O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Os trapos do realismo




Por Pierre Léon 

A querela do realismo na arte procede […] da confusão entre o estético e o psicológico, entre o verdadeiro realismo, que é a necessidade de exprimir a significação ao mesmo tempo concreta e essencial do mundo, e o pseudo-realismo do trompe-l’œil (ou do trompe-l’esprit) que se satisfaz com a ilusão das formas”. 
André Bazin, Ontologia da imagem fotográfica[1]

Realismo: em termos de arte e de literatura, ligação à reprodução da natureza sem ideal”. 
Ideal: o modelo interior do poeta, do artista”. 
Le Petit Littré 

Tudo está bem? 

O ódio, de Mathieu Kassovitz, é um filme muito curioso, pois ele põe, um pouco nas bordas de uma poética pobre, questões importantes, como o faziam há uns 10 anos A sociedade dos poetas mortos, de Peter Weir ou Imensidão azul, de Luc Besson, em um fluxo ininterrupto e por vezes eficaz de clichês sociológicos ou psicológicos, como se o cineasta drenasse com ele uma frustração, um incômodo diante dos temas encontrados, na falta de ter reduzido suficientemente o campo de suas preocupações. Já o próprio título, ainda que seja lúcido a respeito de sua polissemia, uma vez que designa ao mesmo tempo o antônimo de amor e uma expressão da linguagem corrente, mantém o espectador em uma posição deliberadamente inferior, fazendo apelo globalmente a sua consciência social diante de uma situação cuja gravidade o cineasta teira sido o primeiro a compreender. Não é uma caricatura: O ódio se situa de partida em uma metáfora carregada (o homem que cai do alto de um prédio e que repete para si durante sua queda: “até agora, tudo está bem”), reexposta no fim do filme e que não deixa nenhuma dúvida sobre a posição de árbitro que seu autor se outorga. Por mais desagradável e discutível que essa afirmação possa parecer, ela não deixa de ser a prova de certa força de convicção. A análise dupla de Kassovitz, ao mesmo tempo do cinema e da sociedade, mesmo que seja primária, não é completamente errônea, pois dá conta da dominação psicológica do primeiro sobre a segunda e da lei segundo a qual a eficácia de uma tese ideológica se mede pela capacidade de simplificar sua enunciação. É também a lição de Eisenstein, que Kassovitz parece ter naturalmente assimilado. 

Seu realismo platônico — o mundo das ideias antes do mundo dos homens — se situa na linhagem obscura do cinema francês, que vai de Duvivier (pela obscuridade pragmática) a Carné (pelo estetismo geométrico da decupagem), passando por Clouzot (pela busca por eficácia) e que, no cinema contemporâneo, desemboca em certos filmes de Tavernier, Corneau ou Blier. Mas o que desequilibra o filme de Kassovitz, principalmente do ponto de vista estético, é a gestão anárquica dessa herança: a qual ideologia dominante Kassovitz se opõe ou acredita opor-se com um método que se origina na pior prática acadêmica e em uma enunciação brutal e descabida de um ideal de cinema (e não mais de um modelo de artista), como se o mero fato de fazer filmes colocasse o cineasta acima dos que não o fazem, ou seja, de quase todos os outros? Em particular, a cena kubrickiana da pilhagem de uma galeria de pinturas parisiense, na sua grotesca incompletude, dá calafrios pelo que acumula de tentação totalitária. A câmera, inteiramente devotada à causa dos que quebram (e que acredita estar, assim, do lado dos oprimidos), filma e escruta os rostos angustiados, como se fôssemos assistir a um estupro coletivo, e os estupradores, em um movimento cínico e fazendo caretas, fossem confiar à película a imagem de seu crime. Mas não se deve esquecer que é entre os oprimidos desse tipo que os opressores recrutam seus milicianos. 

Sim, O ódio é certamente um filme político, mas talvez não no sentido desejado por seu autor. Sem sequer falar na recuperação massiva do filme pela mídia, o filme fracassa em sua meta principal, que é a de chamar atenção para um desequilíbrio social maior, e entra prudentemente no sistema da opressão, ao mesmo tempo tranquilizando os responsáveis pela organização social em sua impotência em tratar o problema e os espectadores, que se veem como as vítimas consensuais dessa impotência. 

Se, no plano estético, o filme de Kassovitz não é novo (e isso não é um defeito, o mero desejo de modernidade não envolve toda a modernidade), não pensemos, contudo, que lhe falte estilo. O roteiro é magro, mas preponderante, como em Autant-Lara ou Tavernier, a psicologia é tão banal quanto a de Besson, o desejo de marcar época é tão flagrante quanto em O boulevard do crime. Quanto ao estilo, se não é muito original, ao menos é eficaz. Esse tipo de decupagem, rápida, inteiramente a serviço da montagem, que Kassovitz pratica de modo profissional, provou seu valor há muito tempo. Planos fechados com grande-angular, a câmera levada ou fixada em cima ou embaixo das personagens, preto e branco consensual, geometria das linhas, asseio da dinâmica sonora, direção de atores ao estilo cinéma-vérité, todos os elementos funcionam em estreita osmose, o que dá ao filme uma impressão de coerência, em perfeita contradição com o caos teórico de seu tema geral. O que mostra bem que um olhar generoso sobre o mundo (exatamente o contrário do ódio) é sobretudo saber se manter à distância. Nem muito perto nem muito longe. 

Onde pôr sua câmera? 

Há uma quietude do olhar em À vida, à morte!, de Robert Guédiguian, cujas malhas do roteiro são suficientemente frouxas para permitir que nos deixemos apanhar nos fios de sua mise en scène. O filme é quase inteligente demais, atento que é a cada gesto, com a consciência grave que caracteriza a localização das personagens nos planos (como o corpo nu do cunhado sobre o rochedo imediatamente antes de a vida abandoná-lo — ou de a morte acolhê-lo) ou nessa maneira de fazer as personagens se engalfinharem e de logo se afastar, talvez no temor de forçar demasiadamente nossa simpatia. Se o filme começa como uma crônica desiludida da vida cotidiana de uma comunidade de gente pobre (no sentido dostoievskiano) e poderia nos fazer temer derrapadas wylerianas, a câmera instala pouco a pouco essa distância salutar, estreita, entre as personagens e nós, tão estreita que por vezes sufocamos nela, mas cujo princípio é relaxar a compressão com cenas de pura comédia, de dança ou de canções em que encontramos, em certos momentos, a graça de um Jacques Rozier. 




Essas personagens, por seu duplo pertencimento ao mesmo tempo ao real marselhês deslocado e ao romanesco poético do cineasta, não são, como em O ódio, funcionários de uma convicção ou prolegômenos, mas potentes portadores de solidão em uma comunidade difícil cuja confiança e coesão eles se esforçam para não trair. E, em cada situação problemática do ponto de vista dramatúrgico (a canção do avô obcecado pela guerra da Espanha, o strip-tease coletivo sonhado), Guédiguian sabe parar um plano imediatamente antes de ele nos tomar como reféns. 

Como não há realmente cenas que se sobressaem (será por isso que o filme é tão fugitivo?), trata-se da narrativa de uma experiência que nos interessa, a de um cineasta que descobre com modéstia o local exato em que deve pôr a câmera. 

O proletariado aos trapos 

Não é só o amor que responde ao ódio. Há também o cinema que responde ao cinema (sem, contudo, buscar fazê-lo) e Mulheres diabólicas, de Claude Chabrol, era, nesse ano de 1995, o antídoto salutar ao filme de Mathieu Kassovitz. Não há nenhuma semelhança de roteiro entre os dois filmes, mas uma mesma vontade de analisar o ódio como um sentimento de classe e, onde Kassovitz, inteiramente impregnado da débil ideologia pós-comunista, consensual e fundada unicamente no conceito dos direitos humanos, dá provas de uma visão unívoca, Chabrol de partida põe o dedo no que interessa eminentemente, a ambiguidade, presente em todas as formas de opressão.




Em várias entrevistas, Chabrol disse, com a malícia que o caracteriza, que Mulheres diabólicas era um filme marxista e isso é verdade, assim como Entre amigas o era. Mas a malícia de Chabrol é certamente fachada, tendo-se tornado tão de mau gosto invocar Marx, e o empréstimo que ele faz da teoria marxista não é nem fortuito nem superficial. O que falta a O ódio não é somente um contraponto ideológico, mas também o interesse mais elementar pelo que rege a realidade social. Chabrol não se deixa influenciar pela lamúria atual, mas reencontra, estranhamente, a acuidade de um Victor Hugo quando pinta com traços vigorosos esses Thénardier em potência que são Jeanne e Sophie, representadas por Isabelle Huppert e Sandrine Bonnaire (uma verdadeira ideia de casting), personagens saídas desse “proletariado aos trapos” cujas condições de existência aterradoras fazem com que ele “seja mais disposto a se deixar comprar por maquinações reacionárias[2]. Assim, sem fazer economia dessa ambiguidade fundamental, Chabrol mergulha com prazer nesse grande drama capitalista com a distância necessária para não afundar na caricatura (exceto, talvez, na atuação enfática de Isabelle Hupper — o episódio do chiclete — ou na personagem do padre) pela presença, ao lado do olhar do espectador, de um terceiro olho, ao mesmo tempo jocoso e grave, verdadeiro recurso e possível apaziguamento à sangrenta conclusão do filme. Terceiro olho que assiste a toda a família se instalar diante da tela 16/9 da televisão para gozar do espetáculo de um Don Juan dirigido em Salzburgo por Karajan, terceiro olho, que agora se tornou o nosso, implacável, mas divertindo-se com essa imagem perfeita de uma burguesia triunfante em seu bom gosto e em seu direito. Terceiro olho que não piscará quando o “proletariado aos trapos” apagará friamente essa imagem da face da terra, antes que um acidente de carro para uma e o tribunal (provável) para a outra apaguem-nas por sua vez.

Chabrol e o roteiro

Mais uma palavra sobre Mulheres diabólicas. Diz-se que há um problema de roteiros na França e deve-se ter razão, porque não há um roteiro julgado bom pelo establishment e pelo complexo rappenelo-berriano que não seja um roteiro ruim (O Urso, Camille Claudel, Urano etc.), dialogado com um garfo e recheado de clichês, mas que possui a vantagem de aferrolhar todas as saídas, encerrando a mise en scène na pura ilustração. Donde essa importância exagerada conferida aos roteiristas, como se a escrita das palavras, em absoluta contradição com a visão das imagens em movimento, fosse a garantia incontestável de um autor. Chabrol, que se abandona de bom grado a um academicismo sorridente à la Ivory (em Madame Bovary ou Um assunto de mulheres), soube liberar o lastro roteirístico e diversos pontos de sua história permanecem como que em suspenso. Por exemplo, do ponto de vista estritamente narrativo, nada nos permite afirmar que as duas heroínas cometeram os assassinatos de que foram acusadas, assim como nada nos indica que não os cometeram. E o fim do filme permanece absolutamente enigmático com algo de desproporcional nessa brusca irrupção do fora-de-campo (o acidente, a chegada da polícia na noite imensa), onde o espectador, sempre terceiro olho faceiro e atento, passeia e imagina o que lhe aprouver. Chabrol estabelece uma relação conflituosa com seu roteiro, que deixa de ser um simples tapete sobre o qual rola o travelling de sua mise en scène, ele o discute, questiona-o, obscurece o que não precisa ser dito, demora-se nos momentos em que não acontece nada (em particular, todos esses planos que mostram o corpo lento, como que anestesiado, de Sandrine Bonnaire) e, além disso, se dá ao luxo desse suspense hitchcockiano escalonado em que o analfabetismo de Sophie é primeiramente comunicado ao espectador e depois às outras personagens. É nisso que o roteiro deve à mise en scène, e não o contrário.

Ademais

Por outro lado, o cinema é uma linguagem” (Bazin). O que me interessa é esse “por outro lado”. Porque, para que haja um “por outro lado”, a sintaxe exige que tenha havido um “por um lado” e ele não está aí. O que Guédiguian afirma como que de passagem é que o cinema é uma linguagem e que, talvez, ele seja, precisamente, de outra parte[3] (e de outra parte é em seu lugar). Não se pode negar ao cinema essa capacidade de comprazer-se e denegrir-se, de buscar ao mesmo tempo a aprovação do público e a da crítica, de professar, como o fez Kassovitz em uma polêmica com Les Inrockuptibles[4], da qual o mínimo que se pode dizer é que ela não o fez parecer maior, o ódio aos intelectuais, ódio burguês por excelência, ou de buscar em experimentações subterrâneas a pedra filosofal. O cinema é, de fato, a arte total e, se ainda existem iletrados, como a Sophie de Chabrol, é pouco provável que encontremos mais de uma dúzia de analfabetos da imagem (Sophie assiste à televisão o dia inteiro). O cineasta fala a língua de todo o mundo. Eu acho que Guédiguian fala a língua de Mathieu Kassowitz, mas é pela elaboração de uma linguagem que ele se singulariza, e Kassovitz, por sua audiência excepcional. Não se trata de opor essas duas práticas ou de julgá-las, pois ambos os filmes são objetos culturais, que são iguais diante de nós, apesar de seus autores e do que eles quiserem dizer sobre eles, mas de buscar esse ponto preciso em que seus filmes operam a junção com a realidade. E é na diferença entre o julgamento de realidade e o julgamento de valor que reside a função essencial do realismo.

O sintagma de São Tomás

Se a querela de que fala Bazin entre a arte realista e a arte trompe-l’œil é como o Etna, que nunca se apaga completamente, acontece de um cineasta, pela importância que assume aos olhos de seus contemporâneos, conseguir mantê-la em uma atividade razoável, isto é, atrair para si oposições e propor sua síntese. Esse cineasta-ímã (e amante) chama-se Jean Renoir. Se olharmos de perto, o que encontramos no meio do caminho entre Grémillon e Duvivier? Renoir. Entre Gréville e Trivas? Renoir. Entre Pagnol e Guitry? Renoir. Entre Clouzot e Becker? Renoir. Entre Godard e Demy? De novo, Renoir. Entre Eustache e Truffaut? Mais uma vez, Renoir. Com isso, não quero dizer que Renoir seja o justo meio do cinema francês, mas, ao longo de toda a sua carreira, que vai do mudo à maturação do cinema moderno, ele soube, por sua técnica de camaleão realista, atrair para si todas as transformações maiores de sua arte, ao mesmo tempo em que permanecia modestamente o maior dos cineastas.




Um homem que não gosta de ser comparado a Renoir desempenha hoje em dia esse papel federador e é Maurice Pialat. Já pelo lugar que ocupa (ou que ele quer dizer que ocupa) no sistema cinematográfico francês, o de um mal-amado, de um eterno avexado, notório insatisfeito, à frente, mesmo assim, de uma dezena de longas-metragens em 26 anos, o que não é muito, mas não é algo desprezível. Um cineasta inclassificável, à distância das comunidades, dir-se-á o contrário de Renoir, sim, mas que se assemelha ao cinema de hoje no que ele tem de heterogêneo. 

De qualquer forma, é divertido constatar que Pialat, que pratica a arte do denegrimento como ninguém (inclusive a respeito de sua própria pessoa), é justamente o cineasta que, em pouco mais de um quarto de século, integrou em sua poética a destruição narrativa godardiana (e sua relação com os atores-estrelas), a experimentação estética eustachiana (sobre a duração de uma cena), a descrição atenta da juventude e de sua capacidade ou não de transformar o mundo (como em Rohmer), mas também a afirmação de certa vulgaridade enquanto fazendo parte do patrimônio (com empréstimos de Bertrand Blier ou mesmo de Michel Lang ou Max Pécas). 

Portanto, um homem contraditório, inteligente e sensível, um cineasta que se interessa pelo momento que passa sem deixar escapar nada de sua magia, um pintor da desordem, cujos filmes possuem todos esse pequeno perfume de inacabado, de falso natural e de aparente improvisação que os coloca de partida entre as manifestações mais singulares dessa segunda metade do século. Em qualquer filme de Pialat, há sempre — e podemos decididamente chamar isso de milagre — ao menos uma cena ou mesmo um único plano cujo grau de sentimento real é tal que tem-se paradoxalmente a impressão de viver um sonho (penso na primeira aparição, no vão da porta, do Pialat-ator em Aos nossos amores). É nesse tipo de aparição que se desenrola plenamente “essa cumplicidade buscada na filmagem e cujos indícios o espectador percebe como um convite a entrar na dança, como uma vara estendida a sua própria conivência”, como nota Jacques Bontemps a respeito de A noite da encruzilhada, de Renoir[5]. Há uma semelhança evidente na direção de atores tal como praticada por Renoir e Pialat. Ainda que este último exponha mais voluntariamente os traços e reduza ainda mais a distância que separa o ator da personagem, sem que se possa identificar precisamente com quem estamos lidando — com Pialat ou com o pai de Suzanne? Com Bonnaire ou com Suzanne? (ainda Aos nossos amores); com Jean Yanne ou com um sósia de Maurice Pialat? (Nós não envelheceremos juntos) —, há em Renoir o mesmo tipo de perturbação que nos acomete quando vemos A cadela ou A regra do jogo, em que a diferença que vibra entre Simon e Legrand ou entre Renoir e Octave é da espessura de uma folha de papel-bíblia. O papel-bíblia da ilusão[6]

O novo filme de Maurice Pialat, Le Garçu, para além da provocação regional de seu título — mas que cumpre suas promessas por causa do suspense psicológico que rege o filme e que responde à questão “mas de quem se fala?” — joga até o fim a carta da interpenetração entre a ficção proposta e a realidade documental da vida privada. Pela presença de Antoine Pialat, o filho do cineasta, pela presença intertextual de Depardieu, pela heterogeneidade da interpretação, pela explosão aparente da linha narrativa, Pialat mostra uma capacidade de organização do caos à qual ele mesmo não nos havia acostumado (e que falta tão cruelmente ao filme de Kassovitz). Então, seu filme torna-se um concentrado temático e estético de seu caminho pessoal, mas sem o ensimesmamento que caracteriza, em geral, esse tipo de exercício (seria divertido evocar Fellini e Moretti a esse respeito), porque a generosidade faz com que se olhe para outro lugar. 

Se Le Garçu não é o filme mais bem-sucedido de seu autor (não há nem essa adequação vertiginosa entre a filmagem e o argumento como em Antes passe no vestibular nem a acuidade ao mesmo tempo amarga e precisa das relações sociais como em Loulou nem a grandeza cômica da tragédia familiar como em Aos nossos amores nem o sopro inquietante de uma solidão exasperada como em Van Gogh), é porque ele acumula disso tudo elementos dos quais talvez ele não tenha o domínio absoluto: em sua maneira de filmar seu filho, há mais um olhar de pai que um olhar de cineasta, o que não se lhe reprovaria, mas sua presença incômoda (pela mobilidade e pela vida que seu corpo de antes do cinema exprime e que não pode dar conta dos imponderáveis de uma filmagem) exige do espectador que a aceite ou rejeite em vez de integrá-la à economia geral do filme, assim como ele não integra ou integra dificilmente as personagens de Elisabeth Depardieu ou de Fabienne Babe. Em contrapartida, Gérard Depardieu, tão enigmático, habitado por uma força de ordem mitológica (não é Aquiles saindo de sua tenda, imóvel a grandes passos?), propulsiona com uma real leveza sua massa invadindo os quatro cantos de cada um dos planos que habita: é preciso vê-lo correr na praia para compreender o que esse corpo estranho do cinema francês pode deslocar como sentido suspenso! 

O que caracteriza em primeiro lugar esse filme desconfortável é sua capacidade de integrar a querela de que fala Bazin em um conjunto de interrogações, correndo o risco de que elas o levem ao desinteresse por certos elementos narrativos (na recusa de tipificação social das personagens, entre outros), mas ganhando em outros planos, quando se recusa, por exemplo, a romper a sequência em que Rocheteau come torradas e em que sua falsa doçura pascaliana (“Não obstante essas misérias, ele quer ser feliz e quer apenas ser feliz e não pode não querer sê-lo”) rompe com a presença ilusoriamente viva de Depardieu. É nesse sentido que Pialat é um verdadeiro realista, um realista do presente, que vira do avesso, como uma meia, o sintagma de São Tomás: eu vejo o que creio. E que sorri gravemente para o espetáculo da divina comédia humana. 

[1] In: Qu’est-ce que le cinéma?, éditions du Cerf. 

[2] Marx e Engels, Manifeste du parti communiste, Aubier. 

[3] Jogo de palavras a partir da locução d’autre part, “por outro lado”, mas que também poderia ser lida literalmente como “de outra parte”, “de outro lugar” [NT]. 

[4] Descontente com o tratamento “crítico” do filme por parte da revista semanal Les Inrockuptibles, Mathieu Kassovitz enviou à redação do jornal uma carta virulenta, que foi publicada no nº 15 (21-27 de junho, 1995), acompanhada pela resposta não menos virulenta dos jornalistas incriminados. Foi-lhes fácil replicar ao “… ganhar a vida criticando os outros não é, na minha opinião, um trabalho glorificante…” e a outros “… a crítica deve permanecer objetiva, mesmo se for negativa”. 

[5] In: “Le feu de l’esquisse”, Trafic, nº 16, outono de 1995. 

[6] Penso que, no cinema americano, essa distância entre o ator e a personagem se define em termos de altura, de verticalidade (por exemplo, um dos maiores atores hollywoodianos, Dana Andrews, parece sustentar o corpo de suas personagens, ao menos nos filmes de Lang, Tourneur ou Preminger), ao passo que a tradição francesa tenderia mais à horizontalidade (penso, em particular, em Raimu que precede em alguns metros os modelos que ele deveria encarnar). Hipótese a ser explorada. 

Les haillons du réalisme foi publicado originalmente na revista Trafic n°17, inverno de 1995. Tradução: Rafael Zambonelli. 

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