por Philippe Demonsablon
THE SAGA OF ANATAHAN, filme japonês de JOSEF VON STERNBERG. Roteiro e adaptação: Josef von Sternberg, segundo o romance de Michiro Maruyama. Diálogos em japonês: Asano. Comentário em inglês: Josef von Sternberg, narrados por ele mesmo. Imagem: Josef von Sternberg. Música: Ifukube. Montagem: Miyata. Cenário: Kono. Interpretação: Akemi Negishi, Tadashi Suganuma, Kisaburo Sawamura, Shoji Nakayama, Jun Fujikawa, Hiroshi Kondo, Shozo Miyashita, Tsuruemou Bando, Rokuriko Kinoya, Daijiro Tamura, Tadashi Kitagawa, Takeshi Suzuki, Shiro Amikura, Kikuj'i Onoe. Produção: Daiwa production, Josef von Sternberg, 1953.
The Saga of Anatahan oferece a quem nele atenta o exemplo de um confronto entre circunstâncias arriscadas de produção e uma vontade criadora há muito tempo detida, entre a pobreza dos meios de realização e a densidade daquilo que, através deles, o autor se propõe exprimir. Mas o filme oferece, também, o exemplo de um triunfo definitivo desta sobre aquela - justa revanche se nos lembrarmos até que ponto, já fazem vinte anos, a carreira de Sternberg vem sendo contrariada e se figurarmos a situação de um criador que viu-se recusar a possibilidade de criar. Contudo esses anos de silêncio ou de meio-silêncio [1] não foram território vão e, sem renúncia alguma, Sternberg nos dá com Anatahan uma obra de maturidade onde o rigor faz-se mais exigente e mais complexa a proposta. Pois esta obra contém duas faces estreitamente combinadas onde cada uma corresponde aos sentimentos que inspira: na sucessão em que se manifesta para nós, de início objeto cujos poderes de fascinação justificariam amplamente a admiração; depois reflexo e, mais ainda, projeção, voluntária ao extremo, do homem que criou tal objeto. Será cômodo à exposição, útil à compreensão, seguirmos esta marcha em duas etapas que venho indicar.
A imprensa publicou um episódio derrisório e trágico da última guerra: um grupo de pescadores e soldados japoneses encalhara em 1944 na ilha de Anatahan, que encontraram deserta, com a exceção de um casal. Ignorando a derrota do Japão e, depois, recusando-se a crer nela, esperando a chegada de um inimigo que não mais existia, vieram a guerrear entre si pela posse, acreditavam eles, da mulher. Isto durou sete anos. Era possível mesmo ter durado até o momento em que escrevo estas linhas. A partir deste acontecimento real de nossa época, e com grande atenção à verdade, Sternberg concebeu um filme resolutamente não-realista. O filme disto oferece numerosos exemplos; os mais chocantes dentre eles [2] mostram assaz que a provocação aqui não está ausente, bem como certo prazer aristocrático em desagradar: mas é aos tolos que desagrada. E para terminar de vez com qualquer mal-entendido, Sternberg não atravessou o Pacífico senão para construir num estúdio de Quioto um cenário de selva em todo caso pequeno, pois é na estreiteza que ele se acha à vontade (lembrando-nos de Shanghai Gesture ou do cenário das docas de Macao), e engajar uma trupe de dançarinos a fim de interpretar os personagens do drama.
Percebemos desde já tudo o que tal procedimento autoriza de transfiguração. Acertadas as contas com a lamentável verossimilhança, o autor conquista maior liberdade em exprimir uma verdade poética, essas linhas abstratas que acrescentam ao resplendor da matéria que reencontram; assim, que de mais abstrato que esta floresta árida e ressecada, no meio do bulício humilde que tantos filmes nos deram a ver? Sem dúvida restavam ainda algumas convenções, às quais era urgente fazer justiça. Convenções dramáticas antes de tudo que a interpretação dos atores contribui em dissipar. Fato único no cinema japonês, os gestos expressivos deram lugar à magia dos olhares dirigidos com frequência ao prodigioso desconhecido de sua visão; quem não reconhecerá esta estilização dos cineastas alemães, Fritz Lang e Murnau, muito mais preocupados em mergulhar os personagens num universo abstrato que de lhes confrontar entre si. Essa obliteração de toda estrutura dramática acha-se intensificada pelo comentário que acompanha o filme todo ao longo de seu desenrolar. Quero crer que tal procedimento fora julgado necessário para a exploração do filme na América [3]. Mas esse comentário, Sternberg escreveu-o ele mesmo, e é sua própria voz que durante uma hora e meia se dirige a nós por cima das imagens; não para resumir o que dizem os personagens, mas para comentar seus atos, introduzindo uma decalagem entre o espetáculo e a reflexão sobre o mesmo. Amiúde mesmo, tais atos são anunciados e o interesse dramático então dá lugar ao sentimento estupefato de uma espécie de fatalidade, o relato se torna uma cerimônia horrível e necessária realizando as palavras do relator. É dizer que se o comentário podia convidar à atitude de moralista, tal atitude é rapidamente ultrapassada. Impossível aqui alcançar, ou conservar, aquele desprendimento que os moralistas tentam tomar e que amiúde não é senão frieza: as imagens de paixão gravadas sobre a tela os contradizem imediatamente, e o espectador solicitado em sentidos inversos pela imagem e seu comentário (ou melhor dizendo, pelo comentário e sua imagem) não pode deixar de se achar com a consciência pesada dentro de tal dualidade.
Mas precisamos ir mais adiante se quisermos dar-nos conta de um sentimento que nada deve aqui senão ao espetáculo da sinceridade. Obra que Sternberg criou com cuidado açambarcante, a impressão é a de que foi antes para si mesmo que realizou The Saga of Anatahan. O espectador é um intruso na sala se ele adivinha que nudez se envolve no ecrã. Ou então, pois já afetado, que ele receba a confidência, mesmo se não é aquela que ele desejara ouvir.
Bem sei que alguns, considerando a produção artística como meio de divertimento, indignar-se-ão por, para além da obra, interrogar-nos sobre o homem que a criou, e que através dela nos esforcemos para comunicar-nos com ele. Mas não é o homem um fenômeno assaz formidável para que todos os aspectos de sua atividade mereçam nosso interesse? E, entre eles, a criação artística me parece uma das empresas mais graves e audaciosas. De que me serve escutar tantos conversadores brilhantes que nada têm a me dizer? Prefiro frequentar Rossellini, Aldrich, Sternberg e alguns outros. Estes são caros amigos, nem mesmo as sombras, mesmo inquietantes, de seus rostos deixam de querer falar-me.
Tal me pareceu The Saga of Anatahan, realizando a obra impossível de fazer que Edgar Poe propôs chamar de "Meu coração posto à mostra"; e foi por pouco, com efeito, que o ecrã não rasgou ou pegou fogo sob as fulgurações que lhe projeta Sternberg, tiradas, não duvidamos, do mais secreto dele mesmo. Mesmo que nos ofereça algumas reflexões sobre a conduta da existência [4], esta fantasia em voz alta não se contenta em entregar o fruto de uma experiência. O sonho mesmo se torna objeto de reflexão e o moralista em seu solilóquio retorna à sua experiência, observa-a sem complacência, atento, lhe parece, àquilo que ela tivera de único e irreversível. Experiência erótica na qual a Mulher é o centro; antessala de uma inevitável fascinação, objeto de adoração e de terror que inspiram as divindades cruéis e impassíveis, seu poder erótico, a sacra Rainha ou Deusa, sua casa é um templo que decora a obsedante multiplicação dos atributos da mulher e tal efígie orna o menor de seus gestos, que sua corte observa com fervor.
Soberana absoluta e inacessível, seu poder aniquila aqueles que se aproximam: mas ela também não é senão um meio derrisório, pois não procurou esse poder, e os homens em seu entorno consagram-se à decadência e à destruição pelo mito que criaram para entreter sua paixão. Assim Keiko reúne-se às mais famosas heroínas de Sternberg. Sabe-se que tal ideia baudelairiana de Mulher fez-lhe durante sete anos divinizar Marlène Dietrich e, muitos anos depois, escolher uma atriz à imagem da primeira: Ona Munson. Em The Saga of Anatahan o próprio Sternberg vem ao nosso encontro, vinte anos depois, sob os traços do marido; o arco com O Anjo Azul se fecha, e não é provavelmente por acaso se no relato de humilhações semelhantes as cenas se descobrem, semelhantes [5]. Mas desta vez Sternberg pôde vivê-las, combinando-se assim a tal certeza qualquer coisa de horrível. Sem dúvida os olhares acossados do marido, suas crises de pânico, de submissão, tornar-se-iam impossíveis de se ver se para tais cenas Sternberg não jogasse um olhar lúcido e sem ilusões sobre os sortilégios de seu passado.
"As relações entre marido e mulher estão fundadas sobre sentimentos amiúde incompreendidos pelos outros, cujos atos contudo não são menos repreensíveis", nos diz um Sternberg de sessenta anos, enquanto um Sternberg de trinta e cinco se joga aos pés de sua esposa que se afasta. Retenhamos a lição. O essencial é envelhecer bem, o que é também o mais difícil.
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[1] Desde 1935, data de seu último filme com Marlene Dietrich, Sternberg não rodara mais filmes importantes senão I, Claudius, infelizmente incompleto, e The Shanghai Gesture: sete filmes entre 1935 e 1953, nenhum entre 1941 e 1951.
[2] Um dos homens foi apunhalado na rede; nenhum traço da ferida é visível onde fora atingido. Mesma consideração quando um outro é abatido por dois tiros de revólver no dorso nu; no mais os tiros não fazem barulho, mas são incorporados à partitura musical e executados pela orquestra. Quando os homens procuram Keiko pela floresta, Sternberg consagra um plano a nos mostrar um deles se escondendo, quase com o rosto detrás de um arbusto para lançar seu apelo. E os motivos gravados no paraquedas não são, seguramente, as marcas escuras e verdes de camuflagem. Mas não vejo nada neste ponto de partida que autorize o deboche.
[3] O público americano não gosta das versões dubladas, com razão.
[4] Tais fragmentos do comentário:
Consagramos boa parte de nossa vida a ganhar a estima de nossos semelhantes; não temos tempo a perder a ganhar nossa própria estima.
Observar as humilhações de outrem seria imperdoável se nossa própria conduta nisso não procurasse desculpas.
Ele morreu jovem, não pôde aprender a viver convenientemente.
[5] Como não pensar na cena do "Cocoricó" ao fim de O Anjo Azul quando aqui uma das concubinas mostra uma lagosta ao marido?
Publicado em Cahiers du Cinéma, nº 58. Tradução de Eduardo Savella.
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