O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

"Propriedade" (Daniel Bandeira, 2022)

Por Leodoro Camilo-Fernandes

O carro é a fortaleza onde, subitamente encastelada, Teresa precisa suportar as investidas dos camponeses em revolta. De frágil vítima da violência urbana a ardilosa sinhá, sai da clausura em que estava no seu apartamento à beira-mar (recuperando-se da violência) e logo volta a ver-se encerrada em outra redoma, em outra violência: seu carro novo, blindado, seu escudo, sua arma, seu túmulo. A propriedade é o sarcófago do rico.

O patrimônio, a fim de que exista, precisa de defuntos: sem morto não tem herança. Propriedade, o filme, por sua vez, também empilha corpos: sem morte não tem revolta. Luta-se pela conservação: dum lado, do patrimônio; do outro, da possibilidade da subsistência. Duas narrativas: a primeira, o debilitado casal rico que vai à fazenda para espairecer e descobre devassada a casa; a segunda, o grupo de trabalhadores que acordam para a labuta e descobrem-se desempregados (sem terra, sem documentos). Mais uma entrada no rol das ficções da revolta: capital e campo, beira-mar e mata, dia e noite, dentro e fora, patrão e empregado, casa-grande e revolta.

Não se assuste, pessoa. O carro liga. Até aqui na casa-grande tem mosquito. Enquanto eles se batem, dê um rolê.

Um comentário:

  1. "Propriedade" é o filme de abril do Cineclube da Madonna: https://www.facebook.com/events/798931818783319/?ref=newsfeed

    ResponderExcluir