O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

O mundo, exceto a América


Por Serge Daney 

Nós vivemos há algum tempo num mundo onde, paradoxalmente, a América concreta desapareceu atrás do sucesso da americanização abstrata. Esta ganha, sem dúvida (sorrateiramente, por toda parte, sem qualquer extravagância), mas aquela se afasta para sempre, declina e deixa um vazio. Porque claramente a América, faz tempo, tomou para si todas as coisas um pouco pesadas que poderíamos ter acreditado, após a guerra, serem dali em diante poupadas aos jovens habitantes (eu, por exemplo) de uma Europa convalescente e enfim amadurecida. Três coisas ao menos tinham sido deixadas “em leasing” para a América: a vaidade nacionalista de um país “diferente dos outros”, sua capacidade de invenção mitológica e, sobretudo, o sucesso estético de seu modo de vida, o único no fim das contas concretamente desejado neste século. Três coisas que por muito tempo ocuparam Hollywood em tempo integral.

Jean-Pierre Oudart disse (ou escreveu) um dia que o que havia de mais surpreendente em Meu tio da América, era que este filme teria sido o mesmo se a América simplesmente não tivesse existido. Havia nisto uma verdadeira intuição. Com o que se pareceria o cinema sem a América? Recentemente, foi com desgosto que vi em Europa de Lars Von Trier uma resposta possível: a náusea estetizada de um luto acomodado e doentio que, em nenhum lugar, possui qualquer reserva de inocência. Uma “qualidade europeia” neoexpressionista – adulta e vacinada, culturalesca e nada boba, bolorenta de culpa e ressentimento (desde o antipático e eficaz Amadeus) – faria frente, enfim, ao estágio senil das imagens americanas?

Tal “qualidade europeia” existiria? Não tenho certeza. É possível que, em última análise, o cinema só possa funcionar na crença (portanto, eventualmente, no luto) e que o niilismo decorativo de toda “qualidade” seja a sua morte. Assim como a “qualidade francesa” dos anos 50 não era o trailer do cinema vivo que viria, mas da emissão dramática ou do telefilme. Dito isto, a questão permanece aberta, e é bem possível que eu me engane e que seja, digamos, O Amante que ganhe. Mas se é essa barbárie que leva a melhor, então nós perdemos e é preciso pensar em passar à clandestinidade (Trafic será mimeografada).

Sejamos sérios: há por vezes, no antiamericanismo francês (incluindo o meu próprio), qualquer coisa de ressentimento e de pequenez, diante da generosidade sem reservas que foi o espetáculo americano, deste potlatch de imagens que intrigou Bataille e que preocupa hoje os compradores japoneses de Hollywood (ver a perplexidade do Sr. Morita diante dos costumes suntuosos da Columbia). É o que resta na América dos traços da missão de “entreter” – no sentido de entertainment como no sentido de tarefa doméstica – que foi sua sina. Esta missão formularei assim: no dia em que os homenzinhos verdes – únicos “outros” dignos do sonho americano – responderem ao chamado de Spielberg, não haverá senão os americanos para saber lhes cantar e dançar o que é um homo, sapiens, faber ou habilis. Um “homenzinho”, somente: não verde, mas nem negro nem branco. Michael Jackson, por exemplo. Chamamos de “star” esta paixão de ser um único para todos os outros. Nada a ver com o personagem.


A época em que a Europa esteve isenta de mitologias porque a América assegurava seu monopólio e ínterim parece terminada. É no momento em que esta Europa é obrigada, sob pena do fracasso, a passar do “grande mercado” para as “grandes narrativas” e de se reconstruir a partir da sua caixa-preta (e mesmo uma bem suja), que vemos a América começar a “perder seu posto”. Como prova disso temos este videoclipe furioso de Michael Jackson (Black or White), concebido por John Landis, e que é a melhor coisa audiovisual que vi nestes períodos de festas. Aí está um jovem nem belo nem feio, nem negro nem branco, nem homem nem mulher, que é talvez o único verdadeiro habitante do mundo, pois é o único a dispor de verdade do mercado mundial. Ele não tem nada a dizer além de seu próprio devir-mundo, versão showbiz de Zelig em sobreimpressão de tudo, com, ao final, o retrato coletivo de seu público. Chamamos de morphing – passagem contínua de uma forma a outra – este extraordinário tráfego eletrônico que funde e encadeia as variantes de uma espécie humana transformada em desfile hilário de tipos étnicos que se autoengrendram uns nos outros, sob a vigilância franzina de uma única voz que os dubla a todos.

Trata-se, evidentemente, desta obscenidade indivisível do sonho americano que, regularmente, desde que eu era pequeno, me enoja e me seduz (e com a qual ainda vou trombar no próximo capítulo). Mas hoje, a gesticulação limite de algumas “stars” terminais (O Exterminador do Futuro 2 é uma boa história, filmada preguiçosamente) me tocaria mais. Como se fosse necessário, apesar de tudo, ser grato ao Novo Mundo por ter sido por tanto tempo o deambulatório (a palavra é de M.D.) das paixões às quais nós não mais podíamos nos “dar ao luxo” no Velho.

Le monde sauf l’Amérique foi publicado originalmente na revista Trafic, n°2, primavera de 1992 e republicado na coletânea La maison cinéma et le monde - Le moment Trafic. Tradução: Giovanni Comodo.

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