O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Sobre e em torno de "O casamento do meu melhor amigo"



Por Robin Wood

Eu quero discutir O casamento do meu melhor amigo (1997) em relação a três tópicos associados: sua relação com a clássica comédia screwball e as outras tentativas recentes de repensar este gênero em termos contemporâneos; sua relação autoral com O casamento de Muriel (1994); e o atual uso disseminado de personagens gays em comédias contemporâneas. Como este capítulo será então mais “em torno” do que “sobre” é melhor eu começar dizendo claramente que eu amo o filme: se não “profundo” ou, em algumas das maneiras mais óbvias, “inovador”, me parece um perfeito e progressivo exemplo do seu gênero, continuando a nos dar prazer mesmo depois de muitas revisões.

Screwball antiga e moderna

Nós todos reconhecemos certos filmes como “screwball”, ainda assim o termo requer uma definição; a maneira mais simples para defini-lo é situá-lo entre a comédia “romântica” e a comédia “louca” ou “slapstick”, já que claramente ela se relaciona com ambas enquanto permanece distinta das duas, sua diferença surgindo talvez das maneiras pelas quais ela empresta e combina elementos de cada uma. McCarey nos dá as diretrizes ideais, já que ele produziu exemplos excepcionais de todas as três categorias: Diabo a quatro, a comédia louca ideal; O amor da minha vida ou seu remake Tarde demais para esquecer, a comédia romântica ideal; e Cupido é moleque teimoso, entre as grandes screwballs.

No coração tanto da “screwball” quanto da “romântica” está o casal romântico, geralmente ausente ou na margem da “louca”. (Embora Chaplin e Lloyd sempre tivessem “interesses” românticos, seus filmes são celebrados principalmente pelas performances dos comediantes, set pieces, e suas habilidades; embora O Gordo e o Magro possam ser percebidos como um casal romântico, seria uma bela forçada de barra vê-los dessa maneira; e eu não acho que alguém rotularia as várias cortes ente Groucho e Margaret Dumont exatamente como “românticas”.) É por isto que a distinção não é sempre nítida. Um modo grosseiro mas suficientemente preciso de entender poderia sugerir que a comédia romântica é principalmente sobre a construção do casal romântico ideal, enquanto a comédia screwball é principalmente sobre liberação (e o casal que ela constrói geralmente está bem longe de um ideal romântico – veja, por exemplo, Levada da breca ou As três noites de Eva ­­– ou Maridos em profusão, que audaciosamente constrói um ménage): a derrubada da convenção social, das noções burguesas de respeitabilidade, dos tradicionais papéis de gênero. (A resolução de O casamento do meu melhor amigo é colocada às claras e pode ser considerada como o “happy end” lógico do gênero, que somente há poucos anos tornou-se possível dentro das limitações do cinema de Hollywood.) É precisamente aqui que a “screwball” liga-se com a “louca” – com a anarquia dos Irmãos Marx, ou a destruição (muitas vezes inadvertida) das normas sociais, lares e propriedade em O Gordo e o Magro: ser plausível é uma questão menor na “screwball” do que na “romântica”. Cupido é moleque teimoso pode ser entendido como o ponto de equilíbrio perfeito entre as duas, “loucura” e “romantismo” postos meticulosamente em harmonia.



O aspecto mais interessante desse movimento em direção à liberação, à derrubada das normas, é a ênfase recorrente da screwball (o tema, alguém poderia afirmar, das melhores screwballs) na emancipação e empoderamento das mulheres. Portanto Cupido é moleque teimoso é essencialmente sobre (nas palavras de Andrew Britton) “o castigo da presunção masculina”[1] e o progresso do casal em direção à igualdade. A instância mais extrema – portanto a screwball mais próxima de todas da “louca” – é certamente Levada da breca, preocupada somente com a liberação de Cary Grant das mãos impiedosas de Katherine Hepburn e culminando com lógica impecável naquela imagem ainda potente da queda do patriarcado, o colapso do esqueleto de dinossauro em “nada mais que uma pilha de ossos velhos”, parafraseando Hepburn anteriormente no filme. Outros exemplos notáveis: As três noites de Eva, Duas vezes meu (a versão original, não a horrorosa versão higienizada disponível atualmente em vídeo – veja Richard Lippe sobre isso em CineAction 35), e (em um nível mais baixo de sucesso) Os pecados de Theodora e Maridos em profusão, em que Jean Arthur, apesar de ter sido impelida pelo sistema júridico patriarcal a escolher entre Fred MacMurray e Melvyn Douglas, termina ficando com os dois. Deste ponto de vista, esses filmes são mais progressivos, subversivos, e potencialmente revolucionários que quase qualquer coisa aparecendo em Hollywood hoje. Isso torna-se particularmente claro quando consideramos uma tentativa mais recente de se fazer uma screwball que corresponda, da maneira mais óbvia, ao modelo clássico: Forças do destino (1999), em que o modelo é claramente Levada da breca. O filme foi na maioria das vezes atacado (com alguma razão) por sua inaptidão e pela total falta de química e carisma por parte dos atores, mas seu verdadeiro crime é trair seu precursor hawksiano: ao invés de progredir em direção à liberação, seus personagens simplesmente aprendem a ser mais maduros e sábios, uma condição que presumivelmente torna a liberação supérflua.

Comédias screwball não estão mais preocupadas com o empoderamento das mulheres, seguindo a suposição generalizada de que as mulheres não precisam mais ser empoderadas, elas ganharam todas as suas batalhas e elas estão mais que suficientemente empoderadas, muito obrigado. Enquanto isso, eu abro meu jornal toda manhã para ler sobre todas as mulheres espancadas, estupradas e/ou mortas que foram espancadas, estupradas e/ou mortas por homens, comumente seus maridos ou amantes masculinos; sobre todas as mães solteiras lutando na pobreza, levadas até ou ultrapassando o limite da miséria; o fechamento de abrigos para mulheres e de creches por conta da retirada de financiamento do governo; as batalhas das mulheres para assegurar uma posição titular ou promoção nas universidades, e suas lutas em toda parte para ter um salário igual para um trabalho igual; sua virtual exclusão dos escalões mais altos do capitalismo controlado por homens, a não ser que elas estejam comprometidas em apoiar ainda mais o empoderamento dos homens; ou, por outro lado, o número enormemente maior de mulheres secretárias, domésticas, faxineiras em relação ao de homens. A única screwball contemporânea a tratar deste tema de maneira responsável foi amplamente ignorada: O sócio (1996), imperfeita devido a uma construção falha e uma direção indiferente mas notável pelas performances esplendidas de Whoopi Goldberg e Dianne Wiest. O ataque do filme à subordinação e exploração das mulheres (e dos negros) dentro das estruturas, esmagadoramente dominadas por homens brancos, das instituições e corporações financeiras é crua porém devastadora.

Contudo, se o grande assunto subjacente da screwball clássica foi agora declarado oficialmente obsoleto pela atual conspiração capitalista/patriarcal, o próprio gênero acabou, por um processo de mutação, trocando-o por outras preocupações aparentemente distintas dele, porém claramente relevantes a ele: o assalto aos bastiões tradicionais do casamento, família, parentesco biológico, sexualidade e gênero. Se os problemas das mulheres estão agora oficialmente “resolvidos”, então os problemas que estão tão intimamente e intricadamente envolvidos na contínua opressão das mulheres – de fato, eles formam a sua base – estão agora sendo expostos à crítica como nunca antes. Penso particularmente em Procurando encrenca (1996), Um dia em Nova York (1996), e O casamento do meu melhor amigo.



Nossa civilização evoluiu bastante desde os grandes dias da screwball – evoluiu em direção ao potencial e talvez iminente cataclismo: tivemos a Segunda Guerra Mundial, a ameaça da aniquilação nuclear, e a devastação do meio ambiente pelas forças aliadas do capitalismo avançado – não somente em países ocidentais mas agora também na antiga Rússia soviética e até na China comunista – com a ganância aparentemente insaciável daqueles que acreditam que a posse de vastas reservas de dinheiro por poucos justifica a miséria social de milhões e a possível extinção da vida no planeta. Consequentemente, as estruturas básicas da civilização – social, política, ideológica – e as estruturas da organização social/sexual que são ao mesmo tempo seu produto e sustento estão provocando uma ansiedade, descontentamento e perturbação ainda maiores: não pode ser enfatizado com maior frequência (já que tão poucos parecem escutar) que existe uma clara e lógica conexão entre a família patriarcal nuclear e as dominantes estruturas socioeconômicas/políticas. Levando em conta o poder contínuo do capitalismo, especialmente seu poder de deixar sua população em uma condição de mistificação crônica através da mídia que ele essencialmente controla, essa perturbação se cristaliza em uma oposição completamente consciente apenas entre uma pequena minoria; mas o sentimento ainda mal formado de insatisfação já está virtualmente difundido, especialmente entre as gerações mais novas. Já que a insatisfação não pode ser conscientemente formulada, ela se expressa apenas em um cinismo e em uma impotente forma de rebeldia. Porém a insatisfação com as nossas instituições tradicionais e fundamentais – casamento e família, a organização do gênero e sexualidade – é discernível em todo lugar. Ela estrutura as melhores comédias screwball da mesma maneira que o empoderamento das mulheres estruturava os clássicos das décadas de 30 e 40.

A obra que melhor levou isso a cabo, da maneira mais completa e rigorosa, é claramente Um dia em Nova York, talvez o filme americano mais negligenciado da última década, pouco conhecido, raramente exibido, atualmente acessível apenas em um vídeo “formatado para a tela da sua televisão” e um DVD que nada faz para remediar isso. Em nenhum momento é uma screwball, e no fim não é mais nem uma comédia, apesar disso mantém uma premissa e estrutura narrativa arquetípicas da screwball: esposa, após uma terna e afetuosa cena matutina com o marido, despede-se dele quando ele vai para o trabalho, então acha (enquanto faz as tarefas de casa) um bilhete de amor assinado “Sandy” debaixo da cama. Transtornada, ela recruta a ajuda de sua mãe, que por sua vez recruta seu pai, irmã mais nova, e o noivo da irmã mais nova para uma viagem pela cidade para confrontar o marido errante en masse. Pode-se até imaginar como esse filme teria sido escalado, na época de ouro da screwball em seu modo mais conservador e “família”: William Powell como o marido, Myrna Loy ou Irene Dunne como a esposa, Mary Boland e Charlie Ruggles como os pais, Ann Rutherford como a irmã mais nova... Aconteceria uma série de hilárias desventuras; o marido, finalmente encontrado, iria explicar que “foi tudo um erro”; e a solidariedade familiar e conjugal seria restaurada, confirmada pela promessa do iminente casamento do casal mais jovem. Um dia em Nova York sistematicamente inverte esse padrão: a jornada, começando de manhã cedo, terminando tarde da madrugada, é um progresso estável para a escuridão e desintegração. No fim, tanto o casamento quanto o noivado terminaram, a família fica irremediavelmente separada, e as duas irmãs vão embora juntas noite adentro. Como é de praxe com filmes narrativos americanos, tudo isso permite ser lido em termos puramente individuais (este casamento em particular, esta família, etc.), mas de maneira alguma proíbe uma leitura simbólica, como uma “fábula para nossos tempos” (a família é claramente apresentada como uma “típica”). Talvez a razão de ser a comédia screwball (ou derivada das screwball) mais radical atualmente seja porque ela é a que mais se afasta dos seus modelos, no tom e na progressão narrativa.

O casamento do meu melhor amigo
é obviamente mais leve, mais verdadeiro ao espírito screwball. Mas debaixo de sua superfície mais frívola, menos abertamente subversiva, ele se relaciona de maneira clara o suficiente com as mesmas tendências.

O que O casamento do meu melhor amigo tem a ver com o de Muriel?



O casamento de Muriel foi escrito e dirigido por P. J. Hogan; em O casamento do meu melhor amigo ele tem apenas o crédito de diretor. Não tenho informação de por que exatamente ele ter sido convidado para Hollywood (apesar de que obviamente o sucesso crítico e popular do filme australiano tiveram muito a ver com isso), ou como ele acabou dirigindo o filme que dirigiu: foi sua escolha (de uma variedade de possíveis roteiros ou temas oferecidos), foi escolhido para ele como se ele fosse uma espécie de especialista em casamentos, até que ponto ele controlou ou contribuiu para a evolução do roteiro final? Se o roteiro final foi simplesmente entregue a ele com um “Dirija isto”, então estamos lidando com uma coincidência notável: apesar de suas diferenças enormes (em tom, meio social, caracterização), as estruturas dos dois filmes revelam impressionantes similaridades. As diferenças podem ter sido estabelecidas pela mudança no meio social e as diferentes possibilidades oferecidas pelos cinema americano e australiano e as inflexões divergentes do gênero cômico. Sob o risco de pisar em sensíveis dedos nacionalistas, tenho que dizer que a maioria dos filmes australianos que eu vi (ou filmes que se passam e são filmados na Austrália) dão a impressão de serem terríveis avisos: “Nunca, nunca emigre para a Austrália. Nem sequer considere isso. No melhor dos casos vão gritar e vitimizar você, e no pior vai ser sodomizado à força pelo Donald Pleasance.” (Deixe-me acrescentar que eu poderia dizer o mesmo do cinema do meu país natal, a Inglaterra.) O contraste entre a sofisticação e nuance de O casamento do meu melhor amigo e a crueza direta do seu predecessor são impossíveis de considerar em termos de uma simples sensibilidade autoral – apesar de que no caso do filme americano isso deva ser atribuído à influência do gênero em vez de qualquer coisa discernível na contemporânea cena hollywoodiana.

A trajetória comum a ambos os filmes pode ser resumida assim: uma mulher torna-se obcecada (por razões bem diferentes) com um casamento em particular, real ou inventado (o seu próprio hipotético – Muriel/Toni Collette – e o do homem que ela subitamente percebeu que ama – Julianne ou “Jules”/Julia Roberts). Em ambos os casos, porém, a mulher quer que o casamento seja o dela – para Muriel é um status simbólico que lhe dará finalmente algum respeito; para Jules é o meio de possuir o homem que ela ama, influenciado pelo ainda maior desejo ignóbil de fazer as coisas do jeito dela, seu comportamento sendo às vezes o da menina que pisa em seu pé e grita “Eu quero!!! Eu quero!!!” Cada mulher protagonista está obcecada com uma música em particular que oferece a ela uma imagem de si própria: “Dancing Queen”, do Abba, para Muriel, “Just the Way You Look Tonight” para Jules; e em ambos os filmes a música retorna nas cenas finais como um significante da sua liberação da obsessão. Em ambos os filmes a obsessão das mulheres as guia cada vez mais para um comportamento egoísta e irresponsável, que não leva em conta os sentimentos das outras pessoas e que, em última análise, as leva a reconhecer a traição que fizeram aos seus próprios sentimentos. O casamento traz a desilusão e com ela a liberação: ela começa a olhar a si mesma e a examinar o seu comportamento, e assim libertar-se da sua obsessão. O mais notável é a congruência dos finais: ambos os filmes terminam com a heroína reunida com o personagem que representou a sua consciência, mas que também, significativamente, é uma figura de fora, separada por uma marcada “diferença”, com quem ela parece estar firmando uma relação permanente, mas com quem ela não pode se casar, e cuja situação pessoal (aleijado, gay) os coloca em uma posição de onde eles podem ver o meio social, suas tradições e padrões comportamentais, de maneira objetiva e crítica. Alguém poderia dizer que eles são apresentados como os dois personagens mais admiráveis de seus respectivos filmes precisamente porque eles não podem casar – não podem, quer dizer, participar do princípio central de organização da sua cultura.



Os filmes partilham uma visão extremamente amargurada das festas de casamento e sua função e, além disso, implicitamente, do casamento em si. Isso é expressado claramente em Muriel, e de alguma forma mais sutil e circunspecta em Melhor amigo, no qual o tom é estabelecido desde o início com aquela charmosa, hilária e satírica cena de créditos. Nossa confiança no casamento Dermot Mulroney/Cameron Diaz é sutil mas totalmente destruída: o casal claramente não combina, seus interesses são incompatíveis (reminiscentes, na verdade, de Stewart e Kelly em Janela indiscreta!) na maneira arquetípica da nossa cultura, (homem) aventureiro versus (mulher) caseira. Jules é capaz de destruir a sua aparente estabilidade na primeira tentativa séria, a discussão instantânea que ela media só é resolvida pela instantânea e total submissão da mulher às necessidades do homem. E a sequência central no barco de turismo deixa claro que a ligação do noivo a Jules continua consideravelmente a ser mais do que uma amizade e pode ser reacendida muito facilmente. Tendo isso em vista, a celebração final do filme do casal tradicional, enquanto eles vão embora para sua lua de mel com a ajuda de música romântica, câmera lenta, confete e repentinas fontes jorrando, deve ser lida como uma parte irônica, e outra parte um aspecto da generosidade do filme, um tributo à gentileza e às boas intenções dos seus personagens: o efeito pode ser resumido na frase “Você não tinha chance, mas desejamos que fique bem”.

Performance/Estrutura



Apesar de ser geralmente apreciado, O casamento do meu melhor amigo não recebeu, nem de perto, o reconhecimento que merece. É uma das grandes comédias americanas, comparável em sua perfeição com as melhores screwball “clássicas”, perfeitamente escrito, elenco perfeitamente escolhido, perfeitamente atuado, perfeitamente dirigido. Eu devo tê-lo assistido pelo menos meia dúzia de vezes, revendo sequências inteiras pelo puro prazer das nuances de timing e da encenação em grupo. É continuamente vivo, nos mínimos detalhes: quando vemos (por exemplo) a cena no bar de karaoke ou a sequência do almoço na véspera do casamento algumas vezes, começamos subitamente a notar os figurantes: não há espaço “morto” na tela; todo figurante mostrado no bar lotado ou no restaurante está integrado à performance geral. Os quatro protagonistas estão para além dos elogios. Se Roberts e Rupert Everett nos atingem mais imediatamente, é porque eles têm os papéis mais chamativos; mas suas performances são equiparadas às de Diaz e Mulroney.

O filme é construído sobre uma dupla estrutura: as mudanças e evoluções do relacionamento entre Julianne e os dois homens em sua vida, Michael (Mulroney) e George (Everett). Os dois relacionamentos são introduzidos, com grande economia, logo no início: Julianne, uma prestigiada colunista e crítica de culinária, está jantando com George, seu editor (o “encontro” combina trabalho e prazer, já que ela está criticando o restaurante); durante a refeição ela checa suas mensagens no celular e recebe um comunicado urgente de Michael que impulsiona toda a ação (ela tem que retornar a ligação, a qualquer momento, até mesmo no meio da noite). Michael é o seu “melhor amigo”, com quem ela teve uma breve aventura romântica; quando terminaram eles juraram que se casariam caso não encontrassem alguém até a idade de 28 anos. Ambos terão 28 em algumas semanas; é George quem inicialmente coloca na cabeça dela a noção de que um casamento com seu “melhor amigo” está no horizonte.

O filme joga o tempo inteiro com o motif do “melhor amigo”. Quando Kimmy (Diaz) pede para Julianne ser sua dama de honra, ela acrescenta: “Isso significa que eu tenho quatro dias para fazer de você minha melhor amiga” (Julianne tem os mesmos quatro dias para romper o casamento). No estádio, quando Michael começa a ver Julianne sob uma nova luz, ele pergunta a ela: “O que você fez com a minha melhor amiga?” No alfaiate, quando Michael está provando seu terno, Julianne apresenta George como “meu bom amigo... meu melhor amigo esses dias.” George já substituiu Michael como o melhor amigo de Julianne; na conclusão extraordinária do filme ele também vai substitui-lo como o noivo de Julianne, o casamento de Michael e Kimmy se torna também o de George e Julianne, dando ao título do filme uma virada final.

A natureza do relacionamento entre Julianne e George é gradualmente definida pelas suas cenas juntos: a dependência mútua que não é nem romântica nem sexual, portanto livre de cobranças, restrições, e ciúmes dos relacionamentos amorosos tradicionais. Se um sobretom de domínio masculino ainda permanece, Julianne consegue rejeitá-lo no momento que quiser: profissionalmente ele é seu editor (apesar de nem o filme nem o personagem utilizarem isso); pessoalmente, seu sábio conselheiro – não exatamente porque, como homem, ele saiba mais, mas porque, como homem gay, ele pode ver pelo lado de fora das convenções sociais e dos padrões comportamentais dos quais Julianne nunca conseguiu emancipar-se. Sua preocupação com ela (pois ele pressente que ela irá se comportar mal, de maneira que a fará sentir-se envergonhada) nunca é expressada de modo intimidador ou ditatorial, e é sempre balanceada com o seu medo de perdê-la: o ciúme instantâneo de Michael quando ele acha que Julianne e George são amantes é balanceado pelo sentimento de perda de George, quando ele acredita que ela será absorvida por um casamento tradicional. Se ele é o seu “melhor amigo”, está claro que ela também é a “melhor amiga” dele; se isso não é o que geralmente achamos que um relacionamento “amoroso” deva ser, talvez tenhamos que repensar a nossa definição de amor.



O filme retoma de O casamento de Muriel a utilização de uma música associada com a heroína e que se torna uma marca de seu crescimento, mas desenvolve esse dispositivo de forma bem mais elaborada e satisfatória. Existem, na verdade, duas músicas envolvidas, uma associada com o relacionamento de Julianne com Michael, a outra conectada com o seu relacionamento com George. “Just the Way You Look Tonight” é introduzida na sequência da primeira tentativa séria (quase bem sucedida) de terminar o relacionamento de Michael com Kimmy – a cena do restaurante onde Kimmy, instigada por Julianne, pede para Michael trabalhar com seu pai em um escritório por seis meses, permitindo a ela concretizar algumas escolhas de vida (terminar a universidade, começar sua própria carreira na arquitetura) ao invés de sacrificar tudo por ele: ele chega no almoço cantando-a para Julianne, como uma memória da sua breve aventura romântica. Ele canta para ela de novo no barco turístico e eles dançam juntos, publicamente, apesar de aparentemente não perceberem a presença de estranhos. Nesse momento ele já admitiu que ele sentiu um “ciúme louco” de George, e sua revivida atração por Julianne tornou-se bem evidente; é o momento que a convence de seu direito de terminar o casamento, que não tem como ser feliz, com o casal sendo irremediavelmente incompatível e com Michael ainda sendo romanticamente ligado a ela, liberando-a de seus últimos momentos de consciência ou de consideração pelos outros, permitindo a sua pior e mais repreensível ação. A música de George, apresentada no almoço de véspera do casamento, é a “I Say a Little Prayer for You”, de Burt Bacharch (“Forever, and ever, you stay in my heart/... Forever, and ever, we never will part”[2]). George apresenta-a ao relatar o primeiro (hilário, e totalmente fictício) encontro com Julianne, e é imediatamente acompanhado, primeiro pelas duas damas de honra e em seguida por todo mundo: é importante que se torne uma música pública, simbolicamente unindo o suposto casal com o mundo externo, enquanto que a música de Michael/Julianne é estritamente pessoal e hermética, deixando o mundo do lado de fora.

Nas cenas finais as duas músicas sãos justapostas, representando a escolha que Julianne deve fazer. No seu obrigatório discurso de “dama de honra” na recepção do casamento, Julianne publicamente reconhece a natureza feia e psicopata do seu comportamento, e então concede a música que ela compartilhou com Michael ao novo casal, como seu presente de casamento, “até vocês acharem a sua própria música.” É a sua forma de renunciar a sua obsessão, e com ela ao passado. Depois que o casal parte para a lua de mel, a recepção continua, Julianne está sozinha na multidão. O celular dela toca: George é claro. Mas George está lá, em outra mesa, e ele a presenteia com o que é efetivamente o presente de casamento dele para ela: “I say a little prayer...” É-nos dada então uma variação completamente nova de uma velha convenção (uma convenção que vai se repetir, desbotada e completamente pouco convincente, na sua forma original, no fim do filme seguinte de Roberts, Um lugar chamado Notting Hill): o pedido público de casamento. George avança em direção a ela pelo salão, deixando claro que o que ele está oferecendo é um relacionamento permanente: “E apesar de você sentir, corretamente, que ele é... gay, como quase todos os arrebatadores homens bonitos de sua idade... Não haverá casamento. Não haverá sexo. Mas, por Deus, haverá dança.” Anteriormente no filme Michael comentara com ela no estádio (a dança entre ela e o padrinho na recepção do casamento estando em discussão) que “Você não sabe dançar. Quando você aprendeu a dançar?” A dança deles juntos no barco foi lenta, improvisada, privada; a dança com George é entregue e em êxtase, uma dança de libertação. O filme encerra com “Together, forever...” Assim o filme concretiza a obrigação tradicional de Hollywood em progredir em direção à “construção do casal”, mas não é mais a “construção do casal heterossexual.”



Assim como em Um dia em Nova York, é algo simples relacionar O casamento do meu melhor amigo com a screwball clássica: realmente, ele evoca diretamente Levada da breca, que também era sobre uma mulher determinada a impedir, a qualquer preço, um homem de casar com a sua noiva em um curto período de tempo. Nos anos 30, Katharine Hepburn teria interpretado o papel de Julia Roberts e o final seria uma conclusão já esperada: a futura noiva teria se revelado ou uma tapada atraente e idiota ou uma vadia calculista, portanto largada sem qualquer desconforto pelos personagens e plateia – o noivo perceberia seu erro terrível, Hepburn substituiria a noiva no altar em uma reviravolta de tirar o fôlego, e o casamento se transformaria em uma conclusão triunfante. Era precisamente assim que eu “sabia” que o filme terminaria na primeira vez que o vi, apesar de que eu estava em crescente confusão sobre como ele se livraria da Cameron Diaz sem provocar um dano irreparável a si mesmo: o seu personagem era simplesmente muito doce, muito amável, muito vulnerável, muito sinceramente apaixonada. Outra fonte de confusão era que o papel do Cary Grant parecia de alguma forma ter se dividido entre Dermot Mulroney e Rupert Everett.

Gays nas comédias dos anos 90: Problema ou solução? 



O que distingue acima de tudo O casamento do meu melhor amigo da screwball clássica é algo que não poderia acontecer em nenhum filme antes dos anos 60, e não aconteceu de fato antes dos anos 80: a inclusão de um personagem que não só é abertamente gay, mas é representado de maneira positiva e atraente. O George de Rupert Everett é muito diferente das grotescas almas perdidas que primeiro representaram os gays, quando acabou o tabu em mostrar explicitamente personagens gays nos anos 60 (Os rapazes da banda, Triângulo feminino...): em qualquer aspecto, tirando o sexual, ele é um parceiro ideal para Jules. Filmes recentes estão começando a sugerir que o medo da direita do “estilo de vida gay” não é sem fundamento: o que é temido não é somente que, caso os gays fossem vistos positivamente, virtualmente todo mundo se tornaria homossexual, mas que relacionamentos gays talvez virassem um modelo para uma nova, mais livre, “normalidade” alternativa. Quando você pensa sobre não é nem um pouco surpreendente que o colapso da confiança nas normas tradicionais seria acompanhada pela súbita emergência de imagens de homens gays atraentes com vidas aparentemente felizes e produtivas. Os aparentes braços abertos com os quais os gays foram rapidamente saudados no cinema hollywoodiano recente ainda não abriram completamente: gays estão restritos às comédias, onde existe menos necessidade de mostrar atos sexuais ou até mesmo expressões de amor. A história de amor gay é um gênero até agora restrito a filmes pequenos direcionados para o público gay (Fazendo amor foi ridicularizado pelos gays pela sua aparência, mas a sua audácia parece agora comprovada pelo fato que ainda permanece, vinte anos depois, sem uma continuação). Hollywood continua muito cautelosa em relação aos casais gays, apesar deles começarem a aparecer em alguns lugares surpreendentes (O paizão, Vamos nessa!). O uso mais radical de personagens gays é, de novo, em Um dia em Nova York, em que o colapso final do casamento e a dissolução da família coincide com – na verdade, é impulsionado por – a descoberta que não somente o marido tem sido infiel, mas que ele tem sido infiel com outro homem: no nível simbólico, a co-incidência do colapso de normas com a criação de um relacionamento gay é eloquente.

O papel favorito (e lógico) para os gays na nova comédia hollywoodiana foi rapidamente descoberto: transformar o personagem gay no melhor amigo da heroína (A razão do meu afeto, De volta ao presente) e os problemas estão resolvidos, o potencial constrangimento dos membros do público mais reprimidos e inibidos seria evitado. O casamento do meu melhor amigo aproveita isso e brilhantemente transforma suas limitações em vantagem: o uso do personagem de Everett no filme é exemplar em sua inteligência. A maturidade de George, a sua consideração, tato, estão intimamente conectados com o fato da sua homossexualidade o separar das normas sociais, permitindo a ele uma distância sábia das práticas e convenções nas quais aqueles em torno dele estão enredados. Ele é capaz de falar com Jules de uma maneira que seria impossível para um homem heterossexual, oferecendo a ela uma intimidade que é sempre mais próxima por ser não sexual. Daí a memorável conclusão do filme, seu “final feliz” e a que se torna a mais segura alternativa para a união marital que Jules renunciou, de sua maneira um “casamento” alternativo: o discurso público de George para ela, na recepção do casamento, para ele ser seu “melhor amigo” e ela a mulher que ele escolheu, constitui uma proposta autêntica, o compromisso de um relacionamento que será permanente mas não exclusivo, construído em fundações muito mais fortes que o amor romântico ou atração sexual. Como um amigo sabiamente me disse um dia, “Você deve viver com amigos, não com amantes.” O filme nos deixa perguntando qual homem agora é o seu melhor amigo, e esse casamento é de quem afinal?

As implicações de tudo isso podem ir longe. Eu omiti – na minha lista grosseira do que, da vida gay, o cinema hollywoodiano continua a suprimir ou margear desconfortavelmente – a questão da liberdade sexual. É por isso que O casamento do meu melhor amigo nos diz pouco ou quase nada da vida sexual de George. Há uma rápida cena que pode oferecer uma pista, a cena em que Julianne, desesperada, liga no meio de um jantar para que George venha ajudá-la. George na ponta da mesa, como anfitrião; à sua esquerda e à sua direita estão dois prováveis casais heterossexuais; na outra ponta (onde tradicionalmente a esposa sentaria) está um homem careca, vislumbrado rapidamente: devemos achar que é o amante de George? Outro amigo? Não há nenhuma outra pista a não ser a sua posição na mesa do jantar formal. A direita fala do “estilo de vida gay”, mas na verdade a vida gay abarca muitos estilos de vida diferentes. Temos motivo para acreditar que o modelo original para casais gays, imitado do único modelo disponível e imitando o casamento tradicional – ostensivamente monogâmico, com a “traição” (palavra horrível, conceito horrível!) [3]
por fora, com as brigas resultantes, a tensão crescente e a constante suspeita – está gradualmente acabando. Mais casais gays estão aceitando a poligamia natural da (maioria?) dos seres humanos e deixando de perceber o comportamento sexual fora do relacionamento como “infidelidade” (outra palavra horrível, como é usada comumente) já que o casal permanece, em essência, fiel um ao outro. Mas “viver com amigos, não com amantes” removeria qualquer resíduo do passado, os ciúmes, tensões e discussões. A própria noção de “o casal” não precisa mais ter o status que ainda tem: por que não três, ou quatro, ou mais, e o que importaria se os relacionamentos fossem sexuais ou não? Não seria, claro, necessário compartilhar o mesmo espaço (não há nada que sugira no filme que Julianne e George viverão juntos).



E quais seriam as consequências se tais práticas se espalhassem para o mundo heterossexual?

Certamente, para muitos, a libertação de todas as amarras do tradicional casamento-e-família implicaria, acima de tudo, um grande suspiro de alívio. Liberdade de escolha: você poderia, se é isso que você quer, fazer sexo com apenas uma pessoa pelo resto de sua vida (contanto que você não insistisse que ele/ela fizesse o mesmo) ou com cem mil. Você poderia ainda, se quiser, e se achar a(s) pessoa(s) certa(s), ter relacionamentos permanentes ou semipermanentes, e eles seriam construídos em fortíssimos laços de interesses comuns e compatibilidade, e não na areia movediça do desejo sexual e “amor romântico,” duas coisas que parecem enfraquecer rapidamente. Quantos casais, gays ou héteros, você conhece que ainda fazem sexo ardente (ao invés do sexo-como-dever ou sexo-como-rotina) depois de dez anos vivendo juntos?

Tudo que sobra é a questão das crianças: como elas seriam concebidas e como nasceriam? Como elas seriam criadas? E, de verdade, tudo o que precisa ser descartado é a obsessão da nossa cultura com o parentesco biológico, que é apenas uma forma de posse e orgulho (um dos sete pecados capitais!). Toda a nossa cultura conspira para sugerir às crianças, praticamente desde o nascimento, que é uma questão de enorme e extensa importância quem são seus pais e mães. Só que, dentro da nossa civilização, de longe a maior porção de neurose (acompanhada de inibição, repressão, ansiedade, potencial atrofiado, e em casos mais extremos resultados bem mais desastrosos) se desenvolve dentro da família tradicional, passada de geração em geração. Falando pessoalmente, eu com certeza me incluo nisso, mas eu também incluo virtualmente todo mundo com quem eu tive um contato próximo durante a minha vida. O dano é irreparável: Por que queremos que isso continue? Não haveria problema em fazer e criar crianças dentro das várias versões possíveis da organização social que eu esbocei: com certeza hoje poderíamos ficar sem as noções antiquadas de “bastardos” e “crianças nascidas fora do matrimônio”? Uma criança deveria ser livre para se relacionar com pessoas que não sejam seus pais biológicos; deveria, na verdade, ter uma liberdade de escolha similar àquela dos adultos. E o sexo cumpriria sua trajetória evolutiva, seu crescimento durante os milênios de mero agente reprodutor até seu destino último: o compartilhamento de prazer, afeição, e intimidade entre os seres humanos.

[1] “Cary Grant: Comedy and Male Desire”, CineAction, n° 7, pp. 36-51.
[2] NdT.: Em português, "Para todo o sempre, você estará no meu coração/.... Para todo o sempre, nunca nos separaremos”.
[3] NdT.: No original, cheating, que também significa trapacear, enganar.

On and around My Best Friend’s Wedding é um capítulo do livro Hollywood from Vietnam to Reagan... and Beyond. Tradução: Cauby Monteiro. 

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