O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Resposta a “C.N.C”



Por Pascal Kané

Que Skorecki, no texto precedente[1], veja na escolha dos autores operada pelos Cahiers apenas reflexo culturalista, submissão à imagem de marca imposta por esses filmes, seria certamente uma tese admissível (mas sem ser, de resto, totalmente nova, já que integrada a um certo número de textos que se reportam a esses autores), se aquilo em nome do que essa tese é formulada operasse na atual produção cinematográfica algum corte, constituísse um suporte metodológico (ou ético) a partir do qual se tentasse repensar o que deveria ser, o que deve ser hoje – pois hoje, talvez mais do que nunca, isso nos falta – uma crítica de cinema viva. Em vez disso, o texto, em nome de uma certa verdade cinéfila, estabelece somente uma lista diferente de vencedores e indica uma direção: seria na televisão, mas em suas zonas mais obscuras, que “algo da lucidez alucinada da cinefilia de ontem”, que um retorno mínimo à paixão pelo cinema, seria possível.

Essas posições, deliberadamente polêmicas, mas muito coerentes, evidentemente convocam um debate. Debate histórico, certamente, já que a cinefilia desde então perdeu seu sentido, mas que abrange, na verdade, questões muito atuais (não somente em relação a este ou aquele cineasta do presente, cujos procedimentos são justificáveis, mas em relação à revista, da qual a cinefilia constituiu o núcleo formador de um certo número de colaboradores).

Como veremos, a cinefilia não é simples: ela seria, antes, dupla. Skorecki, na verdade, se expressa em nome de um aspecto da cinefilia contra um outro. Está na hora, portanto, de restabelecer essa dualidade histórica, e não mais passar complacentemente por um certo obscurantismo e um certo terrorismo cinéfilo (segunda tendência que o artigo acima não deixa de reviver, e que pode conduzir a propostas tão extravagantes, tão privadas de sentido quanto dizer que Jacques Tourneur é o maior cineasta do mundo, ou a alucinar perpetuamente, em tal ou tal detalhe de mise en scène invisível para o neófito, toda a “verdade” do cinema). Seria melhor reconhecer, nessas atitudes demasiadamente apaixonadas, uma incapacidade manifesta de falar verdadeiramente do cinema, de produzir algo em matéria de uma visão, em vez de reproduzir dessa maneira estéril e finalmente masoquista uma fascinação pelo objeto – fascinação que hoje sabemos ter sido a palavra-mestra dessa cinefilia (é nomeadamente da mais antiga, da mac-mahoniana, de que falo).

Essa cinefilia atinge seu grau de exposição mais perfeito e definitivo com o artigo de Michel Mourlet, “Sobre uma arte ignorada” (Cahiers nº 98), o qual expõe a vaidade de todo trabalho crítico, de todo ponto de vista. Ele escreve, particularmente: “A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. (...). O movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados[2]. Que fique claro: não é o “anti-brechtismo” sistemático de Mourlet (!) que é criticável (o brechtismo teria sido provavelmente liquidador), é que, ao negar a distância às obras, ele abole todo ponto de vista presente e, portanto, toda possibilidade de aferir algo delas (o que ele postula, no fundo). Também a “mise en scène” (cf. acima), cuja função habitual de máscara e de revestimento, em Hollywood, opera através das figuras tão diversas quanto a elipse temporal, a narrativa em primeira pessoa, o controle e domínio da profundidade de campo, nunca é analisada como tal, mas é sempre referida a um Mistério em torno do qual giraria toda a magia do cinema. É o que reproduz o artigo de L.S., quando ele vê na “cinzelagem de um detalhe”, na “iluminação de um gesto”, a única marca verdadeira de um autor. Ora, essa magia, ao contrário, residia na perfeita integração das diferentes fases produtivas entre si: daí a importância do produtor, e particularmente na obra de certos cineastas (como Jacques Tourneur, justamente).

As proposições e pressupostos de Skorecki vão muito no sentido da reprodução dessa fascinação da qual, em última instância, os cinéfilos não souberam fazer nada, antes de serem varridos por uma crítica política (pois a política não deixava de produzir algo, ela, e em todos os campos).



A cinefilia mac-mahoniana nunca foi, a meu ver, uma escola crítica, em função de uma “política dos autores” que a cegava para tudo que fosse estranho a seus critérios (e que fazia Mourlet escrever, por exemplo, que “podemos predizer sem grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos”, sendo, ao mesmo tempo, “desde sempre aos mais sensíveis” (op. cit.)).

Voltemos um pouco, então, a esses critérios mac-mahonianos, muito velados no artigo de Skorecki. O primeiro mal-entendido concerne a noção de autor: não se trata de forma alguma do cineasta que escreve um roteiro antes de filmá-lo, mas, ao contrário, praticamente exclusivamente, do diretor de roteiros que são escritos por outros e que são propostos por um produtor. Os autores eleitos, então, são, paradoxalmente, os que menos o são; os que deixam o funcionamento da máquina hollywoodiana o mais intacto possível, de forma que possam provocar o sentimento de que se apropriam dela em sua totalidade. Junto às justificações dadas (amor pela mise en scène pura, isto é, justamente por aquilo que os literatos da crítica de cinema da época deixavam escapar), a cinefilia mac-mahoniana se baseava, na verdade, em uma fascinação pela máquina hollywoodiana, em que a mise en scène, totalmente integrada às outras fases produtivas, representava o momento de exposição privilegiado – momento onde nada deveria ser atribuído a uma determinada vontade (“toda ruptura da impassibilidade do cinema com fins expressivos trai precisamente esses fins”, sempre Mourlet)[3]. Daí esse ódio ao Autor, isto é, àquele que converte a maquinaria a seu favor ou que quer se opor a ela, o que explica tanto o famoso panteão mac-mahoniano quanto o desprezo no qual couberam a quase-totalidade dos grandes cineastas, de Rossellini a Hitchcock, de Eisenstein a Renoir (uma exceção importante foi Lang, porque ele foi, de fato, o único a se identificar com o conjunto da máquina cinematográfica como seu Criador).

Foi essa vontade contemplativa que isolou o mac-mahonismo e lhe retirou toda produtividade, impedindo-o de compreender para onde se dirigia o cinema no final dos anos cinquenta: cegueira a tudo que não era mise en scène pura (isto é, “integrada”), mas também ignorância grosseira diante de porções inteiras da história do cinema. Essas deficiências graves acabaram dividindo a cinefilia, abrindo-a a uma abordagem mais culta e, sobretudo, mais operatória, que foi a dos Cahiers (e outros) a partir daquele momento. Skorecki cita apenas Douchet, mas Rivette, Rohmer e Truffaut são aqueles em que pensamos primeiro (todos ansiosos para tocar no essencial da questão), sem falar de Bazin, que, justamente por ser um crítico e um teórico, permaneceu muito distante da cinefilia pura (além disso, é notável que continuemos a encontrar genialidade em Bazin, quando uma boa parte de suas escolhas críticas foi abandonada nos Cahiers. Mas a crítica, mesmo positiva de um filme ruim, pode resguardar mais inteligência do cinema do que a mais inteligente escolha de filmes).

Para que a cinefilia pudesse desempenhar um papel na história do cinema, ou seja, para que ela se tornasse uma escola crítica e uma escola de diretores, foi preciso, então, que outras considerações – concretas, políticas no sentido mais amplo – interviessem. Foi preciso que a cinefilia fosse confrontada a um presente, a um desejo de cinema.

Desse novo aspecto da cinefilia, igualmente autêntico, Skorecki não fala. Seu artigo parece reter (além da famosa inteligência do cinema) apenas seus aspectos menos recomendáveis e mais irritantes, como essa incapacidade de sustentar qualquer escolha que seja compensada por uma hiper-valorização maníaca de alguns autores e alguns filmes (Tourneur e outros para ontem, e para hoje uma escolha interessante que gostaríamos de saber o que lhe sustenta para além do fato de não conceder aos seus fabricantes o estatuto de autores). Pois é precisamente na eleição que tudo sempre foi jogado: há uma certa cinefilia que nunca foi mais do que atribuir estrelas, estabelecer rankings, derrubar quadras de ases
[4]. Paradoxais e terroristas, esses gostos foram suficientes para distinguir o cinéfilo dos espectadores em geral. É por isso que o cinéfilo detestava toda norma de produção diferente, toda forma de marginalidade no cinema (cinema experimental, correntes emergentes como o neorrealismo, Godard, como o diz muito bem L.S., etc). Ele precisava se situar no mesmo terreno que o grande público para tornar sensível a distância de sua visão, e a cinefilia antiga, no fundo, não é senão a valorização dessa distância: pequena perversão cuidadosamente cultivada, e tornada cega à sua natureza parasitária, como o diz Skorecki novamente.

Me parece que a televisão desempenha, nesse sistema de Skorecki, um papel mais ou menos análogo ao do cinema clássico para os cinéfilos de então – a questão tornando-se mais complexa hoje, visto que não se trata mais simplesmente de salvaguardar essa perversão, mas de atualizá-la: a produção cinematográfica atual não podendo mais desempenhar esse papel, já que o “Autor” tornou-se preponderante nela, mesmo nos filmes mais ordinários e menos pessoais, era preciso recorrer à televisão, onde não são os autores, de fato, que constrangem a maquinaria: mas por trás do apagamento do autor na televisão, já não é mais tão difícil, hoje, discernir o lugar que ocupam outros poderes, os quais não podemos mais fingir ignorar, como nos dias áureos de Hollywood.

Com uma grande diferença, no entanto: a fantástica máquina hollywoodiana era fascinante como tal; o dispositivo televisivo, por outro lado, é execrável, e se a televisão ainda pode fascinar, é precisamente porque a máquina não pára, justamente, de derrapar (e os efeitos de verdade, de surgir). Aí está o único ponto comum: desfrutar da televisão também implica um ponto de vista perverso e Skorecki sabe bem disso.


[1] O texto de Kané, publicado na mesma edição de Contra a nova cinefilia, vem logo após o texto de Skorecki (N.d.T).

[2] Os trechos em português de Sobre uma arte ignorada são retirados da tradução feita por Luiz Carlos Oliveira Jr. (N.d.T).

[3] Skorecki não se engana, aliás, quando diz preferir os filmes entravados de Losey àqueles ditos “livres” (o argumento seria também ainda mais forte com Preminger que realizou grandes filmes no início de sua carreira – Whirlpool, Angel Face, até Anatomy of a Murder -, e que se perdeu em seguida, pouco a pouco, num estilo paranoico e estreitamente ideológico. Mas essa evolução era inelutável, e a liberdade concedida aos diretores correspondia a uma nova forma bem geral de conceber o trabalho de cena...

[4] Prática retomada pelo famoso “Conselho dos dez” dos Cahiers: opondo alguns críticos conhecidos da equipe dos Cahiers, era precisamente o gosto dessa última (ah, tão intuitivo e original, apesar dos seus pontos cegos) que se sobressaia, e que justificava a meu ver essa prática numa revista que não passava seu tempo a celebrar cultos (como Présence du cinéma por exemplo, da qual Skorecki, a propósito de Tourneur, oferece involuntariamente um modelo, baseado em citações banais e paradigmáticas do autor, divinizadas em seguida por seus turiferários).
Quanto às atuais distribuições de estrelas nas revistas de cinema, elas não têm mais o mesmo status: todo paradoxo e agressividade cinefílica desapareceram, são apenas resumos de pontos de vista, digestos de subcultura.

Réponse a “C.N.C.” foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, nº 293, outubro de 1978. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

"Propriedade" (Daniel Bandeira, 2022)

Por Leodoro Camilo-Fernandes

O carro é a fortaleza onde, subitamente encastelada, Teresa precisa suportar as investidas dos camponeses em revolta. De frágil vítima da violência urbana a ardilosa sinhá, sai da clausura em que estava no seu apartamento à beira-mar (recuperando-se da violência) e logo volta a ver-se encerrada em outra redoma, em outra violência: seu carro novo, blindado, seu escudo, sua arma, seu túmulo. A propriedade é o sarcófago do rico.

O patrimônio, a fim de que exista, precisa de defuntos: sem morto não tem herança. Propriedade, o filme, por sua vez, também empilha corpos: sem morte não tem revolta. Luta-se pela conservação: dum lado, do patrimônio; do outro, da possibilidade da subsistência. Duas narrativas: a primeira, o debilitado casal rico que vai à fazenda para espairecer e descobre devassada a casa; a segunda, o grupo de trabalhadores que acordam para a labuta e descobrem-se desempregados (sem terra, sem documentos). Mais uma entrada no rol das ficções da revolta: capital e campo, beira-mar e mata, dia e noite, dentro e fora, patrão e empregado, casa-grande e revolta.

Não se assuste, pessoa. O carro liga. Até aqui na casa-grande tem mosquito. Enquanto eles se batem, dê um rolê.

"O sol do futuro" (Nanni Moretti, 2023)

Por Victor Cardozo

Giovanni (Moretti) é um cineasta veterano italiano que faz um novo filme "a cada cinco anos". Durante a nova filmagem, ele se vê, mais uma vez, diante de um impasse existencial generalizado na vida e no trabalho. O seu filme, sobre um editor de jornal alinhado ao PCI (Silvio Orlando) dividido entre lealdade ao partido e solidariedade com os companheiros de uma companhia circense húngara diante da invasão da União Soviética à Hungria em 1957, patina em incertezas que vão da concepção à produção e distribuição, passando por descompassos criativos com os companheiros de equipe. Na vida familiar, Giovanni também sofre uma crise com a possibilidade do fim da sua união com Paola (Margherita Buy), sua esposa e produtora com quem tem uma parceria de 40 anos. O mundo à sua volta, na política, na história e na arte, parece também lhe escapar. A crise da individualidade não conformista, deliberadamente anacrônica e utópica, a rebelião contra a entropia, a obsessão apaixonada pela linguagem, a necessidade de acertar as contas com as questões do passado e da contemporaneidade italiana, tudo isso é sempre o ponto de partida em todos os filmes de Nanni Moretti, seja em 1973 ou em 2024. Mas aqui são os próprios ideais e sonhos que alimentam sua descontinuidade temporal que parecem tomar a frente. O presente invade o passado. Contemplando seu fim, o cineasta pode talvez encontrar seu começo.