O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Gênio de Howard Hawks




 

Por Jacques Rivette

A evidência é a marca do gênio de Hawks; Monkey Business é um filme genial e se impõe ao espírito pela evidência. Porém alguns se recusam, se recusam ainda em se satisfazer com afirmações. A ignorância talvez não tenha causa diversa.


Dramas e comédias dividem igualmente sua obra: ambivalência remarcável; ainda mais remarcável é a frequente fusão dos dois elementos, que parecem se afirmar no lugar de se comprometer, e aguçam-se reciprocamente. A comédia jamais está ausente das tramas mais dramáticas; longe de comprometer o sentimento trágico, ela conserva-o do conforto da fatalidade mantendo-o num perigoso equilíbrio, uma incerteza provocante que aumenta o poder do drama. Sua tartamudez não pode preservar da morte o secretário de Scarface; o sorriso que suscita quase todo o tempo The Big Sleep é inseparável do pressentimento de perigo; o clímax de Red River, no qual o espectador não é mais capaz de refrear o desconcerto de seus sentimentos e se pergunta por quem toma partido e se deve rir ou temer, resume um frêmito pânico de todos os nervos, uma atônita vertigem sobre a corda bamba onde o pé titubeia sem escorregar ainda, tão insuportável quanto o desenrolar de alguns sonhos.

E se a comédia dá ao trágico sua eficácia, a mesma igualmente não pode dispensar, talvez não o trágico - não vamos comprometer nossos melhores argumentos indo longe demais – mas o sentimento severo de uma existência na qual nenhuma ação pode se livrar da teia das responsabilidades. Poderia ser-nos oferecida visão mais amarga que essa? Confesso pois ter sido incapaz de me juntar às risadas da plateia, estarrecido pelas peripécias calculadas de uma fábula (Monkey Business) que se aplica em contar – com uma lógica alegre, uma eloquência perversa - as etapas fatais da bestificação de inteligências superiores.

Não é por acaso que reencontramos um círculo de cientistas similar àqueles de Ball of Fire e The Thing from Another World. Mas não se trata, exatamente, de uma sujeição do mundo à visão glacial e desencantada da ciência, como de retraçar as desventuras de uma comédia da inteligência. Hawks não se interessa por sátira ou psicologia; a sociedade não importa mais aos seus propósitos que os sentimentos; diferente de Capra ou McCarey, Hawks está preocupado somente com a aventura do intelecto. Quer ele oponha o velho ao novo, a soma de conhecimento do passado à outra de formas degradadas da vida moderna (Ball of Fire, A Song is Born), ou o homem à fera (Bringing up Baby), ele permanece com o mesmo tema da intrusão do não-humano, ou de um avatar mais cru da humanidade, numa sociedade altamente civilizada. The Thing bota abaixo a máscara: nos confins do universo, alguns homens da ciência estão às voltas com uma criatura pior que inumana, uma criatura de outro mundo; e seus esforços tentam primeiramente enquadrá-la nas molduras lógicas do conhecimento humano.

Mas o inimigo agora imiscuiu-se no próprio homem; o sutil veneno do rejuvenescimento, a tentação da juventude da qual sabemos desde muito tempo não ser dos mais sutis subterfúgios do mal - às vezes bassê, às vezes macaco – quando uma rara inteligência o coloca em xeque. E a mais nefasta das ilusões, contra a qual Hawks luta com um pouco de crueldade: a adolescência, a infância são estados bárbaros dos quais somos resgatados pela educação; a criança se distingue mal do selvagem que imita em seus jogos; uma vez bebido o precioso licor, o mais digno senhor absorve-se na imitação de um chimpanzé. Aqui reconhece-se uma concepção clássica do homem, que não saberia ser grande senão através da experiência e da maturidade; termo de seu progresso, a velhice lhe julga.

Ainda pior que o infantilismo, a bestificação, a decadência - a fascinação que exercem sobre a inteligência mesma; o filme não é somente a história desta fascinação, como a propõe ao espectador como prova de seu poder. Assim sua crítica submete-se, de partida, ao olhar que a mesma propõe. Os macacos, os índios, os peixes dourados não são mais que as aparências de uma mesma obsessão pelo elementar, no qual se confundem os ritmos selvagens, a doce estupidez de Marilyn Monroe - monstro feminil que os artifícios dos figurinistas forçam à deformação - ou os elãs de velha bacante de Ginger Rogers, cujo rosto marcado se crispa na adolescência. A euforia maquinal das ações confere à feiura e à infâmia um lirismo, uma densidade expressiva que lhes eleva à abstração; a fascinação toma conta, dá beleza à lembrança das metamorfoses; e se pode chamar de expressionista a arte com a qual Cary Grant transforma os gestos em símbolos; no instante em que ele se maquia de índio, como não recordar do célebre plano de O Anjo Azul no qual Jannings contempla no espelho sua face degradada. Não é de modo algum leviano comparar estas duas histórias paralelas de ruína; lembremo-nos de como os temas da perdição e da maldição impunham outrora no cinema alemão a mesma progressão rigorosa do estimável ao odioso.

Do close-up do chimpanzé ao momento em que a fralda escorrega naturalmente do bebê Cary Grant, o espírito é solicitado por uma constante vertigem de impudor; e o que é esse sentimento senão uma mistura de medo, censura - e fascinação? A atração dos instintos, o abandono aos poderes terrestres e primitivos, o mal, a feiura, a estupidez, todas as máscaras do demônio são, nestas comédias onde a alma mesma é tentada pela besta, combinadas à lógica extrema; a ponta mais afiada da inteligência volta-se contra si mesma. I Was a Male War Bride toma como assunto simplesmente a impossibilidade de uma soneca até o embrutecimento e às piores implicações.

Melhor do que ninguém, Hawks sabe que a arte deve antes de tudo ir aos extremos, mesmo da infâmia, pois que este é o domínio da comédia; jamais teme as peripécias as mais duvidosas, uma vez que as deixou pressentir, menos preocupado em desapontar a baixeza de espírito do espectador que em saciá-la ultrapassando-a. Tal é o gênio de Molière, cujo frenesi lógico suscita menos amiúde o riso que o nó na garganta; tal como o de Murnau, cujo admirável Tartufo, a famosa cena de dona Marta (em Fausto), e várias sequências de A Última Gargalhada oferecem ainda modelos de um cinema Moliéresco.

Há em Hawks, cineasta da inteligência e do rigor, mas junto de forças obscuras e fascinações, um espírito germânico tentado pelos delírios metódicos nos quais se engendram infinitamente suas consequências, onde a continuidade faz o papel de destino; seus heróis o demonstram não tanto nos sentimentos como em seus gestos, que ele persegue com atenção apaixonada; Hawks filma ações, especulando sobre o poder, tão-somente, da aparência. Que nos importam os pensamentos de John Wayne caminhando em direção de Montgomery Clift, ou aqueles de Bogart durante uma surra; nossa atenção não se dirige senão à precisão de cada passo - ao ritmo preciso da caminhada -, de cada golpe – ao abatimento progressivo do corpo maltratado.

Mas Hawks epitomiza ao mesmo tempo as mais altas virtudes do cinema americano, o único que saiba nos propor uma moral, daí a perfeita encarnação; admirável síntese que contém talvez o segredo de seu gênio. A fascinação que ele impõe não é de modo algum a da ideia, mas aquela da eficácia; o ato nos retém menos por sua beleza que por sua ação mesma no interior do universo que o contém.

Tal arte impõe-se uma honestidade fundamental, ao que testemunha o emprego do tempo e do espaço; sem flashback, sem elipse, a continuidade é a regra; nenhum personagem se move sem que o acompanhemos, nenhuma surpresa que o herói não partilhe conosco. A disposição e o encadeamento de cada gesto têm força de lei, mas de uma lei biológica, que encontra sua prova mais decisiva na vida de cada ser vivo; cada plano possui a beleza funcional de um pescoço ou de um tornozelo; sua sucessão, suave e rigorosa, reencontra o ritmo das pulsações do sangue; o filme inteiro, corpo glorioso, animado por uma respiração resiliente e profunda.

A obsessão pela continuidade ordena o gênio de Hawks; ela lhe dita o sentido da monotonia e lhe associa amiúde à ideia de percurso ou itinerário (Air Force, Red River); eis um universo homogêneo onde tudo está ligado, e o sentimento do espaço àquele do tempo; assim, em certos filmes onde a comédia tem papel maior (To Have and Have Not, The Big Sleep), os personagens estão circunscritos em três cenários, nos quais se movem em vão. Adivinhamos a gravidade de cada movimento de alguém que não podemos abandonar. Quer evoquemos Scarface, cujo reino se concentra das cidades que dominava ao quarto onde é encurralado, ou os cientistas cujo medo da Coisa lhes tranca na cabana; quer nos lembremos de como os pilotos detidos no campo pela neblina escapam às vezes para as montanhas (Only Angels Have Wings) como Bogart escapa para o mar, do hotel onde vagava impotente entre o porão e o quarto (To Have and Have Not); quer reencontremos o eco burlesco destes temas em Ball of Fire, onde o gramático se evade do universo hermético das bibliotecas para os perigos da cidade, ou em Monkey Business, onde as fugas traduzem os acessos de juventude (como I Was a Male War Bride retomava, em outro registro, o tema do itinerário) – sempre o espaço exprime o drama; as variações do cenário modelam a continuidade do tempo. Os passos do herói traçam as figuras de seu destino.

A monotonia não é senão uma máscara; de lentas e profundas maturações se dissimulam, um progresso obstinado, as conquistas feitas passo a passo sobre o solo e sobre si mesmo ao mesmo tempo – até ao paroxismo. Aqui a lassitude como recurso dramático: a exasperação de homens que se refrearam durante duas horas, que pacientemente condensaram ante nossos olhos a cólera, o ódio ou o amor e deles se livram bruscamente, como pilhas lentamente saturadas cuja faísca deve enfim estalar. O sangue-frio exaspera o calor de seu sangue; a calma na qual se aplicam nos força a sentir sua emoção, a partilhar o tremor secreto de seus nervos e de sua alma - até que o copo transborda. Um filme de Hawks amiúde não é senão a ansiosa espera pela gota d’água.

As comédias dão a essa monotonia uma outra face: a repetição substitui o progresso, como a retórica de Raymond Roussel substitui a de Peguy; os mesmos fatos, retomados sem cessar, agravados por uma persistência maníaca, uma paciência de obcecado, turbilhonam sem controle, como aspirados por algum maëlstrom ridículo.

Que outro gênio, mais tomado pela continuidade, saberia mais apaixonadamente se prender às consequências dos atos, às relações que os unem; suas influências, suas repulsões, suas atrações suscitam um universo contínuo e coerente, universo Newtoniano onde se impõem a lei da gravitação universal e o sentimento profundo da gravidade da existência. Os gestos do homem são pesados e medidos por um mestre a quem preocupam suas responsabilidades.

O tempo destes filmes é o da inteligência, mas de uma inteligência artesanal, diretamente aplicada ao mundo sensível, e que busca a eficácia perseguindo a ótica precisa de uma profissão ou de qualquer forma de atividade humana às voltas com o universo e ansiosa de conquistas. Marlowe exerce uma profissão como o cientista e o piloto; e quando Bogart aluga sua barcaça, quase não olha para o mar, menos preocupado com a beleza das ondas que com a dos passageiros; todo rio foi feito para ser atravessado, todo rebanho para prosperar e ser vendido pelo preço mais alto. Mesmo sedutoras, mesmo amadas, as mulheres devem aderir à busca.

Não se pode evocar To Have and Have Not sem rever sobretudo a luta com o peixe que abre o filme. A conquista do universo não é empreendida sem conflito, e esse é o ambiente natural dos heróis de Hawks: combate corpo-a-corpo, lutas calorosas, que enlaçamento mais estreito almejar de outro ser? Assim amam-se mesmo numa perpétua oposição; um duelo incansável cujo incessante perigo os intoxica da evidência do próprio sangue (The Big Sleep, Red River). Da luta nasce a estima: admirável termo que compreende de uma vez conhecimento, apreciação e simpatia; o oponente torna-se parceiro. Mas que desgosto se é preciso combater um inimigo que a recusa; Marlowe, tomado de uma repentina amargura, precipita os eventos e se apressa em levá-los à seus fins.

A maturidade cai bem a esses homens refletidos, heróis de um universo adulto, amiúde quase exclusivamente viril, onde o trágico está no relato das relações interiores - Mas o cômico, intrusão e confrontação de elementos estranhos, ou a substituição de mecanismos ao livre-arbítrio, à decisão voluntária pela qual o homem se exprime e se afirma em seu ato como no ato de criar.

Não quero parecer estar louvando aqui um gênio estranho a seu tempo; mas a evidência de seus laços com nosso século me dispensa de qualquer demora no assunto, ao que prefiro fazer entrever como, se se atém por vezes à pintura do derrisório e do absurdo, Hawks se aplica primeiro em dar sentido e gosto de viver a esses fantasmas e lhes abençoar com uma grandeza insólita, de certa nobreza por muito tempo secreta; como ele dá à sensibilidade moderna uma consciência clássica. Red River e Only Angels Have Wings não reclamam outra filiação que não a de Corneille; a ambiguidade, a complexidade são privilégios dos mais nobres sentimentos, que alguns creem ainda monótonos, ainda que sejam mais rapidamente exauridos os instintos, as barbáries, as razões das almas cruas; - eis o porquê dos romances modernos serem chatos.

Como poderia enfim refrear-me em invocar essas admiráveis introduções onde o herói se instala em sua duração com fluida plenitude. Sem preliminares, sem artifícios de exposição; uma porta abre, ei-lo desde o primeiro plano, a conversação começa e nos familiariza discretamente com seu ritmo pessoal; a partir deste instante em que nós o surpreendemos, como poderíamos deixá-lo, companheiros de sua viagem, que se desenrola tão segura e regularmente como a película através do projetor. Ritmo de uma marcha assim flexível e constante como a dos alpinistas que partem com o passo firme que conservarão através das trilhas mais ásperas, ao termo das mais longas etapas.

Assim, desde as primeiras pulsações, não estamos somente certos de que os heróis não mais nos abandonarão, mas também sabemos que manterão ao excesso todas as suas promessas; não fazem parte da raça dos covardes nem dos indecisos: nada pode com efeito se opor à admirável obstinação, à tenacidade dos heróis de Hawks; uma vez a caminho, continuarão até o fim de si mesmos e do que prometeram, venha o que vier, através de uma forma extrema da lógica; é preciso terminar o que se começou. Pouco importa se foram no começo amiúde envolvidos contra a vontade; ao perseguir, ao rematar, provam sua liberdade e a honra de chamar-se homem. A lógica não é para eles alguma fria faculdade intelectual, mas a coerência do corpo, a harmonia e a continuidade de seus atos, a lealdade a si mesmos. A força da vontade garante a unidade do homem e do espírito, atados naquilo que lhes justifica e lhes dá seu significado mais alto.

Se é verdade que a fascinação nasce dos extremos e de tudo aquilo que ousa o excesso, quando a desmesura também se chama grandeza, - supondo-se que tal fascinação não desdenhe essas forças em marcha, que combinam à precisão intelectual dos poderes abstratos os valores elementares dos grandes elãs terrestres, as equações às tempestades, e sejam afirmações vivas - Todo filme de Hawks não oferece antes de tudo à beleza senão esta afirmação tranquila e certa, sem retorno nem remorsos. Ele prova o movimento ao andar, a existência ao respirar. Que o que é, é.

Jacques Rivette

Publicado na Cahiers du Cinéma nº 23, maio de 1953. Tradução de Eduardo Savella.

2 comentários:

  1. Que achado este blog, textos excelentes vocês estão trazendo. Tão de parabéns.

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    1. Muito obrigado, anônimo. E já leu esse: https://vestidosemcostura.blogspot.com.br/2017/09/uma-apresentacao-sobre-carta-sobre.html ?

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