Por Renato Santos
A propósito de uma sessão comentada de Viaggio in Italia.
Jacques Rivette se dirige àqueles que não gostam muito de Rossellini e, especialmente, de Viaggio in Italia. Escrita em 1955, Viaggio in Italia era seu último filme - também consumação de um período de sua obra, fato que Rivette praticamente profetizou no texto que era, em sua gênese, um artigo a propósito do referido filme e que, terminado, demonstra proporções mais amplas, de estudo e de síntese a respeito da obra rosselliniana.
De fato, Roberto Rossellini havia estourado no mundo em 1945 com Roma Città Aperta e Paisà; ele era um bastião, senão o principal, do chamado neorrealismo italiano. Seus filmes seguintes, Alemanha Ano Zero, Stromboli, Francesco, Europa 51, L'Amore, culminando com Viaggio in Italia, foram recebidos, por muitos de seus então entusiastas admiradores de um cinema novo, de modo cada vez menos entusiasmado, quiçá desprezado - e isto compreendemos através das ferrenhas defesas de seus verdadeiros admiradores: Rivette, Paulo Emílio de Sales Gomes, que resume admiravelmente a questão em seu "Escândalo Rossellini" (reeditado no livro O Cinema no Século) e, essencialmente, André Bazin, mentor de Rivette e dos Cahiers du Cinema que, na mesma época do texto de Rivette (seria interessante saber qual texto veio primeiro, qual orientou o outro), escreve, dirigindo-se à revista de cinema italiana Cinema Nuovo e, particularmente, a seu célebre redator, Guido Aristarco, seu Defesa de Rossellini, de teor bem parecido à empresa de seu discípulo Rivette. Destas citadas defesas, inferimos as razões do amplo rebaixamento de Rossellini a cineasta menor e desinteressante: sua aparente debandada de temas sociais já habilitados, ao abordar o universo burguês (Europa 51), a crônica histórica (Francesco), a tragédia moral e espiritual de um indivíduo face a sociedade (Alemanha Ano Zero, Europa 51), fazendo de seus filmes, cada vez mais claramente, esquematização de ideias muito particulares, filmes teórico-morais idiossincráticos que não agradam nem os padres, nem os comunistas, nem os que esperam do neorrealismo que seja a crônica (melodramática desde o começo, devendo isso inclusive, e muito, a Rossellini) da miséria. Primeiro, ao ver seus filmes tão desprezados por tais críticos, percebemos rapidamente que Rossellini não abandonou nem por um momento as preocupações sociais, apenas por deixar de filmar as consequências evidentes da guerra. Filmar um drama burguês não significa virar burguês (mesmo não sendo Viaggio in Italia um drama burguês: este é apenas um de seus elementos contrastantes), ou filmar um falso milagre, em Il Miracolo, não lhe torna herege.
Bazin defende o cinema de Rossellini e, especificamente, seu neorrealismo, de modo justo contra essas simplificações e má-vontades: o neorrealismo de Rossellini começa com seus filmes sobre a guerra, e não decai, mas culmina com Viaggio in Italia; da decadência simplista à culminância do olhar justo. Rivette não segue seu mentor quanto à defesa de um neorrealismo; esta palavra não cai bem para este hitchcock-hawksiano. Mas retorna sempre, como bom baziniano, à palavra realismo, com sentido quase idêntico, e à defesa muito característica de Rossellini como cineasta moderno por excelência. A caracterização da modernidade de Rossellini, e a defesa, quase absoluta, de um cinema consumadamente moderno (substituindo a defesa de um cinema puro ou o realismo total de Bazin) é de fato o ponto obsedante do texto de Rivette, algo também muito baziniano, por sinal, e que Rivette desenvolve de modo próprio. Mais adiante veremos de que se trata o moderno segundo Rivette.
Carta sobre Rossellini é um texto crítico exemplar, pois também pode ser lido como meta-crítica: ele trata, em seu sistema retórico, do contraste entre o pensamento teórico, eminentemente racional, lógico, e o pensamento intuitivo, elíptico, que dá seus saltos, muito amplamente através da fé ou da poesia, característica, por excelência, da grande crítica (de Bazin e de sua própria) e da arte, naturalmente. Mais: ele atrela o pensamento lógico, que necessita de provas, ao protestantismo, e o pensamento intuitivo, sensual, ao catolicismo, deslocando o debate em termos religiosos (no que o texto perde em força o que ganha em verve, ao mesmo tempo em que essa atualização do terreno de luta é vital para seu sistema retórico), e afirmando-se, retoricamente, ao afirmar Rossellini, como católico. Em resumo, o texto versa sobre os limites entre a construção lógica e a intuição, tomando sempre o partido da última - seu texto sobre Howard Hawks, por exemplo, é da mesma natureza.
Um primeiro ponto que necessita ser desvendado é a própria retórica carregada do texto: curioso, num texto que defende justamente o desprezo pela retórica que pertence a arte de Rossellini ("em Viaggio in Italia, ele não demonstra, ele mostra"). Contrasta também com o Rivette cineasta e sua tendência a certo respeito objetivo, sobretudo a uma humildade artística. O Rivette crítico, ao contrário, é sardônico, cínico, hiperretórico; contudo, apaixonado: a paixão autoriza seu cinismo das letras aos olhos do verdadeiro Rivette.
A carta também é uma meta-crítica em outro sentido: um tour de force de convencimento, realizado pelo Rivette crítico, apaixonado, católico, místico, portanto, em seus termos, não só aos céticos, mas, por sua insistência, nos faz pensar também num convencimento a si mesmo, ao Rivette cético, frio e racional, aquele que precisa de provas, que ainda não capitulou frente à evidência, que deseja secretamente uma justificativa lógica para sua emoção: sua insistência apaixonada nos mostra também essa dúvida, irrelevante, pois já sanada, mas que retroalimenta, contudo, a paixão, que também é o mecanismo de defesa da verdade contra a frieza da morte. Rossellini também é exemplar nesse sentido, pois parece não possuir tais dúvidas: ele foi, puramente, um apaixonado, chave de seu caráter individualista e utópico.
O fundo católico da carta já se desenha quando o autor reserva aos não-rossellinianos a atitude cética de São Tomé, que precisa tocar para acreditar (introduzindo também com essa imagem a identificação entre corpo e espírito, como desenvolverá depois), e para os rossellinianos a fé da bem-aventurança, a evidência, o sentimento, o mistério próprio, segundo ele, dos rituais quase sensuais dessa religião, da carne e do sangue de Cristo que se fazem presentes segundo o dogma e o sentimento fervoroso; o mistério, próprio, da arte, por natureza não-cartesiana, ilógica e, portanto, pouco adequada aos seus espíritos céticos. Para ele, os não-rossellinianos (para voltarmos a primeira definição de seus inimigos) rejeitam o sentimento em relação à arte e, por isso, se aproximam dela de forma equivocada.
O cinema envelheceu dez anos com Viaggio in Italia: o cinema moderno por excelência.
O texto, muito exemplarmente, introduz uma série de intuições assombrosas, que o autor procura demonstrar através de uma argumentação (para fins de adequação ao pensamento dos céticos, os que devem ser convencidos) que, no entanto, deságua sempre numa luminosa proliferação de novas intuições, insights críticos. A primeira intuição, resumidora, apresentada juntamente com a de que, com Viaggio in Italia, Rossellini consuma sua maestria e liberdade (palavra essencial aqui, que retomaremos adiante) é a de que o filme é exemplarmente moderno: a verdadeira ponta da lança da vanguarda e o momento em que o cinema toma posição igual, sintonia, ao mundo de 1955, especialmente ao mundo espiritual do século: Joyce, Matisse, Stravinsky, Rossellini portanto. Para Rivette, Rossellini encontrou o caminho, a "brecha pela qual todo o cinema deverá passar, se não quiser perecer". Queiramos ver nisso, também, um manifesto conciso da nouvelle vague. Rivette zomba, retoricamente, de seu pensamento intuitivo: "apenas um sentimento pessoal". E eis que Rivette praticamente profetiza o desenrolar futuro da carreira de Rossellini, ao afirmar que este se encontra num ponto de maturação, ou primeira maturidade, no qual os discípulos ainda podem seguí-lo: diferentemente de Renoir, Hawks ou Lang, que, neste ponto da história, já atingiram a perfeição de sua arte que se fecha sobre si mesma, dando aos jovens, não uma direção, como Rossellini ainda dá, mas, numa expressão muito feliz, um desespero salutar. Para Rivette, é o mesmo com as últimas obras de Mozart ou Stravinski. Pois bem, Viaggio in Italia, em retrospecto, é nada menos que o ponto de sutura de uma grande cisão rosselliniana, que se dará, contudo, lentamente - no espaço de uma década, passando por seu épico indiano, alguns filmes comerciais e culminando em sua fase "fechada em si" dos filmes didático-históricos para a televisão, ambientes irrespiráveis, o desespero salutar da lúcida velhice artística, também ele, exemplar.
Henri Matisse: liberdade e autonomia das formas.
A argumentação da modernidade de Rossellini, como dito, será levada a cabo através de novos insights críticos e identificações: a comparação a Matisse, a dos tempos modernos à adolescência, a reminiscência do Goethe da descrição objetiva e da vida exemplar, a identificação do senso de esboço e a realização cinematográfica do gênero do ensaio.
Henri Matisse, o pintor do olhar moderno sobre a eternidade. Rivette, mais uma vez, pede desculpas à lógica por sua explicação pantanosa, intuitiva, para tal comparação, a primeira vista quase absurda; bem detectamos quase um desejo fracassado de explicação aristotélica, teórica mesmo, de tal comparação, que não deixaria dúvidas; mas ela não é necessária, ela é, na verdade, irrealizável; Rivette o sabe, e a realiza sob os termos justos - a força desta comparação precisa ser sentida, reconhecida, vista, evidenciada, no lugar de ser destrinchada ou analisada.
A primeira argumentação, bastante sensata, na verdade, é, justamente, a da sintonia de ambos com nosso tempo e o ponto central de todos os três (o mundo moderno, Rossellini e Matisse) se encontrando na simplicidade de meios. O concretismo da eficaz arquitetura Bauhaus e cia. encontra a essencialização figurativa de Matisse e o englobamento, redução cênica de Rossellini. Tudo se torna limpo, luminoso, ventilado (digamos, para Viaggio in Italia; pois a escrita nervosa de Europa 51 e, especialmente, Alemanha Anno Zero, ao contrário, constitui fornos morais de ar irrespirável; o que é irrespirável, já, em Viaggio in Italia, é a relação do casal - o contraste com a luz e a forte influência telúrica da cidade de Nápoles, passado e presente, é o que coloca o pequeno drama da incomunicação burguesa de Bergman e Sanders em perspectiva e enquadra sua mesquinhez). Basicamente, Rivette defende o despojamento como a marca de nosso tempo e, especificamente, de seus artistas-chave.
Rivette introduz a palavra Realismo, como que identificando-a ao despojamento (algo que retoma no fim do texto, de modo mais obscuro e categórico). Isto é bem discutível quanto a Matisse; temos em mente, porém, o significado múltiplo do termo. Em Rossellini porém, por ser cineasta, a ligação cai como uma luva, dentro do sistema baziniano: uma redução de meios (o que não quer dizer descontrole, mas, inclusive, um maior rigor) aproxima o cineasta da essência de seu meio, ou seja, a própria realidade (fotografada, sim, mas realidade, marca luminosa, ontologia). Rivette praticamente cita Bazin ao afirmar que Rossellini é realista justamente por sua estilização globalizante, sintética, que "não separa, por amor, o que a realidade uniu".
Mas a questão realista, diferentemente de Bazin, é secundária em Rivette. O ponto, em Rivette, se desembaraça do realismo para se encontrar, bem definido, no eixo do despojamento próprio da liberdade.
Pois em Matisse há o seguinte: a interdependência entre forma (linha) e cor; que se realiza plenamente em seu último período, o dos recortes de papel colorido: nunca a linha e a cor foram tão independentes entre si, e ao mesmo tempo, além de se realçarem uma a outra, são a mesma e única coisa, uma mesma forma. Essa autonomia entre os elementos, que no entanto formam um todo equilibrado, único, próximo de um alegre repouso dinâmico, pode ser sentido como uma nova realização, inclusive, da mesma interdependência das formas encontrada na arte renascentista, esta como teoriza, por exemplo, Wolfflin, em sua definição de pluralidade interdependente, dentro de um todo fechado; Matisse e Rossellini são, inclusive, humanistas do século XX, e anti-barrocos: nada da falta, do contraste, da incompletude, da dependência de cada forma à outra. Em Rossellini, defende Rivette, cada movimento de mise-en-scène tem autonomia perante todos os outros; ele caracteriza o olhar de Rossellini como um lápis, como um traço de Matisse, natural e único, não trabalhado, mas completo na gênese, uma vez feito. Essa linha, "linear e melódica" (termos de Bazin) começa e termina como começou, deixando uma marca, na tela ou no espectador: uma marca que "pesa, engaja". Bem se vê a defesa da intuição, igualmente, na arte.
Ainda cabe constatar, como o constata, segundo Oliveira Jr., Jacques Aumont, que a defesa de Rivette do modernismo não é, como é comum, como contraste a um classicismo: o modernismo, para Rivette, aqui, parece ser a única escolha justa, contra um mau cinema; dentro dessa estrutura, moderno é sinônimo de justo, e seus exemplos são, inclusive, muitos dos filmes que hoje chamamos de clássicos (vide seus autores preferidos, como Hitchcock, Hawks, Renoir). O ponto, na verdade, é muito simples, praticamente tautológico: um grande cineasta é grande pois é moderno, e vice-versa: ou, se ele é grande, se sentimos a evidência de sua grandeza, sentimos igualmente a marca e o caráter de nosso tempo.
E a intuição também é o que dita o equilíbrio do conjunto, ou melhor, o leve desequilíbrio, contido, uma leve incerteza do olhar, mas que só revela um equilíbrio secreto maior. No decorrer desta argumentação, fica claro também a oposição entre céticos e rossellinianos: rossellini seria o cineasta da intuição por excelência. Essa assimetria discreta nos movimenta para frente, diz Rivette, e que, ao contrário das pesquisas de simetria estática, é a única que convém ao cinema - outra bandeira da modernidade, o equilíbrio dinâmico.
A terceira e a quarta identificações relacionadas à modernidade e a Matisse realizam síntese ainda maior: Rivette introduz a identificação de ambos os artistas com uma fase da vida, a adolescência, no que ela tem de "gesto estudado, mas que nasce, no susto", uma conjugação de constrangimento e graça, presente na gênese estilística de ambos; e isto se resume na palavra mais esclarecedora, decerto: o esboço. Segundo Rivette, o senso de esboço, no que tem de síntese e revelação do essencial ("que resume vinte estudos aprofundados") é o que caracteriza ambos os artistas, bem como ao nosso tempo, adolescente, confuso. O fator da indecisão que dá às pinturas de Matisse, esse imponderável traço tão gracioso, como o desenho maduro que não se esquece nunca das garatujas infantis, de uma espécie de humildade lúdica frente o modelo das formas visíveis, e que no entanto, devido a essa espécie de candidez, vê mais longe, vê melhor: rende-nos uma imagem esquematizada e mais clara da realidade do objeto. Uma arte adolescente, no melhor dos sentidos: "a poesia do fogo". Essa arte, em sintonia com o tempo, é uma arte fraternal, pois espelho, que revela a essência de nosso estado cultural, estado de alma.
A última comparação com um traço cultural eminentemente moderno é a feita com o gênero ensaístico: uma variação da comparação com o esboço, acrescida agora de um sentido de pesquisa e flanância intelectual. De Matisse, Rivette toca agora em Manet e Degas; e aproveita para criticar os velhos exegetas do cinema puro dos anos vinte: ainda vivos, esses antigos jovens, segundo Rivette, não reconhecem a modernidade de Rossellini, eles que defendiam a atualização do cinema em termos de vanguarda. O que se revela, no entanto, é uma pura mudança de paradigma, uma meia-volta: o cinema puro de Rivette é aquele baziniano, em tudo diferente da teorização do cinema puro nos anos vinte,que tinha por horizonte a abstração, no lugar do respeito ontológico à realidade visível. O que Rivette faz não é notar uma incoerência da geração anterior, mas uma provocação: confrontando sua própria concepção à outra, anterior, ainda viva, que possuia ainda, no momento, toda a autoridade.
Liberdade e ordem do mundo.
Não é só ao mundo moderno que Rivette se refere: a comparação seguinte é com Goethe; a primeira via desta comparação é a do sereno despudor: Rossellini é tão despudorado quanto um ensaio de Goethe ou Montaigne, pois seus filmes falam de sua própria vida, se aprofundam cada vez mais em sua vida cotidiana: Joana d'Arc (que não pude ver) "se trata mais de um documento sobre sua esposa, Ingrid Bergman, que uma adaptação"; o relacionamento burguês de Viaggio in Italia é um retrato de sua própria própria relação conjugal. Vemos portanto um cineasta falando, sobretudo, de si mesmo: a liberdade, novamente. Uma vida exemplar, uma cidade (Nápoles) providencial: é a cidade certa para a análise dialética do filme, para o conflito desenvolvido em Viaggio in Italia: a cidade que guarda em si esse segredo cristão, esse mistério que perdura e emerge de todos os lugares, do passado arqueológico, do cotidiano. Para Rivette, a vida de um artista como Rossellini é uma vida estética: ela própria se identifica à sua arte, constituindo-se assim numa liberdade conquistada.
Rivette evoca, ainda de Goethe, sua lucidez e franqueza, o que ele chama, como um conceito definido por Goethe que não tive a oportunidade de esclarecer, de descrição objetiva: uma "maceração do real" que nos rende a forma mais simples e franca de atingir a natureza de um elemento através de sua representação; ponto importante aqui para a defesa do cerne da arte cinematográfica, para Rivette: a expressão do espírito, através, puramente, da matéria, o que é, também, a identificação de ambos: o corpo se torna puro devir espiritual, e desemboca nas longas sequências, que fecundam todo o filme, impregnam-no de reflexão contida, de flanância nos filmes de Rossellini - o caso mais paradigmático sendo os quinze minutos finais de Alemanha, ano Zero: a indecisão da caminhada sem fim de Edmund, que desenrola para o abismo moral da culpa confusa na mente infantil, cada vez mais acometido pela fome e pela vertigem; a deambulação na verdade constitui a própria natureza dos filmes de Rossellini: "seus personagens, mordidos pelo demônio da mobilidade" (Bazin) procuram, confusamente, alguma coisa, uma resposta, uma epifania: e por isso se mexem, caminham, procuram sem encontrar, ou melhor, encontrando aos poucos uma resposta ao horror, como Irene em Europa 51, e a própria epifania, católica ou ateísta, do final de Stromboli. O espírito confuso, portanto, se torna sempre ação, através dela o compreendemos, com todo o seu índice de mistério.
Nesta altura, a argumentação já se desfez do sardonismo e se apresenta como francamente apaixonada, pura intuição. Rivette atinge uma ideia que tanto ele como seu companheiro Éric Rohmer, outro rosselliniano, desenvolverão conscientemente em seus filmes: a alquimia do acaso, ou melhor, da providência. Rivette fala dos poderes do olhar de Rossellini, "um olhar ativo, que não deforma, nem condensa, mas captura". A própria instância criadora está, no processo mesmo do filme, empenhada numa busca, que se dá no confronto com o mundo, próprio do cinema. Assim Rivette fala dos "seres submetidos sem saber a nosso olhar apaixonado", possivelmente se referindo ao que há de cinema direto na alquimia rosselliniana, o do olhar surpreso para a câmera, e do "sentimento mesmo do futuro, na trama impassível daquilo que dura". Voyeurismo, vidência. Aqui, a altitude mesma se tornou muito alta; a intuição já não pode ser esquematizada para a compreensão racional, e só é capaz de se exprimir em termos poéticos. Rivette, obscuramente, nos fala de teleologia, e convém lembrar da epígrafe, retirada de Charles Peguy, que deve ser sempre divisada, no texto, pois resume tudo: a ordenação encobre, a ordem reina. Voltaremos adiante à epígrafe. O cinema de Rossellini, ele mesmo, se torna aqui, uma busca da comunhão com Deus.
Solidão, encarnação.
Rivette também se dirige contra a debilidade do cinema de seu tempo, o medo do reconhecimento do gênio, que os coloca à margem e situa no centro da atenção o cinismo, o refinamento inútil, a moleza de espírito (o amor em Rossellini, para Rivette, não é erótico nem angélico, se encontra mais fundo, sensual) - Rossellini é o oposto de tudo isso, ao mesmo tempo em que não parece notá-lo. Rossellini tem a melhor das intenções, mas simplesmente não foi feito para essas pessoas; Europa 51 é um filme teórico e santo como sua protagonista: o filme, portanto, é vítima das mesmas pessoas que retrata e critica: para o mundo moderno, São Francisco de Assis seria um louco, eis a tese do filme, que é assim, naturalmente, descartado pelo mesmo mundo moderno. Irene simplesmente pula para fora de nosso tempo, ao encontrar a resposta na santidade, e não somos capazes de acompanhá-la; ela é assim trancada no sanatório. A paixão, mais uma vez, Rossellini e Rivette nos mostram, não tem seu lugar no mundo moderno; é descartada como assunto menor (a própria igreja considerou a fé ilimitada da personagem de Anna Magnani em Il miracolo, mais especificamente suas consequências, como heresia). Rivette, portanto, está usando as armas do inimigo, a retórica, como um super-Rivette capaz de se apropriar de algo alheio de modo a melhor atingir seus fins, ou então, mais simplesmente, não tendo conseguindo encontrar, durante a escrita, outra forma de fazê-lo. Ele, enfim, como que critica tal proceder: "a dialética é uma moça que se deita com qualquer pensamento, e se entrega a todos os sofismas". Chegado nesse ponto seu cinismo já se evolou quase que completamente do texto, que atinge a franqueza que admira em Rossellini, formulando, por exemplo, em função de Viaggio in Italia, a famosa frase, ecoada em ou eco de Bazin: "Rossellini não demonstra, ele mostra".
Para Rivette, como para Bazin, os personagens de Rossellini se encontram em becos morais e existenciais, numa solidão ontológica, irredutível, "que apenas pode ser revertida através do milagre ou da santidade". Voltando ao já discutido a respeito da deambulação, Rivette fala do "brusco repouso dos seres, destes ensaios imóveis diante da fraternidade impossível, súbita lassidão, que os paralisa um momento antes da ação". A ação rosselliniana é a da dúvida, da reflexão. Uma fadiga impaciente, giros sobre si mesmo, que por fim vencem o muro da inércia e do abandono, "esse exílio do verdadeiro reino", através da epifania (ou da morte). É a flanância espiritual e física, pois cinematográfica, em busca de algo que não se sabe o que é, de uma revelação, da comunhão, portanto. A personagem de Il Miracolo (assim como os de Francesco) nesse sentido, é exemplar por meio do contraste: ela é pura comunhão, do começo ao fim.
No primeiro parágrafo da 15ª sessão do texto, admiravelmente longo, encontra-se um resumo. A liberdade da paixão, em sintonia com a ordem do mundo, reconhece as provações e dificuldades como remédio e é fortalecida pela providência. A arquitetura do acaso é identificada, neste terreno católico, à teleologia geral. Olho moderno, espírito moderno: para Rivette, o catolicismo também é sinônimo de modernidade. Aqui temos mais uma comparação, uma caracterização desta modernidade, a fazer companhia junto às noções de esboço e de ensaio: o ligeiro abandono, mais belo que o preciosismo da busca dos gestos precisos (retóricos, afetados, portanto). Frente aos personagens Rossellinianos, que são menos do que interpretam, "depois deste sabor amargo (deste cansaço, desta pressa), toda gentileza perde a graça e a memória".
Eis a tese: "com Viaggio in Italia, o cinema envelheceu dez anos", ou seja, com tal sopro de juventude madura, a velhice do cinema feito no momento se tornou óbvia, evidente. Aqui temos o arremate de um manifesto da nouvelle vague que esse texto também realiza, através do anúncio de uma escola Rossellini, e o retorno ao termo realismo, noutra identificação sua com o despojamento: o realismo é um estado de espírito: pois que a linha reta é o caminho mais curto de um ponto a outro.
Voltemos à epígrafe: ela estabelece, se coloca na linhagem de uma dialética sempre retomada, e que tem seu início em Bazin: sua oposição entre os cineastas da imagem e os da realidade, ou a oposição (Vecchiali, apud Kerniski) entre estilo e escritura; em Rivette, tal oposição se investe das cores católica e baziniana da humildade frente a ordem do mundo e a corrente da teleologia. A ordenação (retórica) encobre a verdade, nos afasta da franqueza, do que é essencial. A ordem, que já reina, é o modelo para a criação artística que, paradoxo apenas aparente, encontra nela a liberdade total, pois é a felicidade da conformação com o mundo (o que de fato, como já discutimos, rende muito frequentemente a solidão no mundo social - vide a incompreensão de Rossellini).
A encarnação: Rivette volta ao sardonismo: Kant e o protestantismo têm as mãos puras, mas não têm mãos - ou seja, não têm cinema.
*Lettre sur Rossellini, Cahiers du Cinema, nº 46, abril de 1955, pp. 14-24. Tradução editada no Brasil por Maria Chiaretti e Mateus Araújo no catálogo da mostra Jacques Rivette - Já não somos inocentes, disponível online aqui.
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