O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Apresentação de John M. Stahl (fragmento)




Por Yann Tobin

Houve algum mal-entendido Stahl? Seu nome, certamente, não é ignorado nas histórias do cinema. Ele é frequentemente encontrado entre a multidão de "honestos artesãos" de "profissionais endurecidos" de Hollywood: nós o lembramos geralmente como um bom técnico ou um bom diretor de atores antes de reencaminhá-lo rapidamente para a no man's land de diretores anônimos. [1]

John Stahl é principalmente conhecido por ter sido, no começo dos anos trinta, o especialista do gênero cinematográfico mais desprezado pela crítica: o weepie ou o melodrama lacrimogêneo. Ainda hoje, num momento em que floresce o folclore das "revisões arrebatadoras" ninguém nem sonha em resgatar Stahl; não se julga digno considerá-lo como um verdadeiro autor de filmes, quando esse qualificativo gasto ainda tem algum sentido, e se acordamos o mínimo interesse em algumas de suas obras, é raramente ao diretor que são atribuídos os méritos: já na época, Irene Dunne em A esquina do pecado (1932) e Margaret Sullavan em Only Yesterday (1933) foram elogiadas pela capacidade de se elevar, disseram, apesar do material que lhes foi proposto; o sucesso de Na palheta da vida (1943) e As chaves do reino (1944) foram, e são ainda, inteiramente atribuídos aos ilustres produtores-roteiristas (Nunnally Johnson e Joseph L. Mankiewicz) [2]; a crítica pouco explicou o entusiasmo do público pelas trivialidades de Débil é a carne (1947), mas se deteve na derrocada de Stahl, e na vitória do academicismo repetitivo de um veterano em declínio (Semente, Parnell – O rei sem coroa). Outro engano frequente fez de Stahl um homem de um só filme, a árvore escondendo invariavelmente a floresta: para os historiadores, é A esquina do pecado, o "melodrama inabalável" [3]; para os sociólogos, é Imitação da vida, a questão negra vista por hollywood [4]; para os cinéfilos nostálgicos concorrem Na palheta da vida [5] e o quase lendário Amar foi minha ruína (1945) [6], e assim por diante.

É verdade que atualmente a obra de Stahl é muito difícil de ser vista: seus filmes mudos desapareceram há muito tempo de circulação, e dos falados, os mais célebres foram eclipsados pela glória de remakes ainda mais famosos, sem falar dos bloqueios de direitos e destruições de cópias que estes também ocasionaram. Antes diziam: "Douglas Sirk, aquele que fez os remakes dos sucessos de Stahl". Já foi assim. Agora dizem: "Stahl, ah sim, aquele que fez as primeiras versões das obras-primas de Sirk"... Sinal dos tempos. Mas antes de me alongar ainda mais sobre o homem que se tornará, ninguém duvida, o próximo Grande Maldito da Sétima Arte, eis alguns elementos recolhidos um pouco ao acaso para uma primeira abordagem de John M. Stahl, que serviu o cinema americano de 1914 a 1949, data na qual morreu na mais completa indiferença. Que eu tenha conhecimento, nenhuma cinemateca jamais programou uma retrospectiva deste cineasta.

A esquina do pecado

Em 1932, o ano de A esquina do pecado, os Estados Unidos, no ponto mais alto da depressão, têm um olhar duvidoso sobre o "milagre econômico"; Hollywood vai participar de maneira mais ou menos ambígua dessa questão: a temporada de 32-33 contará com filmes como O fugitivo de Mervyn le Roy, Scarface: A vergonha de uma nação de Howard Hawks, Hollywood de George Cukor, O último chá do General Yen de Frank Capra, Washington Merry-go-round de James Cruze, Não matarás de Ernst Lubitsch, Cavadoras de ouro de Busby Burkeley e Mervyn LeRoy; O paraíso de um homem de Frank Borzage, Wild Boys of the Road e Fome por glória de William Wellman.

Todos esses filmes, cada um à sua maneira, mostram um pouco um país vítima de seus sonhos – dos quais Hollywood havia se tornado oficialmente a fábrica; John Stahl, em A esquina do pecado, mostra uma mulher vítima do "sonho americano": filha de imigrantes alemães em Cincinatti, Ray Schmidt (Irene Dunne), como Jennie Gerhardt (a heroína de Dreiser que Sylvia Sidney interpretará no ano seguinte), fará para a sua grande infelicidade o aprendizado do pesadelo. Por ter ambicionado mudar de vida, ela será condenada, não a morrer, mas a viver uma "imitation of life".



Quinze anos depois, quando a crise já foi há muito tempo apagada das memórias, Stahl dependerá ainda de outras Ray Schmidt, mulheres inadaptadas ou incompreendidas cuja revolta desorganizada é considerada um "pecado mortal".

De uma ponta a outra de A esquina do pecado, Ray é manipulada, escravizada pelas pressões sociais. É apenas no começo do filme que ela é relativamente consciente, que ela tenta escapar de sua condição e do futuro já traçado e reservado pela sua pequena vida provinciana (seu boy-friend Kurt lhe promete "as mil maravilhas", casa, filhos, ascensão social). A esperança nasce ao mesmo tempo que o amor, encarnado por Walter Saxel (John Boles), um caixeiro viajante, portanto um homem "sem raiz" por excelência; mas sem que ela saiba, é a sociedade que conduz sempre, em segredo, as rédeas desse amor louco. Walter se revela, com efeito, apesar de toda a sinceridade real de seus sentimentos, totalmente embebido de conformismo social; para citar as palavras de Jean-Loup Bourget [7], Stahl o mostra para nós "simpático enquanto indivíduo, odioso enquanto burguês": dessa maneira, é suficiente que Ray falte no encontro com a mãe de seu amante (para comprovar a respeitabilidade de sua relação) para que Walter renuncie a ela; ao contrário do romance de Fannie Hurst e as suas adaptações posteriores, o "trágico caminho do destino" que impede Ray de comparecer a esse encontro decisivo é menos ligado a fatalidade do que a ambição de Stahl por um discurso irônico (no sentido empregado por Sócrates): uma vez que a ligação entre eles é retomada anos mais tarde, Walter tendo se casado com uma noiva cheia de dinheiro, ela se dará aos moldes de uma infeliz paródia da vida conjugal; quando ele a encontra todas as noites antes de voltar ao lar legítimo, Walter Saxel se deixa chamar por "Mr. Schmidt" (essa gag será transposta com um pathos nitidamente mais insistente em Nasce uma estrela).

Se a maior parte das heroínas do melodrama tradicional são, como ela, pobres vítimas da sociedade, Stahl tem porém o mérito de nos revelar objetivamente o destino de Ray Schmidt, este que é finalmente mais lamentável que comovente. Nesse sentido, nós podemos comparar A esquina do pecado de 1932 ao remake que Robert Stevenson filma nove anos depois, com Margaret Sullavan e Charles Boyer: ao mesmo tempo que o estilo de Stahl é sóbrio, contido, beneficiado nesse sentido da fotografia "bruta" do grande Karl Freund e pela ausência quase total de partitura musical, o de Stevenson é romântico e barroco (no sentido hollywoodiano), com um cuidado maníaco com a luxuosa reconstituição de 1900 (música, figurino, decoração), as imagens "peroladas", filtradas pelo talento expert de William (Garbo) Daniels, os movimentos de câmera demasiado detalhados aos modos de Ophuls. Tudo participa nesse último filme, inclusive a direção de atores e as notáveis modificações no roteiro, da mesma vontade de exagerar no "glamour" às custas do realismo social. Walter Saxel, o dandy egoísta, assume os traços do amante langoroso e suave que Charles Boyer estereotipou em muitos papéis (incluindo precisamente no de músico em Noite de pecado de Stahl, 1938). Quanto a Ray de Irene Dunne, uma mulher triste, fechada, silenciosa em seu infortúnio, Margaret Sullavan a transformou, em uma performance arriscada que só o seu gênio poderia tornar convincente, uma Margot que floresce, feliz em seu sacrifício, que sorri de sua própria frustração, glorificada pelos spotlights do romanesco: sem nenhuma insistência aqui na vida mesquinha no apartamento de fundo de quintal, estão ausentes as miseráveis porcelanas que Ray viria a vender quando Walter, de viagem, esquece de sua pensão mensal, desaparecem também as reflexões amargas de sua vizinha, outra "back street woman", sobre a exploração da mulher pelo egocentrismo masculino - sem surpresa: a prisão de dois cômodos em que é enclausurada Irene Dunne deu lugar a um ninho de amor onde se diverte um casal mistificado; O sonho eterno passou por aqui, o Código Hays também (nos numerosos filmes do período que foram "refeitos" na década seguinte, é fácil constatar como as "divergências" anti-sociais ou imorais foram discretamente apagadas, nesses remakes, para benefício da pátina luxuosa, das quais são feitas as lendas como O médico e o monstro, A ponte de Waterloo, Boêmio encantador, A primeira página, O último encontro, O falcão maltês, etc.).



Tomemos por exemplo o encontro mal-sucedido que serve de clímax para o primeiro ato de A esquina do pecado (e será retomado no fim do segundo com a última reunião no imaginário de Ray). Na primeira versão: Irene Dunne, atrasada pelos problemas amorosos da sua irmã, encontra-se sozinha no parque em que Walter e a sua mãe haviam acabado de deixar; a câmera centralizada nela se afasta de repente em um inesquecível travelling para trás até que ela se perca na multidão: Ray, de certa forma, se prepara para voltar ao anonimato. No remake, Sullavan, desta vez por causa de um pretendente ciumento, perde o barco que leva Boyer para fora da sua vida: enquanto ele avança em direção ao horizonte, a câmera se demora em um close-up no rosto da atriz – essa Ray se prepara para se tornar sublime. O filme de Stevenson opera a santificação de uma americana média que, felizmente, tem o olhar comovente de Margaret Sullavan. Stahl nos fala da desilusão de uma filha de imigrantes que acredita na terra prometida. Ele termina o seu filme com o pequeno rosto morto de Irene Dunne – enfim livre? Os sinos começam a soar, prefigurando o fim de Vive-se uma só vez de Fritz Lang e sua irrisória grandiloquência. Na segunda versão, Ray Schmidt se chama Ray Smith.

[...]

Amar foi minha ruína

No melodrama hollywoodiano são representadas esquematicamente duas grandes categorias de heroínas: de um lado as "sensíveis", mulheres de aparência frágil e indecisa, no entanto prontas a aceitar o seu destino com resignação, guardando um certo senso de humor desabusado (entre 1930 e 1945, Loretta Young, Sylvia Sidney, Irene Dunne, Margaret Sullavan, Ginger Rogers). O outro tipo, são as "fúrias": decididas, até mesmo arrivistas, inquietas em sua independência, elas se mostram no final das contas mais vulneráveis uma vez que a máscara cai, e são, sem exceção, punidas pela lógica dos clichês do gênero (nesse sentido, Bette Davis, Joan Crawford, Katharine Hepburn, Barbara Stanwyck). A partir de uma situação semelhante, a utilização de um ou de outro arquétipo vai guiar a evolução do filme: basta, por exemplo, comparar Irene Dunne em A esquina do pecado e Joan Crawford em Manequim, com os quais no segundo filme um sutil desdobramento do personagem de Walter Saxel (A esquina do pecado) em Alan Curtis, o sedutor arrivista, e Spencer Tracy, o homem honesto recém-chegado, que permite Crawford encontrar a felicidade na humildade graças a um verdadeiro "senhor e mestre" – lição que Dunne nunca precisou, sendo que ela própria se submeteu ao calvário. Por outro lado o pareamento de uma sensível e de uma fúria dá lugar a confrontos passionais que não podem terminar senão em um empate: Hepburn e Rogers em No teatro da vida, Crawford e Sullavan em A mulher proibida dão lugar depois de duas horas de pseudo rivalidade a encantadoras cenas de reconciliação (que Cukor transformará em pastiche em Les girls).

Depois que Selznick dá o papel de Scarlet O'Hara à desconhecida Viven Leigh em 1939 (depois de tê-lo recusado, parece, a Bette Davis e a Katharine Hepburn), é sabido que uma "fúria" pode ter sex-appeal; graças a intuição de um produtor inspirado, a heroína de Margaret Michell se torna o modelo cinematográfico de todas essas mulheres-crianças que avançam com as cabeças baixas em direção à ruína, levando junto com elas tudo que está no seu caminho. Se Joan Crawford e Bette Davis continuam conquistando prêmios acadêmicos, as verdadeiras vedetes de seus filmes têm os rostos de boneca de Ann Blyth (a filha perversa de Alma em suplício) e de Anne Baxter (a venenosa Eve Harrington). E quando Crawford recebe seu Oscar em 1945 é embaixo do nariz de duas dessas ingênuas perversas, a saber a última descoberta e futura esposa de David O. Selznick (Jennifer Jones – Um amor em cada vida) e a mais recente "invenção" de Zanuck (Gene Tierney - Amar foi minha ruína): com efeito, o melodrama depois da guerra não é mais um gênero rosa, ele se apropria do universo corrompido e violento da série noir. 1945, ano de transição. Se Alma em suplício é um assunto de melodrama que Curtiz trata como film noir, Amar foi minha ruína é um assunto de filme noir que Stahl trata como um puro melodrama - daí o espanto justificado de Borde e Chaumeton diante da ampla utilização que foi feita do technicolor e de cenas de exteriores, julgadas por eles como inesperadas em um "filme de crime", e com razão.



Amar foi minha ruína é a versão satânica de Sublime obsessão. Os mesmos personagens se repetem mas agora com funções invertidas: uma jovem mulher belíssima (de esposa apagada, ela se transforma em uma mulher egoísta e impulsiva), apaixonada por um homem mais velho, que morreu antes de aparecer na tela, e que assombra o resto do filme (não se trata mais de um benfeitor impregnado de filosofia cristã, mas de um pai possessivo ligado a ritos "pagãos")[8], um jovem primogênito escolhido para substituir o morto (e que, outrora gerador de esperança, só dá provas aqui de uma incompreensão sonâmbula que precipita o naufrágio da heroína). Mesmo o personagem da filha do Dr. Hudson, com a qual Irene Dunne se entendia "como uma irmã", se encontra transposta em Amar foi minha ruína através de Jeanne Crain, a irmã adotiva apresentada desde o começo como uma rival em potencial (e em seguida real). A interpretação ao mesmo tempo frenética e etérea de Gene Tierney é a antítese da digna e estremecida Dunne, mas ela só expressa de maneira diversa uma idêntica fragilidade afetiva.

A ligação incestuosa que conecta Ellen a seu pai é tão explícita quanto possível; devido os tabus que pesam neste amor, Ellen, nesse sentido próxima a James Stewart em Um corpo que cai, só será livre para organizar a realização de seu desejo depois da morte da pessoa amada, por procuração; mas como em Hitchcock (e ao contrário de Sublime obsessão), o substituto, mesmo que se pareça fisicamente, nunca será mais que a cópia de um ideal endeusado pela lembrança. Desde o seu primeiro encontro no vagão de trem, Ellen e Richard, futuros esposos, travam conhecimento se entregando a um jogo de sedução mútua que já os define e anuncia suas relações futuras; ela, compartilhando as notáveis semelhanças que ele guardaria com o pai que ela acabou de perder, ele, recitando desajeitadamente, e sem que ela se deixe enganar, uma tirada plagiada de seu último livro. Isso permite que Stahl evoque já no começo a neurose obsessiva de Ellen, assim como a utilização que será feita de Richard, reduzido a um papel passivo de jovem primogênito de romance. Ele não parece particularmente simpático (não mais, podemos dizer, que Rock Hudson em Palavras ao vento) porque, apaixonado, como um Walter Saxel, pelos valores tradicionais, e apesar de amar a sua esposa, ele não aceitará por sua vez nenhuma transgressão dos costumes: em vez de tentar compreendê-la, ele a deixará sozinha com seu infortúnio – quando ele se recusa a ser sustentado por ela, é unicamente por princípio ou por medo de se submeter demais aos domínios do defunto (Ellen herdou todo o dinheiro de seu pai)?

Com a obstinação maníaca de um metteur en scène, Ellen se empenha em reviver uma paixão que se tornou o único sentido da sua vida. Ela começa por escolher o ator principal, tomando antes de Richard a iniciativa da proposta de casamento, depois o cenário, um chalé na floresta totalmente isolado do resto do mundo: como Priam Farell[9], que se retirou para uma ilha deserta por decisão própria, Ellen não pode funcionar em sociedade. John Stahl e Gene Tierney, eles mesmos sublinharam [10] que se ela se tornou "má", é porque ela foi levada a isso, e não por uma condição inerente. Assim, desde o começo, o papel que Ellen se reservou nesse psicodrama a dois não é outro que não o de esposa perfeita e dedicada – perfeita demais, talvez, e dedicada demais: "Sou eu que lavarei suas roupas e cozinharei para ti", afirma ela quando ele lhe propõe que contratem empregados domésticos. "Tu nasceste escrava", responde ele com um meio sorriso envergonhado, o mesmo de Claudette Colbert diante da babá negra de Imitação da vida. Contudo, Ellen vai descobrir que não se escapa assim facilmente ao olhar dos outros, o qual Richard, ao contrário dela, não pode dispensar. O velho zelador que se ocupa do chalé, a foto de uma amiga de colégio que fica sobre um móvel, o romance ao qual Richard dedica os seus dias são insuportáveis para Ellen. Quando ele convida a família de sua esposa, ela se recusa agressivamente a continuar interpretando a "perfeita dona de casa" e se mostra intratável. Quando ele instala na mesma casa seu jovem irmão enfermo, ela não pode deixar de premeditar semi-inconscientemente a morte deste…


A maternidade é uma prova decisiva através da qual mesmo as ambiciosas Stella Dallas e Mildred Pierce encontram a oportunidade de sacrificar-se generosamente; no início, Ellen considera com alegria a ideia de um filho que estreitaria sua união autárquica com Richard. Mas infelizmente esse filho, mesmo antes de nascer, já promete se tornar um Outro. Ellen reclama (bastante violentamente para a época) que a gravidez a desfigurou e que a tornou menos desejável, e o cúmulo se dá no momento em que ela percebe que Richard, para lhe fazer uma surpresa, transformou em um quarto de criança o laboratório, até então amorosamente preservado, do pai de Ellen. Alguns dias depois, enquanto Richard, como habitualmente, a abandona pela máquina de escrever, Ellen se joga da escada. O Outro não virá.

Se recusando a sentir pena frente ao deficiente físico, se desfazendo do mínimo instinto maternal, Ellen, sem querer, contesta a sua condição feminina. Com efeito, sua revolta, por mais irrefletida que seja, adquire cada vez mais força: aos olhos do mundo, o amor sem limites de Ellen é subversão, mas para evitar reconhecê-lo como tal, ele o condenará como perversão. Rebelião, morte, aborto, suicídio serão os diversos avatares que suportarão essa paixão cega para que possa se completar apesar das pressões exteriores. A morte de Ellen, premeditada com uma inacreditável minúcia, ecoa aquela de Delilah em Imitação da vida, no que ela representa igualmente o estado último da mise en scène, o prelúdio do retorno à paz, a vingança contra uma vida fracassada. Richard não a ama mais, só resta a Ellen se encontrar com seu pai, depois de ter terminado a peça com estilo, para não perder o prestígio. Pobre vinganca na verdade pois, como sempre, desde a desaparição da "vilã" o mundo retorna a sua rotina tranquila e o filme com ele. O processo que serve de conclusão é também caricatural, na comicidade pelo menos, quanto aquele de Na palheta da vida, porque terminamos por julgar e condenar uma morta: Ellen era um monstro, nos dizem. O título original, por outro lado, nos lembra em sua ironia que os homens não podem julgar uma vítima dos próprios homens…

Fria, silenciosa, abafada, a direção de Amar foi minha ruína estoura ocasionalmente, de maneira tipicamente stahliniana, em esplêndidas fugas líricas sublimes pelo extravagante Technicolor dos anos 40. A utilização do cenário e do espaço participam da progressão do drama: assim é claro que a instável Ellen precisa, para agir, de um entorno “em movimento”; ela flerta com Richard em um trem em movimento, consegue o seduzir enquanto nada em um lago, concebe sua morte enquanto rema em uma canoa, e não é por acaso que a sequência mais extraordinária mostra Gene Tierney, lançada à aurora em um cavalo galopando, dispersando ao vento as cinzas do pai. No espaço de um instante, o mundo lhe pertence. Os grandes personagens do melodrama vivem na efemeridade, é isso que os tornam tão lamentáveis quanto belos: Barbara Stanwyck desafiando o seu público na jaula dos leões (The Miracle Woman), Marlene Dietrich contemplando o seu império ao som da marcha das Valquírias (A Imperatriz Vermelha), Barbara Bates (Phoebe) pressiona contra ela a estatueta de seu coração (A Malvada), Robert Stack manobrando enlouquecido em máxima velocidade um velho avião teco-teco (Almas maculadas), e então Douglas Sirk diz: "A terra estável não lhe proporciona nenhuma segurança; a estabilidade, ele a busca nos ares – é uma ideia insana, mas magnífica, do meu ponto de vista."



Durante seu período na Universal, Stahl só tinha trabalhado com personagens sensivelmente dilaceradas, tal como Irene Dunne e Margaret Sullavan. Depois da guerra, seu interesse se volta às mulheres orgulhosas e insubmissas que foram interpretadas por Gene Tierney, Maureen O'Hara (The Foxes of Harrow), Linda Darnell (The Walls of Jericho). Mas se, com dez anos de intervalo, a doce face da heroína sathliniana carregou-se de reflexos demoníacos, elas permanecem ainda prometidas ao desespero: Tierney se suicida, O'Hara vê morrer o seu filho, Darnell é expulsa da cidade. Vítima ou carrasco, a dialética não mudou em nada o resultado: na transição ela não ganhou nem um pingo de lucidez. Nos filmes de Stahl, cada protagonista vive submersa na sua "imitation of life": pensando bem, acontece o mesmo com Borzage e Sirk, Capra e McCarey, Ophuls e Lubitsch, Minnelli e Cukor. Mas com eles, contudo, o drama vem do fato de que elas terminam por se dar conta disso. Em Stahl, o drama, é que elas nunca se dão conta – ou, em todo caso, o fazem sempre tarde demais para tentar remediar; pois, o cinema de Stahl é um cinema sem espelhos. No remake de Sublime Obsessão, Jane Wyman tira os seus óculos escuros mesmo quando ela permanece cega; na sequência do crime em Amar foi minha ruína, Gene Tierney coloca repentinamente seus óculos escuros, embora ela enxergue perfeitamente. John M. Stahl, no final das contas, não é um Romântico.

[1] Charles Higham o acha digno de Cukor (The Art of the American Film, p.195), mas não vai além disso. Por outro lado, Rex Harrison o coloca no mesmo plano de Mankiewicz e Sturges (Rex, an autobigraphy).

[2] No livro Films in America 1929-1969, por Martin Quigley e Richard Gertner, uma nota sobre Keys of the Kingdom fala de Cronin, Mankiewicz e Gregory Pack sem mencionar Sahl. O único estudo sério de Holy Matrimony se encontra no livro de Richard Corliss Talking Pictures sobre os roteiristas de Hollywood, no capítulo "Nunnally Johnson".

[3] Fórmula emprestada da enciclopédia de cinema de Roger Boussinot.

[4] Cf. Análise pertinente de Peter Noble (The Negro in Films, 1949), na qual ele também se esquece de falar de Stahl.

[5] Na nostálgica The Films of the Forties da série de Citadel, Tony Thomas, em seu entusiasmo com Holy Matrimony, omite a existência do seu realizador.

[6] John Kobal no livro Romance and the Cinema, Borde e Chaumeton no Panorama du Film Noir Américain fazem justiça ao trabalho de Stahl, mas não citam nenhum de seus outros filmes.

[7] "Aspectos do melodrama americano", Positif, n˚131.

[8] A figura do "pai", seja ela real ou espiritual, é essencial em Stahl – ainda que seja preciso matá-la para viver em total liberdade: a vocação (religiosa) de Gregory Peck em Keys of the Kingdom nasce no dia em que seu pai é assassinado. Aquela de Robert Taylor no dia em que o Dr. Hudson dá a sua vida pela dele; o pequeno e tímido soldado de Henry Fonda só se torna corajoso quando, ao lado dele, morre seu “sargento imortal” (Thomas Mitchell); quanto a Gene Tierney… Por outro lado, Walter Saxel (A esquina do pecado) e as duas órfãs de Imitação da vida sofrem toda a vida por não terem conhecido seus pais, dos quais elas procuraram em vão os derivados menos gloriosos (dinheiro, mentira, amores proibidos).

[9] NdT: personagem principal de outro filme de Stahl, Na palheta da vida: um pintor recluso que busca se distanciar dos holofotes da alta sociedade inglesa.

[10] Sirk on Sirk, por Jon Halliday, col. « Cinema One ».

Présentation (John M. Stahl – Sur Back Street, Imitation of Life, Magnificient Obsession, Parnell, Holy Matrimony, Leave her to Heaven) foi publicado originalmente na revista Positif, n° 220/221, julho/agosto de 1979. Tradução: Roberta Pedrosa.

“...Funesto” ou quatro divagações em torno de Francisca






Sobre Francisca de Manoel de Oliveira

Por Axelle Ropert

Argumento: Camilo, um jovem escritor pobre (Mário Barroso) e José Augusto, um ocioso aristocrata (Diogo Dória) frequentam as filhas do coronel Owen até o dia em que o segundo rapta Fanny (Teresa Meneses) que era, contudo, a preferida do primeiro. Camilo revela então a José Augusto a existência de uma correspondência secreta entre Fanny e um desconhecido. Mortificado, José esposa Fanny, mas decide nunca se unir fisicamente a ela. Fanny também se chama Francisca.

“Tu, me ofendendo, te tornaste digno de mim” ou Como duvidar de uma moça?

Francisca morre virgem e, contudo, casada. De A Marquesa d’O (Kleist) à Benilde (José Regio) passando por O Cavaleiro Des Touches (Barbey d’Aurevilly), Erhengarde (Blixen) e Tonka (Musil), as moças estão em mau estado, milagrosamente grávidas ou maculadas antes mesmo de terem conhecido um homem. Como ofender uma moça? Duvidando de sua virgindade, literalmente – será que ela ainda está intacta? – ou metaforicamente – será que ela pensa nas coisas do amor? Por que esse tema, cujo programa é definitivamente fixado por um dos personagens de Francisca (“produzir um anjo na plenitude do martírio”) é, na sua própria crueza, tão romanesco? Não na sua maneira de contaminar as aparências por uma dúvida universal, fingimento cuja incerteza generalizada seria a triste vitória, não mais do que acentuando a rigidez dos confrontos entre a inocência e a injustiça, rigidez, oh quão sedutora na sua violência. Não. A suspeita levantada contra o corpo virginal permite o surgimento daquilo que é a marca da heroína moderna – o suplemento da alma, justa consequência da infâmia da acusação e da reserva obrigatória do corpo. Qual é a necessidade desse suplemento da alma? O horror da acusação que toca uma moça é, no fundo, sempre a oportunidade de um contrato amoroso inesperado no qual ligam-se o culpado e a vítima numa reconciliação das mais estranhas. Um fingimento e uma negociação, uma mentira e uma troca deverão ter lugar entre os esposos, unidos para sempre por uma inevitável fabulação. Trata-se de um pacto para salvar a aparência, mesmo correndo o risco de atenuar as linhas da ofensa sob o véu de um contrato, pacto que permitirá a eles de se contarem histórias, de se “escreverem um romance”, mas dessa vez a dois – pois a moça sai vitoriosa dessa provação, ela ganhou uma alma.

“Eu sei o que é um sonho, e o pouco de crença que um homem deve dar à sua extravagância” ou Por que fugir dos presságios?

Existe uma geografia do impulso romântico? Ou melhor, pode-se amar e morrer em Portugal como na Inglaterra, na França ou na Alemanha? A Lord Byron e às irmãs Brontë pertencem as fugas desgrenhadas e a febre das vigílias, à Musset e à Constant o desespero dos filhos do século suavizado pelo exercício de uma lucidez sem falhas, à Novalis e à Schlegel a busca pela flor azul e as iniciações enigmáticas. No universo lusitano a presença do sul é enganosa. Nada é menos solar que este mundo, atormentado pela gravidade das atitudes, por esse gosto pelos interiores holandeses que devem menos à presença imponente do sol do que à proximidade perigosa do grande Oceano. A marca desse romantismo português, de Camilo Castelo Branco à Eça de Queiroz, de Agustina Bessa Luiz à Vittorio Nemesio, é a feição dos espíritos, espíritos nos quais a volubilidade lírica os disputam com a leveza da ironia, nos quais os sarcasmos caem sob o peso das declamações, espíritos decididamente voltados para o oceano e essa presença magnética que suscita todas as divagações, a do arquipélago dos Açores que envia um vento de loucura insular sobre o próprio continente e faz com que esses espíritos, esses nobres perturbados, percam a cabeça. Os tableux vivants de Francisca sussurram reminiscências, pressentimentos, analogias, irrupções terríveis tal qual o rapto de Fanny, com a ajuda da obscuridade, durante uma noite americana que reencontra sua vocação primeira – fazer chuva e sol e empurrar o artifício dessa vontade até às suas ressonâncias mitológicas. Tal qual também essa chegada de um cavalo no quarto de Camilo que se junta, no pavor do pégaso que ela suscita, aos medos do pequeno Hans de Friedrich Nietzsche, e do filho do Rei dos Álamos reunidos. O embalo das paixões, as inquietudes levadas à seus termos, a experimentação dos desafios mais absurdos, a resignação e os sobressaltos desses jovens obedientes ao “funesto”, impiedosa palavra de ordem desse universo que não para de anunciar a má notícia.




“Eu saio de mim quando ouço esse discurso” ou Quando é necessário falar?

José, Camilo e Fanny não se falam. Eles dirigem a palavra uns aos outros de frente para nós, direto nos olhos, e jamais suas perguntas e respostas se entrelaçarão. Francisca é um filme que não para de morrer sob os golpes do esvaziamento dessas palavras, dessa ligadura monocórdica e obstinada das vozes. José, Camilo e Fanny “são falados” através de suas frases pelo fluxo passional, autoritário e devastador, que se apodera de suas personas para se exprimir e morrem, não por terem amado e sofrido, mas por terem tido que suportar o peso dessa Voz passional que não pode fazer nada além de quebrar a frágil armadura humana. A língua portuguesa, hipnótica e insidiosa, age como um veneno que se infiltra nas veias e paralisa, pacientemente, os corpos de suas vítimas dobrando-se sob o encanto dessa voz inumana que os atravessa, corpos sempre a ponto de cair e obrigados, para lutar, a se endurecer e a não se deixar distrair por seus parceiros. Se José Augusto, Camilo e Fanny se aprumam de frente para nós, é por que eles olham o horizonte, atormentados por inverossímeis miragens que obrigam seus olhares a se manterem muito altos.

Algumas cenas se repetem de forma idêntica em Francisca, como se isso não fosse nada, como se a primeira vez não tivesse sido registrada, como se a segunda fosse a primeira, como se as cenas, instantaneamente voláteis, fossem esquecidas assim que vistas. Se Camilo, José Augusto e Fanny se repentem não é porque lhes falte memória, mas, como diria Charles Péguy, “lhes falta a memória”, prisioneiros do presente da paixão que recusa o passado e o futuro, presente deletério que congela as vítimas no que será o seu destino, incapazes de lembrar ou de prever. A crueldade da repetição se aparenta a uma curiosa operação anatômica que quer fixar aos corpos as profecias, cravar nos rostos o anúncio dos dias tristes, dar uma trajetória funesta a essas vidas.

“Eu quero que uma tristeza negra, a passos lentos, me consuma” ou O que pode uma alma?

Fanny Owen, em resposta a uma pergunta de José, pronuncia essa frase: “A alma é um vício.” A cena é repetida duas vezes, a primeira vez como sentença – se a alma é um vício, o que vai acontecer... –, a segunda vez como consequência – porque a alma é um vício, a alma de Fanny é viciada. Francisca faz parte desses filmes que, de Sob o signo de capricórnio (Hitchcock) à Amor à morte (Resnais) passando por La Malibran (Guitry), mostram a “tirania da alma”. O que a alma quer? A desapropriação daquele que a abriga. Como? Se a Alma é um vício, é no sentido próprio do termo, “uma imperfeição que torna uma coisa mais ou menos imprópria ao seu destino”, um defeito que, roendo por dentro os mecanismos do amor, conduz à sua perda as moças afligidas por essa deficiência, por esse acidente, por essa má-sorte. Mas, de novo, o que a alma quer? Digno dos contos mortíferos de Edgar Allan Poe, o plano impressionante do coração de Fanny repousando na capela ardente, opondo à dor interrogativa dos amantes o milagre da sua sobrevivência, é talvez uma resposta: exigir sacrificios para renascer infinitamente.

P.S.: as citações-títulos são de Pierre Corneille.

P.P.S.: Francisca será relançado muito em breve nas telas parisienses.

“...Funesto” ou quatre divagations autour de Francisca foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°5, primavera de 1998. Tradução: Miguel Haoni.