Por Jean Luc-Godard
(Discurso feito por Jean-Luc Godard no recebimento do prêmio Adorno em Frankfurt, no dia 17 de setembro de 1995. Transcrição de Klaus Theweleit.)
(Discurso feito por Jean-Luc Godard no recebimento do prêmio Adorno em Frankfurt, no dia 17 de setembro de 1995. Transcrição de Klaus Theweleit.)
As frases que seguirão já foram ditas, há muitos anos, em uma conversa com o senhor Serge Daney, na ocasião dos primeiros trabalhos relativos a "introdução à uma verdadeira história do cinema, a única, a verdadeira."
Era um lugar, o cinema, era um território. Se eu tenho uma lembrança das projeções da avenida de Messine, é porque era um lugar sem história alguma, nem mesmo a descoberta de um novo continente, porque o próprio sentimento desta descoberta era algo de profundamente desconhecido.
Eu conhecia Spengler e Husserl, mas não Murnau, e ninguém me havia dito que eles moravam no mesmo país que Bismarck e Novalis. Eu conhecia Lulu, mas era aquela de Alban Berg, não a de Canary Murder Case. E eu não sabia que os sons de Sacre du printemps eram contemporâneos às imagens de Vampires.
Nunca tínhamos visto isso. Um mundo que não tinha história e que, entretanto, passava seu tempo a contá-la. E sobretudo, fora da leitura. Porque a escrita, desde Rimbaud e Mallarmé, era o terror. A página branca era inimiga. Por que continuar escrevendo depois de Joyce e das elegias de Duino? Enquanto que, face à tela branca, quando a luz começava a abaixar, se passava em nós o exato contrário do que tinha conduzido Nicolas de Stael ao suicídio. Uma segunda luz tomava forma na escuridão. A tela não era mais um obstáculo, mas um amigo, a camisa de Verônica e do Samaritano.
Nós descobríamos o direito de fazer nossos deveres sem precisar portanto ir a aula. Houve então um sentimento absoluto de liberdade. Um homem, uma mulher, uma estrada, e era uma viagem à Itália. Substitua o Jaguar por uma xícara de café, e Ozu substitui Rossellini. Mesmo se nós não sabíamos fazer filmes, nós sabíamos que nós podíamos fazê-los e esse fato nos dava um pouco da dignidade que as duas guerras mundiais nos tinham roubado.
Eu creio no homem à medida em que ele produz obras. Os homens devem ser respeitados porque eles produzem obras, que seja um buquê de flores ou patinetes, um concerto ou equações de quinto grau. Deste ponto de vista, eu não sou um humanista. François Truffaut disse : "política dos autores". Mas hoje em dia, nós não guardamos nada mais do que a palavra “autor”, quando a palavra digna de interesse era a anterior. Quem se lembra do incolor xerife Marshall, mas nenhum habitante de Berlim esqueceu a ponte de mesmo nome, quer dizer o ato, quer dizer pelo o que seu Goethe gostaria que o mundo começasse.
Primeiro as obras, nos ensinou Langlois, depois os homens. E se você respeita uns, você respeitará os outros. Não o inverso. Nós vemos nesta pobre Yugoslavia. Eles são bons, eles são maus? Começamos a perder seu latim, como dizemos em francês. Passamos o tempo a nos lamentar do horror e da miséria, com sinceridade, se somos um simples cidadão, com astúcia, se fazemos parte do governo, e nos esquecemos da guerra, do ato, da paz, o ato dela também; e o mundo está invertido, e são as marionetes que jogam com Wilhelm Meister e a dura Microsoft com o destino dos povos.
Então, eu diria provavelmente: há algo que existiu, e que era relativamente único: o cinema. E como os filhos únicos em geral, ele acabou mal. Algo assim deve ter se passado, há mais ou menos três mil anos, no desaparecimento de Micenas, ou de um certo tipo de animal ou de vegetação há centenas de milhões de anos atrás.
Houve alguma coisa, uma imagem, uma imagem que era apenas um movimento - não uma imagem como vemos na televisão, que não mostra nada mais que a chegada e a partida, jamais o que vai de um pro outro, e o que volta do outro pro um -, e esse movimento, esse ato, essa imagem, nos dizia alguma coisa que não quisemos escutar. Preferimos falar por cima - como nesses terríveis comentários esportivos. Deste ponto de vista, se vocês aceitam, a obra, para mim, é a criança. E o homem, é o adulto, são os pais. E com o cinema, havia alguma coisa: a criança mostrava aos pais o que eles eram, e ao mesmo tempo falava o que ela era. E os pais não quiseram saber de nada. Eles tiveram medo. E Hitler se pôs a gritar e a punir, e Roosevelt propôs um "New Deal", porque se tornava perigoso, não contar histórias, mas ver a história.
Mas para vê-la, ainda é preciso mostrar, e fazer o que Lévi-Strauss, Einstein ou Copérnico fizeram. Se dizemos que Copérnico, por volta de 1540, trouxe essa ideia de que o sol parou de rodar em volta da terra, e se dizemos que alguns anos próximos, Vesale publicou De Corporis Humanis Fabrica, então temos Copérnico em um livro, e no outro Vesale. Em um livro o universo é infinitamente grande. E no outro, o interior do corpo humano, infinitamente pequeno. E depois, quatrocentos anos mais tarde, temos François Jacob, o biologista, que escreve: no mesmo ano Copérnico e Vesale… e bem, aqui, ele não faz biologia, Jacob faz cinema. E a história não é em nenhum outro lugar senão aqui. Ela é aproximação. Ela é montagem.
Parecido, quando Cocteau diz: se Rimbaud tivesse vivido, ele morreria no mesmo ano em que o marechal Pétain. Então, temos o retrato do jovem Rimbaud, e do velho marechal francês em 1948, e nós vamos olhá-los de um ao outro, e aqui, nós temos uma história, nós temos a história, essa de nosso terrível Hegel, se você quiser, ou essa de nosso querido Benjamin. Não uma história falada, mas vista, et quando Marx "gaguejava", se sua forma de falar tem um peso, é porque ela já é uma imagem, e que Niépce e Nadar haviam lançado suas primeiras fotos.
Por essas razões, eu intitulei o primeiro capítulo de minha obra sobre o cinema: "todas as histórias", e depois eu continuei com: "uma história única", e depois: "só o cinema" - o que quer dizer: somente o cinema pode fazer isso, mas isso também quer dizer: o cinema estava sozinho face à tempestade de palavras dos adultos, tão sozinho que…jamais Jean Vigo recebeu o prêmio Heidegger, e portanto, todos esses "Unterweg", ele os havia bem percorrido.
Minha ideia, como vocês podem adivinhar, super ambiciosa, que Michelet não teve, mesmo quando ele fazia sua grandiosa História da França - essa Sistina da história - minha ideia é que a história é sozinha, ela está longe do homem. Fernand Braudel diz algo desse gênero quando ele diz que existem duas histórias: uma história perto, que corre até nós com passos precipitados – e é a televisão ou o Spiegel, e logo Goya e Matisse nos CD-Rom’s (Rom para os romanos, sem dúvida, pax romana, pax americana), e uma história longe que nos acompanha a passos lentos, e é Kafka, é Pina Bausch, é Fassbinder, para falar dos maiores artistas de vocês.
Existe esta coisa que fica estritamente no interior do cinema, crisálida bloqueada que jamais se tornará borboleta - nós o sabemos agora - essa coisa que é a montagem. Minha ideia, de médico do interior ou de jardineiro do cinema, era que um dos objetivos do cinema era inventar ou descobrir a montagem, tal como eu vos falo de maneira simples com os exemplos de Copérnico e Vesale, e que deveríamos ensinar nas escolas - nós podemos sempre sonhar, não é? Por exemplo, qual é a diferença entre dois antigos presidentes da República Francesa, Charles de Gaulle e François Mitterrand? Eu diria: se ele quer mostrar a diferença como instrumento científico, o cinema dirá isso: são dois franceses, que tinham um território, e teve uma guerra, e invasores. A um dado momento, um deles, François Mitterrand, foi feito prisioneiro, e começou sua ascensão ao poder saindo e voltando da França. O outro, Charles de Gaulle, ao contrário, se retirou de seu país, a França, e começou o combate no estrangeiro. Eis a diferença, eis a montagem, eis um momento da história, eis um momento de cinema.
Nós usamos muito a palavra montagem. Nós dizemos hoje: a montagem em Welles, em Eisenstein, ou ao contrário, a ausência de montagem em Rossellini. Ah! Os imbecis, diria Bernanos. A montagem, o cinema jamais a encontrou, a Tobis e a RCA não nos deixaram tempo, e algo se perdeu no caminho, sua linguagem, e é a língua, as palavras que levaram a melhor, com certeza não a língua nem as palavras das crianças de Jeronime, nem de Narciso e Goldmund. É a evidência quando assistimos a apresentadora que vos fala as notícias do dia ou da noite, e que não te fala nem de nós, nem dela, nem dos outros. Se o cinema tivesse tido a oportunidade de crescer e de se tornar adulto em vez de permanecer uma criança gerida - para empregar uma palavra na moda na França - uma criança gerida pelos adultos, esse desastre humano que é a apresentadora falaria de suas famosas notícias como de Copérnico e de Vesale, e isso seria mais claro, e ela seria nossa grande irmã.
Sim, o que procurava a montagem? Griffith, codificando o close, não procurava se aproximar de uma atriz, como quer a lenda. Ele procurava uma aproximação de algo longe com algo perto, sobretudo no tempo. Eisenstein achou o ângulo, precedido por Greco e Degas. Quando assistimos as famosas imagens dos três leões em Outubro, se os três leões fazem um efeito de montagem, é porque existem três ângulos de ponto de vista, não porque existe montagem. Os alemães desconheciam a montagem, mas eles a procuravam à sua maneira, partindo primeiramente do cenário, da luz, de uma filosofia do mundo, vocês dizem "Aufklärung", eu acho. Todos procuravam algo que nós não podemos dizer hoje o que é, que não havia jamais existido em outro lugar antes, e que estava acontecendo, se podemos dizer, de comentário. Era a imensa força do cinema mudo. Podemos ainda imaginar a força que era filmar Molière sem som? Mesmo o notável Tartufo de Beno Besson não tem a grandeza demoníaca de Jannings filmado por Murnau. E depois de tudo, será que as estrelas que falam para os físicos os segredos do universo não empregam elas também imagens tão eloquentes e profundas como aquelas do modesto bonde de Aurora?
Existe um grande combate entre os olhos e a língua. Os olhos são os povos. A língua são os governos. Quando o governo fala sobre o que ele vê e age em consequência, é bom, porque é a linguagem do médico. Ele diz: é uma sinusite, e faz ato de montagem, de aproximação. Com o cinema, existiu um sinal de que as coisas eram possíveis se nos esforçássemos em chamá-las pelo nome, como dizemos em francês. Que o cinema, sobretudo, era uma nova forma - que nós nunca tinhamos visto - de chamar as coisas pelo seu nome, uma maneira de ver os pequenos e os grandes eventos que foi imediatamente popular, e que também o mundo inteiro pedia. Em suma, o cinema era feito para pensar, e portanto para curar as feridas.
Para mim, tudo isso se esclareceu lentamente à partir do momento em que percebi que eu estava acompanhado, desde meu nascimento, por essa segunda história que falava Braudel, essa que nos acompanha à passos lentos. E que eu percebi, depois de alguns bons filmes, eu e outros, que nós não havíamos mostrado os campos de concentração. Basicamente, nós havíamos falado, mas não havíamos mostrado nada. Eu me interessei por este aspecto das coisas sem dúvida por causa do meu passado, de minha classe social, de minha culpabilidade, de meu pai, que me havia transmitido seu amor pela Alemanha de Siegfried e Limousin. Me pareceu que com o cinema dito liberado, a primeira das coisas a mostrar deveria ter sido os campos, no sentido de como mostramos, no começo, o homem com o fuzil cronofotográfico de Marey, coisas como isso. Mas nós não quisemos ver. Nós preferimos falar, dizer: isso, nunca mais. E depois tudo recomeçou, cada vez mais forte, se podemos dizer, Vietnã, Argélia - não acabou - Biafra, Afeganistão, Palestina. Eu percebi que a palavra "muçulmano" havia sido inventada por sei lá qual Kapo de Dachau ou Mathausen para designar um judeu à partir do momento em que ele não havia mais forças. E a história nos acompanha realmente lentamente, porque precisa-se de cinquenta anos para encontrarmos esse judeu em uniforme muçulmano nas ruínas de Sarajevo e Srebrenica.
O cinema assistiu menos o mundo do que o mundo que o assistia. E quando a televisão chegou, ela se colocou rapidamente no lugar do mundo, e ela não o assistiu mais, quer dizer, em francês, assistir duas vezes. E quando nós assistimos a televisão, nós não vemos que a televisão nos assiste, quer dizer, que ela nos assiste duas vezes. E a imprensa não ajudou em nada, compartilhando o poder como ela pode. Então, quando Ingrid Bergman esconde uma chave em sua mão, nós não vemos mais que esta chave nos assiste. E isso aconteceu em um momento em que nós não quisemos mais ver o mundo no estado em que os campos o haviam deixado.
O cinema, ou quer dizer, o cinematógrafo, desapareceu neste momento. Ele desapareceu porque ele havia anunciado os campos. Igual Viena e sua música haviam anunciado a Primeira Guerra mundial, o cinematógrafo havia previsto a Segunda. Mas Charlie Chaplin, no entanto popularmente mais conhecido que Napoleão e Ghandi, Chaplin, que todo mundo acreditava, quando ele fez O Ditador, nós não acreditamos mais. Renoir, quando descreveu a grande ilusão ou a regra do jogo, ninguém prestou a menor atenção. E ainda, antes da noite de cristal, qual crítico de cinema notou que o primeiro filme de gangsters era obra de dois judeus alemães, um americano, Ben Hecht, e o outro austríaco, Sternberg?
Les signes parmi nous (Os signos entre nós). Tal é o título do romance de Charles-Ferdinand Ramuz. O cinema não foi nada mais do que um vendedor ambulante que nos fornecia esses sinais baratos. Mas nós não estamos mais no tempo desses vendedores. Agora o verdadeiro combate começa: do dinheiro e do sangue. Foi o vosso Spengler que o escreveu, há quase cem anos. E cada um festeja à sua maneira esse centenário horrível. Mas então, o que fazer? Escutemos este filósofo, o único à apoiar Till Eulenspiegel, quero dizer Dany le Rouge, en 1968, e que gritava, eternamente feliz: infelizmente, à frente!
À propos de cinéma et d’histoire foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 18, primavera de 1996. Tradução: André Schaefer.
Era um lugar, o cinema, era um território. Se eu tenho uma lembrança das projeções da avenida de Messine, é porque era um lugar sem história alguma, nem mesmo a descoberta de um novo continente, porque o próprio sentimento desta descoberta era algo de profundamente desconhecido.
Eu conhecia Spengler e Husserl, mas não Murnau, e ninguém me havia dito que eles moravam no mesmo país que Bismarck e Novalis. Eu conhecia Lulu, mas era aquela de Alban Berg, não a de Canary Murder Case. E eu não sabia que os sons de Sacre du printemps eram contemporâneos às imagens de Vampires.
Nunca tínhamos visto isso. Um mundo que não tinha história e que, entretanto, passava seu tempo a contá-la. E sobretudo, fora da leitura. Porque a escrita, desde Rimbaud e Mallarmé, era o terror. A página branca era inimiga. Por que continuar escrevendo depois de Joyce e das elegias de Duino? Enquanto que, face à tela branca, quando a luz começava a abaixar, se passava em nós o exato contrário do que tinha conduzido Nicolas de Stael ao suicídio. Uma segunda luz tomava forma na escuridão. A tela não era mais um obstáculo, mas um amigo, a camisa de Verônica e do Samaritano.
Nós descobríamos o direito de fazer nossos deveres sem precisar portanto ir a aula. Houve então um sentimento absoluto de liberdade. Um homem, uma mulher, uma estrada, e era uma viagem à Itália. Substitua o Jaguar por uma xícara de café, e Ozu substitui Rossellini. Mesmo se nós não sabíamos fazer filmes, nós sabíamos que nós podíamos fazê-los e esse fato nos dava um pouco da dignidade que as duas guerras mundiais nos tinham roubado.
Eu creio no homem à medida em que ele produz obras. Os homens devem ser respeitados porque eles produzem obras, que seja um buquê de flores ou patinetes, um concerto ou equações de quinto grau. Deste ponto de vista, eu não sou um humanista. François Truffaut disse : "política dos autores". Mas hoje em dia, nós não guardamos nada mais do que a palavra “autor”, quando a palavra digna de interesse era a anterior. Quem se lembra do incolor xerife Marshall, mas nenhum habitante de Berlim esqueceu a ponte de mesmo nome, quer dizer o ato, quer dizer pelo o que seu Goethe gostaria que o mundo começasse.
Primeiro as obras, nos ensinou Langlois, depois os homens. E se você respeita uns, você respeitará os outros. Não o inverso. Nós vemos nesta pobre Yugoslavia. Eles são bons, eles são maus? Começamos a perder seu latim, como dizemos em francês. Passamos o tempo a nos lamentar do horror e da miséria, com sinceridade, se somos um simples cidadão, com astúcia, se fazemos parte do governo, e nos esquecemos da guerra, do ato, da paz, o ato dela também; e o mundo está invertido, e são as marionetes que jogam com Wilhelm Meister e a dura Microsoft com o destino dos povos.
Então, eu diria provavelmente: há algo que existiu, e que era relativamente único: o cinema. E como os filhos únicos em geral, ele acabou mal. Algo assim deve ter se passado, há mais ou menos três mil anos, no desaparecimento de Micenas, ou de um certo tipo de animal ou de vegetação há centenas de milhões de anos atrás.
Houve alguma coisa, uma imagem, uma imagem que era apenas um movimento - não uma imagem como vemos na televisão, que não mostra nada mais que a chegada e a partida, jamais o que vai de um pro outro, e o que volta do outro pro um -, e esse movimento, esse ato, essa imagem, nos dizia alguma coisa que não quisemos escutar. Preferimos falar por cima - como nesses terríveis comentários esportivos. Deste ponto de vista, se vocês aceitam, a obra, para mim, é a criança. E o homem, é o adulto, são os pais. E com o cinema, havia alguma coisa: a criança mostrava aos pais o que eles eram, e ao mesmo tempo falava o que ela era. E os pais não quiseram saber de nada. Eles tiveram medo. E Hitler se pôs a gritar e a punir, e Roosevelt propôs um "New Deal", porque se tornava perigoso, não contar histórias, mas ver a história.
Mas para vê-la, ainda é preciso mostrar, e fazer o que Lévi-Strauss, Einstein ou Copérnico fizeram. Se dizemos que Copérnico, por volta de 1540, trouxe essa ideia de que o sol parou de rodar em volta da terra, e se dizemos que alguns anos próximos, Vesale publicou De Corporis Humanis Fabrica, então temos Copérnico em um livro, e no outro Vesale. Em um livro o universo é infinitamente grande. E no outro, o interior do corpo humano, infinitamente pequeno. E depois, quatrocentos anos mais tarde, temos François Jacob, o biologista, que escreve: no mesmo ano Copérnico e Vesale… e bem, aqui, ele não faz biologia, Jacob faz cinema. E a história não é em nenhum outro lugar senão aqui. Ela é aproximação. Ela é montagem.
Parecido, quando Cocteau diz: se Rimbaud tivesse vivido, ele morreria no mesmo ano em que o marechal Pétain. Então, temos o retrato do jovem Rimbaud, e do velho marechal francês em 1948, e nós vamos olhá-los de um ao outro, e aqui, nós temos uma história, nós temos a história, essa de nosso terrível Hegel, se você quiser, ou essa de nosso querido Benjamin. Não uma história falada, mas vista, et quando Marx "gaguejava", se sua forma de falar tem um peso, é porque ela já é uma imagem, e que Niépce e Nadar haviam lançado suas primeiras fotos.
Por essas razões, eu intitulei o primeiro capítulo de minha obra sobre o cinema: "todas as histórias", e depois eu continuei com: "uma história única", e depois: "só o cinema" - o que quer dizer: somente o cinema pode fazer isso, mas isso também quer dizer: o cinema estava sozinho face à tempestade de palavras dos adultos, tão sozinho que…jamais Jean Vigo recebeu o prêmio Heidegger, e portanto, todos esses "Unterweg", ele os havia bem percorrido.
Minha ideia, como vocês podem adivinhar, super ambiciosa, que Michelet não teve, mesmo quando ele fazia sua grandiosa História da França - essa Sistina da história - minha ideia é que a história é sozinha, ela está longe do homem. Fernand Braudel diz algo desse gênero quando ele diz que existem duas histórias: uma história perto, que corre até nós com passos precipitados – e é a televisão ou o Spiegel, e logo Goya e Matisse nos CD-Rom’s (Rom para os romanos, sem dúvida, pax romana, pax americana), e uma história longe que nos acompanha a passos lentos, e é Kafka, é Pina Bausch, é Fassbinder, para falar dos maiores artistas de vocês.
Existe esta coisa que fica estritamente no interior do cinema, crisálida bloqueada que jamais se tornará borboleta - nós o sabemos agora - essa coisa que é a montagem. Minha ideia, de médico do interior ou de jardineiro do cinema, era que um dos objetivos do cinema era inventar ou descobrir a montagem, tal como eu vos falo de maneira simples com os exemplos de Copérnico e Vesale, e que deveríamos ensinar nas escolas - nós podemos sempre sonhar, não é? Por exemplo, qual é a diferença entre dois antigos presidentes da República Francesa, Charles de Gaulle e François Mitterrand? Eu diria: se ele quer mostrar a diferença como instrumento científico, o cinema dirá isso: são dois franceses, que tinham um território, e teve uma guerra, e invasores. A um dado momento, um deles, François Mitterrand, foi feito prisioneiro, e começou sua ascensão ao poder saindo e voltando da França. O outro, Charles de Gaulle, ao contrário, se retirou de seu país, a França, e começou o combate no estrangeiro. Eis a diferença, eis a montagem, eis um momento da história, eis um momento de cinema.
Nós usamos muito a palavra montagem. Nós dizemos hoje: a montagem em Welles, em Eisenstein, ou ao contrário, a ausência de montagem em Rossellini. Ah! Os imbecis, diria Bernanos. A montagem, o cinema jamais a encontrou, a Tobis e a RCA não nos deixaram tempo, e algo se perdeu no caminho, sua linguagem, e é a língua, as palavras que levaram a melhor, com certeza não a língua nem as palavras das crianças de Jeronime, nem de Narciso e Goldmund. É a evidência quando assistimos a apresentadora que vos fala as notícias do dia ou da noite, e que não te fala nem de nós, nem dela, nem dos outros. Se o cinema tivesse tido a oportunidade de crescer e de se tornar adulto em vez de permanecer uma criança gerida - para empregar uma palavra na moda na França - uma criança gerida pelos adultos, esse desastre humano que é a apresentadora falaria de suas famosas notícias como de Copérnico e de Vesale, e isso seria mais claro, e ela seria nossa grande irmã.
Sim, o que procurava a montagem? Griffith, codificando o close, não procurava se aproximar de uma atriz, como quer a lenda. Ele procurava uma aproximação de algo longe com algo perto, sobretudo no tempo. Eisenstein achou o ângulo, precedido por Greco e Degas. Quando assistimos as famosas imagens dos três leões em Outubro, se os três leões fazem um efeito de montagem, é porque existem três ângulos de ponto de vista, não porque existe montagem. Os alemães desconheciam a montagem, mas eles a procuravam à sua maneira, partindo primeiramente do cenário, da luz, de uma filosofia do mundo, vocês dizem "Aufklärung", eu acho. Todos procuravam algo que nós não podemos dizer hoje o que é, que não havia jamais existido em outro lugar antes, e que estava acontecendo, se podemos dizer, de comentário. Era a imensa força do cinema mudo. Podemos ainda imaginar a força que era filmar Molière sem som? Mesmo o notável Tartufo de Beno Besson não tem a grandeza demoníaca de Jannings filmado por Murnau. E depois de tudo, será que as estrelas que falam para os físicos os segredos do universo não empregam elas também imagens tão eloquentes e profundas como aquelas do modesto bonde de Aurora?
Existe um grande combate entre os olhos e a língua. Os olhos são os povos. A língua são os governos. Quando o governo fala sobre o que ele vê e age em consequência, é bom, porque é a linguagem do médico. Ele diz: é uma sinusite, e faz ato de montagem, de aproximação. Com o cinema, existiu um sinal de que as coisas eram possíveis se nos esforçássemos em chamá-las pelo nome, como dizemos em francês. Que o cinema, sobretudo, era uma nova forma - que nós nunca tinhamos visto - de chamar as coisas pelo seu nome, uma maneira de ver os pequenos e os grandes eventos que foi imediatamente popular, e que também o mundo inteiro pedia. Em suma, o cinema era feito para pensar, e portanto para curar as feridas.
Para mim, tudo isso se esclareceu lentamente à partir do momento em que percebi que eu estava acompanhado, desde meu nascimento, por essa segunda história que falava Braudel, essa que nos acompanha à passos lentos. E que eu percebi, depois de alguns bons filmes, eu e outros, que nós não havíamos mostrado os campos de concentração. Basicamente, nós havíamos falado, mas não havíamos mostrado nada. Eu me interessei por este aspecto das coisas sem dúvida por causa do meu passado, de minha classe social, de minha culpabilidade, de meu pai, que me havia transmitido seu amor pela Alemanha de Siegfried e Limousin. Me pareceu que com o cinema dito liberado, a primeira das coisas a mostrar deveria ter sido os campos, no sentido de como mostramos, no começo, o homem com o fuzil cronofotográfico de Marey, coisas como isso. Mas nós não quisemos ver. Nós preferimos falar, dizer: isso, nunca mais. E depois tudo recomeçou, cada vez mais forte, se podemos dizer, Vietnã, Argélia - não acabou - Biafra, Afeganistão, Palestina. Eu percebi que a palavra "muçulmano" havia sido inventada por sei lá qual Kapo de Dachau ou Mathausen para designar um judeu à partir do momento em que ele não havia mais forças. E a história nos acompanha realmente lentamente, porque precisa-se de cinquenta anos para encontrarmos esse judeu em uniforme muçulmano nas ruínas de Sarajevo e Srebrenica.
O cinema assistiu menos o mundo do que o mundo que o assistia. E quando a televisão chegou, ela se colocou rapidamente no lugar do mundo, e ela não o assistiu mais, quer dizer, em francês, assistir duas vezes. E quando nós assistimos a televisão, nós não vemos que a televisão nos assiste, quer dizer, que ela nos assiste duas vezes. E a imprensa não ajudou em nada, compartilhando o poder como ela pode. Então, quando Ingrid Bergman esconde uma chave em sua mão, nós não vemos mais que esta chave nos assiste. E isso aconteceu em um momento em que nós não quisemos mais ver o mundo no estado em que os campos o haviam deixado.
O cinema, ou quer dizer, o cinematógrafo, desapareceu neste momento. Ele desapareceu porque ele havia anunciado os campos. Igual Viena e sua música haviam anunciado a Primeira Guerra mundial, o cinematógrafo havia previsto a Segunda. Mas Charlie Chaplin, no entanto popularmente mais conhecido que Napoleão e Ghandi, Chaplin, que todo mundo acreditava, quando ele fez O Ditador, nós não acreditamos mais. Renoir, quando descreveu a grande ilusão ou a regra do jogo, ninguém prestou a menor atenção. E ainda, antes da noite de cristal, qual crítico de cinema notou que o primeiro filme de gangsters era obra de dois judeus alemães, um americano, Ben Hecht, e o outro austríaco, Sternberg?
Les signes parmi nous (Os signos entre nós). Tal é o título do romance de Charles-Ferdinand Ramuz. O cinema não foi nada mais do que um vendedor ambulante que nos fornecia esses sinais baratos. Mas nós não estamos mais no tempo desses vendedores. Agora o verdadeiro combate começa: do dinheiro e do sangue. Foi o vosso Spengler que o escreveu, há quase cem anos. E cada um festeja à sua maneira esse centenário horrível. Mas então, o que fazer? Escutemos este filósofo, o único à apoiar Till Eulenspiegel, quero dizer Dany le Rouge, en 1968, e que gritava, eternamente feliz: infelizmente, à frente!
À propos de cinéma et d’histoire foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 18, primavera de 1996. Tradução: André Schaefer.
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