O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A Cidade dos Piratas

Há filmes dos quais não estamos certos se não foram sonhados. São estes, talvez, os mais belos. Tal como esta nova aventura do capitão Ruiz no país de nossas crenças.

por Serge Daney

Tome uma criança e assegure-se de que sonha. Desperte-a e conte-lhe uma história. Embale-a com sua mais bela voz off. Faça-a insidiosa, não se esqueça da trilha sonora. É preciso que, adormecida novamente, a criança complete sonhando a história que lhe fora insuflada. É preciso que, ao despertar, ela sinta que foi a história que a escolheu, a ela, e não o inverso. Uma história imortal, título de um dos últimos filmes de Welles; mas toda história é imortal, dizem as de Ruiz. Disto as delícias, depois o excesso de delícias, depois o terror.

Mas se você não dispõe nem da criança adormecida, nem do tempo em suspensão, nem da voz que embala, nem de talento para improvisar (isto é, a arte de ter sempre a última palavra) não insista e renuncie a imitar Raúl Ruiz. Só ele parece ter guardado o segredo e o gosto para tais coisas. Desde o silêncio de Welles e a partida de Buñuel para a Via Láctea, fala-se muito de um retorno do cinema à ficção. Mas muito pouco do retorno da ficção (como se diria retorno do reprimido, ou retorno de Frankenstein). Os filmes de Ruiz são relatos, e possuem um caráter iniciático. Espiralados, trucados, intrincados ou maléficos, possuem um charme louco. Mesmo se foi preciso esperar dez anos (da queda de Allende em 1973, que exila Ruiz de seu país natal, à estreia, ano passado, de As Três Coroas do Marinheiro) para que um público de repente menos insignificante tombe sob este charme e marche em direção desta loucura.

Isto malgrado a reputação dada a Ruiz de hermetismo e de intelectualismo, que prova tão-somente que, logo que confrontados a um verdadeiro barroco latino-americano, os franceses têm dificuldade em admitir que sua própria tradição de filmes-labirinto, jogos de quebra-cabeça ou do Ganso, à Robbe-Grillet ou Resnais, não foi decisiva. Dito isto (e uma vez dito, não diremos mais, é uma promessa: na próxima, consideraremos Ruiz já conhecido, senão reconhecido) A Cidade dos Piratas, que faz quase um par com Três Coroas de um Marinheiro e que evoca esse filme mais ou menos bem sucedido que foi O Território (três filmes rodados em Portugal) possui sua tonalidade própria, seus truques íntimos, seus sucessos fulgurantes e suas falhas secretas. Em suma: um filme excelente, onírico, próximo do inenarrável e totalmente consumado.

Por onde começar? Retomemos a metáfora do adormecido. Estamos no Sul, defronte o oceano, sujeitos a todos os paradoxos. Em seu quarto, Isidore está adormecida. Sim, adormecida, pois trata-se de uma mulher. Sua mãe, que mal parece mais velha, acorda-a dizendo: "Dormes, Isidore?". "Conta-me uma história", responde a vozinha de criança de Isidore. Sobre uma mesa, ao lado, algum dinheiro deixado pelo pai. Ele abusou de novo de Isidore, e acaba de lhe pagar. Esta cena não dá, evidentemente, ideia alguma dos incontáveis acontecimentos que povoam esta Cidade dos Piratas, mas todo o Ruiz, de certo modo, se encontra nela. Como Buñuel, Ruiz se compraz com as mais simples permutações lógicas. Perversão de nome e de gênero, de idades e de amores, do antes e do depois. Incesto, relação social feita jogo de palavras ou "jogo das sete famílias". Além disso, essa "cidade" não é mais que uma ilha, salvo que não tem senão um habitante que interpreta todos os papéis. Para aqueles que dependem do conforto da identificação (quem é quem?) Ruiz é o menos seguro dos guias. Ele não acredita na identidade, não acredita senão nas cartas [cartes, tanto cartas de jogo quanto mapas geográficos]. Marcadas, de preferência.

Isidore beija um policial de modo que o formato vermelho do beijo revela ser aquele da famosa ilha dos piratas. Um homem explode os miolos de tal forma que um naco destes, ejetados num rio de sangue, desenha a forma da ilha. No começo, nada a não ser enigma; no fim, nada a não ser resíduo. No meio tempo a bela Isidore conhece um menino, mas este anjinho do mal é um grande criminoso. Ela se torna sua noiva e cúmplice; e segue-o até a ilha. Isidore retornará, sim, mas em que estado! Adivinhamos que a pequena palavra que está mal e deslocada no universo ruiziano é o verbo "ser". Está claro que nada se ganha em querer relatar A Cidade dos Piratas. Está claro que nada está claro.

Entretanto. Quanto mais nos desencorajamos em identificar aquilo (aqueles) que vemos na tela (ao ponto em que enfim gritamos mentalmente "puxa", e nos roça o tédio), mais Ruiz se compraz com a aparência das coisas, esse peso material, anedótico, que guardam apesar de tudo.

Dois macabeus putrefatos (mais orgulhosos ainda) tomam um chá Durassiano, um bocejo é filmado do ponto de vista da glote, detalhes em primeiríssimo plano carregam a imagem sem razão, uma caveira vira bola de rugby; toda uma ala da pintura espanhola do século XVII, aquela das Vaidades, do Valdes Leal dos Hieróglifos de nossos fins últimos, está prestes a se animar. Sob a pulsão dos vermes [vers].



De todo modo, quanto mais renunciamos saber em que tipo de filme caímos (ao ponto em que, lá pelo meio, cansados e lassos, achamos que já é o bastante) mais Ruiz se distingue em evocar, com alegria constante, o fantasma dos filmes B americanos, de Cocteau, ou dos filmes da inglesa Hammer. Há um pouco do John Mohune do Moonfleet de Lang no menino de A Cidade dos Piratas, como há um pouco de Tourneur (aquele de A Morta-Viva) no tom alucinado de algumas vozes. Como se, para se desculpar da abracadabrância de sua própria narrativa, Ruiz a vestisse com a memória dos relatos com os quais tivemos tão pouca dificuldade, na infância, em nos sentir em casa.

Quanto mais nos convencemos de que a linguagem, ela também, está encurralada, mais Ruiz é capaz de fazer falar os atores com um tom tão doce, com este nadinha de amuo desolado na voz, que torna perturbadoras as frases mais simples. Há poucos cineastas, dentre os que filmam em "francês", que capturaram melhor a música do "era uma vez..." francês, o musical que abre as portas de todas as histórias. Há poucos compositores que, melhor que Arriagada (cúmplice regular de Ruiz) saibam inventar notas dignas de um Ravel hollywoodiano e irônico. Enfim, quanto mais aceitamos seguir Ruiz em sua folia de autor, mais é preciso que nos rendamos à evidência: ele está cada vez mais seguro na escolha de seus atores. Em A Cidade dos Piratas, Anne Alvaro (Isidore) e Melvil Poupaud (o menino) estão particularmente bons.

Tudo isso, vocês dirão, tem um nome. Sim: sedução. Mas é a forma que seduz. Resta o fundo. Ruiz não é um esteta oco. Há um sentido em suas histórias, que creio terrível. Um fundo de imundície e promiscuidade que nenhuma poesia poderia silenciar por completo. Os cineastas - já dizia eu no começo (por provocação) - perderam quase todos o senso do relato. Mais ainda, o único que o conservou intacto (Ruiz) realizou sua loucura pessoal. O espectador "cartesiano demais" estará menos desamparado diante de um filme como A Cidade dos Piratas se se dignar a ver As Três Coroas do Marinheiro (que passa ainda, numa sala apenas, em Paris). Neste filme, Ruiz expõe em que condições uma história pode se tornar imortal. Ele precisava de carne fresca. Aquela daquele que contará tal história como se acreditasse que esta não existisse senão para ele. Aquela daquele a quem tal história foi contada e que pensa (erroneamente) que esta não o alcançará jamais. Tornada imortal, a história não cessa de retornar. Em A Cidade dos Piratas, numa primeira vez como filme de aventura, numa segunda como teatro Cocteau-ante, numa terceira como seminário teológico, numa quarta como colóquio entre mortos.

Viver, é sonhar uma história; morrer é contá-la. Resta a eternidade para apodrecer.

Publicado no Libération, a 25 de fevereiro de 1984. Editado em Ciné Journal, vol. II. Traduzido: Eduardo Savella.

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