Por Camille Nevers
O Vale Abraão. A primeira imagem é uma passagem ao ato muito física. Um momento, o vale se abre aos nossos olhos, visto de cima em uma paisagem escarpada com, no fundo, um rio, a voz do narrador se eleva, ele apresenta o lugar ao mesmo tempo que a história tão logo o atravessa, e no instante seguinte estamos sentados no trem que ali penetra. Vale Abraão é um filme erótico.
Mas o erotismo é pouco banal. Sem corpos que se agarram, nem as carícias que eles trocam, nem um único beijo langoroso, tão pouco de nudez revelada, e nenhuma palavra de amor. Parece que não há motivo para colocar o quadrado branco [2].Tudo estaria ligado, na verdade, como nessa imagem de abertura, à intimidade de uma relação entre tempo e movimento: raramente nós pudemos ver uma tal “harmonia”, essa atingida por Manoel de Oliveira na organização musical dos lugares, dos personagens, da narração, dos sentimentos, das sensações que ele coloca ao nosso alcance. Adaptação de uma adaptação de Madame Bovary escrita a pedido do cineasta por uma escritora portuguesa, Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão retraça o percurso de sua heroína que se nomeia igualmente Ema, que casa-se mesmo com Carlos, um esculápio sem relevo de fato, mas Carlos de Paiva. Para se aproximar da mulher, Oliveira toma suas distâncias com o livro (Flaubert não é mencionado nos créditos), mantendo somente um nome do qual foi retirado um “m”. Aliás, nós vemos no começo do filme a jovem Ema ler Madame Bovary, e então ao menos as coisas são claras: o cineasta se interessa mais pela sua leitora que pelo livro do outro... É somente nela que devemos estar atentos, é dela que é feito o filme. Oliveira se inspirando em uma história conhecida de cor, em uma heroína instalada no imaginário romântico, os maneja com um ar experiente nas pontas dos dedos e sobre o qual se torna possível improvisar, para que, do conhecido, surja o novo. Como essa pequena música que cada um tem na cabeça, Sonata ao luar de Beethoven, que literalmente acompanha Ema, e a qual respondem outros “luares” para outros personagens. Se esse filme com esses acentos musicais e formas profundamente femininas encobre todas as gamas de um sentimento erótico, é antes de tudo porque Oliveira permanece obstinadamente um cineasta lírico – e ainda mais se ele filma uma Ema -, bem longe de uma forma de cinema romanesco que frequentemente se assemelha a um livro ilustrado, ou, no melhor dos casos, a um exercício brilhante de estilo no seio do qual a narrativa não tem praticamente outra razão de ser que pontuar uma visão a priori poética. A grandeza do lírico, é que na base de sua imagem sempre lhe é necessário o texto escrito com o qual ele pode, em seguida e à vontade, compor. Um filme concebido como uma música de partitura, mas a partir do livreto.
No Vale Abraão, nós “ouvimos” o livreto apenas pela voz sensual de um narrador invisível, nós “vemos” a partitura a partir dos movimentos íntimos de personagens postos em cena e “sentimos” a música do cinema de Oliveira, tudo ao mesmo tempo. Numa entrevista recente[1], Manoel de Oliveira observou que ele era provavelmente o único cineasta ainda vivo (e em atividade) da época do cinema mudo... É sem dúvida por causa disso que o seu cinema, que faz da imagem uma experiência do tempo, um espelho onde o reflexo do personagem vem nos olhar diretamente nos olhos, como uma foto de recordação, é o trabalho contínuo de uma memória no presente. Nisso, ele é o único, verdadeiramente, que nos faz ver a vida e a morte ao mesmo tempo. E é nesse aspecto, acima de tudo, que o filme é absolutamente erótico. Lugar chamado erógeno: o Vale Abraão. A vida de Ema só é apaixonante pois essa não está mais lá no momento em que eu a vejo, já ausente, seus grandes olhos azuis sempre alhures, distantes, e uma perna já rígida (a expressão “ter um pé na cova” encontra aqui a sua bela imagem). Assim, da manca, figura erótica por excelência, Oliveira se apodera também da sua batida musical, Ema manca “no ritmo”, e esse movimento do coxeio marca o tempo do personagem desfasado dos outros, um “estado de espírito que balança” até o último instante de deslocamento no laranjal que se conclui no píer de madeira – um travelling para trás no ponto culminante, um dos únicos movimentos de câmera que a mise en scène se permite.
Contra todas as ideias preconcebidas, no lugar de nos convidar a uma educação sentimental, e ao invés da sedução dos sentimentos, Manoel de Oliveira apela a um cinema das sensações. No Vale Abraão, só há cores (todas aquelas da natureza), sons (todos os do mundo), odores (como os charutos que Ema respira), música, gestos, formas, deslocamentos. À imagem desse quarto arrumado por Maria de Loreto, a mulher de letras, para que seu marido possa receber suas amantes com todo conforto possível, o filme abriga o centro dos sentidos. A fim de que a sensualidade do espaço anime-se em movimento erótico, Oliveira, muito além do simples dispositivo teatral, filma “as entradas e as saídas”... O movimento secreto e perpétuo, a relação sexual que passa da vida à morte, do momento em que entramos àquele que saímos. Vale Abraão poderia se resumir a uma sucessão de entradas em cena, onde fazemos apresentações, como aquela dos três criados na cozinha, e de saídas de cena, como o último olhar pesado que nos dirige a velha tia se benzendo, de chegadas e partidas, como as várias viagens de Ema ao Vesúvio ou o plano inacreditável da partida da muda Ritinha, sua trouxa sobre a cabeça, de idas e voltas amorosas, de idas e vindas nas moradas burguesas. Em Oliveira, toda “entrada no plano” ultrapassa a alusão técnica e se transforma em atividade física: como o momento da chegada de Ema no baile, que marca sua entrada no mundo, sublinhada soberbamente pela maneira com a qual ela “faz sua entrada”, primeiramente em segundo plano, que sucede o instante de hesitação antes de passar ao salão...
Os múltiplos personagens de Vale Abraão se encontram sempre entre duas portas, ou na soleira da porta, de frente para uma janela aberta, no meio de uma refeição, no centro de uma discussão, frente a um espelho, etc. Ema é o corpo feminino do entremeio, entre dois amantes, entre dois lugares, entre sua vida sonhada e a realidade de sua existência, isso lhe dá esse ar inatingível, entre a vida e a morte. Esse movimento se inscreve completamente e com muito humor desde o começo, quando ela caminha da casa de seus pais até o fundo do jardim, voltado para a curva de uma estrada mais abaixo, de onde ela pode enfim “deslumbrar” com sua beleza os motoristas de passagem, a tal ponto que há acidentes graves e “mesmo mortos”… Mas a sociedade dos homens se certificará de pôr em boa ordem essa situação. E é essa “boa ordem”, a própria negação da vida (e da morte), da qual Ema quer se livrar, sem conseguir completamente.
Mas o erotismo de Vale Abraão, eu creio, encobre um último mistério. Aquele do andrógino. A jovem Ema cujo dedo separa e depois se afunda nas pétalas de uma rosa. Ou uma certa alusão à mulher pouco frequentável que Ema teria conhecido no decurso das suas viagens ao Vesúvio. Ou Ema, que contemplando seu jovem amante violinista de costas, acha que ele se parece com uma mulher. Ou então a cena verdadeiramente engraçada durante a qual Ema agrada seu gato sobre seus joelhos, o que perturba tanto Carlos (que traga como um louco seu charuto) que terminará por atirá-lo longe – em cima de nós. Ou ainda o único e último abraço trocado com a silenciosa Ritinha. Sem falar dessa discussão em que se fala do mito platônico do andrógino cortado em dois à procura da sua metade (e da qual o homem conservaria o traço inútil: para quê então servem esses mamilos?). Sem a mínima perversidade, simplesmente com a maior inquietação, o filme de Manoel de Oliveira é do início ao fim colocado sob o signo do feminino, de um olhar feminino pousado sobre o mundo, o olhar de um cineasta que abraça literalmente o movimento erótico infinito do tempo no espaço, e não poderíamos nós dizer que a história é aquela de um tempo antigo que veio visitar o lugar do presente, um cinema que dá vida e realidade às fantasias. Vale Abraão de Manoel de Oliveira é um dos filmes mais belos que existem.
[1] Entrevista publicada no n° 466 da revista Cahiers du Cinéma.
[2] NdT: Na televisão francesa, é frequente o uso de um quadrado branco para sinalizar a classificação indicativa alta de certas emissões, não recomendadas às crianças e pessoas sensíveis.
Les fantasmes d’Ema foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, nº 469, junho de 1993. Tradução: Letícia Weber Jarek.
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