O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

As famílias de atrizes

Por Axelle Ropert 

Em torno de um encanto físico pode se formar uma vasta zona de amor, mas ela conta pouco. É a moral particular da atriz o que a leva mais longe.” 
Jean Cocteau 

As espirituais 

Figuras de proa: Delphine Seyrig, Leonor Silveira. 

País de origem: os altos cimos. 

Personalidade: elas não têm nenhum humor mas têm espírito, quer dizer, o senso da ironia e a inspiração permanente. Elas sabem respirar e implantar seu poder de oxigenação. Uma inspiração, e a voz decola, uma expiração e a palavra morre. A clareza é a sua virtude. Elas falam, nós prendemos nossa respiração, o ar se faz imóvel, a atmosfera se esvazia. A asfixia iminente e sempre adiada surge contudo, às vezes, sob a forma efêmera de uma ligeira confusão provocada por um lapso (o “Obrigado, Senhor” de Antoine Doinel a Fabienne Tabard em Beijos roubados) ou uma perda da palavra (o brilho marítimo de Michel Piccoli em Party). O espírito habita-as e elas sabem fazer essa ocupação dos lugares esbanjando a graça em torno delas. Elas só podem morrer de tuberculose, lenta mordida se atacando ao que nela faz as vezes de coração, os pulmões. 


Sinais particulares: a arte de sustentar uma voz em suspensão. 

Proibições: representar as esportivas. 

Sugestões: encarnar a Malibran ou Kathleen Ferrier. 

Traços: os olhos fundos de Kristin Scott-Thomas. 

O que elas nos pedem: perder o fôlego em plena declaração (como Michel Piccoli). 


As sossegadas 

Figura de proa: Françoise Lebrun. 

País de origem: um porto de Vermeer. 

Personalidade: elas falam depois de ter dormido muito. Uma palavra se arrasta, um coque se desfaz. “O lírio-verde cor da olheira e lilás / Lá floresce teus olhos são esta flor serena / Violeta como suas olheiras e como este outono / E a minha vida pelos teus olhos lentamente se envenena” (Guillaume Apollinaire[1]). O baixo país as acolhe de braços abertos e os divãs recebem suas posturas alongadas, essas posturas que permitem falar um tom abaixo. Uma ligeira desaceleração as afeta, pois o relógio íntimo das tristezas e das esperanças se desregula quando não há mais nenhum (outro) amor possível. Elas são enfermeiras (A mãe e a puta) ou figurinistas (Emmanuelle Riva em Liberdade, a noite), elas curam as feridas e elas costuram. Nós não reteremos o gosto pelas tarefas minuciosas que permitem corrigir as dores perdidas, mas essa pose que lhes assenta tão bem, o pescoço dobrado, o espírito atencioso. 


Sinais particulares: atrizes de vocação geológica, elas se deixam erodir. Que a erosão não seja a usura dos recursos mas a ocasião de uma “subida à superficie”, eis a sua sorte. 

Proibições: a facilidade de todos os últimos Garrel. 

Sugestões: representar de novo a embriaguez maravilhada de uma Ninotchcka visitando os países do ocidente. 

Traços: um copo de absinto? Um cigarro de ópio? 

O que elas nos pedem: perturbar nossos ciclos de sono. 


As desapossadas 

Figuras de proa: Joan Fontaine, Juliet Berto. 

País de origem: as casas assombradas, os orfanatos. 

Personalidade: elas se agitam em vão, pelo gosto por inimigos invisíveis que lhes permitem experimentar, no vazio, sua força de resistência. Em Hollywood, Joan Fontaine sofre, ameaçada pelo fantasma de Rebecca e por um copo de leite (Suspeita). Em Paris, Juliet Berto desfere golpes de judô e se debate nos meandros da dialética (Out 1, A Gaia Ciência). Se um afundamento do busto devolve Dana Andrews ao horror lógico do seu destino (Suplício de uma alma), a flexibilidade dos grandes desvios e a mania dos rituais de todo gênero tentam – topologicamente – reduzir um mundo incompreensível a leis em miniatura e lúdicas (Céline e Julie vão de barco). Joan se dobra, Juliet desdobra. Elas não são vítimas, só enganadas, e é a confiança que desregula suas relações com o mundo. De “desapossadas” à “munição”[2] é só um passo, que Juliet cruza facilmente, abatida na esquina de uma rua. Não é uma revanche do real, é só o desrespeito da parte delas de uma interpretação que poderia se chamar “Me assuste se queres que eu confie em ti”. Gracilidade e linha do terror não se chocam em vão. 


Sinais particulares: Joan cora e Juliet arrasta as palavras. 

Proibições: expô-las, pois o patético prejudica a pobreza, aos terrores reais (como Joan Fontaine diante das furias cukorianas de Mulheres). 

Sugestões: o papel da última mulher do Barba-Azul num roteiro de Jean-Claude Biette. 

Traços: o gosto pelas questões proibidas. 

O que elas nos pedem: a hospitalidade, a nós que estamos seguros. 


As soberanas 

Figuras de proa: Maria Casarès, Françoise Fabian. 

País de origem: as regiões exiladas, os palácios desertos. 

Personalidade: Não se trata tanto de reinar quanto de conquistar (o amor, a admiração, a adesão...). Lá onde algumas apostam no poder da sujeição, elas preferem o poder do respeito. Um dedo imperiosamente erguido, um olhar tenso afirmam-se com tanto mais força quanto mais eles não prescrevem nada. “A violência é justa onde a doçura é vã” (Corneille). Elas têm força de lei pois elas reinam no vazio, sem ordenar nem proibir nenhum fim determinado, nenhuma ação particular, nenhum objeto preciso (kantianas, necessariamente kantianas, elas têm, no entanto, as mãos – finas e nervosas). “Tu és minha morte”. Por essa réplica genial Jean Marais se submetia, em Orfeu à exclusividade da servidão amorosa. A crença (ilusória) de serem os únicos a sofrer por elas prolonga ad vitam aeternam o seu reino. Aristocráticas ou burguesas, o meio plebeu lhes é proibido pois não é a classe social que faz a força, mas a indiferença a todas as misérias, vistas, vividas ou compartilhadas. Coloque uma desapossada diante de uma soberana, e você verá a força de sua crueldade e de seu desprezo – ninguém esqueceu a humilhação de Juliet Berto diante de Françoise Fabian em Out 1. Mas não ser capaz de realizar os gestos salvadores da vida comum às vezes é trágico, e essa vulnerabilidade aumenta perigosamente a aposta de sua grandeza. Parodiando Corneille, seria necessário ensinar-lhes isto: “Por maiores que sejam as rainhas, elas são o que nós somos.”. 


Sinal particular: o porte da cabeça como arte de indicar silenciosamente o caminho a seguir. 

Proibições: interpretar as Marquesas de Merteuil (a exibição demasiada de veneno prejudica a evidência de sua grandeza). 

Sugestões: interpretar as mulheres abandonadas balzaquianas (mas já não houve La Visiteuse de Jean-Claude Guiguet?). 

Traços: Marie Armelle Deguy interpretando Viriate em Sertorius de Corneille. 

O que elas nos pedem: a posição – paulhaniana – do prisioneiro apaixonado, ver a síndrome Patti Hearst. 


As francas 

Figuras de proa: Ingrid Bergman, Deborah Kerr. 

País de origem: os territórios nórdicos. 

Personalidade: Cary Grant confessava à Deborah Kerr “Eu te amei imediatamente porque você era sincera.” (Tarde demais para esquecer). A franqueza, revelada instantaneamente no âmago dos encontros e das conversas, acelera senão curto-circuita o curso dos sentimentos – amor à primeira vista obriga. O choque da franqueza não se mede pela ausência de hipocrisia ou de segredos. As francas são, com efeito, capazes de mentir, de jogar, de enrolar, pois sua sinceridade prescinde das confissões do discurso, chegando mesmo a pôr em risco a promessa de uma vida amorosa (a retirada sacrificial de Deborah Kerr em Tarde demais para esquecer). Tudo está aí, tornando caducas as dissimulações e os não-ditos por vir, provocando inanição aos desmentidos da palavra, na expressão. A expressão impõe imediatamente a legibilidade dos mais secretos movimentos da alma. Ao contrário das desapossadas (Joan Fontaine...) ou das cristalinas (Gene Tierney...), não as imaginamos garotas. Em uma palavra, são por excelência mulheres maduras, valentes, como os pequenos soldados. Paradoxo: encarnação da franqueza, elas são contudo grandes atrizes de comédia conjugal, a qual supõe um cálculo (os bicos, os pactos, as faltas de jeito, as seduções). Uma comédia franca não é uma arte do timing, dos quiproquós, dos efeitos (antecipados) de seu charme..., mas uma maneira de pôr o fim antes do começo, de anular o tempo do sedutor saboreando a progressão de sua conquista e a iminência do momento no qual elas vão “quebrar”, confiando-lhe – francamente – que não vale a pena, pois o amor já foi vivido. A sabedoria e a impaciência dessa constatação, que não é cruel, vêm evidentemente do teatro (As estranhas coisas de Paris). A generosidade de sua interpretação lhes torna capazes, mais que qualquer outra, de uma grande compaixão. “Pois a piedade profunda é igual a uma chuva, ela acaba sempre por recair sobre a terra da qual ela se levantou e está aí uma benção para os campos.” (Rilke) Sua franqueza (expressiva) culmina no abandono de si e elas deixam assim seus maridos (Europa 51, Chá e simpatia) para dedicarem-se aos seus sacerdócios. 


Sinais particulares: elas sabem se calar para melhor escutar (Deborah Kerr e a mãe de Cary Grant em Tarde demais para esquecer, Ingrid Bergman e Giulietta Massina em Europa 51). 

Proibições: interpretar as mulheres de linha que se permitem uma escapada extraconjugal (Do outro lado, o pecado). 

Sugestões: que um marido morra de amor por elas (La Princesse de Clèves). 

Traços: não esqueçamos, do lado do Japão, Kogure Michiyo, a irmã mais velha de A música de Gion (Mizoguchi). 

O que elas nos pedem: compreender a sedução profunda exercida pela virtude doméstica. Viva o amor louco conjugal! 


As cristalinas 

Figura de proa: Gene Tierney. 

País de origem: as regiões boreais. 

Personalidade: “Eu era apaixonado por ela como às vezes nós somos por uma espécie de flor.” (Marcel Proust) Elas não são virtuosas, apenas reservadas e o lapso de memória as espreita permanentemente. Quando Gene Tierney deixa ressoar o tique-taque de um relógio fatídico (Laura), os gritos de um afogado esperando desesperadamente por socorro (Amar foi minha ruína), os ecos de uma sonata que escapa de um retrato assombrado (O Solar de Dragonwyck), os estilhaços de uma risada perdida no passado, aquela de Rex Harrison (O fantasma apaixonado) seu rosto parece fazer ou refletir perguntas distorcidas. Sempre “em excesso” como se o filme a ultrapassasse deixando-a, justamente, passar, ela abre uma a uma as portas de uma narrativa a fim de que nenhum obstáculo rasgue sua trama. Essa candura a toda prova devolve a luz, nossos olhares e os beijos dos homens às suas origens, lá onde o mal ainda não existe. As cristalinas não são mulheres, unicamente garotas ou falsas mulheres maduras (Tempestade sobre Washington) que suportam maravilhosamente os fardos artificiais do envelhecimento (O céu pode esperar) para melhor aceder ao que será sua recompensa: tornarem-se um fantasma, amar o que nos tornamos, amar os fantasmas (O fantasma apaixonado). Serem devolvidas aos charmes da eternidade, não estaria aí a miragem que as deixou à curiosidade contemplativa dos espectadores? 


Proibições: andar hipnotizada no parapeito da janela, a menos que seja sob a prescrição do doutor Korvo (A ladra), médico diabólico aplicando ao pé da letra o princípio do “remédio no mal”. 

Sugestões: encarnar o papel de Madame de La Chanterie, heroína cuja clemência súbita fez com que o antigo procurador, enfim perdoado, pronunciasse essa frase kleistiana: “Os anjos se vingam assim” (Balzac, O avesso da História Contemporânea). 

Sinais particulares: elas oferecem aos homens (Don Ameche) e aos fantasmas (Rex Harrison) a chance de serem mortais. 

Traços: uma voz infantil que, de casamentos fracassados a tratamentos psiquiátricos de choque, se considera curada. (Leiam a autobiografia de Gene Tierney, Self-portrait). 

O que elas nos pedem: ask JFK. 


As decididas 

Figuras de proa: as atrizes hawksianas, Ann Bancroft (Sete Mulheres). 

País de origem: os jogos olímpicos da vida moderna. 

Personalidade: são as mulheres mais aptas a tomar uma decisão. Essa decisão amorosa e dinâmica (em Hawks) ou moral e final (em Ford) é inseparável de uma ação física. Se a escolha de um lado ou de um movimento se faz em um instante, é que, no mundo delas, a incerteza não existe e não pode existir. Se a doutora de Sete Mulheres, disfarçada como uma boneca oriental, cruza, se sacrificando, o destino trágico das heroínas mizoguchianas, é para melhor acentuar uma diferença fundamental, a recusa de qualquer “condição feminina”. Seu heroísmo não compartilha nada com as outras mulheres, e sobretudo nada com a inexorabilidade de uma condição. A solidão protege, inclusive das solidariedades. Aquela que se sacrificou no último filme de Ford não podia deixar também de quebrar o muro do silêncio que prende uma outra garota, em O milagre de Anne Sullivan. As atrizes hawksianas (Paula Prentiss, Katherine Hepburn, Gail Hire, Elsa Martinelli, Carole Lombard, Ann Sheridan, Rosalind Russell) só podem ser amadas em plêiade, pois o gesto de uma chama a resposta de uma outra, pois a aparição de um “espécime” subentende a existência das outras. Uma atriz hawksiana é um exemplar, enquanto há apenas, diante dela, a indistinção de um povo masculino. Não se trata contudo de “guerra” dos sexos, mas de uma intransigência tão fútil quanto exigente: acabar com a paciência de seu parceiro masculino (objetivo secreto de toda atriz hawksiana). Elas adoram cair sobre canapés, se introduzir ilicitamente nos quartos, liberar as feras furiosas, andar como transpomos obstáculos e falar como saltamos as barreiras. “Meu caro Volgelstein, é o último produto, o fruto mais recente da grande evolução moderna: a garota que se faz sozinha!” (Henry James). Qual será a vitória delas? Oficialmente, uma vitória amorosa, e o homem cai nos seus braços; oficiosamente, uma vitória clínica, e ele volta à infância. Depois de ter enfim descoberto o bálsamo da juventude, a fórmula sonhada, o doutor Fulton não lhe confessou essa frase definitiva: “como é possível sobreviver à sua infância?” (O inventor da mocidade). Lembrem-se de Cary Grant em A levada da breca, A noiva era ele, O inventor da mocidade ou de Rock Hudson em O esporte favorito dos homens... Por que a sedução deve assumir essa estranha forma? Uma resposta se impõe: o amor para elas é só a oportunidade de se dar o luxo de uma pausa. Trata-se, na verdade, como sempre nos filmes de Hawks, de uma história de movimento, de dinâmica, de mobilidade, de ritmo. As heroínas hawksianas não poderiam simplesmente suportar o tempo sem obter, às vezes, pelo tempo de um filme, uma pequena pausa masculina, a conquista de um desajeitado regressivo e embonecado, sublimemente suave como Rock Hudson ou John Gavin. Não acreditemos, no entanto, que o gineceu constitui sua terra de eleição inatingível... Não é muito agradável viver como aqui, num mundo onde ninguém pode vos seguir, num mundo que não para de regredir ao vosso contato, num mundo em atraso, ou antes (verdadeiramente) atrasado? O mundo das atrizes hawksianas é um mundo atrasado pelos seus homens, todos os homens, pelos seus cientistas distraídos, seus detetives falidos, seus cowboys paquidérmicos, seus aviadores cornélianos, seus marinheiros sentimentais, seus caçadores irritados, seus jornalistas tomados pela velocidade, seus esportistas flácidos, seus faraós traídos, seus militares cegos... E, nesse mundo, é preciso sempre matar dois coelhos com uma cajadada: respirar um pouco seduzindo-os e reduzir o seu atraso, enlouquecendo-os. 


Sinais particulares: amam roubar dos homens seus aparatos, a voz grave (Lauren Bacall, Paula Prentiss) ou o uniforme (a doutora Cartwright de Sete Mulheres)... 

Proibições: ficar nua na tela. A elegância de seu físico ossudo vem de que ele suporta os vestidos e as palavras trepidantes. Tire a vestimenta, só restará a armação. 

Sugestões: o papel da Pentesiléia de Kleist para Ann Bancroft e as heroínas stendhalianas (Mathilde de La Mole, a condessa Sanseverina, a duquesa de Palliano...) para as atrizes de Hawks. 

Traços: elas semearam muito. Nos Estados Unidos, Michelle Pfeiffer, Linda Fiorentino, Jamie Lee Curtis e Melanie Griffith estão prontas para a substituição. Na França, esperamos que Marianne Denicourt se “desemburguese” e que Dominique Reymond se “descamponese”. 

O que elas nos pedem: prever seus feitos e gestos para estar, pelo menos uma vez, sincronizados com elas (missão impossível). 

[1] NdT: O jogo de palavras entre “démunies” e “munition” se perde na tradução. 
[2] NdT: Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1913. 

Les familles d’actrices foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n°2, verão de 1997. Tradução: Miguel Haoni. 

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