O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Resposta a “C.N.C”



Por Pascal Kané

Que Skorecki, no texto precedente[1], veja na escolha dos autores operada pelos Cahiers apenas reflexo culturalista, submissão à imagem de marca imposta por esses filmes, seria certamente uma tese admissível (mas sem ser, de resto, totalmente nova, já que integrada a um certo número de textos que se reportam a esses autores), se aquilo em nome do que essa tese é formulada operasse na atual produção cinematográfica algum corte, constituísse um suporte metodológico (ou ético) a partir do qual se tentasse repensar o que deveria ser, o que deve ser hoje – pois hoje, talvez mais do que nunca, isso nos falta – uma crítica de cinema viva. Em vez disso, o texto, em nome de uma certa verdade cinéfila, estabelece somente uma lista diferente de vencedores e indica uma direção: seria na televisão, mas em suas zonas mais obscuras, que “algo da lucidez alucinada da cinefilia de ontem”, que um retorno mínimo à paixão pelo cinema, seria possível.

Essas posições, deliberadamente polêmicas, mas muito coerentes, evidentemente convocam um debate. Debate histórico, certamente, já que a cinefilia desde então perdeu seu sentido, mas que abrange, na verdade, questões muito atuais (não somente em relação a este ou aquele cineasta do presente, cujos procedimentos são justificáveis, mas em relação à revista, da qual a cinefilia constituiu o núcleo formador de um certo número de colaboradores).

Como veremos, a cinefilia não é simples: ela seria, antes, dupla. Skorecki, na verdade, se expressa em nome de um aspecto da cinefilia contra um outro. Está na hora, portanto, de restabelecer essa dualidade histórica, e não mais passar complacentemente por um certo obscurantismo e um certo terrorismo cinéfilo (segunda tendência que o artigo acima não deixa de reviver, e que pode conduzir a propostas tão extravagantes, tão privadas de sentido quanto dizer que Jacques Tourneur é o maior cineasta do mundo, ou a alucinar perpetuamente, em tal ou tal detalhe de mise en scène invisível para o neófito, toda a “verdade” do cinema). Seria melhor reconhecer, nessas atitudes demasiadamente apaixonadas, uma incapacidade manifesta de falar verdadeiramente do cinema, de produzir algo em matéria de uma visão, em vez de reproduzir dessa maneira estéril e finalmente masoquista uma fascinação pelo objeto – fascinação que hoje sabemos ter sido a palavra-mestra dessa cinefilia (é nomeadamente da mais antiga, da mac-mahoniana, de que falo).

Essa cinefilia atinge seu grau de exposição mais perfeito e definitivo com o artigo de Michel Mourlet, “Sobre uma arte ignorada” (Cahiers nº 98), o qual expõe a vaidade de todo trabalho crítico, de todo ponto de vista. Ele escreve, particularmente: “A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. (...). O movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados[2]. Que fique claro: não é o “anti-brechtismo” sistemático de Mourlet (!) que é criticável (o brechtismo teria sido provavelmente liquidador), é que, ao negar a distância às obras, ele abole todo ponto de vista presente e, portanto, toda possibilidade de aferir algo delas (o que ele postula, no fundo). Também a “mise en scène” (cf. acima), cuja função habitual de máscara e de revestimento, em Hollywood, opera através das figuras tão diversas quanto a elipse temporal, a narrativa em primeira pessoa, o controle e domínio da profundidade de campo, nunca é analisada como tal, mas é sempre referida a um Mistério em torno do qual giraria toda a magia do cinema. É o que reproduz o artigo de L.S., quando ele vê na “cinzelagem de um detalhe”, na “iluminação de um gesto”, a única marca verdadeira de um autor. Ora, essa magia, ao contrário, residia na perfeita integração das diferentes fases produtivas entre si: daí a importância do produtor, e particularmente na obra de certos cineastas (como Jacques Tourneur, justamente).

As proposições e pressupostos de Skorecki vão muito no sentido da reprodução dessa fascinação da qual, em última instância, os cinéfilos não souberam fazer nada, antes de serem varridos por uma crítica política (pois a política não deixava de produzir algo, ela, e em todos os campos).



A cinefilia mac-mahoniana nunca foi, a meu ver, uma escola crítica, em função de uma “política dos autores” que a cegava para tudo que fosse estranho a seus critérios (e que fazia Mourlet escrever, por exemplo, que “podemos predizer sem grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos”, sendo, ao mesmo tempo, “desde sempre aos mais sensíveis” (op. cit.)).

Voltemos um pouco, então, a esses critérios mac-mahonianos, muito velados no artigo de Skorecki. O primeiro mal-entendido concerne a noção de autor: não se trata de forma alguma do cineasta que escreve um roteiro antes de filmá-lo, mas, ao contrário, praticamente exclusivamente, do diretor de roteiros que são escritos por outros e que são propostos por um produtor. Os autores eleitos, então, são, paradoxalmente, os que menos o são; os que deixam o funcionamento da máquina hollywoodiana o mais intacto possível, de forma que possam provocar o sentimento de que se apropriam dela em sua totalidade. Junto às justificações dadas (amor pela mise en scène pura, isto é, justamente por aquilo que os literatos da crítica de cinema da época deixavam escapar), a cinefilia mac-mahoniana se baseava, na verdade, em uma fascinação pela máquina hollywoodiana, em que a mise en scène, totalmente integrada às outras fases produtivas, representava o momento de exposição privilegiado – momento onde nada deveria ser atribuído a uma determinada vontade (“toda ruptura da impassibilidade do cinema com fins expressivos trai precisamente esses fins”, sempre Mourlet)[3]. Daí esse ódio ao Autor, isto é, àquele que converte a maquinaria a seu favor ou que quer se opor a ela, o que explica tanto o famoso panteão mac-mahoniano quanto o desprezo no qual couberam a quase-totalidade dos grandes cineastas, de Rossellini a Hitchcock, de Eisenstein a Renoir (uma exceção importante foi Lang, porque ele foi, de fato, o único a se identificar com o conjunto da máquina cinematográfica como seu Criador).

Foi essa vontade contemplativa que isolou o mac-mahonismo e lhe retirou toda produtividade, impedindo-o de compreender para onde se dirigia o cinema no final dos anos cinquenta: cegueira a tudo que não era mise en scène pura (isto é, “integrada”), mas também ignorância grosseira diante de porções inteiras da história do cinema. Essas deficiências graves acabaram dividindo a cinefilia, abrindo-a a uma abordagem mais culta e, sobretudo, mais operatória, que foi a dos Cahiers (e outros) a partir daquele momento. Skorecki cita apenas Douchet, mas Rivette, Rohmer e Truffaut são aqueles em que pensamos primeiro (todos ansiosos para tocar no essencial da questão), sem falar de Bazin, que, justamente por ser um crítico e um teórico, permaneceu muito distante da cinefilia pura (além disso, é notável que continuemos a encontrar genialidade em Bazin, quando uma boa parte de suas escolhas críticas foi abandonada nos Cahiers. Mas a crítica, mesmo positiva de um filme ruim, pode resguardar mais inteligência do cinema do que a mais inteligente escolha de filmes).

Para que a cinefilia pudesse desempenhar um papel na história do cinema, ou seja, para que ela se tornasse uma escola crítica e uma escola de diretores, foi preciso, então, que outras considerações – concretas, políticas no sentido mais amplo – interviessem. Foi preciso que a cinefilia fosse confrontada a um presente, a um desejo de cinema.

Desse novo aspecto da cinefilia, igualmente autêntico, Skorecki não fala. Seu artigo parece reter (além da famosa inteligência do cinema) apenas seus aspectos menos recomendáveis e mais irritantes, como essa incapacidade de sustentar qualquer escolha que seja compensada por uma hiper-valorização maníaca de alguns autores e alguns filmes (Tourneur e outros para ontem, e para hoje uma escolha interessante que gostaríamos de saber o que lhe sustenta para além do fato de não conceder aos seus fabricantes o estatuto de autores). Pois é precisamente na eleição que tudo sempre foi jogado: há uma certa cinefilia que nunca foi mais do que atribuir estrelas, estabelecer rankings, derrubar quadras de ases
[4]. Paradoxais e terroristas, esses gostos foram suficientes para distinguir o cinéfilo dos espectadores em geral. É por isso que o cinéfilo detestava toda norma de produção diferente, toda forma de marginalidade no cinema (cinema experimental, correntes emergentes como o neorrealismo, Godard, como o diz muito bem L.S., etc). Ele precisava se situar no mesmo terreno que o grande público para tornar sensível a distância de sua visão, e a cinefilia antiga, no fundo, não é senão a valorização dessa distância: pequena perversão cuidadosamente cultivada, e tornada cega à sua natureza parasitária, como o diz Skorecki novamente.

Me parece que a televisão desempenha, nesse sistema de Skorecki, um papel mais ou menos análogo ao do cinema clássico para os cinéfilos de então – a questão tornando-se mais complexa hoje, visto que não se trata mais simplesmente de salvaguardar essa perversão, mas de atualizá-la: a produção cinematográfica atual não podendo mais desempenhar esse papel, já que o “Autor” tornou-se preponderante nela, mesmo nos filmes mais ordinários e menos pessoais, era preciso recorrer à televisão, onde não são os autores, de fato, que constrangem a maquinaria: mas por trás do apagamento do autor na televisão, já não é mais tão difícil, hoje, discernir o lugar que ocupam outros poderes, os quais não podemos mais fingir ignorar, como nos dias áureos de Hollywood.

Com uma grande diferença, no entanto: a fantástica máquina hollywoodiana era fascinante como tal; o dispositivo televisivo, por outro lado, é execrável, e se a televisão ainda pode fascinar, é precisamente porque a máquina não pára, justamente, de derrapar (e os efeitos de verdade, de surgir). Aí está o único ponto comum: desfrutar da televisão também implica um ponto de vista perverso e Skorecki sabe bem disso.


[1] O texto de Kané, publicado na mesma edição de Contra a nova cinefilia, vem logo após o texto de Skorecki (N.d.T).

[2] Os trechos em português de Sobre uma arte ignorada são retirados da tradução feita por Luiz Carlos Oliveira Jr. (N.d.T).

[3] Skorecki não se engana, aliás, quando diz preferir os filmes entravados de Losey àqueles ditos “livres” (o argumento seria também ainda mais forte com Preminger que realizou grandes filmes no início de sua carreira – Whirlpool, Angel Face, até Anatomy of a Murder -, e que se perdeu em seguida, pouco a pouco, num estilo paranoico e estreitamente ideológico. Mas essa evolução era inelutável, e a liberdade concedida aos diretores correspondia a uma nova forma bem geral de conceber o trabalho de cena...

[4] Prática retomada pelo famoso “Conselho dos dez” dos Cahiers: opondo alguns críticos conhecidos da equipe dos Cahiers, era precisamente o gosto dessa última (ah, tão intuitivo e original, apesar dos seus pontos cegos) que se sobressaia, e que justificava a meu ver essa prática numa revista que não passava seu tempo a celebrar cultos (como Présence du cinéma por exemplo, da qual Skorecki, a propósito de Tourneur, oferece involuntariamente um modelo, baseado em citações banais e paradigmáticas do autor, divinizadas em seguida por seus turiferários).
Quanto às atuais distribuições de estrelas nas revistas de cinema, elas não têm mais o mesmo status: todo paradoxo e agressividade cinefílica desapareceram, são apenas resumos de pontos de vista, digestos de subcultura.

Réponse a “C.N.C.” foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, nº 293, outubro de 1978. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

"Propriedade" (Daniel Bandeira, 2022)

Por Leodoro Camilo-Fernandes

O carro é a fortaleza onde, subitamente encastelada, Teresa precisa suportar as investidas dos camponeses em revolta. De frágil vítima da violência urbana a ardilosa sinhá, sai da clausura em que estava no seu apartamento à beira-mar (recuperando-se da violência) e logo volta a ver-se encerrada em outra redoma, em outra violência: seu carro novo, blindado, seu escudo, sua arma, seu túmulo. A propriedade é o sarcófago do rico.

O patrimônio, a fim de que exista, precisa de defuntos: sem morto não tem herança. Propriedade, o filme, por sua vez, também empilha corpos: sem morte não tem revolta. Luta-se pela conservação: dum lado, do patrimônio; do outro, da possibilidade da subsistência. Duas narrativas: a primeira, o debilitado casal rico que vai à fazenda para espairecer e descobre devassada a casa; a segunda, o grupo de trabalhadores que acordam para a labuta e descobrem-se desempregados (sem terra, sem documentos). Mais uma entrada no rol das ficções da revolta: capital e campo, beira-mar e mata, dia e noite, dentro e fora, patrão e empregado, casa-grande e revolta.

Não se assuste, pessoa. O carro liga. Até aqui na casa-grande tem mosquito. Enquanto eles se batem, dê um rolê.

"O sol do futuro" (Nanni Moretti, 2023)

Por Victor Cardozo

Giovanni (Moretti) é um cineasta veterano italiano que faz um novo filme "a cada cinco anos". Durante a nova filmagem, ele se vê, mais uma vez, diante de um impasse existencial generalizado na vida e no trabalho. O seu filme, sobre um editor de jornal alinhado ao PCI (Silvio Orlando) dividido entre lealdade ao partido e solidariedade com os companheiros de uma companhia circense húngara diante da invasão da União Soviética à Hungria em 1957, patina em incertezas que vão da concepção à produção e distribuição, passando por descompassos criativos com os companheiros de equipe. Na vida familiar, Giovanni também sofre uma crise com a possibilidade do fim da sua união com Paola (Margherita Buy), sua esposa e produtora com quem tem uma parceria de 40 anos. O mundo à sua volta, na política, na história e na arte, parece também lhe escapar. A crise da individualidade não conformista, deliberadamente anacrônica e utópica, a rebelião contra a entropia, a obsessão apaixonada pela linguagem, a necessidade de acertar as contas com as questões do passado e da contemporaneidade italiana, tudo isso é sempre o ponto de partida em todos os filmes de Nanni Moretti, seja em 1973 ou em 2024. Mas aqui são os próprios ideais e sonhos que alimentam sua descontinuidade temporal que parecem tomar a frente. O presente invade o passado. Contemplando seu fim, o cineasta pode talvez encontrar seu começo.

"Foi Deus quem mandou" (Larry Cohen, 1976)


Por Luiz Fernando Coutinho

"God told me to. Nova Iorque. Catolicismo. Atiradores em massa. Terrorismo. Burocratas. Alienígenas. Grandes angulares onívoras. Trucagens de luz. Filtros. Espaço urbano. Arranha-céus. Metrô. Asilo. Departamento de polícia. Narrativa detetivesca. Mídia. Jornalismo. Discurso médico. Diferença sexual. Intersexualidade. Patologização da intersexualidade. Monstruosidade da intersexualidade. Ameaça da norma católica. Contra-ataque. Deuses. Duplos. Sisters (De Palma). Ficção científica. Horror. Sociologia. Estratos sociais. Religião. Crença. Crucifixos. Casamento. Amantes. Prostitutas. Freiras. Harlem. Repressão. Identidade. Ambiguidade. Aborto. Pais e filhos. Filiações monstruosas. Nudez. Câmera na mão. Entrevistas. Documentário. Andy Kaufman. Homossexualidade. Drogas. Tráfico. Abduções. Estupro. Virgens Marias. Hippies. Contracultura. Homens no poder. Febre. Suor. Poros. Cicatrizes abertas. Flashbacks mirabolantes. Fragmentação da ação. Psicose. Facas. Snipers. Desfiles. Fumaça dos bueiros. Subterrâneos. Fogo. Realismo. Abstração. Manipulação da mente. Desfoques. Histeria coletiva. Possessão. Vontade de Deus. Ansiedade. Instabilidade. Paranoia. Manifestações de rua. Zonas escuras. Caminhos sem saída. Filmagem em externas. Precariedade técnica. Revolução. Poesia. 89 Minutos, 1976".

"All The Beauty and The Bloodshed" (Laura Poitras, 2022)

Por Waleska Antunes

Em 1981, Anne Charlotte Robertson decide filmar a sua própria vida. A câmera se volta a ela e é possível ver uma miríade de eventos diversos do cotidiano: uma visita a um familiar, um gato, um dia de inverno, o que há na geladeira. Apesar de costumeiro e bastante simplório, os vídeos são entrecortados com o voice-over de Robertson: os comentários vão desde piadas inofensivas até relatos de sua incessante luta contra a depressão, os problemas de auto-imagem, os internamentos no hospital psiquiátrico, o isolamento auto imposto, os surtos psicóticos, os remédios e a dor das diversas perdas. A esse esforço, foi chamado de Five-Year Diary, um filme de 36 horas que levou 16 anos para ser feito.

A história das artes, assim como a história do mundo, é sincrônica: Ao mesmo tempo, quase geograficamente no mesmo lugar, Nan Goldin se tornava uma das principais artistas do underground americano com o mesmo impulso: documentar a si mesma para entender os seus arredores. Nan trabalha em um outro meio, a fotografia, porém as questões, quando não as mesmas, eram semelhantes às de Robertson: como tentar entender o mundo sob a ótica do efêmero e do brutal?

Usando isso como ponto de partida, é possível dizer que o impulso documental de Nan Goldin (e, consequentemente, de Robertson) em se botar à frente como forma de questionamento do mundo era produto do seu tempo nos anos 70 e 80; Artistas como Yvonne Rainer, Chantal Akerman, Carolee Schneemann e Sophie Calle o fizeram, de maneiras diferentes e em diferentes expressões artísticas – o que é esperado. O pós-guerra, a desilusão e o impulso da segunda onda feminista dão a essas obras uma espécie de reverberação e uma constante busca de um individualismo perdido ou que foi continuamente massificado nos anos 50 e 60.

O que não é esperado é que, dentro dessa polifonia de expressões, todas foram reunidas em um grande grupo: a performance. O performático, por si só, não é demérito algum; no entanto, como é possível considerar performático o que é visceral – e logo, único? Como acreditar que, ao documentar a própria vida, não há tanta verdade quanto na ficção?

Essa é uma maneira inicial para pensar All The Beauty and the Bloodshed, de Laura Poitras. A vida de Nan Goldin é um prisma de muitas faces e no meio delas, o ativismo e a vida se interligam. Como ela diz no início, uma história pode ser contada de diversas formas, mas a memória real é algo que, irremediavelmente, é da ordem do vivido.




Um dos grandes impulsos, tanto de Laura Poitras quanto de Nan Goldin, é o esforço documental; seja vindo de Poitras, que constrói uma mise-en-scène de maneira mais analítica e pautada numa espécie de retomada de um cinema vérité como cerne do seu fazer (principalmente, no que tange às jornadas políticas de suas matérias filmadas como Edward Snowden em Citizenfour, sendo o whistleblower americano em fuga, quanto Julian Assange em Risk, expatriado em uma embaixada), quanto vindo de Nan Goldin, utilizando da própria vida como matéria primordial de sua obra, ambas as intenções podem parecer díspares ao longe, mas algo as une: a necessidade de entendimento de um processo, seja esse processo fílmico, memorialístico ou político perante o mundo.

Ao mesmo tempo, o processo memorialístico estabelece um limite: Nan conta a vida de sua própria irmã, uma rebelde, que enlouquece e se suicida. Sua maior fonte de inspiração ao se rebelar contra o mundo era uma figura misteriosa, mesmo assim, quando tudo se torna doloroso demais para ser dito – e, nessa altura, coisas terríveis foram ditas em voz alta – ela diz chega. O maior ato de alteridade de um bom documentarista é saber a hora de parar. E Poitras interrompe, sem vermos o rosto de Nan, como se estivéssemos resguardando um luto de alguém que acabamos de conhecer intimamente.

O delinear das duas narrativas, entre Nan ativista e Nan memorialista se entrelaçam de uma maneira bastante natural – tal como todas as memórias, o seu valor é a interligação poderosa entre os fatos – e a maior fortuna (e um trunfo de Poitras, se comparados aos documentários supracitados que trabalham unicamente com filmagens contemporâneas) é o acesso aos documentos, fotos e imagens de arquivo que complementam e preenchem as lacunas deixadas – tanto pelos que partiram quanto pelos que ficaram. Nan ficou, mas ela mostra o custo: sua luta contra a indústria farmacêutica de opioides e o próprio sistema de saúde americano (luta essa que vem de anos e, no excerto sobre a epidemia de AIDS nos anos 90 – um trecho muito tocante e assustador sobre as vozes revoltadas de pessoas como David Wojnarowicz que se tornaram espectros reféns de todo tipo de preconceitos) mostra exatamente como o inferno é cheio de boas intenções: uma família inteira dizimou uma nação com opioides e depois depositou o dinheiro em grandes galerias de arte, como se toda a arte do mundo fosse capaz de esconder tanta coisa horrível.

E se na performance (e nesse caso, como um grande demérito) dos Sackler reside toda a hipocrisia do mundo refletida em uma instituição e uma fachada falsa, Nan nos mostra que a arte mora em ser quem se é, de maneira frontal, muitas vezes nua, muitas vezes doente, muitas vezes insana.

E nessa instituição, a beleza e a grandeza residem juntas, mesmo que dolorosas.

Uma equipe muito especial

Por Miguel Haoni

Dois ou mais atores no mesmo quadro, filmados do joelho para cima numa duração suficiente para que se possa ver – ao mesmo tempo – os gestos físicos, as expressões do rosto, as conexões entre os personagens e a dinâmica entre estes personagens e o cenário. Nem muito perto, nem longe demais. É preciso encontrar a distância certa, estabelecer o ponto focal e a partir dele, as coisas podem começar a acontecer. Nos piores casos isso produz uma forma acadêmica, nos melhores isso é o veículo de um estilo sublime. Por trinta anos, Hollywood achou esse ponto e fincou nele a sua bandeira, transformando o plano “americano” na sua unidade gramatical. Com o tempo, porém, eles perderam o que tinham encontrado, de forma que às vezes é mais fácil encontrar a herança do classicismo hollywoodiano nas séries de TV do que nas salas de cinema.

Existem algumas exceções. Uma delas é de 1992, quando Penny Marshall (cineasta vinda da TV) adaptou para o cinema uma dramatização da história da Liga Americana de Beisebol Profissional Feminino. Não que o filme retome sistematicamente o plano americano (apesar da sua abundância) nem que ele se sustente no classicismo da encenação (também recorrente), mas ele nos faz lembrar que essas técnicas são meios e que os fins sempre estiveram do outro lado. Ancorado nas regras das comédias dramáticas de grande orçamento da Hollywood dos anos 90, a lição de cinema de “Uma equipe muito especial” é muito antiga: antes de tudo é preciso ver. Ver corpos e rostos ocupando um espaço, ver as faíscas entre eles. Ver tudo isso ao mesmo tempo.

A luz principal vem da era de ouro. A linha grosseira é a mesma da comédia musical. Geena Davis e Lori Petty, são cowgirls: jovens fazendeiras do Oregon, elas são filhas da América profunda e trazem no seu drama a herança dos faroestes, o desejo pela paz doméstica versus o chamado do dever, o irmão mais forte que se retira heroica e silenciosamente das páginas da história. Madonna e Rosie O’Donnell são as novaiorquinas: jovens operárias, dançarinas, garçonetes, prostitutas, telefonistas, atrizes, secretárias. Filhas da velocidade e da crise econômica, suas raízes são ainda mais profundas e distantes, remontando às comédias ligeiras e aos núcleos cômicos nos melodramas dos anos 30. Mas mais importante que o retrato individual é a pintura do grupo: em torno das quatro existe uma constelação de personagens flamejantes, que deixam um rastro vivo independente do tempo que ocupam na tela. É na dinâmica física e verbal entre as atrizes que o filme ancora sua principal beleza, fazendo reviver filmes esquecidos como The wild party (Dorothy Arzner, 1932) Three on a match (Mervyn LeRoy, 1932), Ladies they talk about (Howard Bretherton, William Keighley, 1933) Stage Door (Gregory La Cava, 1937), Marked Woman (Lloyd Bacon, 1939), The women (George Cukor, 1939). Todo um gênero sacrificado no momento em que Hollywood decide tomar parte no esforço pela redomesticação das mulheres, elegendo a ambição feminina como o oitavo pecado capital.

“Uma equipe muito especial” é também a alegoria desta geração perdida, a das americanas brancas que provaram o gosto emancipatório do trabalho e que, com o fim da segunda guerra mundial, tiveram que abandonar os seus postos e retornar às cozinhas. O mundo do beisebol, o mundo do cinema (ou simplesmente o mundo) é dominado pelos homens. É preciso jogar com as regras deles, mas também passar o contrabando, ocupar os espaços, penetrar no sistema, aproveitar as brechas. Como escreveu a cineasta feminista radical Michelle Citron, no texto de 1988, “Women’s Film Production: Going Mainstream” ao refletir sobre a escolha de “virar comercial”: é preciso celebrar a chegada de uma geração de cineastas feministas que, vindas do underground (mas não só) começam a cavar uma pequena trincheira em Hollywood.

Penny Marshall foi uma delas. Seu filme é um produto muito bem acabado do seu tempo, um tempo em que o cinema hollywoodiano virou drasticamente na direção da infantilização do público. Mas o que normalmente é um defeito, aqui é uma virtude: no filme existe também uma luz secundária, vinda da infância, uma janela para o ambiente escolar, para a hora do recreio, quando as meninas brincavam de vôlei, elástico ou aquilo que na minha cidade chamavam de “cemitério” ou “queimada”. Sentado à boa distância, esta era a única ocasião em que eu me interessava por esportes. O filme respira esta mesma tensão, essa desaceleração no tempo, a energia deflagrada pela iminência de uma briga épica entre duas meninas da sexta série. Muitas vezes esquecemos, mas é nesse pátio que nascem os atletas. “Uma equipe muito especial” nos permite ver isso. Ver tudo isso ao mesmo tempo.