O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Eis a questão




Sobre The Assistant (2019) 

Por Miguel Haoni 

A olho nu, podemos ver duas estrelas européias em torno das quais gravitam os filmes da nova onda feminista hollywoodiana: no polo positivo, Agnès Varda, no polo negativo, Chantal Akerman. A primeira é visível durante as festas do dia, nas praias utópicas, entre as heroínas positivas. A segunda não é visível quase nunca: sol noturno, Chantal Akerman foi uma artista violenta, selvagem, livre demais, que nunca facilitou a vida de quem tentava domesticar o seu cinema. Segundo os registros, seu momento de maior visibilidade foi com o filme Jeanne Dielman, de 1975, que mostra três dias na vida de uma dona de casa que se prostitui. Esse filme eclipsou parcialmente os outros e é, na trajetória de Akerman, um pouco a árvore que esconde a floresta. Muito se disse e se fez a partir dele, o que é compreensível: os frutos dessa árvore continuam saborosos. Em 2020, por exemplo, Jeanne Dielman apareceu em carne e osso nos dois últimos episódios da minissérie Mrs. America e foi também o espírito que assombrou o filme The assistant. O dia na vida da assistente de produção Jane (Julia Garner) é o espelho dos três dias de Jeanne (Delphine Seyrig). A câmera fixa que escancara o espaço da personagem mas preserva todos os outros, a frontalidade na observação dos deslocamentos e procedimentos completos de uma mulher que não para de trabalhar, o microfone que amplifica os detalhes de tudo, principalmente do confortável e sufocante silêncio do ar-condicionado são as três portas pelas quais o velho filme entra no novo. E a eles soma-se a presença desses travellings laterais lentos, longos, fantasmagóricos, através dos quais percorremos mais uma vez o território akermaniano. 

Entramos no filme ainda de madrugada e o sol só o iluminará com muita dificuldade. The assistant é opaco, resistente, demora a mostrar suas garras. Alguém atento, mas que não leu a sinopse, leva pelo menos uns dez minutos para descobrir que o escritório é de uma produtora de cinema, e mais uma boa meia hora para saber que o personagem do chefe é uma referência à Harvey Weinstein, o megaprodutor e criminoso sexual, acusado por mais de 80 mulheres, e sentenciado pelo Estado de Nova York a cumprir 23 anos de prisão. Avançamos cautelosamente num mundo escuro, frio, seco, violento: o nosso mundo. A violência aqui não explode, ela corrói tudo lentamente, de forma quase invisível, como um ácido muito fraco. É a violência do torturador, que não pode nunca matar a sua vítima, e que o tempo inteiro “equilibra” o jogo com um elogio, um ligeiro gesto de solidariedade, acendendo e apagando a vela da esperança. Neste kafkiano escritório, reina o silêncio, a voz humana não entra, mas de lá saem, ironicamente, filmes, obras de arte. 

Ambientado numa fábrica de imagens, The assistant é, porém, marcado por duas invisibilidades complementares. A primeira é a de Jane, a assistente “insignificante”, apesar de presente em todos os planos do filme. A segunda é a do chefe, função sem nome, voz sem corpo, que nunca aparece apesar de onipresente. Tudo no escritório acontece em função dele, das necessidades do seu corpo. A máquina lhe cobre e protege, como o casco da tartaruga. Do outro lado, Jane é o coelho, ágil e eficiente, que repete “I’ll fix it” antes de resolver tudo (ou quase). Entre o corpo mórbido do chefe, que se põe de pé graças à injeção de altas doses de Alprostadil, e a alta performance de Jane, verdadeira atleta do cotidiano burocrático, existe um abismo. E apesar dos esforços, ela não cabe neste mundo. Ela é mesmo fisicamente impedida de entrar nele. Mulher entre os homens, “feia” entre as belas e , acima de tudo, humana entre as máquinas, Jane é quase um corpo burlesco. Nas suas mãos os equipamentos funcionam mal, ela está sempre atrapalhando, interrompendo o trabalho dos outros. Durante a limpeza, quando coloca uma rosquinha na boca, num gesto não calculado, ela é flagrada por um superior. Corpo burlesco num filme de horror. 

Humana, demasiado humana, Jane esquece o aniversário do pai, mas telefona e conversa com ele no fim do dia, tenta ser babaca com o motorista do chefe, mas não consegue e acaba pedindo desculpas. É esta humanidade que lhe impede de se integrar num mundo escrito muito torto em linhas muito certas. Humanidade não, sororidade. Não precisamos ter medo das palavras: trata-se aqui de feminismo. Pois é depois de conhecer a nova assistente, ex-garçonete que veio tentar a vida na cidade grande, e que será comida pelo ogro, que Jane procura o RH, e vai olhar no olho, pela primeira vez, do abismo das ilusões. As palavras não chegam a sair, mas o gestor entende tudo, antecipa tudo, como a enorme caixa de lenços, presente desde o começo da cena, esperando pelas lágrimas que certamente virão. E é diante das intermináveis fotos de atrizes que saem da impressora, rostos sem nome, sem história, "desperdícios de tempo”, que a questão se impõe: “Me Too or not Me Too?”* Perto de Akerman e longe de Varda, o filme não declara as suas intenções, mas engaja o espectador de forma incontornável. Sim, há algo de podre no reino do cinema e The Assistant devolve a questão ao adormecido cinéfilo. Cabe a nós, que gritamos como crianças mimadas sempre que alguém chama John Ford de racista, responder sempre: no meio de tantos horrores, é realmente isso o que nos atinge? 

* Pierre Léon, “L’homme invisible était une femme”, Cahiers du Cinéma n°771, dezembro de 2020, p. 53.

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