O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A liberdade total


Por Leodoro Camilo-Fernandes

a) Estamos no inferno: diabos na forja, diabos num cartório, diabos no forno: diabos que trabalham, diabos que brincam. Surge um táxi e dele escorrega uma fileira de animais: patos, galinhas, gansos, cabras, cães, ovelhas + dois homens. Um sujeito cai, um buraco se abre: petróleo! Um sopro bem dado, um fumacê danado: táxi destruído! Alô, projecionista! Volta a fita!

b) Estamos em Paris: do topo dum prédio haussmanniano, desce a câmera até parar num rosto de mulher loira que nos olha — que já nos olhava: antes que soubéssemos que estava ali, ela já nos olhava. É uma esquina movimentada: gente vai, carros passam, gente vem. E a loira nos olha, e a loira nos sorri: brinca e se maquia. Os passantes não entendem: não sabem se olham para a mulher ou se olham para a câmera.


Apesar de cenários tão diferentes entre si (e aqui deixa claro o autor que não interdita — pelo contrário: endossa — associações espirituosas entre o inferno e Paris) e de tempos narrativos tão aparentemente divergentes, o que salta da tela, em ambos os casos, é a mesma entidade: a liberdade.

A) LIBERDADE: O DESCARAMENTO

De 1941, fruto da Universal Pictures, é o Hellzapoppin’ (o Pandemônio, título em português que recebeu; Um estouro de inferno, como eu gostaria que se chamasse): originalmente um espetáculo de revista da dupla Olsen e Johnson, chega ao cinema pelas mãos de um grande estúdio. Piadas, esquetes, danças, malabarismos: no pandemônio a liberdade é calculada. 1) Uma queda 2) abre um buraco 3) que libera o jorro de petróleo. Ou: 1) a câmera acompanha Olsen e Johnson, 2) vê uma mulher bonita perto da piscina e nela se demora: 3) os dois percebem que a câmera não os acompanha mais e chamam-lhe a atenção para que ela siga em seu movimento original, como já fora ensaiado: como manda o script.

A dupla aqui (em constante brincadeira com o tempo — música, piada — e o espaço — palco, plano) quer se livrar da narrativa: do roteiro. “Todo filme precisa de uma história! Nunca houve um filme sem história!”, afirma o diretor do filme dentro do filme já anunciando qual será o inimigo principal desse pandemônio: a noção de uma história bem-estruturada. Rocambole que se enrola e se desenrola constantemente durante seus 80 minutos de duração, é um estouro de inferno para todo mundo que compunha a intelligentsia da época: o Rosebud do Orson Welles, as coreografias do Busby Berkeley e o universo temático dos musicais de Astaire e Rogers tampouco escapam da mira hellzapoppiniana — This is Hollywood, we change everything in here: o mote, dito como ameaça logo no início do filme, é usado neste pandemônio a favor de seus próprios intentos: como sempre na comédia, o sujeito que recebe uma rasteira vai passar a perna em quem o sacaneou.

B) LIBERDADE: A AUTONOMIA

Um cartaz escrito à mão anuncia que o filme a seguir é ganhador do grande prêmio no festival de Toulon em 1974. Tela preta: uma voz masculina, de espanhol que tem o francês como língua adicional, lê os créditos. Começam as intrigas de Sylvia Couski. Ou não: até que Sylvia e seus planos astutos surjam na tela ou sequer sejam mencionados, o filme já nos terá levado a uma praça parisiense para que sentássemos e trocássemos olhares, já nos terá feito admirar a loira que já nos admirava, já nos terá mostrado o jogo de sedução (cores, texturas) entre uma travesti e um sujeito deambulador. Num constante vai-e-vem/acelera-e-freia narrativo, Arrieta opera como Sterne no Tristram Shandy (Pandemônio avant la lettre): o que torna único um relato não é o êxito duma mera cronologia plena, mas sobretudo o controle das durações.



Todavia não se deixe enganar pelo que acaba de ler: Les intrigues não se trata de um elogio ao rigor da mão pesada do autor, muito pelo contrário — vejamos a própria tramoia de Sylvia Couski: ela quer que seu novo namorado invada o ateliê de seu ex-marido, escultor em processo de montagem de uma exposição, e roube a sua principal escultura a fim de que o artista precise exibir em seu lugar a modelo que deu origem à obra (a loira que antes já vimos atravessar a rua, provocar a câmera, perturbar o trânsito): a troca de uma escultura (visão estilizada da realidade filtrada pela sensibilidade do criador) pela exibição da mulher cujos traços lhe são a gênese (a objetividade da beleza sem o filtro do artista).

= LIVRE: SOLTO

A ficção                       é testemunha de seu tempo

               liberta!

                           absolvida!

               quando os corpos dos atores
               testemunham o chão que pisam


— mesmo que não tivéssemos James Stewart ou Grace Kelly
ainda assim teríamos uma Janela indiscreta

Silvia Prieto (Martín Rejtman, 1999), as palavras e as coisas



Por Paula Mermelstein

São muitas as vezes que ouvimos o nome da protagonista de Silvia Prieto, Silvia Prieto. Logo perceberemos que a repetição trata-se não de um estudo acerca de sua protagonista, mas do nome que a precede; o filme parece ser menos sobre a pessoa Silvia Prieto (Rosario Bléfari) do que sobre o “dar nome às coisas”. Afinal, como descobrimos junto com Silvia ao longo da trama, ela não é a única Silvia Prieto existente. E este princípio, de que as palavras vem antes das coisas, parece ditar o modus operandi do filme.

Não há qualquer preocupação em um aprofundamento das personagens, formadas por um amontado de informações e detalhes superficiais. Chamar de indiferença soa frio demais, mas há um desprendimento de ordem mais leve em Silvia Prieto, tanto no que diz respeito a cada indivíduo ali representado, quanto às suas relações intercambiáveis. As personagens são introduzidas por meio destas relações entremeadas: Silvia começa a namorar o ex-marido de Brite uma vez que a mesma começa a namorar o seu - sem qualquer ressentimento de nenhuma das partes, pelo contrário, por sugestão da própria Brite.

Com esta mesma leveza se dá este tratamento bidimensional das personagens. Achatadas, assim, figuras e palavras equivalem-se em peso e podem permutar quase indistintamente; com ênfase, aqui, no “quase”, pois se para o filme estas trocas acontecem com leveza, é justo de sua estranheza para o espectador que emerge o sentido cômico. Se em dado momento descobrimos que existe mais de uma Silvia Prieto, o mesmo acontece com a palavra “ex-marido”, que inicialmente se refere ao ex de Silvia, Marcelo Echegoyen (Marcelo Zanelli), mas logo é também repetidas vezes proferida por Brite (Valeria Bertuccelli), em referência ao seu próprio ex, Gabriel Rossi (Vicentico). Brite, por sua vez, é simplesmente chamada pelo mesmo nome da marca para a qual trabalha distribuindo amostras de sabão em pó.

O mesmo vale para a palavra “abajur”. A princípio, surge a partir do objeto, um abajur feito de garrafa por Silvia para presentear sua xará. Logo, descobrimos haver sido o apelido de Gabriel nos tempos de escola. Sem o motivo por trás da brincadeira nunca ser explicitado, uma vez que a palavra se desprende do objeto e associa-se ao personagem, irá gradualmente se proliferando nesta rede de trocas do filme, para o desespero do ex-marido de Brite, cada vez mais incomodado com sua menção.

Há ainda um terceiro casal, Martha e Mário, que não entra no troca-troca e, como o abajur, adentrará a trama aos poucos. Sua primeira aparição se dá em um programa de televisão, voltado ao casamento dos participantes até então desconhecidos entre si. Primeiro vemos Martha descrever seu homem ideal, e depois são apresentados seus pretendentes, dentre os quais se encontra Mário, quem Marcelo reconhece da escola. Nas próximas aparições de Mário, em carne e osso, ele já estará noivo, ainda que não pareça se dar muito bem com Martha, que continua repetindo suas expectativas para um homem ideal. A palavra não apenas dá início a este encontro amoroso mas continua pairando sobre o casal, como uma assombração.

O signo mais emblemático desta rede de trocas é provavelmente o paletó da Armani. Quando Silvia viaja a Mar del Plata, encontra um homem em um café que lhe encobre com seu paletó, “um Armani”, por conta do frio. Silvia volta à Buenos Aires com o paletó, o qual o homem tenta repetidas vezes recuperar ligando para ela. Em dado momento, Silvia dá o casaco para Gabriel, que acaba o vendendo para Marcelo por 75 pesos. Por fim, Marcelo o veste em um jantar com Brite, onde o dono original do Armani o encontra, mas para reavê-lo deverá pagar 100 pesos.

O valor que o paletó adquire em sua jornada de mão em mão é arbitrário e circunstancial; não há um fio condutor guiando Silvia Prieto, mas objetos, nomes e personagens se chocando. Enquanto a personagem de Brite ganha nome de marca, o paletó, que passa a ser referido simplesmente como Armani, ganha nome de gente. A atenção do filme não se volta para nenhum grande sentido, mas para os pequenos detalhes: as Silvias Prietos, os ex-maridos, os abajures, os paletós Armani, as amostras de sabão em pó Brite.