O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Baby face


Por Jacques Lourcelles


Um estudo de costumes audacioso e forte, bem ritmado, concebido antes da instauração do código Hays e reformulado em seguida. Estimulada por um roteiro sem concessões (exceto no final), Barbara Stanwyck, uma das maiores, senão a maior atriz americana, dá um verdadeiro recital de suas possibilidades: dureza elegante, frieza, obstinação, sofisticação glacial, ironia às quais se juntam constantemente uma lucidez desiludida, uma insatisfação consigo mesma que tornam o personagem totalmente cativante. Alguns comentadores viram no papel de Lily Powers uma primeira versão do seu personagem de femme fatale e criminosa de Pacto de sangue (Billy Wilder). Mas aqui a sua composição é ainda mais surpreendente e muito mais ousada, pois ela está mergulhada num contexto realista desprovido de qualquer fatalismo e fora das convenções de um gênero. Ela encarna um personagem da vida de todos os dias, próximo do espectador, cuja ação e o sucesso obedecem às regras de um universo implacável e imoral que não lhe deixa nenhum outro meio de triunfar.

Baby face foi publicado em Dictionnaire du cinéma - Les films, Editions Robert Laffont, Paris, 1992, p. 116. Tradução: Miguel Haoni.

O dom das línguas

Por Jean-Claude Biette

O Tigre de Bengala de Fritz Lang, revisto em versão original alemã no “Cinéma de Minuit” no canal FR3, é
o túmulo suntuoso de toda uma época do cinema. É o ponto final de uma língua comum elaborada por Hollywood no começo dos anos 30 com o cinema falado. Uma língua que, durante uma dezena de anos, vai se dar os meios de desenvolver seja grandes ficções sociais, seja modelos constitutivos de gêneros cinematográficos (o policial, a comédia, o musical, o western, o filme histórico), seja grandes romances ilustrados (David Copperfield, Peter Ibbetson, E o vento levou…). Em meados dos anos 40 – depois dos anos do cinema militante no engajamento dos E.U.A na guerra – essa língua comum se dedica, de repente, ao seu próprio refinamento e tende a uma escritura mais abstrata. Constatamos uma economia repentina de informações na narração (os jornais e, sobretudo, a televisão começam a fornecer essas informações as quais os filmes podem, doravante, dispensar) e, ainda, cada filme aprende a melhor vincular o cenário e a luz com a decupagem, e descobre subitamente o silenciamento da teatralidade dos atores que, nos anos 30, deviam frequentemente carregar seus diálogos, como tiradas, nos grandes cenários. Apertamos o parafuso da narrativa, que ganha em concisão rítmica o que ela abandona de acumulação de materiais. Essa redução quantitativa de elementos, a diminuição do espaço visual e sonoro em relação a esses grandes cenários dos anos 30, o uso menos grandiloquente e mais leve da música, submeteram o conjunto do cinema hollywoodiano a uma transformação estilística. Filmes como O inventor da mocidade ou O rio da aventura de Hawks ou Clash by Night de Lang, que se situam em torno de 1951, são hoje arquétipos maravilhosos dessa abstração, dessa apertada dada não só na narrativa, mas em todos os componentes do filme.

Mais de trinta anos depois, hoje, nós podemos ainda seguir o caminho que um cineasta, com a ajuda dessa língua comum, desbravou ele mesmo para chegar ao coração do seu tema. Nessa época da língua comum hollywoodiana, o ponto de vista restritivo sobre a vida de um King Vidor, que divide o mundo em chefes predestinados e multidões infantis (com exceção do belo An American Romance), ou ainda o golpe de força de um Elia Kazan hipertrofiando o ator em detrimento da polifonia do plano, essa redução do ponto de vista sobre a vida e o cinema, que só capta de um tema os traços grosseiros, que prefere imagens unívocas à ambiguidade dos comportamentos humanos, tornou-se hoje uma lei estética ou antes um consenso temeroso. As paisagens e os meios sociais de todo o planeta são tantas estantes ilustráveis de um imenso reservatório, mas o conhecimento que nós podemos ter de conteúdos autênticos é tão fraco, o potencial de comunicação tão trucado de antemão, a massa de informações disponíveis tão absurdamente ampla, o tempo de assimilação dos conhecimentos e das experiências tão derrisoriamente inferior a sua quantidade, que, a língua comum tendo definhado no fim dos anos 50 (em parte pelo enfraquecimento de sua necessidade), é uma nova língua comum que, lenta mas seguramente, se constituiu: a língua do cinema internacional, espécie de compromisso estético entre a modernidade dos hollywoodianos e essa dos europeus das gerações recentes. Uma língua que pega emprestado, simultaneamente, a eficácia do telefilme americano, o pragmatismo preguiçoso do audiovisual europeu (do qual Rossellini foi o infeliz precursor) e as novas linguagens limitadas e referenciais do comércio (publicidades) e do espetáculo (clipes), para se constituir em suposto instrumento de comunicação universal, quando ela é só uma retórica oportunista, sempre pronta para capitalizar qualquer técnica nova.

Essa nova língua, para poder aterrissar e se fazer ouvir em todos os cantos da terra, deve, por uma necessidade vital, renunciar a todo particularismo estilístico, a toda singularidade. Ela só pode atingir esse objetivo se proibindo de manifestar o menor denominador comum de estilo, de conteúdo e de expressão: ela deve, em qualquer parte do mundo, poder ser traduzida, resumida, decupada em clipes-anúncios no canal inevitável da televisão. Aquele filme filipino deve poder ser anunciado em um canal sueco e ser instantaneamente percebido como produto internacional consumível, e reciprocamente tal filme sueco deve ser instantaneamente anunciado e reconhecido em um canal filipino como produto de mesma natureza. E para que essa língua seja compreendida e falada em todo lugar no mundo, ela só deve empregar uma única categoria de elementos, ou seja, renunciar qualquer ambiguidade. É preciso, num filme de hoje, matar um coelho de cada vez.



É o que faz brilhantemente Woody Allen. Em A Rosa Púrpura do Cairo, o cineasta passa o seu tempo evitando a lógica dramática das situações das quais ele só nos dá a superfície. Particularmente simplista é a sua maneira de apresentar os distintos papéis do personagem que desce do filme preto e branco e aquele do ator que o interpreta. O personagem e o ator permanecem vinhetas regradas por critérios estritamente convencionais que os protegem da vida e a mecânica do roteiro resolve sozinha as gags do filme no filme; a mise en scène é impiedosamente expulsa do conjunto do filme; nós estamos no audiovisual higienizado onde nada tem consistência, exceto uma brilhante demonstração de roteiro. Somente a sequência em que Mia Farrow entra no velho filme é realmente filmada: nesse momento, Allen se questiona (a qual distância se colocar? de onde filmar?) e responde de maneira convincente. É porque ele não quer, em nenhum outro momento, se questionar que o filme é como ele é: um produto puramente referencial, logo, consumível.

Há, todavia, no mundo realizadores que não se satisfazem com esse pobre denominador comum ao qual os condena a indústria audiovisual. Hoje, todo mundo sabe fazer um filme, poucos cineastas ainda ousam serem desajeitados, ou seja, esquecem de reagir como cinéfilos. Todo mundo filma bem ou, mais exatamente, quase todo mundo fala a Língua. Essa língua é uma segunda e natural natureza; pouquíssimos têm ou criam uma linguagem. Mas muitos realizadores ainda amam muito o cinema para ter vontade de fazer melhor que responder ao triste chamado do denominador comum: eles cuidam da escritura dos seus filmes para guardar para si um território pessoal, e talvez seja isso o maneirismo, a secreta revolta contra a língua ordinária, a nostalgia dos belos efeitos (luz, cenários, atores) de outrora. Mas os belos efeitos não são nada sem as belas causas. As belas causas, são simplesmente os temas. A caligrafia cinéfila, que é hoje o enobrecimento da língua ordinária, o departamento aristocrático do cinema, opera, contudo, longe das temíveis exigências de um tema e desemboca num dandismo de conteúdos.

Tratar um assunto hoje com os meios do cinema não é somente não permanecer na língua ordinária, mas aceitar matar
vários coelhos de uma  vez, falar diversas línguas. É, primeiramente, falar mais. A imperfeição é hoje um sinal de que há várias línguas em um filme, a perfeição é somente a ilusão produzida pela homogeneidade. A beleza de Detetive e Adieu Bonaparte resulta em grande parte do uso simultâneo e perigoso dessas línguas, no sentido literal no filme de Chahine, no sentido figurado em Detetive. Adieu Bonaparte não pertence à língua internacional ordinária: a enorme desordem e mesmo a confusão (frequentemente não entendemos nada dos detalhes dos acontecimentos, nem sua interação exata: mas a magia do cinema é também a de se perder sem compreender. Como dizia Bresson: não se trata de compreender, mas de sentir), tudo isso resulta da justaposição, em uma mesma cena, de informações heterogêneas, individuais e etno-políticas. Esse tipo de narrativa que mistura discursos, movimentos, travessias de espaços, misturas incontroladas das interpretações dos atores, é a maneira mais pessoal com a qual Chahine ataca o seu tema e exprime as suas facetas. O personagem de Caffarelli e a ruptura que nós assistimos entre ele e seus dois irmãos egípcios são como a parte visível de um iceberg do qual se aproximou o cineasta. Um filme não tem que nos mostrar todo um iceberg ou toda uma montanha. Um verdadeiro filme impõe de maneira surpreendente e inesquecível o relevo, a cor, a matéria, a natureza de uma pequena parte do universo. Renoir aconselhava rechear os filmes sem pensar demais na ordem ou na clareza. Chahine filma como se ele não precisasse receber esse conselho e nos entrega um filme bem imperfeito mas inesquecível. Os filmes televisivos tão ambiciosos de Rossellini nos entregavam a informação sobre as coisas, mas não o sentimento que podia lhes devolver a vida.




Em Detetive, uma trama mabusiana é submetida ao trabalho de recomposição de uma realidade, ao mesmo tempo, em expansão infinita e autônoma, como se toda escória romanesca devesse ser imediatamente transformada em novo elemento de realidade (o aspecto Rouletabille
[1] desse novo “Mistério do quarto amarelo” torna-se, através de uma operação poética, ao mesmo tempo o personagem-ator Léaud e planos de bolas de bilhar que rolam). O filme consegue exprimir não só a totalidade das magras informações da trama policial de origem, mas ainda nos mostra as operações pelas quais essas informações podem se tornar afetos e sugerir todo um mundo. Em Europa 51, filmando Ingrid Bergman, Rossellini fazia o retrato de Simone Weil. Je vous salue, Marie, por contaminação do cineasta pelo seu tema, fala a linguagem de Simone Weil. Detetive, que em princípio não tem um tema mas um roteiro, adota, através do método paranoico crítico, a língua de hoje e, por essa via, encontra seu personagem central, Johnny Hallyday, duplo de Michel Subor, “Petit Soldat”, vinte anos depois, e achando seu personagem, ele encontra seu tema: a realidade enfim expandida que vive seu tempo de vida. Mabuse desapareceu: a Máfia e a circulação do dinheiro ameaçam e ferem intermitentemente. Detetive, como Amerika-relações de classe, fala várias línguas. Nesses dois filmes, aliás, os autores amam espiritualmente e sensualmente cada personagem: os homens tanto quanto as mulheres. (Amar assim um homem e uma mulher é uma prova capital para um cineasta: ela consiste em atravessar o espelho dos seus gostos sexuais. Esse critério, tão insolentemente irracional, é quase o único que permite estabelecer a autenticidade e grandeza de um cineasta). Então, os personagens têm seus relevos, suas cores, suas matérias, suas naturezas: eles são verdadeiramente uma parte ínfima do universo. A língua ordinária do cinema é, ela, narcisista.

[1] Referente ao personagem Joseph Joséphin, apelidado Rouletabille, do romance policial Mystère de la chambre jaune de Gaston Leroux, publicado em 1907.

Le don des langues
foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinema, n° 347, Julho/Agosto de 1985, e republicado na coletânea Poétique des auteurs. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

A natureza da espécie


Por Miguel Haoni

A cena de abertura de Jejum de amor (Howard Hawks, 1940) é uma carta de intenções do seu autor. Hawks foi um dos maiores observadores da natureza humana. Compreendendo o “humano” enquanto espécie e a sua “natureza” do ponto de vista biológico, o diretor privilegiava, em suas cenas, a pura expressão dos desejos. Quando o crítico Jean-Claude Biette escreveu a propósito de O inventor da mocidade (1952) – outro filme que põe a nu este interesse de investigação – “A mulher (ou o homem) é um animal realmente estranho” [1], ele expõe uma ideia recorrente ao espectador diante dos filmes de Hawks.

Compreender o ser humano na qualidade de animal é compreender a aventura de sua dupla função: social e natural. Em Jejum de amor, Hildy (Rosalind Russell) está dividida entre a sociedade e o mundo. A sociedade é o casamento com Bruce (Ralph Bellamy) e a paz doméstica desejada pela personagem. O mundo é a “sua” natureza selvagem e o pertencimento a esta selva urbana, meio ambiente do jornalismo, encarnado no gestual simiesco de Walter (Cary Grant).

Segundo o histórico texto de Jacques Rivette, “Gênio de Howard Hawks”: “Hawks não se interessa por sátira ou psicologia; a sociedade não importa mais aos seus propósitos que os sentimentos; diferente de Capra ou McCarey, Hawks está preocupado somente com a aventura do intelecto. Quer ele oponha o velho ao novo, a soma de conhecimento do passado à outra de formas degradadas da vida moderna (Bola de Fogo, A Canção Prometida), ou o homem à fera (Levada da Breca), ele permanece com o mesmo tema da intrusão do não-humano, ou de um avatar mais cru da humanidade, numa sociedade altamente civilizada.” [2] Isso quer dizer que a pressão interior é sempre maior que a pressão exterior e na luta entre essas duas forças, Hawks expõe tanto a fragilidade do tecido social, quanto a arbitrariedade do contrato civilizacional.

O que acontece a partir da primeira cena e em toda a duração do filme é o esforço de Walter para convencer Hildy de que a escolha racional é uma idiotice e mesmo uma agressão contra a sua verdadeira natureza. É necessário, nesta lógica, refundar o pacto ameaçado entre o indivíduo e a sua verdade. Isto já tinha sido desenvolvido em A levada da breca (1938) e o reencontraremos mais tarde em Bola de fogo (1941) e no lado cômico de Hatari! (1962). Trata-se do grande tema das comédias de Hawks.

Nestes filmes, a luta do personagem secundário é para trazer de volta o protagonista a ser quem ele é. Existe aqui um sentido ontológico, igualmente destacado no texto de Rivette, que termina com as seguintes palavras: “Ele prova o movimento ao andar, a existência ao respirar. Que o que é, é.” [3] As coisas são o que são e é preciso lhes encarar e lhes respeitar no seu sentido original. Frontalmente.

Este sentido aparece na mise en scène de Hawks como um ritmo, uma respiração. Biette no necrológio do diretor escrito em 1978 para a Cahiers du cinéma, escreveu: “A força de Hawks, é o seu senso do concreto, do pequeno detalhe que constitui o funcionamento do todo, e a justeza do tempo de seus filmes" [4]. O tempo, o ritmo, o funcionamento das engrenagens do movimento são a força estética destes filmes.



Quando Hildy se despede de Bruce e marcha em direção ao escritório de Walter, atravessando o corredor de maneira altiva, a rapidez cria uma harmonia com a fauna da redação, Hawks faz transparecer, no ritmo do olhar que corre com a personagem, o pertencimento deste corpo a este espaço.

Depois das primeiras trocas de palavras com Walter, ele fecha a porta e eles se medem em silêncio, revelando uma equivalência inconcebível entre ela e o seu noivo. Eles são nesta cena, macho e fêmea da mesma espécie. Todo o diálogo que se segue compõe um balé da mise en scène, uma dança do acasalamento cuja beleza se depreende das noções de eficácia, precisão e funcionamento. Rivette escreveu a respeito disso: “A fascinação que ele impõe não é de modo algum a da ideia, mas aquela da eficácia; o ato nos retém menos por sua beleza que por sua ação mesma no interior do universo que o contém. Tal arte impõe-se uma honestidade fundamental, ao que testemunha o emprego do tempo e do espaço; sem flashback, sem elipse, a continuidade é a regra; nenhum personagem se move sem que o acompanhemos, nenhuma surpresa que o herói não partilhe conosco. A disposição e o encadeamento de cada gesto têm força de lei, mas de uma lei biológica, que encontra sua prova mais decisiva na vida de cada ser vivo; cada plano possui a beleza funcional de um pescoço ou de um tornozelo; sua sucessão, suave e rigorosa, reencontra o ritmo das pulsações do sangue; o filme inteiro, corpo glorioso, animado por uma respiração resiliente e profunda." [5] E é nos silêncios que podemos entrever a profundeza dos sentimentos escondidos no fluxo das palavras.


[1] BIETTE, Jean-Claude, "Le cinéma descend du singe" ("O cinema veio do macaco"), Cahiers du cinéma, n°391, janvier 1987.
[2] RIVETTE, Jacques, "Gênio de Howard Hawks".
[3] RIVETTE, Jacques, Op. cit.
[4] BIETTE, Jean-Claude, "Três mortos”.
[5] RIVETTE, Jacques, Op. cit.

O mundo, exceto a América


Por Serge Daney 

Nós vivemos há algum tempo num mundo onde, paradoxalmente, a América concreta desapareceu atrás do sucesso da americanização abstrata. Esta ganha, sem dúvida (sorrateiramente, por toda parte, sem qualquer extravagância), mas aquela se afasta para sempre, declina e deixa um vazio. Porque claramente a América, faz tempo, tomou para si todas as coisas um pouco pesadas que poderíamos ter acreditado, após a guerra, serem dali em diante poupadas aos jovens habitantes (eu, por exemplo) de uma Europa convalescente e enfim amadurecida. Três coisas ao menos tinham sido deixadas “em leasing” para a América: a vaidade nacionalista de um país “diferente dos outros”, sua capacidade de invenção mitológica e, sobretudo, o sucesso estético de seu modo de vida, o único no fim das contas concretamente desejado neste século. Três coisas que por muito tempo ocuparam Hollywood em tempo integral.

Jean-Pierre Oudart disse (ou escreveu) um dia que o que havia de mais surpreendente em Meu tio da América, era que este filme teria sido o mesmo se a América simplesmente não tivesse existido. Havia nisto uma verdadeira intuição. Com o que se pareceria o cinema sem a América? Recentemente, foi com desgosto que vi em Europa de Lars Von Trier uma resposta possível: a náusea estetizada de um luto acomodado e doentio que, em nenhum lugar, possui qualquer reserva de inocência. Uma “qualidade europeia” neoexpressionista – adulta e vacinada, culturalesca e nada boba, bolorenta de culpa e ressentimento (desde o antipático e eficaz Amadeus) – faria frente, enfim, ao estágio senil das imagens americanas?

Tal “qualidade europeia” existiria? Não tenho certeza. É possível que, em última análise, o cinema só possa funcionar na crença (portanto, eventualmente, no luto) e que o niilismo decorativo de toda “qualidade” seja a sua morte. Assim como a “qualidade francesa” dos anos 50 não era o trailer do cinema vivo que viria, mas da emissão dramática ou do telefilme. Dito isto, a questão permanece aberta, e é bem possível que eu me engane e que seja, digamos, O Amante que ganhe. Mas se é essa barbárie que leva a melhor, então nós perdemos e é preciso pensar em passar à clandestinidade (Trafic será mimeografada).

Sejamos sérios: há por vezes, no antiamericanismo francês (incluindo o meu próprio), qualquer coisa de ressentimento e de pequenez, diante da generosidade sem reservas que foi o espetáculo americano, deste potlatch de imagens que intrigou Bataille e que preocupa hoje os compradores japoneses de Hollywood (ver a perplexidade do Sr. Morita diante dos costumes suntuosos da Columbia). É o que resta na América dos traços da missão de “entreter” – no sentido de entertainment como no sentido de tarefa doméstica – que foi sua sina. Esta missão formularei assim: no dia em que os homenzinhos verdes – únicos “outros” dignos do sonho americano – responderem ao chamado de Spielberg, não haverá senão os americanos para saber lhes cantar e dançar o que é um homo, sapiens, faber ou habilis. Um “homenzinho”, somente: não verde, mas nem negro nem branco. Michael Jackson, por exemplo. Chamamos de “star” esta paixão de ser um único para todos os outros. Nada a ver com o personagem.


A época em que a Europa esteve isenta de mitologias porque a América assegurava seu monopólio e ínterim parece terminada. É no momento em que esta Europa é obrigada, sob pena do fracasso, a passar do “grande mercado” para as “grandes narrativas” e de se reconstruir a partir da sua caixa-preta (e mesmo uma bem suja), que vemos a América começar a “perder seu posto”. Como prova disso temos este videoclipe furioso de Michael Jackson (Black or White), concebido por John Landis, e que é a melhor coisa audiovisual que vi nestes períodos de festas. Aí está um jovem nem belo nem feio, nem negro nem branco, nem homem nem mulher, que é talvez o único verdadeiro habitante do mundo, pois é o único a dispor de verdade do mercado mundial. Ele não tem nada a dizer além de seu próprio devir-mundo, versão showbiz de Zelig em sobreimpressão de tudo, com, ao final, o retrato coletivo de seu público. Chamamos de morphing – passagem contínua de uma forma a outra – este extraordinário tráfego eletrônico que funde e encadeia as variantes de uma espécie humana transformada em desfile hilário de tipos étnicos que se autoengrendram uns nos outros, sob a vigilância franzina de uma única voz que os dubla a todos.

Trata-se, evidentemente, desta obscenidade indivisível do sonho americano que, regularmente, desde que eu era pequeno, me enoja e me seduz (e com a qual ainda vou trombar no próximo capítulo). Mas hoje, a gesticulação limite de algumas “stars” terminais (O Exterminador do Futuro 2 é uma boa história, filmada preguiçosamente) me tocaria mais. Como se fosse necessário, apesar de tudo, ser grato ao Novo Mundo por ter sido por tanto tempo o deambulatório (a palavra é de M.D.) das paixões às quais nós não mais podíamos nos “dar ao luxo” no Velho.

Le monde sauf l’Amérique foi publicado originalmente na revista Trafic, n°2, primavera de 1992 e republicado na coletânea La maison cinéma et le monde - Le moment Trafic. Tradução: Giovanni Comodo.