O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A moeda lírica




(ou o cinema de Jean-Paul Civeyrac)

Por Axelle Ropert

Sejam Les solitaires, Fantômes e Le doux amour des hommes, outros tantos títulos cuja candura florestal evoca as peças de Rameau (Les tendres plaintes, Os suspiros, L’indifferent); seja Jean-Paul Civeyrac, cujo nome evoca um escritor do romantismo do outro lado do Reno. Como aliar a simplicidade francesa das melodias ao fervor alemão dos sentimentos? Há mais de um século, Gérard de Nerval tentou esta aliança, inventando aventuras em que a exaltação do devaneio se perdia na dispersão da narrativa. E no cinema?

Seja o cinema francês de hoje, frequentemente obrigado a assinar legivelmente a sua mise en scène, os seus roteiros, de se prestar aos temas incendiários ou escandalosos, obrigado a sublinhar suas questões vitais, forçosamente vitais, enfim, de dar provas de uma forma de necessidade com base documental. A vitalidade do cinema francês se esconde talvez em outro lugar, em cineastas discretos como Christine Laurent, Marie-Claude Treilhou, Pierre Léon, Marie-Christine Questerbert, Eugène Green… E se Jean-Paul Civeyrac fosse um cineasta “livre” fazendo filmes à (sua) vontade e de maneira não ostentatória? 

Seja o ano de 2002, e esta palavra ingrata, “a contemporaneidade” obrigou a prestar contas de um estado do mundo, ou melhor, do que faz a atualidade. Quando nos recusamos a nos curvar a esta injunção (eu penso nos emuladores de Wong Kar-wai ou no último filme de Hou Hsiao-hsien, “o primeiro filme techno”) quando sonhamos com a juventude sem idade dos filmes de Jean-Paul Civeyrac, com esta estilização que proíbe qualquer datação, de que urgência pode ser testemunha este cinema? Uma das forças do cinema de Jean-Paul Civeyrac é a sua candura partilhada pelos Passageiros de um cineasta mais velho, Jean-Claude Guiguet. Ser cândido é assumir os gêneros clássicos, o romance de formação por Le doux amour des hommes ou o conto fantástico por Fantômes, mas se dando os meios de redescobrir, no curso do filme, as possibilidades, inventando assim uma forma de classicismo inédito. A candura é acreditar na transparência dos corações capazes de conversar juntos numa perfeita comunhão. Sejamos ridículos: acredito que Jean-Jacques Rousseau teria adorado Les solitaires (que é aliás, o subtítulo de um de seus romances Émile e Sophie), tanto que esta “língua dos solitários” cara ao romancista é aqui sussurrada com convicção em conversações sempre abertas nas quais as réplicas se prolongam em ecos noturnos, diante do espelho, antes de ir dormir. Este gosto pelas pequenas comunidades onde os personagens se falam de coração aberto, sem reservas nem cálculo, sem medo do ridículo nem vontade de convencer, onde a circulação sem entraves das expressões íntimas garante uma integridade sempre ameaçada pela irrupção de forças exteriores abstratas – proximidade da noite – e mantidas, no tempo do filme, à distância, testemunhando a parte utópica deste cinema. O cinema de Jean-Paul Civeyrac é sem segundas intenções e esta abertura absoluta das intenções é o reverso precioso, para nós espectadores, de um mal que corrói uma outra parte de um certo cinema francês chique, frio e compassado, a consciência advertida de seu esclarecimento e de seu cansaço.

O cinema francês é, finalmente, muito pouco rico em cineastas líricos, sem dúvida muito marcado por um “espírito século dezoito” que contudo não impediu Sacha Guitry, o rei do sarcasmo voltairiano, de se entregar ao lirismo num de seus mais belos filmes, La Malibran. Se o grande cineasta lírico francês permanece Jean Grémillon, Jean Paul Civeyrac ousa hoje tomar esse partido. Por que falar de partido? Sem dúvida porque “a modernidade” godardiana em curso tornou caduca a evidência (e nos lembramos da palavra de ordem de Jean Paulham e de Francis Ponge : “nada de lirismo!”) e que os cineastas que se atrelaram aí perceberam, cada um à sua maneira, esta dificuldade de “ser lírico” fazendo, neste espaço aberto por O Desprezo e fechado por Passion, desta impossibilidade o próprio coração do lirismo. Repetindo, como aliar a simplicidade francesa das melodias ao fervor alemão dos sentimentos?


Como, senão inscrevendo os instantes de puro fervor dentro de uma narrativa de uma caligrafia fina e modesta, senão alimentando a linha clara da ficção, constantemente reduzida a pequenos passos num quarto fechado (Les solitaires), nos apartamentos (Fantômes) ou nos cafés (Le doux amour), de uma matéria espessa, aquela dos sentimentos bruscamente expansivos? Esta linha narrativa modesta assume a cada vez a forma de uma iniciação (ao luto, ao amor) no curso da qual se inscrevem essas expansões sentimentais, pontos de suspensão quase musicais na sua ressonância monocórdica, obstinadamente sustentada. O fervor imediato é uma maneira de ir diretamente ao coração das cenas, ao coração do plano, sem pré-requisito nem conclusão, como se o essencial jazesse nestas frágeis estagnações. Esta busca por um “fervor imediato” não é, evidentemente, sem risco, este de uma ingenuidade que consiste em acreditar que pôr em cena imediatamente a emoção no pico de sua intensidade assegura a sua transmissão ao espectador, e podemos também permanecer indiferentes diante deste espetáculo, ou mesmo perceber aí uma forma de ênfase. Sim, claro, o risco de uma certa asfixia formal existe – Les Solitaires é neste quesito o filme que mais escapa desse risco, de tanto que a sensação de estagnação é suavizada, enfim impura, pela espantosa estranheza dos dois heróis e pela economia obstinada do argumento (dois irmãos aprendem a se reencontrar no espaço fechado de um apartamento assombrado pelo fantasma de uma mulher que acabou de morrer, o grande amor do mais velho). “Qual é a necessidade desse cinema?”, eu perguntava anteriormente. O plano concebido como berço propício ao repouso dos personagens, a luz como peneira da brutalidade do mundo, a decupagem como barreira de proteção, resumindo, o cinema como uma preservação da intimidade sempre ameaçada define, acredito, a preocupação de Jean Paul Civeyrac: frente a esta pequena vitória, o canto pode se elevar. A colocação foi audaciosa, a moeda paga, o lirismo está aqui, e se a urgência de um filme se mede pelo que ele protege – e salva – então o cinema de Jean-Paul Civeyrac é necessário.

La monnaie lyrique foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n° 18, abril/maio/junho de 2002. Tradução: Miguel Haoni.

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