Por Serge Daney
Por que se desprende um resto de emoção desses “seres” fictícios que são Robocop ou Terminator? É que se tratam de protótipos, únicos da sua espécie, cobaias descartáveis, ensaios modificáveis e imagens-brinquedos, e que não existe grupo de pressão ou lobby de verdadeiros Robocops ou de verdadeiros Terminators que viriam verificar se a imagem que é dada de seus semelhantes é “politically correct”.
Esses personagens de fantasia, pura montagem de efeitos especiais, de aparências excêntricas e de humanidade residual permitem, sem dúvida, os roteiristas de contornar o que está prestes a afundar o cinema americano: o direito de toda “comunidade” de supervisionar a menor de suas imagens. Desde a reviravolta dos anos 1980, simbolizada pelos filmes de Lucas, iniciou-se a renúncia gradual dos roteiristas de tocar na representação fílmica de minorias (éticas, sexuais, religiosas, então figurativas). Essas, de fato, tem doravante o poder jurídico de impor uma imagem conforme e “correta” ou, senão, de proibir toda (outra) imagem.
Daí, nos últimos Oscars, a contestação pela comunidade gay do personagem do assassino psicopata (e gay) do Silêncio dos inocentes. Que essa concepção merceeira do grupo torture justamente os Estados Unidos, nesse que foi o próprio país da ficção, da narrativa coletiva e do “what’s the story?” só pode nos deixar pensativos sobre a maneira catastrófica que essa parte do mundo evolui. O que é contestado, na verdade, não é nada menos que o “direito à ficção” (sem o qual percebemos que a democracia se enfraquece rápido).
Então, não reconhecemos mais no cinema — nem na arte em geral — o poder de inventar personagens que existam o suficiente para exceder toda vigilância ideológica que visa enquadrá-los e protegê-los. O integralismo iraniano que fez rebentar, em alguns meses do caso Rushdie, o bastião de belos discursos ocidentais sobre os direitos inalienáveis da ficção ou da literatura como o “direito a morte”, se encontra hoje sob as formas débeis do “politically correct” americano.
Essa história deveria terminar tão mal? O feminismo de há vinte anos deveria necessariamente produzir entre o desejo djanoviano de substituir a palavra history por aquela de herstory? Pois se trata de uma longa história e que foi um pouco a nossa. Há muito tempo, de fato, todas as esquerdas mundiais protestavam (muito tarde, sem dúvida) frente as imagens escandalosas, ausentes, negligentes ou racistas das minorias nos filmes hollywoodianos. Eu me lembro mesmo de ter implicado com Sidney Poitier, o bom negro dos anos 1950 e 1960, sob o pretexto que o contrário do negro mau de Griffith não era forçosamente o impecável “homem de cor” de Adivinha quem vem para jantar, mas um negro que seria um homem, só um homem, mas nada mais do que isso.
Mas os militantes afro-americanos, aliás como todos militantes, já detestavam esse humanismo de arrependido que os privava da revanche de imagem que está no fundo de toda cor dominada e que consiste em exigir (e obter, por via judicial se for preciso) o direito de figurar, por sua vez, nas imagens piedosas de um press-book dominante, seja ele qual for. Hoje, a paixão ideológica cedeu o lugar a uma impecável guerra econômico-jurídica (há relativamente dez vezes mais advogados nos Estados Unidos que na França) que dá a todo “indivíduo coletivo” e a toda comunidade o direito de se constituir reclamante desde que se trate da representação de um de seus membros, seja ele fictício, ou porque justamente fictício.
Em outras palavras, se eu vir um dia um personagem de filme dado como “gêmeos-capricórnio” e que seja um completo crápula, eu tenho o direito de alertar todos os gêmeos-capricórnio franceses para instaurar um processo ao cineasta. Há aí um mercado — o mercado da identidade — que, se lhe fossemos indiferente, nos enganaríamos já que se pode ganhar muito (eu pediria perdas e danos monstruosos) e que permite lutar contra o desemprego (nada além da empresa e da venda do arquivo gêmeos-capricórnio, é trabalho — e dinheiro).
Suite aux mésaventures du personnage foi publicado originalmente na revista Trafic n° 3, 1992. Retirado do livro La maison cinéma et le monde, 4. Le moment Trafic 1991-1992, p. 111-113. Tradução: Letícia Weber Jarek.
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