Por Sylvie Pierre
Os Fuzis é antes de tudo um filme político cuja lição não poderíamos evitar.
Face a um mal-estar social que chega ao escândalo — desemprego generalizado e fome devido a seca — o governo toma abertamente medidas (o envio de um destacamento de soldados armados), para proteger os interesses do capital contra aqueles da população. A necessidade de uma revolta é evidente. Mas como encontrar mesmo o embrião de uma tomada de consciência política em um povo obstinadamente resignado à só esperar de Deus a sua salvação? Os movimentos de revolta individual não tem nenhuma chance de mover a massa da população. O de Gaúcho, que não está nem relacionado a uma linha de conduta pessoal coerente, só constitui uma desordem prontamente assimilada, uma efusão de sangue inútil, que se encontrará irrisoriamente recuperada por uma sub-religiosidade popular: o imaginário revolucionário (as balas-relíquias). O único elemento de esperança, no nível político, reside na cena final: essa transgressão espontânea, por uma população inteira, de um tabu religioso, adquire uma significação exemplarmente revolucionária. Resta saber se a prioridade evidente da urgência econômica (a fome) sobre o progresso do espirito racional (o tabu vencido) nas conotações do gesto não enfraquece parcialmente, nesse sentido, a sua validade. Símbolo revolucionário, a morte do boi-deus talvez não seja, afinal, um ato revolucionário. Otimista ou cética, a conclusão não é claramente, nem confortavelmente formulada. Da sombra de onde surge às vezes o sentido, essa escuridão deve fazer compreender que o filme de Guerra, para ser político, não é por isso didático. São didáticos os filmes cujos meios poéticos são postos, sistematicamente, a serviço de uma lição, de algo a dizer. Sua retórica obedece a processos essencialmente transitivos: nós mostramos que, nós provamos que. Eles escolhem uma destinação para si, em direção à qual, é preciso escolher os caminhos mais curtos, correndo o risco de inventá-los.
O filme de Guerra (e talvez com ele todo o bom cinema) diz respeito a um princípio totalmente diferente, cinema intransitivo que diz ele próprio em vez de aplicar seu verbo a um discurso exterior a ele. O conteúdo político de Fuzis — que comporta ao mesmo tempo uma reflexão lúcida e um partis pris sem equívoco (do lado “desses homens que recusam considerar Deus como defensor”) — não é o propósito do filme, mas somente sua situação.
Se ela não recruta as imposições de uma defesa, essa situação deixa no entanto sua marca viva, sob a forma de estigmas, de arranhões. Esses da violência que a voz do Beato, gritante e como que sulcada por ser constantemente forçada, dá o tom: o insustentável, o excesso. Essa voz que escandalosamente convida à resignação e ao arrependimento de homens já prostrados de paciência, de miséria, assume paradoxalmente — pela sua qualidade puramente sonora — o papel de um protesto, de um recitativo indignado.
Igualmente insustentáveis, mas da mesma maneira quase musical, não demonstrativa, todas as cenas gritadas, proferidas violentamente, ofegantes, sanguinolentas, loucas, onde a violência torna-se abstrata pela própria insistência do olhar que a desvela. Particularmente significativa nesse sentido, a cena entre Luisa e Mario, que se torna rapidamente o esquema, totalmente irrealista, não do estupro, mas da pura violência amorosa: evasão, nervosismo, temor misturado ao desejo na moça; no homem, rigidez e obstinação, o processo cego da agressão. O acompanhamento sonoro da cena (um cântico — o som muito forte) que poderíamos interpretar como alusão superficialmente simbólica às agressões eróticas, é somente o símbolo de seu valor: um momento de intensidade puramente musical. Nada de menos gratuito então que os planos que se sucedem, completamente abstratos: em contra-plongée, um travelling desenfreado sobre as saliências do telhado.
Longe de ter a virtude liberatória de rancores descarregados, uma violência desse tipo é herdada de uma afeição verdadeira (talvez como a confusão em Godard); uma espécie de dano, do qual o filme não se liberta, mas que ele assume com grandeza, integrado, sem pornografia de relevo, à escritura. Hemorragia interna, apesar da evidência do sangue. A calma soberana da visão não sofre nenhuma perturbação. Correspondendo a serenidade política de um ponto de vista primeiramente analítico (os soldados, Gaúcho, os camponeses, o proprietário — compreendemos antes de julgar — o todo antes das partes), a escrita sistematicamente adotada é essa da atenção obstinada: longas frases sem elipses, por grandes pans de uma duração distendida até integrar os tempos totalmente mortos. O cinema permite que à custa dessa paciência nasçam verdades (menos ingenuamente assentadas que certas considerações sobre o absurdo em relação ao sol nos olhos). Guerra escolheu a duração pela sua virtude maiêutica: parteira de evidências inerentes à sucessão exata dos fatos. Sem ser ela mesma uma elegância de estilo, essa duração conduz naturalmente — na medida em que Guerra evita, na maioria das vezes, contrariar a continuidade por efeitos de montagem — uma busca evidente em um outro nível de intervenção criadora. Aqui, o das filmagens: ângulos, enquadramentos, movimentos tão perdidamente preparados que um tal grau de elegância só pode fazer renascer um dos maiores mal-entendidos da crítica: só ver, devido a preguiça, um estetismo condenável no próprio prazer, aqui evidente, de filmar. Por que, frente a uma criança morta de fome, o cinema deveria apenas passar envergonhado, crispado de luto?
Poétique et politique foi publicado originalmente na revista Cahiers du cinéma, n° 190, maio de 1967. Tradução: Letícia Weber Jarek.
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