Por Julianne Pidduck
Esse texto é constituído de trechos de um vasto estudo sobre Le meurtre en Amérique (O assassinato na América, Julianne Pidduck, The 1990’s Hollywood Fatal Femme : (Dis) Figuring Feminism, Family, Irony, Violence, p. 65) publicado em CinémAction, n° 38, revista canadense de teoria do cinema que congrega contribuições diversas que emanam dos círculos críticos universitários americanos mais radicais.
Aproveitando o orgasmo de seu parceiro para lhe plantar um picador de gelo no torso com uma confiança inigualável, a Catherine Trammel (Sharon Stone) do muito controverso thriller de Paul Verhoeven, Instinto Selvagem deu ao “complexo de castração” um novo elã na América pós-feminista dos anos 90. Doravante, três anos depois de sua estreia, Instinto Selvagem se ancorou para sempre na memória popular pelo seu uso muito pouco moderado de assassinas lésbicas e bissexuais. Nesta direção, esse filme se reata sem complexo à tradição homofóbica de Hollywood, o que os grupos gays e lésbicos não deixaram de assinalar à América manifestando violentamente a sua desaprovação na época da estreia do filme. Mas essa proliferação de assassinas coincide igualmente com a ressurgência recente de personagens de femmes fatales do filme noir clássico. Catalisado pelo sucesso de Atração fatal, notório lança-chamas anti-feminista, esse ciclo dos anos 90 floresceu imensamente: A mão que balança o berço, Desejos, Relação indecente, Corpo em evidência, Os imorais, Mamãe é de morte, Uma noiva e tanto, Mulher solteira procura, Nikita, O sangue de Romeu fazem parte dessa mesma e única família.
Em cinquenta anos, passamos das manipulações maquiavélicas de uma Barbara Stanwick em Pacto de sangue (1944) que, em uma bocada, domina o infeliz Fred Mc Murray, ao abandono sexual assassino das primeiras imagens de Instinto selvagem.
Ora, a ligação entre as questões do masculino e do feminino no filme noir clássico e contemporâneo não é acidental. No filme noir tradicional, a femme fatale é frequentemente associada a um mal-estar profundo suscitado pelos deslocamentos dos papéis do homem e da mulher numa sociedade em período de guerra ou no pós-guerra. Nessa mesma ordem de ideias, é fácil para os teóricos especularem sobre a ameaça que pesou sobre os homens os ganhos do feminismo nos anos 90.
Observemos então o fenômeno da femme fatale do ponto de vista de várias perspectivas feministas. Uma das interpretações possíveis, aliás muito sedutora, associa essa ressurgência a uma reação anti-feminista: transformamos em estereótipos negativos, mulheres que têm uma personalidade muito forte e uma sexualidade sem complexo. Susan Faludi autora do best-seller Backlash (Backlash: The undeclared war against american women, Anchor books, 1991, p. 113), cita Atração fatal de Adrian Lyne (1989) como representativo do cinema reacionário dos anos 80:
Essa reação quase moldou o discurso de Hollywood sobre as mulheres nos anos 80. As histórias se sucederam em que dispomos as mulheres umas contra as outras; sua cólera em relação à sua situação social se encontrou despolitizada e apresentada como uma depressão pessoal; vidas de mulheres foram utilizadas como contos morais nos quais a boa mãe ganha sempre ao passo que a mulher independente é invariavelmente punida. E Hollywood de reafirmar e de reforçar a tese da reação: se as mulheres americanas são infelizes é porque elas são livres demais; a liberação as privou do casamento e da maternidade.
Ora, muitos desses filmes dos anos 90 tem uma função ideológica claramente definida: dominar esse tipo de mulheres através de cercas narrativas: a morte, o casamento ou a quarentena. No interior de uma paisagem política que a decadência de valores familiares tradicionais (sejam eles quais forem) obceca, a defesa dessa família nuclear infinitamente frágil permanece o objetivo n°1 da Hollywood dos anos 90. Nessa batalha, a mãe de família é uma aliada que a ajudará a erradicar a mulher independente e forçosamente fatal. Julguemos pelos gritos de alegria do público quando a esposa gentil Anne Archer acerta sua conta com a amante malvada Glenn Close em Atração fatal.
No filme noir clássico como Pacto de sangue ou Crepúsculo dos deuses, o thriller problematiza a posição ao mesmo tempo autoritária e justa do herói masculino detetive tanto fascinado quanto desestabilizado pela femme fatale. Essa dramatização recorrente das humilhações públicas e privadas do personagem masculino corresponde ao que Richard Dyer chama (Women in film noir, ed. Ann Kaplan, British Film Institute, 1980, p. 91) “uma certa ansiedade em torno do estatuto e da definição da masculinidade e da normalidade”.
No filme noir clássico como Pacto de sangue ou Crepúsculo dos deuses, o thriller problematiza a posição ao mesmo tempo autoritária e justa do herói masculino detetive tanto fascinado quanto desestabilizado pela femme fatale. Essa dramatização recorrente das humilhações públicas e privadas do personagem masculino corresponde ao que Richard Dyer chama (Women in film noir, ed. Ann Kaplan, British Film Institute, 1980, p. 91) “uma certa ansiedade em torno do estatuto e da definição da masculinidade e da normalidade”.
Basta, aliás, se debruçar sobre a carreira de um ator como Michael Douglas para ilustrar esse aspecto. O crítico do Village Voice, Jim Hoberman (Victim Victorius, Village Voice, 7 de maio de 1995) liga a recente carreira de Michael Douglas à popularidade crescente do que ele chama “o homem branco em fúria”, vítima complacente da virulência dos arautos do movimento politicamente correto, feminista, pessoas de cor, enfim, de todas essas pessoas que não são como ele. É assim que Michael Douglas se tornou nos últimos anos o objeto dos desejos femininos mais agressivos.
De Atração fatal a Instinto Selvagem, esse ator, mais que qualquer outro, personificou a demonização por Hollywood da mulher independente, sem fé nem lei. Mas ao mesmo tempo ele não encarna com muita desenvoltura o papel principal masculino típico. Homem que está a envelhecer com a barriga um pouco mole, ele não chega verdadeiramente aos pés das femmes fatales que levam vantagem sobre ele. Do infalível policial de São Francisco urgente (1972-1977) ao inepto detetive Curran de Instinto Selvagem em 1992, Douglas perdeu completamente seu verniz. E mesmo se ele é com seu nome, seu cachê e seu estatuto de estrela, o protagonista central do filme é certamente Sharon Stone, então ilustre desconhecida, a quem todos os olhares convergem. Por fim, ela acumula todas as vantagens táticas acordadas à femme fatale: mais jovem, mais bem educada, mais rica, mais inteligente, mais sexy, mais cruel, ela tem vantagem por todos os lados sobre Curran. Além disso, seu diploma de psicologia, muitas vezes citado, e seu estatuto de autora de best-sellers, lhe conferem explicitamente um poder de representação no interior mesmo do filme. Ainda que narrado do ponto de vista de Nick, o próprio tema do livro de Catherine, onde ele é mal um personagem cuja existência está por um fio, sublinha a batalha que se desenvolve em torno do poder de nomear, contar e de concluir.
Mas recusando a conter sua anti-heroína, o filme deixa aberto o capítulo da femme fatale. E é de uma maneira muito irônica que o fim nos mostra um Douglas na cama de uma assassina suscetível de trucidá-lo a qualquer momento. Num desfecho clássico, o filme se conclui com Curran/Douglas no lugar de Johnny Boz (a vítima da cena de abertura) no papel do cordeiro sacrificial de Sharon Stone. Até as suas últimas imagens, Instinto Selvagem sublinha a vulnerabilidade física e sexual e a autoridade moral em declínio do protagonista masculino.
É um filme sobre a ansiedade e a paranoia masculina. As mulheres que afirmam o seu poder suscitam a ansiedade dos homens, tanto quanto mulheres afetivamente ligadas a outras mulheres. Logo, Catherine os inquieta duplamente. É verdade que ela e as outras são talvez assassinas. Mas observe o que elas matam. A família, por um lado. Seus irmãos. Homens que poderiam se tornar maridos. É verdadeiramente constitutivo de toda a ansiedade masculina. Na verdade, é quase uma paródia do pior pesadelo do homem comum. (C. Carr no Village Voice).
A angústia masculina é geralmente bem veiculada por essa recrudescência de roteiros de uma crescente violência, abertamente paranoicos, beirando às vezes o ridículo, que colocam em cena personagens de mulheres sexualmente pervertidas e onipotentes. Com a sua superpopulação de loiras, assassinas em série e sexualmente ambíguas, Instinto Selvagem leva a palma do gênero.
Instinto selvagem é quase uma comédia sobre o pressuposto perigo mortal ligado às mulheres. Mas é a relação complexa que une todas essas mulheres entre elas que produz o horror do filme. Em outras palavras, não é o que elas fazem individualmente que constrói o formidável suspense do filme, mas o mistério do que as liga umas às outras. (Lynda Hart)
Assim olhando de mais perto a matéria desse filme, finalmente mais complexa do que se parece, podemos identificar momentos de ruptura e de conquista, e proceder uma leitura feminista que se revelará divertida, mesmo que se trate também de uma obra infinitamente misógina. Pois as questões de gênero e poder são postas de uma maneira bem produtiva como frequentemente ao longo desse ciclo de filmes que o discurso feminista ataca, oferecendo em alguns momentos uma crítica muito irônica e mesmo involuntária dos valores familiares, das relações entre sexos e da autoridade masculina.
No entanto e apesar de tudo, a extraordinária proliferação da figura da femme fatale na cultura popular, verdadeira caixa de Pandora nos anos 90, exprime um mal-estar muito profundo que nunca poderemos elucidar inteiramente. A própria femme fatale, figura controversa mas central desses filmes, tal como ela é representada, é uma monstruosidade maior do que o natural, uma espécie de caricatura paranoica do estado no qual se encontra o inconsciente masculino do homem norte-americano. Mesmo que ela não revele nada de real sobre a experiência de base da mulher norte-americana, a impossível figura da mulher violenta veicula uma carga afetiva e fantástica, um excesso discursivo que pode ser no fim das contas muito estimulante para o discurso feminista.
Tudo isso é ainda mais impressionante que a violência contra as mulheres foi ainda assim a ponta de lança de todas as batalhas feministas. E eis que a transição entre o discurso sobre a violência engendrada pela vida real e a representação hollywoodiana das femmes fatales produz um efeito de inversão de uma bizarrice um pouco sinistra. Certamente representamos frequentemente a violência contra as mulheres nas telas. Mas o sucesso de filmes como Atração fatal e Instinto Selvagem não tem equivalentes. Essa ascensão nas telas da violência perpetrada pelas mulheres é verdadeiramente um sintoma curioso e perturbador. Há nessas mulheres assassinas alguma coisa de terrivelmente forte, uma espécie de excesso emocional e fantástico que escapa de toda explicação tradicional e racional. Contra uma persistente convenção cultural (ao mesmo tempo, generalizada e mais especificamente feminista) que faz das mulheres sempre vítimas da violência, corpos sem vida ou em perigo virtual, a femme fatale propõe uma figura paratética (“façamos como se”) excepcional e onipotente. Incluindo no aspecto politicamente ambíguo da femme fatale, a inversão de papéis permite à espectadora de explorar uma metamorfose no nível da fantasia e da representação em que do objeto da violência (passivo) ela se torna sujeito (ativo). É aí, no nível imaginário, que a figura da femme fatale nos oferece momentos preciosos de evasão, mas não sem distância crítica e uma ironia benéfica. Catherine Trammel/Sharon Stone, com sua verve impossível, sua sexualidade desenfreada, sua capacidade de paralisar de emoção uma sala cheia de policiais resistentes e mesmo a força excepcional com que ela se apodera do legendário picador de gelo castrador, acarreta momentos de um culpável, intenso e supremo prazer a espectadora feminista – uma fantasia efêmera, certamente, mas eminentemente estimulante.
La femme fatale hollywoodienne des années 90 – Basic Instinct, un cas de figure foi publicado na revista Vertigo, nº 14 (dossiê “Féminin/masculin”), em janeiro de 1996, traduzido do inglês por Caroline Benjo. Tradução do francês: Leticia Weber Jarek.
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