensurdecedor da crítica que resultou num fracasso comercial retumbante. Entretanto, além de suas qualidades indiscutíveis (escrita elegante, diálogos brilhantes), fica uma pergunta importante: por que é tão bom? Aqui, mais uma vez, podemos propor uma hipótese musical.




Se o filme de James L. Brooks não fica em dívida com sua herança minnelliana, é porque ele retoma o emblema dessa tradição, a famosa “cena a dois” em que o autor de Brotinho indócil se fartava ao confrontar as gerações com todas as combinações possíveis: pai/filha, mãe/filho, etc. Ora aqui o roteiro se bifurca várias vezes, sempre adiando a descoberta de seu verdadeiro tema com uma liberdade narrativa tão exemplar que cada integrante da família recebe um tratamento igual. O que se segue é um verdadeiro carrossel de duelos verbais, que obedece a uma composição rigorosamente coral. E se por acaso uma sequência comporta três personagens ou mais, o jogo de traduções simultâneas a remete ao mesmo princípio, da entrevista de emprego terminada graças a um rolar de “rrr” triunfal à excepcional discussão entre o pai e a empregada, que é de fato uma “dupla cena a dois”. Intérprete de improviso, a filha da empregada concilia aqui duas conversas paralelas, e sua hesitação contínua entre “eu” e “ela” estabelece a pulsação metronômica que faz, por assim dizer, espiralar a briga no espaço até que se atordoe.

Todavia, dois tipos de sequência ainda são necessários para que todas as harmonias se desenvolvam. A primeira coloca em cena a avó, que sua nora obstinadamente apresenta usando seu nome de quando era cantora famosa. Ela canta seus antigos sucessos com seu neto, às vezes num canto do quadro ocupado por outra dupla — procedimento que dobra mais uma vez o sistema da “cena a dois” mas que sobretudo lhe fornece o contraponto que faz ressoar o conjunto, como numa câmara de eco. O segundo tipo diz respeito aos “simples” encontros tão adiados entre o pai e sua empregada. Eles se olham estupefatos e mudos, fazendo surgir uma certa qualidade de silêncio (componente fundamental da música, há que se lembrar) que faz com que seu improvável amor seja gritantemente verdadeiro. Nada mal para uma obra-prima polifônica que já foi julgada por aí como uma barulheira desinteressante.

Pequenos arranjos com a crença do espectador: A vida marinha

Se Espanglês se valia de uma cena intimista e a submetia a um desenvolvimento orgânico, A vida marinha escolhe a opção inversa, encontra as alegrias da narrativa de formação ao proliferar personagens e peripécias. A matriz do filme de Wes Anderson é então o plano vagamente godardiano que mostra um corte longitudinal do barco, onde empilham-se as diferentes cabines. A primeira casa a vir à tona no Cinemascope são as quadradas imagens oceanográficas rodadas por Steve Zissou, avatar abobado do comandante Cousteau, tão cheaps quanto ingenuamente roteirizadas. Estamos, no entanto, longe da evocação emocionada e debochada do cinema cafona, documentário que seja, já que o “real” é tratado do mesmo modo que o “filme dentro do filme”, com cores em tons pastéis e dicção átona. Alguns se ressentiram dessa platitude de superfície e da duração das gags; no entanto, não é difícil perceber o ritmo tranquilamente requebrante do filme, cujo ritmo é marcado por Bill Murray na agradável ondulação da bacia. A oscilação entre dramatização e desdramatização nos faz então ver com novos olhos as figuras obrigatórias do cinema de ação nas cenas hilariantes em que Zissou derrota uma tropa de piratas com uma pistola de plástico.




Tenta em vão multiplicar suas investidas, em todos os sentidos do termo, já que descobrimos num diálogo que ele não pode ter filhos. A revelação da esterilidade de Zissou acaba inscrevendo o filme no nível do alto romanesco, lugar em que grassam os grandes temas de filiação e transmissão, apesar de — ou mais precisamente graças a — sua singular mistura de tons. Como na comovente cena em que o vemos, num macacão de homem-rã, propor numa voz terna a seu suposto filho que se junte a sua equipe. Da mesma maneira, a conclusão entrega um fôlego épico que parecia ter desaparecido das telas quando, novamente afinados, Bill Murray e sua equipe se lançam em câmera lenta no cais.

Para dar a cadência, nada melhor que os lamentos que Seu Jorge canta acompanhado de seu violão, os quais logo percebemos serem versões lusófonas dos principais sucessos de David Bowie. As entradas do astro brasileiro não são mera repetição melódica no filme — são o que define sua batida. A vida marinha não é paródia, nem homenagem, nem recriação do cinema de ficção científica ou de aventura exótica. É sobretudo uma transcrição musical, uma tradução, uma passagem direta de um estilo a outro, como fazem os hitmakers do Terceiro Mundo que adaptam sem vergonha os sucessos ocidentais à moda do tempero local. A odisseia de Bill Murray nos leva bem longe da problemática do “desaparecimento da crença do espectador” e de seus supostos paliativos (maneirismo, simulacro, desconstrução moderna etc.), assim como não deslinda os “novos territórios do cinema” que são a profissão de fé de alguns sujeitos. O horizonte que ela abre é o do intérprete (como o filme de James L. Brooks se resumia em “Spanish traduzido em english” ou o contrário) e da interpretação, assim como se repetem sem cessar os arranjos de uma ladainha centenária. Conheça-se o original ou não: não há mais importância.

Tout commence par des chansons… foi publicado na revista La Lettre du Cinéma n°30, maio/junho/julho de 2005, pp.54-59. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

Como eu me enganei... (ma comè filma?!)






Sobre Como eu briguei.. de Arnaud Desplechin

Por Stéphane Malandrin e Dominique Marchais

Fato notável: a quase totalidade da crítica saudou o último Desplechin como a chegada do Messias. De um ponto de vista midiático - e estritamente midiático... - o cineasta se encontra, tudo igual, aliás, na mesma posição que o Godard dos anos 60. O trabalho de Desplechin está longe de ser negligenciável, e não teria porquê cutucar a onça com vara curta, se não tivessem enchido nossos ouvidos de referências totalmente deslocadas. Muitos críticos chegaram a comparar Como eu briguei... e A mãe e a puta. É melhor ser surdo do que ouvir isso... E se falássemos do filme em si?

1. Primo

Poderíamos jogar por muito tempo o jogo dos sete erros, retrato contra retrato, filme contra filme, entabular a lista de razões que fazem com que A mãe e a puta e Como eu briguei... não tenham nem filiação, nem semelhança, nem fraternidade. Nos limitaremos, por enquanto, a sublinhar esta diferença fundamental: o filme de Eustache viu alguma coisa, o de Desplechin quase se envaidece por não ter visto nada, e sobretudo por não ter nada a mostrar. Se Desplechin está longe de alcançar os objetivos é porque nunca olhou seus personagens, ele não quis escutá-los, nem se interessar por eles, nem verdadeiramente amá-los - preocupações elementares de A mãe e a puta, essa obra amorosa que esboçou com humor e seriedade, por seus atores, a convicção de uma saudação coletiva. Como eu briguei... observa e pratica "o amor" de seus personagens com a ciência consumada e o sorriso de canto daquele que já sabe como proceder não para fazer cinema, mas para seduzir os críticos de cinema.

2. Ver para crer

Ou, por exemplo, a cena de sedução entre Paul-Amalric e Valérie-Balibar, no carro. Um homem, uma mulher. Por que eles estão ali? Porque Valérie está um pouco apaixonada por Paul e Paul, aparentemente, gosta de se deixar seduzir. O que acontece? O que eles dizem um para o outro? Literalmente, os dois personagens não dizem nada. Eles são privados de sua troca de palavras por uma voz off que cobre a totalidade da discussão. Que diz a voz off? Que Paul está contando para Valérie seu amor por uma outra garota (Sylvia-Denicourt). O que Desplechin faz, então? Ele não nos mostra o corpo ferido de Valérie escutando as palavras de Paul, como poderia ter feito Eustache, mas nos impõe um duplo flashback, contando como Paul e Sylvia confessaram a um terceiro (um amigo em comum) que eles se estimavam reciprocamente. Dito de outra forma, privado de som, privado de imagens, de corpos bem como do resto, chegamos a nos perguntar por que esse homem e essa mulher figuram num filme ao invés de uma peça radiofônica enunciada no estilo indireto. Diríamos talvez, Desplechin trabalha o "retrato mental" de Paul Dédalus, esse centro - suposto - do filme! Mas, aqui, esta hipótese só é admitida como título manifesto de um fracasso entre outros, porque o personagem só conhece realmente um em cada dois flashbacks, e ele não saberia de forma coerente "ser o centro". Mas prossigamos...

Se Desplechin não filma, a rigor, nem a relação entre Valérie e Paul no carro (a voz off o impede), nem o ponto de vista de Valérie sobre a crueldade de Paul (a inserção do flashback o impede), nem o ponto de vista exclusivo de Paul diante de Valérie (o narrador onisciente o impede), é porque ele encontra o seu interesse em outro lugar - em todo caso não entre seus personagens. Onde? Esta é a questão...

3. Não tem ninguém aqui

Poderíamos dizer que a verdade do filme de Eustache está simbolicamente contida, para pegar um detalhe que poderia servir de critério de exigência à qualquer obra cinematográfica, na sequência da rã. Sentado na casa de seu amigo, Alexandre inclina a cabeça para trás, olha para o teto e percebe, em um breve instante de jubilação, o desenho da rã que ele havia se divertido em olhar na última página de uma revista: "Ah, sim sim ah ah, eu vejo a rã, he he a rã!" Ele vê e ele se exalta. A câmera de Eustache permanece sobre o rosto de Léaud, os olhos no ar, porque a única coisa visível é esse estado de um homem que vê. A pergunta que nos colocamos é: onde está a rã de Desplechin? O que vemos de seus personagens quando eles estão vendo alguma coisa, mesmo quando esta coisa não está manifestada?

Exemplo: a cena de cooper de Paul Dédalus. Ele corre no bosque, e subitamente, tomado pela catatonia, ele pára, pálido, ofegante, suado. Aqui, nada de flashback, nada de voz off, nada de inserção, apenas a cena, nua. Bela cena, aliás. Amalric, furtivamente, possui um corpo, um lugar de sofrimento. E depois, alguns planos mais à frente, eis que volta a galope o natural do realizador que não se importa com seus atores, e com as rãs que eles poderiam ver. Fragmentos do diálogo: "eu vi que as coisas eram imemoriais e hostis." Que escritor! Recordemos do Alexandre de A mãe e a puta: "... ali sob meus olhos, uma brecha se abriu na realidade. É tarde demais, não fomos lá. Eu tenho medo de não ver mais nada lá. Eu tenho medo. Eu tenho medo. Eu não queria morrer." Eustache tinha a possibilidade de filmar em campo aberto o "terror" de Alexandre ou de fazê-lo contar. Ele escolheu a narrativa oral, de acordo com a tonalidade global de seu filme. Desplechin se protege bem de ter que escolher. Crendo sem dúvida multiplicar seus efeitos, ele tenta mostrar a "realidade" física do mal-estar, depois, para aqueles que não entenderam, volta a ela por meio de um comentário muito "sentido". Como ele não quer escolher, e quer tudo ao mesmo tempo, Desplechin não nos faz sentir a mínima emoção? Por que a relação do evento, acrescentada do próprio evento, destrói a força? Porque não se pode impunemente filmar um evento corporal (o terror) e explicá-lo duas cenas mais tarde na pior língua acadêmica sem induzir ao mesmo tempo a nulidade de sua realidade cinematográfica, e um desprezo secreto pelo evento propriamente dito. O que conta, no fundo, é o homem que se observa filmando, inventando belos diálogos, organizando dispositivos complicados... ao invés daquilo que acontece com aqueles que fazem a narrativa. Como eu briguei... é o fato de um homem que aprende a filmar se olhando num espelho, como outros aprenderam a fumar, para se impressionar, tentando chamar a atenção do público. Não importa o que aconteça desde que a ilusão de ter feito acontecer alguma coisa tenha ocorrido.

4. Sempre ele...

Se o espectador é frequentemente convidado a "gozar" do filme no modo recuado, não é porque Desplechin trabalha o distanciamento, mas porque ele recorre à omissão, que é o único meio dado ao seu filme para mascarar a vacuidade de seus personagens. Tendo fracassado ao dotar seu filme de um centro, ele lhe atribui uma multiplicidade, que ele dramatiza artificialmente pelos efeitos de anúncio, pelas vozes off, flashbacks, que são igualmente golpes de projetor ou de zoom sobre objetos ausentes, em todo caso, mal definidos. Sem dúvida, esse distanciamento não resulta de uma escolha, política ou ética (Brecht-Straub-Godard), mas de um medo inibidor que não coloca nunca o realizador na posição de ter realmente medo da coisa a filmar. Sua vida sexual? Esvaziada de qualquer pulsão, de sensualidade, de vícios, de palavras, de corpos, de erotismo, ela é reduzida à exposição de uma mulher cobrindo os seios, sozinha, de quatro numa cama, mais constrangida pelo visor do câmera do que pelo olho de seu amante. Sua briga? Vazia de qualquer memória, de participação, de afetos, pretexto para todas as formas de bravata de "autor", ela não é mais que a sujeira de um ressentimento disfarçado de pesadelo, de macaco e de calças brancas. Nada acontece porque ninguém existe, nada é dito porque ninguém é mais capaz de tomar a palavra, ninguém pode se ouvir porque não é mais questão de trocar o que quer que seja.




No final, esse filme aparece como uma máquina fumegante e esfumaçada, sob pressão, que parece só poder dar à luz a formas e pensamentos inacabados, vagamente monstruosos, mais frequentemente inúteis - o que pôde dar em belos filmes doentes, convalescentes, logo vivos (os filmes de Zurlini por exemplo), que precisamente agradavam por sua fraqueza assumida, sua lucidez. Aqui, a incompletude dos personagens não é produção, mas ausência de invenção, ausência de ponto de vista real - Desplechin nunca parece se dar conta a que ponto seus problemas de visão nos impedem de entrever qualquer coisa de surpreendente. O normalista normaliza, a secretária secretariza, a tradutora faz sua escola de tradutora. E quando a definição não é tautológica, ela é depreciativa em relação às mulheres, para não dizer misógina: o homem se ocupa de sua imagem social enquanto que a mulher menstrua; o homem consegue fazer uma obra quando a mulher não consegue ter filho; o homem tem inimigos quando a mulher só tem exigências; o homem não sabe o que quer mas se vinga, enquanto que a mulher sabe o que quer mas passa por idiota. Sob a neblina espessa de suas discussões complicadas, mas vãs, os fantoches falantes de Como eu briguei... são sempre reduzidos à sua funcionalidade roteirística, à pequena demonstração sofística que Desplechin reivindica para a juventude de hoje: "as mulheres se ocupam de suas imagens, os homens de seu destino: invertamos a proposição e nós teremos um ponto de vista pertinente sobre o mundo...". Mas ele está rindo de quem?

5. Sempre nada...

Nanterre. Paris X. Escola Normal. Os livros. Os professores. Os estudantes. Os conceitos. O que faz Desplechin? De quais intelectuais ele fala? Sua filosofia? Ela se exprime tranquilamente, num vocabulário de domingo à tarde, decorado de citações, aqui e ali, alguns conceitos à queima-roupa portanto - estilo "e então eu encontrei a alteridade", as obras que fazem bem depois da missa - Jean-Luc Marion... Esse discurso posado é na verdade um pensamento-apostila, exibido depois amordaçado, finalmente sem perigo. Por que refletir nesse filme, sobre o quê, visto que ele está cheio de pequenos soldados que são pagos para fazer pose: os atores-professores de filosofia? Desplechin pode muito bem parecer "inteligente" nas suas entrevistas, antecipar as reprovações e fingir ter feito tudo de propósito (da malícia como marketing crítico), estaremos sempre no direito de lhe perguntar se ele estragou seu filme de propósito. Mas, ele responde, Descartes escreveu um livro autobiográfico, os desfiladeiros de Verdon são invisíveis a olho nu e se não houvessem os filmes, não haveria mundo. É inacreditável. Adoraríamos que tudo isso fosse só um filme, Noivo neurótico, noiva nervosa por exemplo, no qual Desplechin seria apenas o tagarela exasperante na fila de espera do cinema, debitando montes de tolices, e que poderíamos calar chamando Descartes em socorro: "Verdadeiramente, meu amigo, você não entendeu nada do meu livro". De ponta a ponta nas suas referências, Como eu briguei... não funciona, não respira, se asfixia. De que adianta pôr a música a plenos pulmões, por exemplo Vocab dos Fugees, quando isso não serve para nada, quando não se filma nem as pessoas que a escutam, nem aqueles que dançam - e que no fundo ninguém se importa? Desplechin serve a canção e a situação, revelando assim o defeito fundamental de seu cinema: nada consiste em nada, no sentido próprio da consistência, da coesão, a fusão das partes em função da totalidade.

6. Nova Qualidade Francesa

Não é que ele trabalhe sobre a disjunção, como o faz Altman, mas pelo contrário suas somas não se adicionam nunca. E na verdade, luz + atores + cenário + música - mise en scène não dá cinema. Da mesma forma que: (voz-off e romanesco de Truffaut) + (flash-back, música contemporânea e incisos fotográficos de Resnais) + (sonhos e morte do pai de Bergman) + (planos-sequência e dor existencial de Eustache) não dá nunca um bom filme, porque a soma de seus signos, entendida como compilação de seus tiques, não está nunca à altura de seus respectivos gênios.

Então o quê? Esse filme é um agregado de bolhas (as cenas) que são elas mesmas constituidas de estratos rígidos, exteriores uns aos outros (as esferas de eficiência de cada um dos participantes da filmagem) e em que nenhuma é considerada como um todo, autônomo, mas em função do agregado. Isso dá um agregado de bolhas imperfeitas, incompletas, não muito bonito de se ver, onde cada cena acredita participar do todo mas ignora as outras. Daí que a voz off (o lugar de Desplechin) que ele não colocou de propósito, mas porque ele não teve escolha, que ele precisava desta insistência para unificar pela força o que se recusava a formar um filme. Basta dizer que se a comparação com Eustache nos parece definitivamente aberrante, fora de questão, aquela com Resnais ou Mankiewicz (Quem é o infiel?), aos quais Desplechin pensa indubitavelmente, não o é menos. Nem grande filme romanesco, nem filme sobre o discurso amoroso, nem filme sobre a sexualidade, Como eu briguei... só propõe para o cinema as intenções de um diretor: uma liquefação permanente do todo (o filme) à guisa de solidificação de um ego (o realizador) - vão e tedioso.

7. Então é isso

No fim das contas, Desplechin parece só ter desejado uma única coisa: se livrar o mais rápido possível de um cinema francês que o assusta, fingindo digeri-lo, pensando-o como gênero, e fazer muito melhor que seus camaradas de classe. Eustache filmou como se escreve uma carta, Desplechin como se faz uma dissertação, relendo vinte vezes o título do tema antes de começar, aplicando-se laboriosamente sobre sua prova, depois de ter feito a lista de todos os conceitos-chave a utilizar para iludir, esquecendo simplesmente que se trata de escrever alguma coisa. Um filme de copista não é um bom filme, porque o esplendor retórico dos mais brilhantes só fará corpo com o bloco de notas de seus professores.

Comment je me suis fourvoyé... (ma comè filma?!) foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°1, outubro de 1996. pp.57-62. Tradução: Miguel Haoni.

A perplexidade



Sobre os
Cinéphiles de Louis Skorecki

Por Axelle Ropert

Para quem conhece Louis Skorecki como crítico de cinema no Libération, é um efeito de surpresa que guarda a visão, doze anos depois de seu lançamento, dos Cinéphiles. Que crítico? Aplicada à Skorecki, a distinção de Julien Gracq entre o romancista míope para quem "os menores objetos do primeiro plano vêm com uma clareza por vezes miraculosa (...) mas para quem tudo que está longe é ausente" e o romancista presbíope que "só pode capturar os grandes movimentos de uma paisagem" é a ocasião de uma anomalia ótica: nosso crítico é presbíope e míope, passando constantemente de visões recapitulativas que atravessam a história inteira do cinema à simples listas de detalhes singulares, o filme em jogo nunca sendo apenas o lugar onde se acelera esse vai-e-vem que o ultrapassa. O que existe entre o míope e o presbíope? Skorecki cineasta, precisamente, ele que adota um ponto de vista mediano no Les Cinéphiles, entre o close-up e o plano de conjunto. Um plano americano, em suma. Mas há também o tom que modula a altura da visão: nas crônicas, voluntariamente definitivo, aqui, pelo contrário, uma maneira de falar pacientemente na retaguarda de todo discurso. Como filmar os cinéfilos se nada deles quer ser dito?

Uma nota escrita dez anos depois de Les Cinéphiles ilumina talvez esse pequeno paradoxo, ou ao menos o reitera: "Os filmes, nunca repetiremos o suficiente, são feitos para se esquecer" (sobre Expresso para Berlim de Jacques Tourneur). O que descrevemos quando nos apegamos aos esquecimentos? Sem dúvida nada além desse movimento de recuperação da memória pelo qual os filmes se encontram ainda mais fixos, capturados, à medida que são deixados no seu movimento natural de fuga. É um trabalho sem fim, um pouco absurdo talvez, mas que explica essa obstinação vivificada pela urgência da tarefa que caracteriza as crônicas de Louis Skorecki. Se o crítico estabelece esse paradoxo e o experimenta nos seus textos, o filme lhe dá uma versão propriamente cinematográfica obedecendo a uma equação inevitável: os filmes são feitos para se esquecer, logo os cinéfilos serão amnésicos. Os dois Louis podem então se encontrar nessa fórmula de Alain, "A força de imaginação consiste em dar a uma lembrança muito simples uma força de doença".

Se o espanto é o começo da filosofia, como nos ensinam na escola, é um outro sentimento que inaugura a cinefilia: a perplexidade. Sem família, sem casa, sem dinheiro, sem estudos, disponíveis, ligeiramente atordoados, os cinéfilos emergem de uma catástrofe chamada "cinema" que os deixa destruídos diante desse mini-desastre do qual eles lutam ainda para contar todos os efeitos e sequelas. Os cinéfilos foram abalados, e permanecem abalados. A força ficcional do filme vem da transformação desse acidente em estado permanente. Esses sobreviventes, ainda sob o efeito de deflagrações de efeito retardado, travam uma curiosa guerra para se levantar, mas também para prolongar esse estado: eles vivem exclusivamente fora, no limiar das portas, dos cinemas, dos imóveis, como sobre a iminência de suas lembranças.

As garotas esvoaçantes respondem com dificuldade às perguntas que os garotos fazem, insistentes mas nada além disso. As discussões são flutuantes, como se as opiniões não se ligassem entre elas, como se importassem pouco os gostos do interlocutor. O que mantém esses garotos juntos é um senso muito gasoso da conversação na qual a evocação dos filmes só se produz por fragmentos. A cinefilia é um estado de esquecimento que dá essa graça muito particular ao filme, toda na suspensão dos gestos, dos olhares, das palavras ancoradas nos bastidores às lembranças dessas salas escuras deixadas para sempre na sombra, bocas de sombra precisamente. Esta maneira de guardar as pausas, os silêncios incongruentes nas conversas provoca uma comicidade raramente ouvida no cinema, especialmente a partir das aparições de dois primos saídos diretamente de uma Narbonne muito eustacheana, comicidade atribuída a essa curiosa mistura de enorme desânimo, habitualmente reservado aos dândis, e de enorme inocência, habitualmente reservada às crianças. A comicidade vem aqui dessa tensão, que obriga a parecer bem, entre a riqueza da experiência cinematográfica e a pobreza da experiência vivida. Nós rimos ao vê-los tão orgulhosos, nós tememos ao vê-los ameaçados pelo necessário assalto da existência: "O cinema ou a vida!".

A essa intimação, Skorecki responde de maneira delicada e generosa inventando um dispositivo formal muito belo. De um lado, o espaço exterior das discussões com esses primeiros planos dos jovens a quem a fixidez formal dá uma íntegra obstinação mal lançada pelos olhares em fuga, fora de campo. Do outro, o espaço interior dos apartamentos onde a opacidade dessas discussões nas quais nada se troca tenta domesticar, em abraços furtivos e anônimos, esses corpos nus filmados em movimento, esse movimento que eleva a ingratidão ao esquecimento, à carícia. Entre os dois, uma circulação vibrante de valores (a vida? o cinema?) que reorganiza no interior da experiência cinefílica de tímidos momentos existenciais e interrogativos.

Uma cena de interior oferece uma hipnótica panorâmica que vai do dedo esticado de um jovem à cicatriz no peito nu de um outro, gesto que tropeça sobre essa pergunta três vezes repetida: "O que é isso?". Esse questionamento de humor klossowskiano que transforma uma cicatriz em possível falsidade ou impostura, essa luz balthusiana que aureola a cena de uma doçura intrigante, esse senso garreliano da pose, inventam, eles três, um retrato emblemático da juventude masculina.

Da juventude masculina? Les Cinéphiles é um retrato do jovem quando cinéfilo e um retrato do cinéfilo quando jovem (e é preciso fazer um dia, em resposta, um retrato da cinéfila quando jovem sobre um modo outro que aquele da histeria lvovskyana ou da defloração breillatiana - "braillatienne [1]" como diz Michel Delahaye, num sábio lapso). O laconismo dos discursos é próprio também da timidez desses jovens, a rigidez das silhuetas todas preocupadas pelos filmes é o sinal de sua estranheza, como sua reticência diante das garotas é o inverso do medo que elas provocam, mesmo se "todas elas têm alguma coisa", assim como afirma o mais novo do bando. Eu encontro aqui um sentimento muito francês da adolescência, caro à linhagem da "ene-erre-efe[2]" ridicularizada por Truffaut, entre a severidade paulhaniana das poses, o sentimento de impotência à la Louis-René des Forêts e a auto-aversão leirissiana. Essa reversibilidade completa das atitudes da cinefilia e daquelas da juventude duplica a emoção, uma emoção ao quadrado de certa forma, quando à solidão da cinefilia se junta, no acaso de uma cena, a dificuldade da idade do homem.

Nesse mesmo artigo sobre Expresso para Berlim, Louis Skorecki acrescentava: "Os filmes vivem suas vidas sem nós. Nós tricotamos para eles apenas os desfechos que nos convêm. Os happy ends, nada além dos happy ends." E quanto ao desfecho dessas vidas de cinéfilos aqui encenadas? "Eu sei que eu sou feio" diz um sósia de Daney jovem no fim do filme, durante um desnudamento perturbador que se afasta tanto da crueldade teatral de um Jean Eustache quanto da simplificação ingênua, sulpiciana, de um Garrel, em benefício de um sentimento inédito, uma sensação de derrota suavizado por esse suplemento de fragilidade concedido aos personagens.

***

"Isso, que achavam ridículo, me tocava porque eu encontrava ali sentimentos nus, que a racionalização não mordia, e um gosto de aventura." (Jean Paulhan)


[1] NdT:Jogo de palavras com o adjetivo "braillard", que significa "gritante".

[2] NdT: NRF, Nouvelle Revue Française (Nova Revista Francesa)

L'ahurissement foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°16, inverno de 2001, pp.8-11. Tradução: Miguel Haoni.

Uma estreia na vida




Por Pierre Eugène

Quando uma ideia exterior lhe atingir, por mais emergente que seja sua reputação, pergunte-se: qual é o corpo que está lá embaixo, que viveu lá embaixo?

Henri Michaux

Dos cerca de vinte filmes realizados pela empresa de produção-distribuição-restaurante Diagonale, fundada em 1976 por Paul Vecchiali, Cécile Clairval e Pierre Bellot, encontram-se cinco longas-metragens que são os primeiros de seus autores: O Teatro das Matérias (1977), de Jean-Claude Biette, As Belas Maneiras (1978), de Jean-Claude Guiguet, Simone Barbès ou a Virtude (1980), de Marie-Claude Treilhou, Cauchemar (1980), de Noël Simsolo, e Beau temps mais orageux en fin de journée (1986), de Gérard Frot-Coutaz. Os três primeiros, que permanecem inesquecíveis para mim (o filme de Simsolo é esquecível, o de Frot-Coutaz é um pouco menos surpreendente), por fim se impuseram como um ponto de inflexão discreto, mas determinante, no campo de força da cinefilia, contradizendo a sua modéstia econômica de origem, o parco reconhecimento de seus contemporâneos e os eclipses de visibilidade mais ou menos longos impostos pelas leis do mercado [1]. Dizer que amo esse trio de filmes milagrosos revela imediatamente, creio eu, como se dá a minha relação com o cinema: não tanto pelas demonstrações de habilidade dos autores, sua correção moral e suas preocupações sociais; ainda menos pelo acabamento das obras, cuja arte sem falhas é animada pela vontade de finalizá-la, onde a compactação dos roteiros e a plenitude visual dissimulam o medo do que está faltando; de forma alguma, enfim, pelas tentativas de companheirismo dos filmes que me designam, me asseguram, me destinam à força de cotoveladas e direcionamentos para um lugar nítido em uma intriga à minha medida. Não admiramos esses filmes de Biette, Guiguet e Treilhou: nós os amamos. Não de uma só vez, frequentemente nem mesmo da primeira vez, mas através de um sentimento incômodo que se elabora com a duração, passando pelas zonas obscuras, pelos recantos escondidos e pelos buracos de ar desses filmes e que se dobra num átimo ao desejo de revê-los.

Retomando-os, revisitando periodicamente uma cena, um plano, um gesto, valendo-me de sua profundidade inesgotável de detalhes, eu acabei pouco a pouco por sentir o olhar que os conduz e por adivinhar a segurança incômoda e terna, ligeiramente ansiosa, daqueles que fazem sua estreia. Biette me toca quando, como que para exorcizar seu medo, ele começa seu filme com um final silencioso, mergulhado na noite artificial, interior, de seu Teatro das matérias. Seu filme se abre sobre uma dupla cartela langiana, de verdadeiros pedaços de papelão que anunciam que esta é a “Últimas” apresentação de Pelléas et Mélisande no Teatro das matérias, cartela essa que sinaliza, com suas informações a serem decifradas em cascata, a atenção e o humor que serão exigidos neste filme que se anuncia. A câmera passa então para a senhora no vestiário (Denise Farchy), que é forçada a se encolher para sair por baixo da prancha que bloqueia o balcão. Ela sai desajeitadamente atravessando um quadrado escuro sobre um fundo vermelho, como se estivesse passando por um buraco de rato. Chega Hermann (Howard Vernon), que desliga e guarda a irrisória pequena árvore luminosa colocada sobre o balcão, adicionando um pouco de tristeza à quietude do fechamento. Segundo plano: a câmera está à espreita na escuridão do teatro, esgueirando-se atrás de Hermann enquanto ele fecha duas portas, deixando tudo cada vez mais escuro, até ganhar velocidade e entrar na luz da terceira porta, ainda aberta, que revela uma mulher (adormecida, morta?), Dorothée (Sonia Saviange), deitada sobre um lance de escadas, como mais uma pista nesse rébus de estreia. Com esse plano, Biette transfere o medo do escuro dos seus primeiros passos para o espectador: eu avanço em sua ficção e me agarro cegamente num espaço ainda não delimitado, procurando identificar as questões do sentido. À semelhança do balcão bloqueado, esse filme labiríntico nunca cessa de me apresentar as luzes como pistas falsas, becos sem saída ou pontos cegos. Mesmo o fim é cerrado nesse filme que brinca com cores opacas: o início vermelho e preto torna-se a contraparte do branco terrível da derradeira imagem, quando a câmera abandona Dorothée, seus três amigos e seu lanche de crepes à leveza de uma flauta de L'Arlésienne, de Bizet, para voar em direção a uma janela aberta com vista para uma parede cega. A imagem se congela e os créditos verdes fluorescentes (bastante feios) deslizam rapidamente pelo branco cremoso da parede, um branco sem destino, um tipo de inverso do “branco das origens”, que aparenta obliterar o futuro imaginário dos personagens.

As fachadas de Biette por muito tempo me interrogaram (seu próximo filme se encerra com um belo afresco em trompe-l'oeil), até que eu compreendi sua função: tornar impossível de imaginar uma continuação, proteger os personagens. O Teatro das matérias é uma pirâmide fechada por dentro. Podemos muito bem mergulhar e voltar a mergulhar nela à vontade, mas não guardaremos a ilusão de que suas figuras continuarão a viver suas vidas imaginárias fora dos limites do filme, que poderemos levá-las conosco como mitemas, que o destino delas nos pertencerá. Os personagens de Biette pertencem apenas à sua ficção. No meio de inúmeros detalhes, objetos, senhas acumulados por esse filme em que tudo parece estar infinitamente ligado, os personagens me fazem pensar nas peças daquele jogo de xadrez bastante específico que Brecht apelou para que fosse: “um jogo em que as posições não são idênticas a elas mesmas; em que a função das peças se modifica quando elas ficam estacionadas por um tempo no mesmo lugar: elas se mostram mais eficazes ou mais fracas. Do jeito que está, ele não evolui; tudo permanece igual por muito tempo [2]”. Jamais se pode dizer que um desses personagens se mantém igual a si mesmo: preso em um novelo de relações, alterando a função de acordo com o lugar, sua valência só é válida em situação. Daí a distância particular entre esses personagens e o espectador, que impede a identificação ao mesmo tempo em que provê uma surpresa permanente em relação às suas capacidades.

Essa defesa altiva da autonomia dos personagens, atrelada às características morfológicas e vocais dos atores, persiste como a constante admirável dos filmes da Diagonale. Cada um deles me fez atravessar “a incrível variedade dos tipos humanos” (como Biette disse sobre A Última Gargalhada, de Murnau), convocando esses atores e atrizes únicos e loucamente banais, que percorrem uma gama de fisionomias e de idades, com os quais é certo que você cruzará de um filme para o outro. Muitas vezes discretos na imagem, esses atores têm sua própria voz inimitável. Como os de Duras, Straub, Guitry e Godard, esses filmes desenvolvem progressivamente uma sensibilidade particular aos timbres, aos silêncios e às variações de intensidade das vozes, aos ecos e às rimas, à entonação entrecortada, mordaz ou desajeitada dos sotaques (Howard Vernon em O Teatro), os gracejos (Ingrid Bourgoin em Simone Barbés) ou os pelos na língua (Emmanuel Lemoine em As Belas Maneiras), as dificuldades de dizer coisas ou de se fazer entender, os monólogos impenitentes e as canções que surgem sem aviso prévio, com a importância fundamental da música, sua capacidade de comover no palco, no toca-discos ou no rádio do carro.

O corpo a corpo da realidade

Os rapazes da Nouvelle Vague filmaram seus amigos e amigas na plena horizontalidade da idade, os cineastas pós-68 saíram em busca da desaparecida figura do proletário; mas para a Diagonale, que nos finalmentes desses seventies vivem o luto da grande noite das utopias sem classes, será esta parte desprezada da pequena burguesia, aquela que não tem nada de notável, a classe média pobre supostamente sem histórias, mal capturada na ficção e na vida real e mais “rebaixada” do que todas as outras, sem responsabilidade nem respeitabilidade próprias, sendo geralmente evocada e representada apenas em sua massa. O belo denominador comum das produções da Diagonale, na esteira de Vecchiali (que, por sua vez, conecta-se com o cinema francês dos anos 1930), é o amor, um por um, desses personagens “médios”, esquecidos pela ficção. Onde mais eu poderia ver, se não lá, Denise Farchy, pequena boa mulher, cuja voz trêmula, alta e articulada, me comove tanto como a senhora do vestiário em O Teatro, a pobre vendedora de jornais em As Belas Maneiras, ou a peregrina perdida em Lourdes, l'hiver de Treilhou? Não é uma questão de “representar” uma classe na tela para fins de decoro político, mas pura e simplesmente de mostrar pessoas que são amadas na vida e que como tais já são portadoras de ficção. “Antigamente, observa Guiguet, no cinema, os personagens secundários que encarnavam tão bem os pequenos ofícios, toda essa gente que compunha o fundo popular, estavam lá para insuflar vida ao romanesco; eles eram a garantia da realidade. Essa é uma realidade que está morta. Mas o que pode substituí-la? [3]”.




Em As Belas Maneiras, Guiguet tem sua resposta: Emmanuel Lemoine (Camille). O primeiro plano do filme “introduz” seu ator que faz sua estreia, expondo orgulhosamente seu rosto de frente. Ele planta seus olhos nos do espectador, depois vira a cabeça de perfil (para que se veja distintamente a cicatriz que lhe corta o rosto), avançando sozinho ao longo da plataforma da Gare de l'Est, de onde acaba de chegar, o passo sobrecarregado por uma pequena bolsa, como a Marnie de Hitchcock, último viajante a cruzar sem ver o balé laborioso de três faxineiros de trem. Emmanuel Lemoine, que dava seus primeiros passos em Paris, que estreava nesse filme e no cinema, nunca havia atuado antes. Seu papel estava previsto para uma jovem, mas Guiguet, por tê-lo encontrado, por tê-lo amado, transformou seu filme que, em suas palavras, tornou-se “uma imagem da burguesia confrontada pela face, pelo corpo, pela realidade de alguém que não pertence a este mundo”. Guiguet havia pensado originalmente em chamar seu filme de “Os trabalhos e os dias”. O corpo atarracado de Emmanuel Lemoine é pesado como a vida laboriosa, proletária, que o moldou e que só conheceremos por fragmentos, tal como a misteriosa cicatriz em seu rosto. Camille até oferece uma boa explicação (ele sofreu um acidente de carro embriagado e o cirurgião, insatisfeito por ter sido acordado à noite, costurou-o mal de propósito), mas ela continua banal, insuficiente. As marcas e a constituição de suas experiências passadas carregam de uma aura particular esse corpo, que é observado de canto de olho pelos outros personagens quando ele fica nu ou sai com roupas muito justas. Todos aqui têm sua cota de mistério, mas a de Camille é inexplicável, pois está nesse corpo que insiste em se destacar de todas as estruturas morfológicas de sua época, que fascina por sua “classe” paradoxal nesse ambiente burguês: “O corpo de Camille é real sem ser atual, sem estar na moda, é ideal sem ser abstrato. Sua aparição cria as vibrações necessárias para sobressaltar e despertar as estruturas romanescas da história. Ele é aquele que reanima e regenera". Como com Biette e Treilhou, mesmo que os filmes sejam escritos, compostos e dialogados previamente (Treilhou, que morreu de medo antes da filmagem, havia previsto sua decupagem plano a plano [4]), são os seres e as coisas amadas, depois extraídas da realidade que dão corpo ao filme: não a história, um “tema” ou uma ilusória narrativa de significação. “Eu não precisava de muita imaginação para levar a trama adiante, disse Guiguet, a realidade concreta conduziu por si mesma o curso das coisas”.

Mas não se trata apenas de Camille: As Belas Maneiras abre e fecha com dois rostos-telas, dois semelhantes avanços solitários. Ao final do filme, ao término da caminhada parisiense de Camille à qual ele nos atrelou, vemos a procissão de seu corpo suicida na prisão onde ele estava encarcerado, com o rosto velado de Hélène (Hélène Surgère), grande burguesa que o contratou como empregado doméstico, que jogou com a amizade dele sem jamais deixar seu habitus, que o vampirizou à sua maneira, sem realmente percebê-lo. Nas filmagens, recorda Guiguet, “às vezes, só por diversão, eu colocava lado a lado um retrato de Hélène e um retrato de Emmanuel, era incrível o que eles me contavam; eu sentia o quanto essas duas faces animadas, movidas por suas respectivas energias, iriam enriquecer a substância do filme ao lhe dar uma realidade nova, singular, absolutamente livre, irrefreável”. Se os filmes de Biette, Guiguet e Treilhou guardam para mim a força maravilhosa do imprevisto, é porque eles são o reflexo dos encontros de seus autores com esses seres retirados da realidade, que os filmes reencenam. Não se trata de improvisação, mas sim de capturar ou provocar uma energia primordial, aquela do deslocamento inevitável e imprevisto que decorre de todos os encontros. Ficção em termos de fricções individuais, O Teatro, Simone Barbès e As Belas Maneiras são construídos a partir de encontros sucessivos entre indivíduos singulares para os quais – assim como para mim, que os observo – é sempre a primeira vez. Estamos em um estado semelhante de expectativa redobrada, que é o de descobrir e ouvir o outro, com esses embaraços, esses silêncios e essas dissonâncias inerentes à indecidibilidade do encontro, tudo isso faz com que, quando estamos cara a cara com o outro, nunca saibamos realmente se estamos com ele. Se a própria natureza da posição espectatorial é deslocada, então esses personagens que estão sempre ao lado das coisas que observam também são espectadores.

Mulheres, Mulheres, um farol

O que eu sentia confusamente com esses filmes, até compreender melhor, foi que eles prolongaram, guiaram e ecoaram a energia de um encontro mais antigo, que ultrapassou a esfera privada dos cineastas para se tornar a força motriz de sua ficção: Guiguet com Emmanuel Lemoine e Hélène Surgère, Biette com Howard Vernon e Sonia Saviange, Treilhou com Ingrid Bourgoin, os três com Martine Simonet, Paulette Bouvet e tantos outros... É preciso evocar o encontro de Guiguet com Hélène Surgère, que aconteceu durante as filmagens de Mulheres, Mulheres (1974), de Vecchiali, do qual ele foi assistente. O filme foi produzido antes da Diagonale e foi aí que tudo começou. Mais tarde, Guiguet escreveu As Belas Maneiras para Surgère, enquanto Biette viu nele “a possibilidade de ir em direção a um cinema que integraria o prazer da representação, dimensão que faltava ao cinema que amávamos no início dos anos 1970. Essa dimensão existe no filme, através dos atores, que se tornam o conteúdo e as propostas expressivas e estilísticas do filme [5]”. Mulheres, Mulheres, filmado em quinze dias a partir de um roteiro co-escrito com Noël Simsolo é mais outra coisa que um filme de Vecchiali. Para mim, é um dos mais belos filmes do cinema, o exemplo mais profundo, o mais comovente e, ao mesmo tempo, o mais simples quanto à potência do cinema impuro. Sua beleza se vale da pobreza de seu preto e branco fervilhante e, portanto, exato, que reconcilia Lumière e Méliès, o cinema francês dos anos 1930 e a Nouvelle Vague, Corneille e os palhaços, Demy e Beckett. Uma ode às atrizes e à sua capacidade de envolver ficções em torno de si mesmas, Mulheres, Mulheres faz de Hélène Surgère e Sonia Saviange aquelas que representarão todas, as “duas faces [...] desse Janus mítico da comédia e da decadência [6]”. O filme retrata duas atrizes desempregadas que vivem juntas em um modesto apartamento repleto de fotos de velhas estrelas, com vista para o cemitério de Montparnasse. Duas perdedoras sublimes que se divertem mutuamente atuando como um truque para enganar a morte, bebem muito, sofrem com a falta de dinheiro e com uma melancolia insondável. Duas mulheres sozinhas e sem filhos, um casal ilegível (companheiras, irmãs, amantes, viva e fantasma?) cuja vida em dupla não cessa de mudar ao longo das cenas através de uma série em cascata de composições ternas e sádicas, de jogos de cena e dramas íntimos, de caretas ambíguas e fases de desespero, tudo animado por um motor trágico ao estilo de Cocteau. E é aí que está o milagre, a ideia genial desse filme, inventar o phármakon de uma certa melancolia. No meio da desclassificação, do tédio, do alcoolismo, da nostalgia e do fracasso, nas profundezas da maior ociosidade, as duas mulheres são capazes de fazer emergir uma louca animação para criar: ficção, vínculos humanos, uma onda de palavras e imagens mais ou menos disfarçadas – um festival alegre e desolado, íntimo e desamparado, triste até a morte e insolente, prosaico e mítico.




O excerto de Albert Camus que abre o filme (“sim, acredite em mim, para viver na verdade, faça teatro”) faz eco à frase sem resposta de Hélène Surgère que seria (Pierre Léon dixit) o grito de guerra dos cineastas da Diagonale e daqueles que neles se inspiraram: “Tudo é verdade!”. Vitalidade desesperada de uma crença na ficção, sua capacidade de desenvolver a criação no próprio coração do fracasso, de abrir janelas imaginárias entre os muros mais estreitos. Crença na ficção, mas sempre carregada pelos corpos. O filme foi imaginado por Vecchiali e Simsolo como uma reação à Salut l'artiste de Yves Robert, mas também em torno dos fracassos de Saviange e Surgère em encontrar papéis. No centro de Mulheres, Mulheres está uma figura que é ao mesmo tempo trivial e metafísica: a atriz desempregada. Qual é o poder criativo de uma intérprete? E o que resta dele quando ela, notadamente em sua maturidade [7], não está mais praticando seu ofício? O que faz uma comediante diante da ferramenta sem uso que é seu próprio corpo, seu pobre corpo, e de uma demanda por atenção que ultrapassa o simples narcisismo para tocar na existência mais material: atuar para comer, para viver? Mulheres, Mulheres responde sempre dialeticamente, oscilando sem parar entre Sonia e Hélène, entre a vida e a morte, a crueldade e a alegria, a tragédia e o ridículo, a realidade documental e o mimodrama, até os angustiantes gritos de dor de Sonia, agonizando, ao fim do filme, que são imitados por Hélène entre risos e lágrima

E é por isso que “todos atores!” será o outro grito de guerra da Diagonale e dos que virão depois: saber que a ficção transforma a vida, que ela nem mesmo precisa de um cenário de cinema ou teatro para existir, simplesmente um terceiro – e ainda assim: no filme, Hélène pode estar sonhando. A genialidade de Mulheres, Mulheres está em sua capacidade de deslocar o foco criativo do diretor-roteirista para as intérpretes, elas mesmas en abyme no papel de “cafonas” (a palavra é de Vecchiali) que desistiram de atuar ou não se “realizam”. Trabalho do negativo interminável que encontra energia no coração da ociosidade, a criação entrelaçada à esterilidade, a atualidade no seio da melancolia.

Herança dos espectadores

Se eu evoco esse filme ambíguo, com um acabamento tão imperfeito quanto refinado, é porque ele se tornou um "filme-farol", "um clássico secreto" (Biette), uma matriz da qual outros herdaram imediatamente. Ao organizar uma retrospectiva de Vecchiali em Veneza logo após ter visto o filme, ao dar às duas atrizes um papel em Salò e fazê-las reencenar literalmente uma cena de Mulheres, Mulheres, Pasolini estava reconhecendo sua dívida com Vecchiali ao inscrever o carnavalesco no centro de sua adaptação de Sade. Fazendo seu primeiro longa-metragem, Biette e Guiguet dividiram a dupla, recuperando cada qual uma parte da energia dramática de Mulheres, Mulheres. Em vez de herdar as formas ou o propósito, eles herdam os corpos, dessas duas atrizes e de seus poderes de figuração, que se tornaram estrelas B após esta espécie de screen test constituído pelo opus princeps vecchialiano e seu trabalho com o negativo.




Em Simone Barbès, redescobri de Mulheres, Mulheres (filmado a poucos metros acima no bairro) o “tudo é verdade!” lançado por Simone e a aparição de Sonia Saviange em desespero gritando de embriaguez, de amor e de loucura na rua de Gaîté. O filme tira da obra vecchialiana a confiança dada aos atores, com a obstinada e irreverente Ingrid Bourgoin, que interpreta Simone com seu humor tipicamente parisiense. Como com Guiguet e Emmanuel Lemoine, Treilhou encontrou-a em um de seus locais de trabalho, um cinema pornô em Montparnasse que será o primeiro dos três interiores pelos quais atravessará a sua heroína durante sua noite (o segundo é uma boate lésbica, o terceiro é um carro que a levará dos Grands Boulevards até sua casa no Canal de l'Ourcq). Eu amo como nesse filme, à semelhança de Mulheres, Mulheres, percebe-se rapidamente a topografia de cada um dos espaços fechados. No saguão do cinema pornô do qual não se vê mais nada, Simone e Martine (Martine Simonet) conversam com os clientes, repreendendo-os e brincando com eles, entrando e saindo das salas em um jogo de Fort-Da que deixa escapar os gemidos fora de campo desses filmes invisíveis que atraem esses homens. Simone Barbès é um filme de câmara tanto quanto O Teatro e As Belas Maneiras, um kammerspiel que reconstitui a vida material ao isolá-la em um interior abafado, mas que ainda assim permanece sendo um lugar “público” aberto a encontros. Já mencionei a força dos corpos nesses filmes, mas estou igualmente fascinado por seus locais singulares e pela maneira como eles os apreendem, essa hospitalidade que possuem e que parece repetir en abyme o da casa Diagonale, fundamentada na abertura intuitiva de Vecchiali [8].

O que se ressalta nos lugares habitados desses filmes, é sua intimidade, a maneira como eles acolhem diretamente as relações entre as personagens num modo interior. Nos locais desses filmes, sempre é possível conversar, aproximar-se ou, no máximo, simplesmente observar-se. Não é o caso de Rivette (sempre um pouco em pânico quando se trata do toque e do rosto), na errância nos exteriores de Ponte do Norte, com seus personagens “pontos no mapa”, um filme essencial para compreender a mudança político-urbanística que se produziu ao fim dos anos 1970; mesmo se naquela época, as problemáticas de Rivette e de Biette, Guiguet e Treilhou eram mais ou menos as mesmas: como ocupar seu tempo, sobretudo quando não se pertence aos critérios sociais da nova sociedade dos anos 1980 que se prepara e que não terá mais nada de popular. Treilhou, que ganhou o Avance sur recettes por Simone Barbès, sentiu bruscamente sua “mudança de status social [9]”, uma “entrada no sistema”: “Isso me atormentou por muito tempo, levei muito tempo para aceitar isso emocionalmente”. Eu também reconheço nesses filmes a consciência difusa da marginalidade: onde vigia, sem fazer alarde, a “deusa homossexualidade” (como disse Barthes). Eu sei até que ponto o flerte visual no canal Saint-Martin em O Teatro ecoa a arte da decifração cuidadosa que requer o filme; eu sinto a perturbação que o filho de Hélène tem por Camille em As Belas Maneiras, e sinto que essa perturbação não é unilateral, que ecoa a ambiguidade do estupro na prisão; eu reconheço esse espaço de trocas, de olhares e de derivas que é o espaço noturno da boate lésbica de Simone Barbès, e a acuidade implicada em sentar-se no banco como a heroína. Essa atenção aos sinais discretos, aos olhares de lado, às vestimentas e aos esconderijos, a toda uma economia hieroglífica e secreta do flerte, aos corpos diferentes, eu sei que isso também vem daí. Eu também sei que a AIDS, as evoluções morais e as tecnologias tornarão quase ilegível tal escrita, cortando vidas diferentes e fornecendo-lhes acesso a uma visibilidade de via dupla, empowerment e normalização.




À força de escrutinar os filmes da Diagonale, acabei por encontrar um outro ponto em comum, a priori irrisório: em todos eles há fotos na parede. Isso pode ter vindo de Godard, mas isso passa em todo caso por Vecchiali [10] e assume todo o seu significado em Mulheres, Mulheres, com essas fotos de estrelas do passado que revestem o apartamento de Sonia e Hélène. As imagens aparecem na montagem por meio de bruscas inserções, elas vêm julgar os personagens e até parecem, ao final do filme, estarem cruelmente contra a pobre Sonia agonizante. Ao encontrar semelhantes imagens penduradas nos apartamentos de Dorothée e Hermann em O Teatro, no quarto do filho de Belas Maneiras e no apartamento burguês de sua mãe (do qual ele fugiu), ornado com tapeçarias antigas que são representações bigger than life. Ezra Pound escreveu: “Você testa uma imagem por seu poder de resistência. Se você conseguir colocá-la na parede por seis meses sem ficar entediado, então ela é provavelmente uma imagem para você, pessoalmente [11]". Eu vejo nessas imagens um tipo de teatro da memória, abrindo janelas nas paredes dessas salas obscuras, mostrando a coleção de referência, a herança que observa a ação presente, a partir das paredes – tal qual o espectador. O espectador vem “do futuro”, as imagens na parede são um olhar do passado. Entre os dois está o que os cineastas da Diagonale tentaram “salvar” de uma sociedade que estava entrando em uma nova fase (o que ainda não era apelidado de capitalismo tardio): salvar corpos, jeitos de falar e de se mover, relações humanas e o burburinho que eles amavam, mas também as obras de arte, a fim de vê-las e ouvi-las de novo de uma maneira diferente. Se os filmes de Biette, Treilhou, Guiguet e Vecchiali são tão importantes para mim e se eles são ótimos filmes, é porque foram feitos por espectadores. Pasolini escreveu que “o espectador, para o autor, nada mais é do que outro autor [12]". Pode-se inverter a fórmula, dizendo: “o autor, para o espectador, não é outro senão outro espectador”, sem trair o resto de sua proposta: “O espectador não é aquele que não compreende, que se escandaliza, que odeia, que ri; o espectador é aquele que compreende, que simpatiza, que ama”. Vecchiali permitiu que seus espectadores amorosos se tornassem autores, bem como em Mulheres, Mulheres ele ofereceu esse status a duas intérpretes desempregadas. Autores, Biette, Guiguet e Treilhou se tornaram, mas como cineastas (para usar a terminologia biettiana [13]), aqueles que, de bom grado, “se oferecem a nós como alimento” – porque amar é ser despossuído. Ao fazer isso, eles se aproximam do que Biette admirava em Ernest Bour, que se doava à orquestra “de uma maneira tão exclusiva que os ouvintes não advertidos, ou melhor, os ouvintes habituados a serem levados pela mão pelo maestro, se sentem(-tiam) abandonados, sozinhos, sozinhos com a música". Biette, Guiguet e Treilhou, sem deixarem de ser espectadores, ensinaram-me a me tornar um e a alcançar no fundo da casa Diagonale essa intimidade tão particular, essa solitude de atenção ociosa que é a única qualidade do homem que vai ao cinema.

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[1] Após a morte do produtor Jacques Le Glou, esses filmes permaneceram por um tempo nas mãos daqueles que os haviam comprado no catálogo e esperavam (em vão) obter rendimentos superiores aos de seus potenciais espectadores. O filme de Biette está on-line desde o verão de 2020 na plataforma Henri da Cinemateca Francesa, enquanto os filmes de Guiguet, Frot-Coutaz e Treilhou se beneficiaram de uma bela restauração feita pela La Traverse e, para os dois últimos, de uma edição em DVD.

[2] Walter Benjamin, Essais sur Brecht, trad. Philippe Ivernel, La Fabrique, 2003; nota do diário de 12 de julho de 1934.

[3] Entrevista com Serge Daney e Serge Toubiana na ocasião do lançamento de Belas Maneiras, Cahiers du cinéma, nº 298, março de 1979.

[4] Entrevista com Tifenn Jamin e Raphaël Lefèvre, Répliques, nº 7, 2016.

[5] Entrevista com Jean Narboni e Serge Toubiana, Poétique des auteurs, Cahiers du cinéma, 1988.

[6] Segundo Pierre Léon, que evoca esse filme que lhe é tão caro em Jean-Claude Biette. Le sens du paradoxe, Capricci, 2013.

[7] “O que me ajudou a deixar a juventude para trás e entrar na maturidade? Mulheres, Mulheres e Réquiem para uma Mulher”, disse Hélène Surgère no Le Monde (30 de maio de 1985).

[8] Marie-Claude Treilhou: “Vecchiali, como ele diz com frequência, aceitava as pessoas pelo que elas eram, não porque tivessem talento cinematográfico ou tivessem estudado. Ele te aceitava se gostasse de você, se sentisse algo a seu respeito. Foi assim que ele aceitou o roteiro de Simone Barbès ou a Virtude”. (Répliques, nº 7, 2016).

[9] Ibid.

[10] Ver, sobretudo, a Lettre d'un cinéaste realizada por Vecchiali em 1983 para o programa “Cinéma, cinémas” na Antenne 2, descrevendo a sua jornada de trabalho, que termina com as fotos que revestem o seu escritório-quarto.

[11] Crítica de Ezra Pound sobre A Roda, de Abel Gance, na revista americana The Dial, em fevereiro de 1923, citada e traduzida por Sébastien Denis em um livro futuro sobre Pound e o cinema (coleção “Le cinéma des poètes”, Nouvelles Éditions Place).

[12] Pier Paolo Pasolini, L'Expérience hérétique, trad. Anna Rocchi Pullberg, Payot, 1976.

[13] “Qu'est-ce qu'un cinéaste?”, Trafic n°18, primavera de 1996, depois publicado pela P.O.L. em 2001 em um livro com o mesmo título.

Un début dans la vie foi publicado na revista Trafic n°120, inverno de 2021 (pp.83-91). Tradução: Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.